Chapter 1: The Gotham We Have (Parte 1)
Notes:
Minha sobrinha acabou de apagar o primeiro capítulo kkkk então estou repostando
Chapter Text
Bruce acordou com o despertador, eram 4:30 da manhã. O peso imóvel ao seu lado denunciava que havia sido uma boa noite, o Coringa tinha dormido depois de três noites de choro e gritos. Bruce sabia que os remédios não estavam fazendo bem.
Pensar nisso deixava o moreno trincando os dentes, ele sabia que depois de tudo que aconteceu no ano passado, ele não podia acreditar seriamente que o Batman e o Coringa sairiam impunes. Como esperado, isso não aconteceu. Felizmente, nunca conseguiram ligar Bruce Wayne a figura do Batman, pelo menos não concretamente, então Bruce estava bem, no entanto, o Coringa não escapou, ele não tinha uma máscara para se proteger da justiça. Ele apenas sentou na mesa dos réus e deixou que eles falassem, o palhaço não parecia se importar, ele nem tentou oferecer uma versão diferente dos fatos.
Com a ajuda um pouco relutante de Harvey e com o auxílio muito necessário de Gordon, o ex-terrorista não foi mandado para Arkham novamente, nem para qualquer outra instituição. Todavia, o louco foi obrigado judicialmente a comparecer em sessões de terapia semanais, além de fazer o uso de um massivo número de medicamentos prescritos. Ele tinha sido afastado da polícia até recentemente.
Bruce, saindo de seus pensamentos, se virou para beijar a cabeça cheia de cabelos loiros com um suspiro antes de se levantar, foi um ano turbulento, isso falando para além dos problemas na justiça. O moreno rapidamente cambaleou para o banheiro em silêncio. Ele não queria acordar o palhaço, era de conhecimento comum que ambos precisavam de uma pausa, de uma boa noite de sono.
O moreno jogou água nos rosto e olhou seu reflexo no espelho por um momento, ele parecia velho, muito mais velho do que antes. A luz amarelada do banheiro não ajudava a suavizar suas feições, ele parecia horrível. Bruce marchou para fora do pequeno banheiro, olhando uma última vez na direção do Coringa, antes de sair do quarto e ir em direção ao corredor.
Ele parou em frente a outra porta, não muito distante, era seu refúgio. Quando eles montaram o pequeno e estranho apartamento, o moreno fez questão de ter um espaço para colocar suas coisas de treino. Bruce continuava em forma, embora o Batman estivesse aposentado.
O moreno rapidamente segurou uma das barras, pronto para fazer a sequência, deixar que seus pensamentos nadassem enquanto seus músculos pegavam fogo. O ano tinha sido confuso, devastador como um incêndio. Depois da prisão de Roger Elliot, muitas coisas tinham dado errado, um efeito dominó se formou, muitos dos envolvidos começaram a cair e muita sujeira foi aparecendo, entre elas, sujeira relacionada com as empresas, as empresas que seu pai tanto se orgulhava.
Foi provado mais tarde no mês seguinte que Thomas Wayne não sabia de nada, mas o estrago em seu nome já estava feito. Houveram grandes rombos nas finanças da empresa, dinheiro usado para o tráfico de pessoas, tudo isso sem que Thomas soubesse. Esse foi o prego final no caixão da Wayne Enterprise, não tinha mais volta e a situação ficou irreversível. Um pente fino foi passado na diretoria e nos altos cargos, com tantos escândalos, as ações já não valiam mais nada. Foi triste abandonar o sonho de seu pai e vê-lo desmoronar.
Bruce não tinha ficado com muito, a mansão era algo intocável, Bruce não ousou vendê-la, deixou-a para Alfred. O dinheiro que conseguiu ficar, que não estava atrelado com ações no nome das empresas, foi o bastante para comprar um apartamento e fazer um fundo para seu antigo mordomo e melhor amigo, que trabalhou a vida inteira para ele, e já não tinha idade para procurar emprego. Bruce garantiu que o homem mais velho poderia viver confortável até o último de seus dias.
Os músculos do moreno ardiam, pegavam fogo, e o suor começava a se acumular em em seu corpo. Bruce gostava de fazer isso pela manhã, uma hora de treino sempre o animou. O ex-bilionário rapidamente voltou para o quarto, abrindo levemente o roupeiro para retirar roupas limpas.
-Brucie…- chamou uma voz sonolenta, fazendo o moreno olhar em direção à origem do som.
-É muito cedo ainda, amor - suspirou o moreno ainda parado no lugar - desculpe ter te acordado.
-Não, tudo bem - falou o loiro se sentando com um sorriso cansado que não alcançava seus olhos opacos, um que vinha adornando seus lábios nos últimos dois meses - vem aqui.
Bruce se aproximou lentamente antes de dizer com um bufo:
-Estou suado.
-E desde quando isso me impediu ? - perguntou o loiro passando a língua pelo lábio inferior antes de abraçar o moreno, enterrando sua cabeça contra a barriga do outro homem com um suspiro cansado.
O moreno carinhosamente levou uma das mãos para acariciar o cabelo loiro por um momento. Ele não disse uma única palavra, ele já desistiu de perguntar se o ex-terrorista estava bem, era óbvio, então Bruce parou de perguntar em algum momento semanas atrás.
O carinho durou alguns minutos, antes que o loiro se afastasse dizendo:
-Não vou te prender aqui, eu sei que é o seu primeiro dia, e embora você não queira ouvir, você merece, sabe que eu sempre estive na torcida.
Era verdade, depois do que aconteceu com a Wayne Enterprises, Bruce precisava de um emprego de verdade. Ele conseguiu com ajuda de Rachel, embora o escândalo tenha abalado sua imagem, e seu casamento também acabou gerando olhares azedos. Bruce não estava preparado para roubar novamente para sobreviver, não como fez antes de conhecer Rá´s em uma prisão no Butão. O moreno não queria pensar no seu antigo mentor, ele devia estar rindo do moreno agora no inferno.
-Eu sei - falou o moreno saindo de seus pensamentos - eu vou fazer o café, ainda é cedo para você levantar, tanta dormir.
O loiro fez um sinal afirmativo antes de se deitar novamente, Bruce se afastou da cama em direção a porta dizendo:
-Você quer que eu compre aquelas rosquinhas com açúcar na volta para casa ? Só vou voltar à noite.
-Não - entoou o loiro com uma voz sonolenta, seus olhos já fechados - eu não estou com vontade de comer doce, embora sempre tenha alguma coisa na delegacia.
-Tudo bem, vamos deixar para outra hora então - comentou o moreno saindo pela porta.
Ele sabia que a recusa por parte do Coringa não era um bom presságio, ele sentia que o outro homem, mesmo quando colocava uma máscara de normalidade, não sentia o menor prazer por coisas que geralmente o deixavam animado. O palhaço geralmente ficava animado pelas coisas mais ridículas.
O loiro tinha sido o grande decorador do apartamento, e Bruce estava mais do que bem em deixar o ex-terrorista decidir como queria tudo. Como o moreno imaginava, o palhaço não se importou muito com os móveis, optando por coisas mais baratas, a maioria do seu apartamento antigo.
O louco colocou as pequenas e escassas partes mais suaves de sua personalidade explosiva, como os desenhos de giz de cera, espalhados massivamente pelas paredes do quarto dos dois, ou as diversas fotos emolduradas pelo corredor, a grande maioria delas retiradas no ano passado, mas havia outras, como uma foto dos pais de Bruce com ele quando criança. Estranhamente, essa foto estava pendurada lado a lado com a fotografia do Coringa junto com Jack na guerra do Iraque. Armas, rostos sujos e uniforme militar. Bruce, no entanto, não disse nada quando o louco colocou a foto desgastada junto das outras com um sorriso brilhante.
O moreno não recebia visitas regularmente, ele não era um homem de muitos amigos, e agora que ele não é mais herdeiro de nada, bem, as pessoas que o importunava sumiram. Ele estava mais para um maldito homem xsolitário dde quase 32 anos.
Bruce foi para a cozinha preparar o café. Ele não é tão bom nisso como Alfred, Bruce precisava vê-lo, mas as coisas estavam tão caóticas. Bruce suspirou quebrando os ovos na frigideira, seus ovos mexidos não eram bons de forma alguma, mas ele não era muito exigente, o Coringa também não.
O moreno cozinhou em silêncio, ainda não eram seis da manhã. Ele se pegou pensando em como sua vida tinha mudado nos últimos meses, em como de repente tudo estava tão cansativo. Bruce se sentia um trapo. Embora Rachel, com uma criança de colo nos braços, tenha conversado com Harvey e ambos juntos tenham conseguido um emprego para Bruce na promotoria, o moreno sabia que estava pedindo demais. Rachel parecia estar lidando bem com sua vida com uma filha pequena, ela tinha muitos problemas embora, e aqui estava Bruce, precisando de ajuda para resolver sua vida.
Ele sempre achou que aguentaria os olhares azedos nas ruas, os narizes torcidos em desgosto agora que ele não tinha mais uma reputação pela qual zelar. Bruce estava tentando, ele estava trabalhando nisso. Embora já tenham se passado meses, o moreno continua encontrando fotos dele e do Coringa no jornal e nas revistas de fofoca.
Bruce tenta não se deixar afetar, as pessoas o evitam. Não que ele fosse um homem sociável antes, mas é diferente, escolher estar sozinho e ser deixado sozinho não tem o mesmo peso. Ele notava os olhares queimando suas costas, as pessoas que atravessavam a rua e sentavam a mais do que uma mesa de distância dele.
O palhaço não parecia se incomodar, ele andava como se fosse o dono da cidade, colocava o braço ao redor do ombro de Bruce, sorrindo para quem quisesse vê-lo, desafiando alguém a insultar o moreno na frente dele. Quando o ex-terrorista era mais ele mesmo, um pouco menos cansado, o ex-terrorista fazia piadas disso.
“Olha Brucie, eles até deixaram uma mesa vaga entre nós, isso que é valorizar a privacidade”
No entanto, nos últimos dois meses, ele tem preferido somente ignorar. As coisas pioraram quando os ânimos na delegacia azedaram, depois da aposentadoria de Gordon. O natural seria Chuck assumir como novo comissário, ele tinha uma bela recomendação de Jim, além do apoio da maioria do DPGC. No entanto, para a surpresa de muitos, o cargo de comissário foi assumido por Castro. E digamos que o caos se instalou.
Bruce sabia que não podia pedir ajuda para Gordon em assuntos relacionados com a delegacia, não realmente. O outro homem estava saindo de um divórcio, e tinha seu filho, Jimmy, que tinha terminado a escola e iniciado a pouco tempo na polícia. Bruce estava surpreso, ele nunca pensou que o filho de Jim se tornaria um policial.
Ele foi retirado de seus pensamentos quando o cachorro vira-lata adentrou lentamente na cozinha. O cachorro que era do agente Martin, que atualmente era deles. O Coringa o chama de “Bud”, uma referência ao comediante Bud Abbott, que foi um fato que o moreno achou cativante. Além disso, o cachorro era um pedaço da vida deles, independente da forma como o palhaço o conseguiu.
Bruce observou Bud se deitar no tapete, como fazia todas as manhãs para esperar o Coringa se levantar e ir alimentá-lo, isso fez uma pitada de melancolia se instalar no peito do moreno. Era cativante como cada pequena coisa enchia o ambiente com a atmosfera de lar, pelo menos para ele.
Bruce também depositou parte da sua personalidade no apartamento, ele tinha sua mini-academia, e para além disso, Bruce encheu a estante da sala com seus livros e alguns filmes mais antigos que ele gostava na adolescência. Ele podia ver a personalidade distinta de ambos refletida até mesmo nos armários da cozinha e geladeira. O moreno gostava de ovos, bacon, e iogurte com aveia, já o palhaço preferia cereal infantil vagabundo que custava manos do que 2 dólares, sem leite. Bruce era dos Shakes de proteínas, e leite de soja. Já o Coringa, café estupidamente doce com canela.
Bruce preferia vinho ou Whisky, o Coringa cerveja e Vodka. Bruce não está orgulhoso de si mesmo nesse aspecto, ele tem bebido no último ano. Sem a figura do Batman, o moreno facilmente se deixou afogar as mágoas com o álcool. O ex-bilionário se mostrou bastante fraco para bebidas, ou talvez o ex-terrorista fosse muito forte.
O ex-bilionário perdido em devaneios rapidamente se dirigiu até o armário e retirou uma pequena caixa de ração e despejou na tigela de Bud com um sorriso triste.
-Desculpe Bud, eu penso que ele pode esquecer de você de novo - falou o moreno como se o vira lata pudesse entendê-lo antes de suspirar e voltar para o fogão.
O moreno terminou de preparar o café da manhã, servindo para o palhaço uma tigela de cereal e café preto com canela, antes de servir seu Shake de proteínas em um copo, além de uma fatia de pão com manteiga e ovos. Ele rapidamente colocou tudo em uma bandeja, levando-a para o quarto, para colocá-la em cima do criado mudo com um pequeno sorriso.
-Amor - chamou o moreno para acordar o palhaço - está na hora de tomar seus remédios. Com essas palavras Bruce se dirigiu em direção a cômoda, abrindo muitos frascos de remédio e juntando as 6 cápsulas matinais em um pequeno copo de papel. Ele rapidamente foi em direção da cama, entregando-o para o louco com uma expressão resignada.
O palhaço pegou o pequeno copo indiferente e colocou seu conteúdo na boca, engolindo em seco. Ele estava acostumado a engolir comprimidos. Eles ficaram em silêncio por um momento antes que Bruce tornasse a falar se sentando na beirada da cama:
-Eu trouxe o café, eu achei que seria melhor a gente comer junto.
-Obrigado Brucie - falou o palhaço lambendo o canto da boca - mas eu não estou com fome, estou cansado.
-Você precisa comer - suspirou o moreno cansado - faz uma força, aí eu deixo você dormir mais um pouco.
O loiro assentiu antes de pegar a xícara de café e começar a tomar em silêncio. Ele parecia muito apagado, sem vida para alguém que sempre foi tão barulhento.
-Você vai para sua consulta hoje ? - perguntou Bruce.
-Eu não tenho escolha, tenho ? - falou o loiro com o nariz torcido, antes de passar a língua pelo lábio inferior - eu não posso simplesmente não aparecer lá.
-Você tem conversado com ela ?
Bruce queria saber o que o louco estava falando com sua psiquiatra. Se é que estava falando com ela, porque o palhaço nunca teve um bom relacionamento com psiquiatras em um geral
-Não exatamente - riu o palhaço, seu riso totalmente sem humor - eu já teria arrancado os olhos dela com a primeira coisa pontiaguda que eu conseguisse, mas eu me sinto tão cansado, que não consigo sentir nada, nem raiva, e ela quer me inserir na terapia de grupo.
-Isso parece bom, a terapia em grupo - comentou o moreno.
-Me juntar em uma sala com um bando de malucos ? - questionou o louco passando a língua pelo canto dos lábios com um olhar desacreditado - eu agradeço, mas passo, já tive o suficiente de caras estranhos com seus problemas estranhos.
Bruce poderia zombar disso, o Coringa era sem dúvidas, tão estranho e maluco quanto os outros, se não mais. Todavia, o palhaço não achava isso e moreno achava melhor não empurrar.
-Você devia comer Brucie - entoou o louco de repente, retirando o moreno de seus pensamentos. O palhaço parecia tão cansado.
O moreno sabia que isso tinha relação com os remédios, o Coringa tinha razão, eles o deixavam doente. Bruce tentou sorrir, ele sabe que a tem tendência de ser a parte segura do relacionamento, outras pessoas se sentiriam negligenciadas, mas não Bruce. O ex-bilionário e o louco tendiam a trocar de papéis no relacionamento dependendo da situação, e Bruce sabia que nesse momento, era sua vez de tomar as rédeas e ser a parte forte e sólida na relação. O moreno sabe que tem tentado.
O Coringa tinha segurado a barra quando Roger Elliot foi preso, com o escândalo da empresa, o nome da família de Bruce na lama e todos os problemas que vieram disso. Bruce estava devastado, investigando dia e noite, tentando encontrar uma resposta, tentando achar uma justificativa.
“Vamos Brucie, é só papel, e..hey, dane-se o que esses abutres pensam do papai, eles são só um bando de idiotas”
O palhaço se manteve firme, ele deixou o moreno chorar, quebrar as coisas e até ser agressivo, sem dizer uma única palavra de julgamento. Bruce sabia que não era saudável, mas funcionou para eles. Ele estava bem agora.
O Coringa tinha assumido a dianteira, e agora era a vez de Bruce fazer isso. De impedir que esse trem saísse de vez dos trilhos. No entanto, Bruce não sabia como fazer isso. Ele não conseguia.
O moreno então se limitou a tomar seu shake de proteínas em silêncio.
-Você alimentou Bud ? - perguntou o louco passando a língua pelo lábio inferior.
-Sim - confirmou Bruce antes de acrescentar - você esqueceu ontem.
O loiro ficou em silêncio antes de suspirar fechando os olhos:
-Sim, eu sei disso.
O moreno ficou em silêncio antes de dizer carinhosamente:
-Você sabe que sempre posso fazer isso para você, eu só quero que você fique bem, que você coma direito, durma direito e não fique pensando bobagens, estou preocupado.
O louco mordeu a língua até sentir o gosto metálico de sangue, mas ficou em silêncio. O Coringa queria ficar bravo, ele queria rir disso…porque ele não conseguia rir ? Tudo parecia tão cinza.
-Acho que você vai se atrasar se não sair agora - comentou o loiro de repente.
Bruce ficou de boca aberta por um momento, era verdade. Parecia que seu tempo com o Coringa nunca era o suficiente. Com esse pensamento, o moreno se inclinou na direção do outro homem, depositando um beijo casto nos lábios do loiro antes de dizer se afastando para colocar um terno:
-Vou contar cada segundo para te ver de novo, dê um olá para Chuck por mim.
-Chuckie está uma pilha de nervos, nem vou passar perto dele hoje - comentou o louco com um tom um pouco mais parecido com o seu habitual - as coisas estão uma confusão por lá.
-É eu sei - Bruce disse por fim, terminando de se vestir e saindo pela porta do quarto - até mais tarde, Jay.
Bruce saiu do apartamento rapidamente, entrando em seu carro e seguindo rumo à promotoria. Diferendo do que muitas pessoas poderiam pensar por conta da sua persona socialite, ele não sentia falta da Lamborghini, Bruce se acostumou facilmente a levar uma vida simples. O moreno tinha tudo que sempre quis, embora de uma forma um pouco torta e precária.
Bruce se perguntava internamente se estava pronto para trabalhar no mesmo gabinete de Harvey, mesmo que esse emprego seja algo temporário até que ele encontre outra coisa. Ele não tinha uma inimizade real com o outro homem, havia algo afiado entre eles, e Bruce sabe que é por causa de Rachel.
O moreno suspirou, ele tinha apenas um sentimento de carinho para com Rachel, então porque de repente, existia essa agulha entre os dois homens ? Buce desconfia que foi porque Harvey sempre o conheceu por sua persona de playboy metido. Claro, Harvey tinha visto outras facetas do moreno, muitas que o promotor de justiça nem mesmo achava que era possível existir. No entanto, faltava alguma coisa.
Os pensamentos do moreno foram interrompidos pelo rádio.
“Mais um assalto foi efetuado hoje pela manhã no centro de Gotham, a polícia já está no local. Nossa equipe está esperando falar com o comissário, é o segundo no mesmo quarteirão somente essa manhã, parece que ocorrem mais três durante a madrugada. Aqui é Vick Vale, para o “Bom dia Gotham”, uma boa manhã.”
Era uma notícia corriqueira, as ruas de Gotham estavam violentas, como sempre estiveram antes. No entanto, o número de gangues subiu de forma alarmante nos últimos meses. Se aproveitando do caos no DPGC depois da aposentadoria de Gordon e sem criminosos grandes, estourou uma verdadeira guerra de gangues pelo domínio de áreas da cidade. A polícia vem tentando pegá-los um quarteirão por vez.
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O palhaço tentou voltar a dormir depois que Bruce saiu, mas o sono simplesmente não vinha, então ele decidiu se levantar, não faltava muito para o seu horário de qualquer forma. O louco suspirou antes de andar até o banheiro, entrando embaixo da ducha de água quente para o que era um banho rápido.
O Coringa sabia que poderia ficar mais tempo, mas ele preferia acabar logo com isso sua ida ao psiquiatra. Ele sabe que está sendo dramático, e uma parte dele quer ficar com raiva de si mesmo por isso, ele já esteve lá várias vezes antes. Eles eram todos iguais, todos idiotas.
Ele queria acabar com a juíza que o sentenciou ao mundo cinza e sem gosto das pílulas. Os comprimidos que roubaram seu sorriso, que o jogaram em uma névoa densa de cansaço e desinteresse constante. Ele estava cansado de se sentir tão entorpecido.
O palhaço rapidamente saiu do chuveiro, vestindo suas costumeiras roupas de trabalho. Ele nunca usou o uniforme da polícia, e ninguém nunca o confrontou sobre isso, então ele não se importou com isso e apenas continuou vestindo jeans velhos e um casaco de moletom. As coisas estavam caóticas desde que Jim se aposentou.
Ele tinha uma hora marcada no psiquiatra antes de ir para o trabalho, não era longe, mas ele saia cedo de qualquer forma. Então o louco rapidamente saiu do banheiro, saindo do quarto e indo pelo corredor em direção a cozinha onde encontrou Bud deitado no tapete.
-Você não está bravo comigo não é “Budie” ? - perguntou o louco com um falso tom triste, como se o cachorro pudesse respondê-lo, antes de continuar com um suspiro cansado, e muito real - temos sorte de ter Brucie cuidando da gente, não é ? Ele está preocupado, o que podemos fazer para ele na hora do jantar ? Ele vai chegar tarde.
O louco fez uma pausa, como se esperasse uma resposta por parte do cachorro, resposta que obviamente não veio. Todavia o palhaço bufou divertido por um momento antes de entoar:
-Vá pensando nisso Budie, vá pensando.
Com essas palavras o louco saiu do apartamento, colocando o capuz do seu moletom e andando rapidamente na rua. Ele estava indo em direção ao metrô.
O Coringa odiava o que o remédio estava fazendo com ele, ele tinha a sensação de estar sendo seguido, mas sabia que era paranóia. Ele enxergava coisas também, era como se seus pesadelos pulassem para fora do sono e o atacassem na realidade. Era apenas um relance, ia embora na mesma velocidade em que apareciam. Era apenas um efeito colateral, disse a sua psiquiatra quando ele falou sobre isso.
Ele terminou sua caminhada para o metrô, ficando em pé na plataforma onde muitas pessoas esperavam o transporte. O louco estava distraído e quando o veículo chegou ele simplesmente entrou e se sentou como sempre fazia, olhando pela janela.
Foi então que no reflexo da janela, o louco o viu…Jack, sentado ao seu lado, com o rosto quebrado e coberto de sangue, como antes do Coringa terminar de amassar sua cabeça ao ponto que virasse carne moída. O palhaço quase podia ouvir a respiração do outro homem, irregular contra seu ouvido.
O louco fechou os olhos e respirou por um momento antes de olhar para o lado lentamente, a alucinação tinha mudado, havia um garoto loirinho ao seu lado no banco, ele não parecia ter mais do que 6 anos, seus olhos eram um abismo gelado olhando diretamente para ele, frios e cruéis. Seus pés descalços e esfolados balançavam sem encostar no chão. A atmosfera estava densa, rançosa. Era difícil respirar. O garoto sorriu, sua boca cheia de sangue e gengivas irritadas à mostra, os dentes arrancados pingando o líquido rubro, seguros em suas mãos.
O palhaço fechou os olhos com força, tentando respirar para se livrar da alucinação. Elas eram piores nos primeiros horários do dia, quando os remédios começavam a fazer efeito. Ainda tentando respirar o loiro escutou uma voz um pouco longe entoar:
-Por favor, eu não quero problemas…
O ex-terrorista olhou na direção da voz, uma mulher sentada em um dos bancos tentava em vão ser deixada em paz por um grupo de 4 homens. O palhaço desviou o olhar, novamente olhando para o banco ao seu lado, onde o garoto continuava balançando seus pés que não tocavam o chão, cantarolando enquanto sorria com a boca cheia de sangue, segurando seus dentes em suas mãos sujas e sem unhas.
Ele passou as mãos pelo rosto em frustração antes de ouvir seu ponto de parada. O louco se levantou, ignorando o garoto, ele ouvia um zunido dentro de sua cabeça. No entanto, ao se levantar ele acabou esbarrando com um dos homens que estavam perturbando a moça, que andavam pelo vagão perseguindo-a.
-Qual o seu maldito problema ? - perguntou um dos homens.
O palhaço não o ouviu, o garoto sentado no banco riu, seus pés ainda balançando ritmicamente junto com o ruído.
-Você está me escutando ? - perguntou o mesmo homem empurrando o louco para trás com um tom irritado.
Quando o Coringa não respondeu o homem apenas riu antes de virar e dizer para seus outros três amigos:
-Olha esse maluco, acho que fugiu do hospício, que idiota.
-Você acabou de chegar em Gotham e já está importunando as pessoas, Johnny - reclamou um dos homens - deixe esse cara, ele só um daqueles esquisitos, pode ser perigoso.
-Perigoso ? - zombou Johnny - olha o cara, ele nem olha para mim.
Johnny então pegou o palhaço pelos braços para forçá-lo a encará-lo. Notando as salientes cicatrizes e o olhar violentamente frio. Johnny o empurrou contra o banco com um rosnado de nojo, fazendo com que o capuz saísse da cabeça do palhaço com o impacto
-Olha o rosto desse filho da puta.
-Johnny - falou um de seus amigos dando um passo para trás - precisamos sair daqui.
-O que foi ? Não vai me dizer que vai perder a chance de arrebentar a cara desse c- Johnny foi cortado pela voz alarmada de seu amigo:
-Cara, precisamos sair ! E-Ele…- o homem fez uma pausa - vamos cara !
Os outros dois homens pareciam petrificados no lugar. O Coringa continuava imóvel onde caiu, ele não estava em um bom momento.
O palhaço podia ouvir o riso da criança, no fundo de sua mente, ele sentia o sangue pegajoso em sua boca, que não era real. Ele não conseguia respirar, o zunido estava ficando mais forte. De repente, da mesma forma como apareceu, simplesmente foi embora, como neblina ao vento.
Ele então se deu conta, da dor em suas costas, onde ele foi jogado contra os bancos, dos quatro homens discutindo em sua frente, a moça longe de ser vista.
Ele não sabe quem deu o primeiro soco, mas de repente ele estava fora do vagão, mancando, com os nós dos dedos avermelhados em carne viva, nariz sangrando e com as maçãs do rosto de um tom de vermelho escuro, que seriam hematomas no dia seguinte.
Ele continuou caminhando em silêncio, mesmo depois de ouvir a sirene da ambulância ao longe e algumas pessoas correndo desesperadas para fora da estação. Ele continuou caminhando. O garoto loirinho, no fundo da mente do palhaço, sorriu sem dentes.
Chapter 2: The Gotham We Have (Parte 2)
Notes:
Aqui estou eu lançando um dia adintado kkk Obrigado por todos os comentários, vocês nem sabem como isso me motiva a continuar essa série. Novamente muito obrigado !
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O dia já tinha começado agitado para Harvey Dent, mas ele não podia reclamar, acordar ao lado de Rachel e compartilhar todas as frustrações logo de manhã foi o que ele sempre quis. Antes mesmo de pensar sobre isso.
-Harvey - chamou Rachel de repente para ter a atenção do homem loiro - você pode segurar Duela para mim ?
-Eu estou de saída, meu amor - respondeu o promotor público terminado de colocar sua gravata enquanto cruzava a cozinha para dar um beijo em sua mulher e filha - estou atrasado, vou chegar mais cedo hoje na promotoria.
-Hoje é o primeiro dia de Bruce, você sabe que ele é o meu melhor amigo - começou a mulher se aproximando para beijar Harvey - então por favor seja legal.
-Olha Rachel - suspirou o loiro segurando sua mulher pelos braços carinhosamente - eu não sei o que mais você quer eu faça pelo Wayne, digo, ele frequenta a nossa casa, você sempre faz questão de incluir ele em tudo como um membro da família, e eu até o ajudei com aquele lance do Coringa por sua causa.
-Harvey - avisou Rachel com um tom cansado - não estamos discutindo por causa de Bruce, ele é o meu melhor amigo, e precisa da minha ajuda agora, apenas isso.
-Vai me dizer que esqueceu ele ? - questionou Harvey com um fiapo de irritação em sua voz.
-Foi com você que eu escolhi casar - disse a mulher em um tom duro - foi com você que eu escolhi ter uma vida, não faça com que eu me arrependa dessa escolha Harvey, eu estou com você porque te amo, pare com esse ciúmes bobo, eu não escolhi Bruce, escolhi você, e Bruce está com o Coringa agora, não estrague isso.
-Estragar ? - entoou o promotor desacreditado - acha que eu sabotaria o Wayne com o maluco do Coringa ? Por favor, eles podem se foder, Wayne ainda vai acordar com uma faca no pescoço um dia desses.
Rachel olhou para seu marido surpresa, eles tinham se casado um pouco antes da barriga começar a aparecer, durante todo o processo de gravidez Harvey tinha se mostrado muito presente e acima disso, ele tinha sido incrível quando Duela nasceu. No entanto, com o todo o caos que está em Gotham com o aumento das gangues e toda a tensão na promotoria, Dent estava desgastado.
Ela sabia que estava empurrando Harvey, ele nunca gostou muito de Bruce, e ela sabe que o Wayne não é realmente uma pessoa fácil de se aproximar e de conhecer. Ela sabe que seu melhor amigo tinha a tendência de afastar quem tentava conhecê-lo, aconteceu com ela mais de uma vez. Rachel sabe que não pode culpar Harvey por algo que não é culpa de ninguém, porque Bruce não era fácil de entender.
Eles ficaram em silêncio por um momento, eles não entendiam como isso de repente havia se tornado uma discussão. Harvey foi o primeiro a suspirar antes de dizer com um tom cansado:
-Desculpe Rachel, eu…- ele engoliu em seco olhando para sua mulher - estou cansado, estou falando bobagens, me desculpe.
-Tudo bem Harvey - falou a mulher com um pequeno sorriso antes de plantar um pequeno beijo casto nos lábios de seu marido, seus olhos transmitiam segurança - eu vou levar Duela para a casa da sua mãe antes de ir para o trabalho.
-A princesa do papai vai ficar bem na vovó ? - perguntou Harvey para a criança nos braços de Rachel com um sorriso, antes de se voltar para a mulher novamente - eu te amo, estarei te esperando para o almoço naquele restaurante que você gosta.
-Um restaurante ? - questionou Rachel com uma sobrancelha arqueada - realmente faz tempo que não saímos.
-Por isso mesmo, eu te amo, até depois - disse Harvey antes de sorrir para sua mulher, se afastando para sair do apartamento.
Harvey fechou a porta e suspirou, seu sorriso ficando da porta para dentro. Lá fora ele era o promotor público, e tinha milhares de coisas para resolver. O caminho de carro até a promotoria foi calmo, ou tão calmo quanto poderia ser o trânsito infernal de Gotham.
O promotor entrou no gabinete ficando de frente com um Bruce Wayne recém chegado. Harvey podia ver, Bruce estava péssimo, pior do que da última vez que o viu. O moreno tinha olheiras profundas abaixo dos olhos, sua postura era cansada e parecia que ele tinha perdido algum peso, embora ainda parecesse em forma. Harvey sabia que isso tinha relação com o Coringa, com a decisão judicial e com o tratamento do ex-terrorista. O promotor sabia que isso estava afetando o moreno.
Harvey sempre achou a relação dos dois completamente estranha. No começo ele achou que a relação do moreno com o ex-terrorista era apenas mais uma das excentricidades do ex-bilionário. Uma aventura. No entanto, contra tudo e todos, eles se casaram, e isso não foi apenas mais uma brincadeira para Bruce passar o tempo, não era outro caso qualquer, não, era diferente.
Depois do que aconteceu nos últimos tempos, como a queda das empresas e o julgamento do caso de terrorismo do Coringa, Harvey observou o relacionamento deles de perto. Mais perto do que ele gostaria.
O promotor notou pequenas coisas, coisas que sempre estiveram lá, mas que ele não tinha percebido. Ambos sempre estavam machucados de alguma forma, seja um olho roxo ou um lábio cortado, era quase imperceptível a forma como Bruce apertava os lábios em uma linha fina olhando para o Coringa, o suficiente para calá-lo instantaneamente apesar da revisada de olhos, ou a forma como o palhaço ria de repente, um pouco fora do lugar, e como isso fazia com que uma ruga de cansaço aparecesse entre os olhos do moreno. Harvey percebia que não tinha como ser saudável.
Ele tinha conversado sobre isso com Rachel uma vez, como Bruce parecia exausto, como se algo estivesse o jogando cada vez mais para a borda. Ele tentou conversar com o Wayne também, duas semanas atrás, quando o visitou em sua casa, convidando-o a pedido de Rachel para um jantar. Ele notou o lábio partido, o cheiro forte de álcool que se desprendia do outro homem em ondas, a bagunça na sala de estar. Bruce estava bêbado e o Coringa longe de ser visto. Eles tinham brigado. Harvey tentou conversar com o Wayne, mas recebeu um olhar frio em troca, um olhar que o mandava ficar longe desse assunto, ignorando o elefante na sala.
Harvey sentia que estava, pela primeira vez, conhecendo Bruce, suas múltiplas facetas, que eram muito mais do que um simples playboy arrogante. Ele descobriu que Bruce poderia ser gentil e suave, assim como também poderia ser bastante violento. Uma das faces do outro homem que o promotor nunca poderia ter imaginado, pelo menos não antes daquela noite, quando Bruce ligou para Rachel, depois de ter fugido do cativeiro, a mais de um ano atrás. Para ele, Wayne era idiota e presunçoso, mas não era violento. Nunca violento.
Ele ainda se lembra do frio na espinha, quando viu o Wayne empunhando uma arma, confuso e encurralado. Harvey ainda se lembra como o moreno enfrentou o Coringa, como se o palhaço não fosse uma ameaça a ser temida, como a postura do moreno foi de raivosa à preocupada em um único momento.
O Coringa, no entanto, nunca despertou o interesse de Harvey, nem um pouco. Para o promotor público, o ex-terrorista era simplesmente perturbador e ele não perderia tempo ou ainda, sanidade, tentando entender o maluco. O Coringa era uma bomba relógio armada, pronta para detonar a qualquer momento.
O promotor poderia dizer que ambos não formavam um bom par, que era insano, que ambos eram violentos um com o outro e que estavam em uma espiral de fazer mal para si mesmos. Todavia, Harvey poderia dizer pela forma como ambos continuavam insistindo nisso, a forma como Bruce falava manso com o palhaço, o abraçando protetoramente em seus braços, a forma como o louco cedia facilmente deixando o moreno aconchegá-lo contra o peito, Harvey podia dizer que havia certeza por parte de Bruce, assim como havia confiança por parte do Coringa.
Harvey nunca pensou que funcionasse dessa forma. Olhando de fora era completamente estranho, mas o promotor aprendeu a se acostumar com isso, com ambos frequentando sua casa, ele notava as coisas. Bruce era o mais carinhoso, o que investia muito mais no relacionamento, seja emocionalmente ou fisicamente, e ele também era o que gostava mais de cuidar, de proteger.
Em contrapartida, o palhaço era o mais intenso. Porque Bruce poderia viver sem o Coringa eventualmente, mas o contrário não ocorria. O ex-terrorista cairia e levantaria, faria o mundo arder em chamas, mataria e plantaria o terror no coração de toda a humanidade…e morreria no fim, se fosse a vontade de Bruce. O palhaço era o mais leal dos dois. Como Bruce conseguiu a lealdade de um cachorro louco continua sendo uma grande questão.
-Pronto para o primeiro dia Wayne ? - começou o promotor se aproximando de Bruce, saindo de seus pensamentos para iniciar mais um dia de trabalho.
-Sim - falou o moreno com um pequeno sorriso cansado - não tenho muita escolha não é ?
-Você vai se dar bem com isso - garantiu o promotor levando o Wayne até o seu local de trabalho - você pode ficar com essa mesa, você pega rápido.
-Espero que sim - falou o moreno de repente se sentando com um suspiro - obrigado pela ajuda Harvey, é apenas temporário, logo vou sair do seu pé.
Harvey se sentiu mal com o comentário de Bruce, ele nunca disse abertamente que não gostava do outro homem. Ele sempre achou que o ex-bilionário não sabia de sua inimizade. O promotor estava surpreso. Ele foi falar para o outro homem não se preocupar com isso, mas quando foi abrir a boca, o celular do moreno começou a tocar.
Bruce praguejou baixinho antes de atender com um tom medido. O promotor público observou o rosto do moreno mudar de irritação cansada, para preocupação enérgica em um segundo antes dele desligar a chamada.
-Eu preciso sair Harvey, me desculpe - falou o moreno rapidamente.
-O que aconteceu ? - perguntou o promotor.
-Jay não apareceu na consulta - entoou Bruce com um tom tenso - a psiquiatra dele me ligou.
Harvey ficou em silêncio olhando para o moreno por um momento, ele não sabia o que dizer. O promotor olhava para a expressão preocupada no rosto do melhor amigo de Rachel um pouco cético, ele não se importava nem um pouco com o ex-terrorista. Para Harvey, o Coringa poderia ir para o inferno. No entanto, o louco era importante para Bruce, e se o Wayne estava mal, bem, isso significava que Rachel estaria mal também. De alguma forma, isso afeta sua família, e Harvey odiava quando sua família era afetada.
O promotor suspirou antes de entoar para o moreno com um tom tranquilizador:
-Não se preocupe Wayne, eu vou ligar para o comissário Castro, vamos encontrá-lo, você tem ideia de onde ele pode ter ido ?
-Eu não sei - falou o moreno com um fiapo de irritação.
-Ele deve ter alguma pessoa de confiança - pressionou Harvey - ele já sumiu outras vezes, não sei, talvez um amigo, Harley ? Jim ? Talvez o estranho do Nashton ?
-Harley não está na cidade - suspirou Bruce com um tom cansado - não acho que ele correria para Jim nesse momento, com tudo que tem acontecido.
-Nashton então ? - perguntou Harvey arqueando as sobrancelhas.
Bruce ficou em silêncio, era de conhecimento comum que Edward e o Wayne não se davam nada bem, Harvey não sabia o porquê. Não haviam muitas opções, não era como se o Coringa tivesse pessoas que poderia chamar de amigo.
-Eu vou ligar para Castro - falou o promotor. O Wayne parecia agitado, mas preso em seus pensamentos.
O moreno não sabia o que tinha acontecido. Ele sabia que deveria ter deixado o palhaço na frente do consultório, foi um erro dele, ele sabia que o Coringa não estava bem, ele foi negligente. Bruce sabia que não tinha tempo para se culpar por isso, não era o momento para autopiedade.
-Harvey - começou o moreno - diga para Castro listar os incidentes na cidade nas últimas duas horas, pode ser mais rápido assim, eu estou indo para a delegacia.
-O que você vai fazer lá ? - perguntou o promotor - Castro está na prefeitura.
-Vou falar com a única pessoa que pode me ajudar agora, Chuck.
—-------
O Coringa sentia que estava em câmera lenta. Ele sentiu quando seu ombro se chocou violentamente contra um homem que passava na calçada. Ele viu quando o olhar do homem se fixou em sua direção, o perfurando. O zunido em seus ouvidos estava de volta.
O palhaço pressionou a palma contra os ouvidos com força, tentando em vão diminuir o ruído incômodo. Ele se sentia deslocado de sua própria pele, ele se sentia mal, seus pensamentos estavam muito rápidos. O louco pressionou os dentes com força, ele odiava o que as pílulas faziam com ele.
Ele fechou os olhos com força, tentando em vão clarear sua mente em confusão. Ele podia sentir suas palmas geladas e suadas, seu rosto pegajoso. O palhaço se sentou no primeiro beco que encontrou, batendo a nuca contra o concreto da parede repetidas vezes, antes de esconder o rosto nos joelhos.
O loiro escutava os gritos, os tiros, as explosões. Ele se encolheu com força contra a parede. Ele queria rir de quão ridículo isso era, ele estava tendo um ataque psicótico no meio da rua.
Ele não conseguia respirar, ele tentava em vão puxar o oxigênio em seus pulmões. Ele já sentia seus olhos lacrimejando, uma dor surda se desprendendo de dentro do peito. Um bolo se formando em sua garganta antes que um soluço quebrado se desprendesse rapidamente. Ele estava em pânico.
O ex-terrorista podia ouvir o barulho do tráfego ao seu lado, das muitas famílias de Gotham indo para o trabalho. Mas ele não queria levantar a cabeça, ele se sentia tão cansado. Ele queria poder rir disso.
No fundo de sua mente confusa, o louco sabia que precisava ligar para Bruce, ele nem se lembrava onde estava. Em contrapartida, ele sentia que estava sendo seguido, ele tinha noção de que estava tendo um ataque de paranóia. Isso era terrivelmente hilário. O louco riu sufocado e sem humor, seu rosto ainda enterrado em seus joelhos trêmulos. Ele não conseguia respirar, era para ser engraçado, mas ele não conseguia rir disso. Ele sentia o desespero de infiltrar em sua pele, ele vinha como ecos distantes, como os gritos de uma criança em um quarto escuro e abafado. Ele queria gritar.
O louco sentia o grito, cru e dolorido, preso em sua garganta, o sufocando. Ele levantou a cabeça para bater sua nuca novamente contra a parede vez que outra, ainda com os olhos fechados, tentando manter sua cabeça acima do mar de lembranças travestidas de alucinação, que adentravam seu sistema. Ele não podia se dar ao luxo de entrar em pânico.
O palhaço riu novamente, sufocado e sem humor antes de enterrar as unhas contra seu rosto, pressionando-as até sentir a dormência. Ele precisava se acalmar, ele não podia deixar que isso o enviasse para outro ciclo de frenesi infernal, então ele mordeu a língua até sentir o gosto de cobre cobrir seu paladar. Ele precisava ligar para Bruce.
O louco tentou se concentrar nisso, ele precisava ligar para Bruce, mas ele não poderia abrir os olhos, ele sabia que seus pesadelos estavam correndo em plena luz do dia, prontos para pegá-lo. O zunido estava muito forte. Ele precisava gritar, mas ele não tinha ar em seus pulmões para tal. Ele socou o chão com punhos cerrados, ele não conseguia respirar, as lágrimas escorriam livremente. Ele estava frustrado.
De repente o palhaço escutou, acima do zunido dentro de sua cabeça, uma voz dizer em um tom firme:
-Calma, se você continuar assim vai desmaiar e não estou afim de ter que te carregar.
O Coringa apertou os olhos com força, isso deveria ser algum tipo de alucinação, ele conhecia essa voz, mas ele não poderia dizer de quem era. Todavia, ela despertava nele uma vontade alarmante de correr e se esconder.
-Eu não sei o que estão dando para você - disse a voz desconhecida - mas isso parece uma merda.
O palhaço não se atreveu a abrir os olhos, ele levou as mãos para o rosto novamente, enterrando suas unhas com força na pele já irritada antes que duas mãos segurassem seus braços com força, puxando-as para longe de sua face calmamente.
-Você está sozinho ? Te segui desde que você saiu de casa, você me parecia meio fora do lugar.
-Me deixa em paz - entoou o louco entre os dentes de repente, um aviso.
-Olha - disse a voz do desconhecido - você não está em condições de estar sozinho, você quer que eu ligue para alguém ?
-Bruce - falou o palhaço lambendo os cantos da boca, ainda com os olhos firmemente cerrados.
-Tudo bem - comentou o desconhecido - onde está o seu celular ?
-No meu bolso.
Com um suspiro, o dono da voz desconhecida rapidamente pegou o celular e procurou pelo número do Wayne no histórico de chamadas.
-Precisamos sair daqui - falou o desconhecido de repente - você consegue se levantar ?
-Você não é real - entoou o louco entre os dentes antes de passar a língua pelo lábio inferior, o suor frio escorria por seu rosto, se misturando com as lágrimas.
O desconhecido suspirou praguejando baixinho antes de colocar o palhaço em pé com um puxão forte em seus bíceps, empurrando-o contra a parede com força.
O Coringa se encolheu, uma reação instintiva. O desconhecido suspirou antes de dizer em um fiapo de irritação gelada misturada com um tom zombeteiro:
-Sempre agindo como uma virgem
O louco abriu os olhos frente a declaração, sua visão nadou por um momento antes de estabilizar. Um par de olhos zangados, narinas dilatadas e pele cicatrizada estavam a menos de 10 centímetros do rosto do ex-terrorista. O Coringa vacilou por um momento, indicando autopreservação, antes de empurrar o outro para trás violentamente com um rosnado.
O palhaço caiu novamente contra a parede, respirando pesadamente e segurando os fios loiros entre os dedos. Isso não podia ser real, Andy não podia realmente estar na sua frente depois de um ano. Ele não conseguia respirar, isso não podia ser real.
-Ei - chamou Andy estalando os dedos na frente do loiro antes de se afastar para ligar para o Wayne - sai dessa, eu só vou ligar para Bruce, e vou te levar para ingerir algum açúcar, você parece uma merda.
O louco tentou apoiar a cabeça nos joelhos, esperando que a tontura passasse pelo menos um pouco.
-Respire - ele ouviu o psiquiatra falar.
Ele puxou o ar instável por alguns momentos, ele não conseguia escutar o que Andy estava falando no telefone, quando o homem se afastou..
O psiquiatra observou o loiro ao longe com um tom crítico, antes de ligar para o número do Wayne. O ex-bilionário atendeu no segundo toque com um tom que era uma mistura de cansaço e preocupação:
-Jay, onde você está ?
-Olá Bruce - entoou o psiquiatra com um tom neutro - ele está bem, ferimentos leves, deve ter se metido em uma briga.
-Matthew ? - começou o moreno, seu tom ganhando um contorno assassino - cadê ele ? Eu vou t-
O moreno foi interrompido pela voz monótona do psiquiatra:
-Você vai me matar, sim, eu estou sabendo, não se preocupe, não vou tocar em um fio de cabelo loiro da cabeça do seu palhaço louco.
-O que você está aprontando ? - perguntou Bruce, seu tom completamente azedo e irritado.
-Nada, se não eu não estaria te ligando, apenas venha, estou no Rio Leste, rua 4 - Andy suspirou olhando em volta por um momento - vamos esperar em um restaurante árabe aqui perto, acho que você não tem alimentado Jay muito bem.
-Escute aqui - Andy escutou a voz profunda de Wayne grunhir, muito semelhante com o tom do Batman - se você sumir com ele, eu vou atrás de você, se você fizer qualquer coisa com ele, eu juro q-
Andy encerrou a chamada com um bufo divertido, não deixando Bruce terminar. Ele começou a caminhar lentamente até o Coringa, ainda sentado no chão tentando respirar frente a seu ataque de pânico.
O psiquiatra puxou o cabelo do loiro para trás revelando o rosto machucado do ex-terrorista, antes de retirar uma pequena lanterna de seu bolso e acendê-la no rosto do loiro, que lutava contra seu domínio.
-Agora - falou Andy lutando para manter o louco parado - fique quieto, eu acho que você teve uma intoxicação, só quero ver se suas pupilas estão dilatadas.
O louco empurrou o psiquiatra para trás se levantando antes de avançar contra o outro homem. No entanto, o louco estava tonto, e seus sentidos e reflexos estavam alterados, ele facilmente foi dominado por Andy.
-Ei shhh, relaxa - entoou o psiquiatra prendendo o loiro contra o chão - eu chamei Bruce, agora podemos ir comer como duas pessoas civilizadas ?
-Me solta - rosnou o loiro passando a língua no lábio inferior, ele vazava mania.
-Eu não vou te machucar - falou o psiquiatra frustrado, lutando para segurar o palhaço contra o chão - estou tentando te ajudar.
-Me ajudar ? - cuspiu o louco rindo sem graça, antes de passar a língua pelo lábio inferior. Isso era tão hilário, Andy tentando ajudá-lo. O louco de repente sentiu uma queimação, um enjoo ultrapassando sua garganta em ondas de náusea.
O psiquiatra ouviu o Coringa começar a ter reflexo de vômito, então Andy saiu de cima dele, puxando-o para ficar em pé. Logo o ex-terrorista estava se curvando um um canto, lutando para respirar enquanto o líquido ácido saia por sua garganta.
Andy segurou o cabelo do palhaço, para que esse não se sujasse com o vômito, com um suspiro resignado, antes de dizer:
-É bom que você esteja vomitando, é sinal que o seu corpo não está absorvendo tudo.
O ex-terrorista grunhiu antes de voltar a vomitar no canto do beco. Ele sabia que estava péssimo, mas ele não podia demonstrar sua fraqueza na frente de Andy. Porque era sempre o psiquiatra que o via em seus momentos vulneráveis ? Ele queria rir da sua sorte.
-Eu posso ouvir suas engrenagens trabalhando - suspirou o psiquiatra ainda segurando o cabelo do loiro para trás, longe do vômito - relaxa, se eu quisesse te machucar já teria feito, ao invés disso, estou te convidando educadamente para esperar seu marido comigo em um maldito restaurante barato, onde eu vou pagar uma refeição descente para você.
-Vai se foder - cuspiu o louco antes de limpar a boca com a manga do moletom, para na sequência engasgar e despejar o suco ácido no chão do beco novamente.
Andy suspirou, levando a outra mão para a testa do louco antes de dizer:
-Você está com febre, é mesmo uma intoxicação, mas você vai ficar legal.
-Pare - grunhiu o louco entre os dentes, tentando afastar o psiquiatra - não finja que se importa, estou farto.
-Acha que estou fingindo? - falou o psiquiatra em um tom indignado - eu salvei você quando teve uma overdose, eu que tirei você dos destroços daquele maldito carro, eu sempre me importei, mais do que deveria.
O louco estreitou os olhos, ele não queria ouvir as manipulações de Andy. Ele não sabia ainda qual era a do outro homem, mas não estava gostando.
—-----
Harvey observava o moreno sentado ao seu lado no carro em silêncio, sua expressão era azeda. O promotor o ouviu falar por alguns momentos no telefone, foi uma conversa curta, mas o suficiente para fazer o moreno ir de um preocupado para raivoso. Harvey podia ver as ondas de tensão se desprendendo do outro homem.
Eles estavam indo para a delegacia, todavia, depois do telefonema, Bruce insistiu que eles fossem para a rua 4, no Rio Leste. Harvey sabia que não deveria empurrar, não era da conta dele. Mas o promotor não podia deixar de estar curioso.
-Com quem você falou no telefone ? - perguntou Harvey com um tom neutro, parecendo um pouco desinteressado - se ele for perigoso, acho melhor pedir reforços para o comissário Castro, não acho que seja uma boa ideia agir sozinho.
Wayne continuava em silêncio, a irritação palpável vazando por seus poros, ele parecia não escutar o que o promotor público estava falando. Harvey queria revirar os olhos para isso, ele não aguentava o chilique do moreno.
-Olha Wayne voc-
O promotor foi interrompido pela voz irritada do ex-bilionário:
-Não estamos esperando mais nenhum segundo, estou no meu limite aqui Harvey, com todo o que está acontecendo a última coisa que eu preciso é meu marido sozinho com um maldito tarado que é obsecado por ele.
Ok, o promotor levantou as sobrancelhas para a fala do moreno, isso era um pouco assustador. Harvey não entendia o contexto, mas ele com certeza poderia entender a irritação do moreno. Porque Gotham era cheia de pessoas estranhas ? Harvey estremeceu com um suspiro, seus olhos não deixavam a estrada, embora fosse um pouco curioso. O Coringa tinha algum tipo de Stalker ? O promotor queria rir disso, mas dada a forma como Bruce estava agindo, parecia algo bem mais sério.
O promotor não queria se envolver em seja qual fosse o problema que o palhaço arrumou, mas ele não podia deixar o Wayne sozinho nisso. Harvey lançou um olhar de canto de olho para o homem, ele parecia ainda mais carrancudo, seus braços cruzados contra o peito e uma linha tensa em sua boca. O promotor não se atreveu a perguntar por detalhes.
Harvey sabia que essa interação não seria bonita, o promotor nunca tinha visto Bruce brigar, mas, levando em conta que o moreno tinha um físico de causar inveja, ele achava que o ex-bilionário estava bem se fosse necessário usar a força.
O silêncio no carro era ensurdecedor. Expesso. Era quase palpável. Harvey queria dizer alguma coisa, mas ele não sabia o que dizer, então ele se limitou a abrir e fechar a boca, enquanto Bruce continuava carrancudo. As coisas estavam dando errado.
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Andy e o Coringa estavam sentados no estabelecimento barato. De frente um para o outro, em completo silêncio. O ex-terrorista parecia estudar o outro homem com cuidado.
-O cardápio está em árabe - comentou Andy para quebrar o gelo.
-É um restaurante árabe, seria estranho se estivesse em chinês - respondeu o louco revirando os olhos.
-Você lê árabe, não é? - perguntou Andy, ganhando apenas um olhar irritado do palhaço antes de acrescentar com um suspiro - não vamos falar do passado então, ou de como você aprendeu, não estou aqui para te psicanalisar.
Eles ficaram em silêncio por mais um momento antes do psiquiatra continuar:
-Você está horrível.
-Você também - ofereceu o loiro lambendo o canto dos lábios com um bufo desinteressado.
-Esse hematoma no seu maxilar é de dias atrás - comentou o psiquiatra apontando para o hematoma amarelo esverdeado na mandíbula do louco - você e Bruce continuam brigando ? talvez devessem fazer terapia de casal.
O loiro ficou em silêncio, ele não ia discutir seu relacionamento com Andy, ele não precisava do outro homem tentando entrar em sua cabeça. Não de novo.
-As coisas tem andado um pouco estranhas para mim, depois que eu fui condenado por tentativa terrorismo, e fiquei os últimos meses em Blackgate - Andy continuou divagando - recebi bastante ajuda psiquiatrica.
Andy não sabia porque estava dizendo isso, mas de repente, ele sentiu necessidade de falar. O psiquiatra tinha que ser honesto consigo mesmo, ele não sabia porque metade das coisas que sentia para com o louco eram como eram.
-Meu psiquiatra me ajudou muito, me disse que a extensão do meu trauma psicológico é complexo - desabafou Andy olhando para suas mãos cruzadas na mesa - que tenho sentimentos não resolvidos pelo jeito como tentei lidar com a perda de Annie, pela forma como sem querer eu acabei me segurando em você.
O psiquiatra parecia divagar, todavia, o louco não disse uma palavra. Sua cabeça ainda girava.
-Gosto de pensar que estou melhor agora - continuou Andy ainda sem encarar o palhaço, seu tom era estranho - e bem, eu precisava ver você, embora meu psiquiatra não ache uma boa ideia, então aqui estou.
Andy levantou o olhar na direção do ex-terrorista, que lançava um olhar azedo em troca. O Coringa não parecia estar feliz com essa interação, ele desprezava Andy, para o louco, o psiquiatra era somente um doente patético. Todavia, ele não podia mentir para si mesmo e dizer que a presença do psiquiatra não o afetava negativamente. Era como algo podre abaixo da superfície, surpreendendo venenosamente.
-Bem, você me machucou, e eu te machuquei - continuou o psiquiatra dando de ombros, seu tom era monótono, mas apenas para mascarar sua ansiedade - você causou a morte da minha mulher, eu te estuprei compulsivamente e te torturei por meses, então você cortou meus testículos, depois desfigurou meu rosto e me fez ser preso por tentativa de terrorismo, acho que estamos quites, sem vencedores.
-Conseguiram costurar suas bolas de volta ? - perguntou o louco de repente, lambendo os cantos dos lábios com um tom zombeteiro.
-Sim - riu o psiquiatra - e funciona bem.
-É uma pena.
Eles ficaram em silêncio por mais um momento antes de Andy tornar a falar:
-Olha, eu sei que v-
-Vá direto ao ponto - falou o Coringa cortando a divagação do outro homem, apoiando a cabeça no vidro da janela do estabelecimento, ele ainda estava tonto. O ex-terrorista queria que o homem evaporasse.
Andy não teve a chance de concluir, ele logo notou quando Bruce e o promotor Harvey Dent adentraram no estabelecimento. O primeiro com passos duros, a mandíbula tensa podia ser vista à distância, já o promotor parecia um pouco perdido lançando olhares para Bruce. O olhar do moreno cruzou com o do psiquiatra por um momento e Andy trincou os dentes. O ex-bilionário parecia assassino.
-De nada - falou o psiquiatra assim que ele achou que o moreno poderia escutá-lo.
Ele rapidamente pegou o telefone do loiro para devolvê-lo, mas não sem antes marcar seu número nele dizendo:
-Você sempre pode me ligar se precisar de ajuda Jay, você sabe disso.
Com essas palavras, ele se virou para encarar os recém chegados. Ele não tinha medo de Bruce, não mesmo, o histórico de ambos não permitia isso. Todavia, ele preferia não entrar em conflito com o ex-bilionário.
-Ele teve uma intoxicação - falou o psiquiatra se levantando da mesa, seu olhar indo em direção a Bruce - eu acho que você deu algum comprimido errado, a mais do que o prescrito, tome cuidado, poderia ter acontecido algo muito sério.
O moreno não parecia ouvir o que o psiquiatra falava, suas mãos foram rapidamente para agarrar o colarinho da camisa do outro homem com um rosnado baixo, atraindo os olhares de todos que estavam no estabelecimento. Suas narinas estavam dilatadas.
-Eu te avisei para ficar longe - grunhiu o moreno em irritação inflamada - eu disse para você sumir.
-Com ciúmes Bruce ? - zombou Andy - Jay poderia ter problemas se eu não tivesse aparecido.
-Já disse para parar de chamá-lo assim - ferveu o moreno entre os dentes, seus dedos no colarinho do outro homem estavam brancos.
Harvey olhava a cena um pouco desconfortável, ele não entendia a totalidade disso. O Coringa ainda estava com a cabeça apoiada na janela, os olhos firmemente fechados, mas não dormindo.
O promotor perdeu o que o desconhecido disse para o moreno, ele estava com seus olhos fixos no Coringa, mas isso foi o suficiente para que o moreno acertasse o outro homem com um soco no rosto, antes de levantá-lo novamente pelo colarinho dizendo com um tom azedo e sombrio:
-Escuta aqui, seu verme, eu não estou brincando, se chegar perto dele de novo, não haverá uma próxima vez, eu juro.
-Isso é uma ameaça ? - perguntou o psiquiatra.
-É um aviso.
Notes:
Eu posto quinta feira que vem se nada acontecer. Se você acompanha, deixe um comentário, vocês não tem noção de como isso me deixa nas nuvens :) Até semana que vem.
Chapter 3: The Gotham We Have (Parte 3)
Chapter Text
Enquanto a discussão se intensificava no restaurante árabe, alguém observava ao longe com uma câmera. Ele queria ter um microfone mais potente para conseguir entender o contexto, mas ele com certeza poderia pedir a informação mais tarde, para os cidadãos que presenciaram o ocorrido. Ele estava nesta investigação a pelo menos 3 semanas a essa altura, mas até agora, ele não conseguiu nada concreto, nenhuma evidência, então ele decidiu investigar mais de perto.
Richard Grayson estava intrigado. Ele era um estudante de jornalismo em seu último semestre na Universidade de Gotham, conseguiu um estágio no “The Gotham Times”. Richard se ocupou de um projeto próprio, embora seja arriscado, ele sempre teve um fascínio pelo vigilante Batman. Seu orientador o avisou, que não podia basear seu trabalho em suposições, mas Grayson não acreditou quando o Wayne foi inocentado de ser o Batman por falta de evidências.
De fato, o aspirante a jornalista investigativo, tinha que admitir, não era fácil pegar alguém na envergadura de Bruce Wayne, o cara se escondeu muito bem, nada foi encontrado. No entanto, Richard não poderia deixar de realizar sua própria investigação.
O jovem até o momento ele tinha apenas uma coisa além do que era provavelmente óbvio e já divulgado. Havia algo errado com o ex-bilionário, ele estava escondendo alguma coisa.
Ele tinha juntado tudo que podia sobre o que já tinha sido divulgado sobre Bruce Wayne, mas alguma coisa não batia. Bruce foi criado por seu mordomo, se tornou um jovem bastante rebelde e acabou saindo da cidade por algum motivo, ele ficou cerca de sete anos fora e voltou completamente diferente. Muitas coisas podem acontecer em sete anos, mas Bruce Wayne foi de jovem revoltado a um playboy extremamente superficial, isso seria perfeito demais.
No ano passado, o ex-bilionário foi sequestrado juntamente do Coringa, aparecendo mais de 9 dias depois em circunstâncias misteriosas que não foram divulgadas. Estranhamente, mais ou menos nesse período o morcego voltou a ser visto e o Wayne se tornou mais recluso. Muitos poderiam argumentar que foi o trauma, afinal, sua proximidade com o ex-terrorista, conhecido pelo pseudônimo de Coringa também foi atribuída a isso.
Estranhamente, Batman começou a se aproximar do Coringa nesse período, embora eles já tivessem um certo histórico, pelo menos logo depois do louco ter sido admitido na delegacia de polícia. O que foi outra estranheza que Richard não conseguia entender.
O aspirante a jornalista foi retirado de seus pensamentos quando a movimentação dentro do restaurante ficou mais intensa. Ele não sabia com quem era, ou porque Bruce Wayne parecia tão irritado, o promotor público Harvey Dent parecia tentar acalmá-lo. Richard podia perceber que as coisas não andavam bem. Porque o Wayne parecia tão irritado ? Ele precisava descobrir.
Grayson foi retirado de seus pensamentos quando seu celular tocou, o aspirante a jornalista rapidamente atendeu para não chamar muita atenção. Embora estivesse longe, ele não queria que ninguém o descobrisse observando.
-Dick - chamou uma voz do outro lado da linha - onde você está agora ?
-Roy - suspirou Grayson - eu estou trabalhando, o que você quer ?
Houve uma pausa do outro lado da linha, Dick suspirou. Roy Harper era o seu melhor amigo, e ele sabe que o outro homem apenas se preocupa com as notas do outro, ele estava matando aula novamente por conta de sua investigação.
-Dick - veio novamente a voz um pouco tensa do outro lado da linha - você vai acabar reprovando assim, você não tem ido nas orientações, você pode perder a sua bolsa.
-Olha - falou Grayson de repente - eu já estou indo, eu prometo que chego a tempo da segunda aula.
Com essa fala, Richard desligou o celular praguejando baixinho. Ele não podia se descuidar da sua investigação. Bruce Wayne estava escondendo alguma coisa, ele podia ver. Todavia, quando Richard voltou a observar, a cena no restaurante havia se dissipado, e o Wayne estava agora estava tentando ajudar o Coringa a se levantar da mesa, o promotor público parecia observar com um olhar desconfortável, pelo menos foi isso que Richard notou. Eles rapidamente saíram do estabelecimento e adentraram em um carro que estava estacionado em frente. O aspirante a jornalista queria segui-los e investigar, mas ele precisava ir para a aula.
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O caminho até o apartamento deles foi silencioso. Bruce podia sentir o desconforto de Harvey na direção do veículo, ele não desviava o olhar da estrada e parecia tenso. O Coringa estava apoiado no ombro do ex-bilionário, de olhos fechados, mas não estava dormindo.
Bruce estava carrancudo, a briga anterior que quase se tornou algo sério ainda estava o deixando com o sangue fervendo. Ele não conseguia acreditar que tinha pego um comprimido errado, ele era cuidadoso com isso, mas ele andava tão cansado nos últimos dias.
-Harvey - entoou o moreno de repente com um suspiro, quebrando o silêncio - eu não vou poder voltar para a promotoria hoje, eu não posso deixar ele sozinho.
-Tudo bem - falou o promotor com um tom neutro - eu nem ia pedir para você voltar, acho que está meio fora de questão.
-Eu posso ficar sozinho Brucie - resmungou o louco se ajeitando no ombro do moreno.
-Pode, mas você não vai - falou Bruce simplesmente, como se fosse algo óbvio.
-Eu não estou morrendo, isso é totalmente desnecessário - zombou o louco passando a língua pelo lábio inferior - é o seu primeiro dia, pare de ser grudento, eu não sou criança.
-Nós não estamos discutindo isso - falou o moreno com um tom nivelado.
-Brucie, olha e - o louco foi interrompido pelo moreno que rosnou com um tom que se assemelhava muito ao usado pelo Batman:
-Cala a boca, eu disse que não estamos discutindo isso.
Harvey pressentiu uma briga, mas estranhamente, ela não veio. O promotor arriscou um olhar pelo retrovisor para ver um Bruce carrancudo, com os lábios apertados em uma linha fina, e um Coringa quieto, mas com um sorriso zombeteiro, como uma criança fazendo birra silenciosamente.
O promotor sabia que ambos muitas vezes calculavam os danos, o palhaço estava cedendo desta vez. O Coringa sabia, assim como Bruce, que eles não deviam se irritar deliberadamente se algum deles estivesse em um momento ruim, e o moreno parecia estar em um momento ruim.
Harvey parou o carro na frente do prédio de ambos, vendo os dois homens descerem. O promotor estava pronto para dar a partida quando Bruce entoou olhando para o outro homem:
-Eu…- o moreno fez uma pausa procurando as palavras certas - eu quero te agradecer, muito obrigado pela ajuda.
-Não se preocupe com isso Wayne - disse o promotor um pouco sem reação - você é amigo de Rachel, eu apenas fiz o que achei que ela gostaria.
-Obrigado mesmo assim - respondeu o Wayne - e pode me chamar de Bruce, nos conhecemos a muito tempo para continuar com toda essa formalidade.
Harvey deu um pequeno aceno de cabeça antes de dar partida no carro. Ele precisava voltar para a promotoria, ainda tinha muita coisa para ser feita.
Bruce adentrou no apartamento com o Coringa quase sendo carregado, ele rapidamente sentou o louco no sofá, antes de andar em direção a cozinha e pegar uma garrafa de água.
-Se for uma intoxicação, o melhor é você tomar bastante água, se você se sentir muito mal podemos ir ao hospital.
-Eu estou bem, eu só p - o loiro foi cortado por uma onda de ânsia de vômito. O palhaço tentou ir em direção ao banheiro, mas estava tonto e acabou tropeçando nos próprios pés, sendo segurado por Bruce. O palhaço se agarrou no moreno, vomitando na camisa do outro homem em ondas ininterruptas de náusea.
O moreno deixou que o vômito lavasse seu blazer e camisa com um nariz torcido e um olhar preocupado. Ele podia sentir o louco tremer levemente com a cabeça apoiada em seu peito, seus joelhos apoiados no chão vacilando quase de forma imperceptível. Bruce foi retirado de seus pensamentos por outra onda de vômito que tomou conta do palhaço. O moreno não sabia o que fazer além de ficar lá parado sem nenhuma reação, apenas segurando o louco pelo torso perto de si.
De repente, o loiro se afastou minimamente, levantando a cabeça para encontrar os olhos do ex-bilionário, antes de se afastar completamente, saindo de sua posição de joelhos e se sentando no chão da sala. A cabeça do louco parecia nadar, ele fechou os olhos.
-Jay - chamou Bruce - você não quer tomar um banho quente e ir se deitar ? Eu vou ligar para Chuck, vou avisar que você não está bem para ir trabalhar, daí eu faço alguma coisa leve para você comer.
-Eu estou bem - murmurou o louco antes de se deitar de lado, rolando para ficar de barriga para cima - eu só preciso de um momento.
Bruce olhou para o outro homem em silêncio, ele sabia que o Coringa tinha dificuldade em apenas deixar que outras pessoas cuidassem dele, Bruce sabe que também tem esse problema, embora ele não o expresse dessa forma.
O ex-bilionário foi uma criança que depois que seus pais morreram, começou a esconder quando estava machucado, ou precisando de ajuda. Isso porque ele tinha vergonha, ele não queria que Alfred se preocupasse com ele, ele não queria incomodar os outros. Bruce tinha medo de preocupar os outros, já o Coringa não queria ser visto como fraco em um momento de vulnerabilidade.
Bruce se perguntava se essa postura do loiro era consequência de seu tempo como soldado na guerra do Iraque, ou era uma consequência de antes disso. O moreno suspeitava que era algo anterior. O ex-bilionário se sentou em frente ao loiro, levando uma das mãos para acariciar os cabelos loiros carinhosamente. Eles ficaram assim por alguns momentos antes que o moreno tornasse a falar ficando de pé:
-Vamos, eu te ajudo a levantar, você precisa tomar um banho e ir descansar.
O loiro lentamente foi com a ajuda do moreno para o banheiro. Bruce o deixou lá antes de entoar:
-Vou pegar uma roupa para você lá no quarto, eu já volto, você consegue tomar banho sozinho ?
O ex-terrorista assentiu, então o moreno deu as costas deixando-o sozinho no banheiro. Bruce rapidamente foi em direção ao quarto deles, começando a tirar o blazer sujo de vômito ainda no corredor com um suspiro, antes de retirar a camisa, também suja.
O ex-bilionário foi até o guarda-roupas pegando calças e uma camisa de manga comprida leve, mas não tão finas, já era quase final de Outubro, e as temperaturas começavam a cair. Bruce suspirou novamente, ele não tinha tempo para se limpar, pelo menos não agora. Algo dentro do moreno borbulhava, porque ele tinha sido negligente, e estava com raiva.
O moreno sacudiu a cabeça para afastar pensamentos autodestrutivos, eles não o levariam a lugar nenhum. Então Bruce se dirigiu para o banheiro escutando o barulho da água do corredor, pelo menos o louco estava bem o bastante para tomar banho sozinho, então ele adentrou no recinto e deixou a roupa em cima do vaso sanitário, antes de marchar para a cozinha em passos leves.
O palhaço ouviu o moreno se afastar, ele estava terminando de qualquer forma. O loiro colocou sua cabeça abaixo do jato de água corrente, deixando que a pressão da água lavasse sua confusão. Ele se sentia mal.
De repente o loiro começou a sentir como se a água que caía em seu rosto o estivesse afogando, ele começou a tossir e colocou a cabeça para fora do jato do chuveiro, no entanto, a sensação não ia embora. O palhaço fechou os olhos com força, ele sabia que isso era efeito do remédio administrado da forma errada, geralmente embora ele tivesse alucinações, o mais persistente era o cansaço.
Ele tentou se acalmar se apoiando na parede e respirando fundo algumas vezes, com os olhos ainda firmemente fechados. Mas a sensação de afogamento não ia embora.
-Jay ? - chamou Bruce adentrando no banheiro retirando o louco de seu estado de frenesi - está tudo bem ?
-Sim - mentiu o louco fechando o registro do chuveiro e caminhando para fora do chuveiro. Ele ainda se sentia meio instável, mas ele não queria Bruce xeretando nisso. Então o louco rapidamente se vestiu a seguiu pelo corredor antes de ser segurado pelo braço pelo moreno.
-Vai me dizer o que está acontecendo ? - perguntou Bruce com um tom neutro.
-Não - disse o loiro revirando os olhos, antes de lamber o canto dos lábios. Ele estava zombando, era mais fácil do que contar para o moreno que de repente todos seus pesadelos tinham força para pular para fora do sono e perseguí-lo em plena luz do dia sem um gatilho. Não seriam coisas tão assustadoras se fossem apenas fantasias de sua cabeça sob efeito de muito remédio, mas eram memórias voltando para mordê-lo. Coisas que o ex-terrorista guardou atrás da porta cuidadosamente fechada, como Jack disse.
-Jay - suspirou o moreno exausto, retirando o loiro de seus pensamentos - eu sei que você não quer falar sobre isso.
-Então porque você insiste ? - perguntou o Coringa, seu tom era espinhoso. Era um aviso para que o moreno deixasse de empurrar.
-Estou tentando cuidar de você - disse Bruce simplesmente, seu tom era cansado.
-Eu vou me deitar, você também deveria, você parece cansado.
Era verdade, o moreno estava emocionalmente exausto. Então ele facilmente deixou o Coringa levá-lo até o quarto, indo em direção ao banheiro da suíte na sequência.
-Você devia tomar um banho, vou te esperar deitado, espero que minha dor de cabeça melhore - falou o louco subindo na cama.
O moreno assentiu antes de olhar para a cômoda de ambos, os frascos laranjas de remédio controlado o chamando como um imã. Bruce os ignorou e apenas pegou suas roupas, adentrando no banheiro para deixar a água quente e o vapor lavassem sua crescente irritação interna. Existia uma voz dentro da cabeça do ex-bilionário o culpando por ter sido descuidado, era culpa dele.
Bruce suspirou saindo do chuveiro e se vestindo rapidamente, saindo do banheiro. O moreno caminhou até a cama com calma antes de sentar na beirada onde o Coringa estava deitado.
-Você precisa conversar comigo, eu preciso saber o que você vê andando pela casa, pelos cantos, na rua, eu…- Bruce fez uma pausa - eu preciso saber.
-São memórias Brucie - disse o loiro em um tom desconfortável - são só pedaços da minha vida voltando para morder meus calcanhares.
-Sinto muito - disse o moreno com pesar, pegando a mão do loiro na sua - eu fazia ideia, mas ouvir você falar é meio chocante, torna isso mais real.
O silêncio que se instalou era confortável, o moreno apenas acariciou as costas da mão do loiro com a sua por um momento.
-Você anda muito cansado - comentou o loiro de repente - eu sei que se culpa pela confusão com os comprimidos hoje mais cedo, mas está tudo bem.
-Não - recusou o moreno se levantando e andando pelo quarto - não está tudo bem, você podia ter se machucado, eu poderia demorar muitas horas para achar você.
-Bruce - chamou o louco, a falta do apelido fez o moreno olhar para o palhaço - está tudo bem, você me achou.
-Matthew achou você - ofereceu o moreno com um suspiro - e aliás, o que ele queria com você ?
-Não vamos falar de Andy - respondeu o loiro torcendo o nariz, seu olhar não encontrou o do ex-bilionário. Ele parecia ligeiramente tenso.
-Ele tentou alguma coisa ? - perguntou o moreno com um fiapo de irritação se despendendo em ondas.
-Não Brucie - respondeu o louco em um momento, um pouco rápido demais, antes de fazer uma pausa para passar a língua no lábio inferior, ainda sem olhar o moreno nos olhos. O moreno não gostava quando o Coringa agia dessa maneira.
-Ele te assusta não é ? - falou o moreno se aproximando lentamente, sua voz era compreensiva. Ele queria que o Coringa se abrisse.
-Me assusta ? - riu o louco sem humor - não, não Brucie, esse cara não me assusta, mas não gosto dele, não o suporto, talvez seja nosso histórico de merda.
-Bem - ofereceu o moreno parando a cerca de um metro da beirada da cama, sua boca em uma linha fina e tensa - ele me assusta, não gosto da forma como ele fala com você, da forma como age com você.
O Coringa bufou sem humor antes de entoar em um tom sério:
-Ele é um bom manipulador, é a forma dele de jogar, você não conhece Andy - o palhaço fez uma pausa para passar a língua no lábio inferior, um pouco tenso - salvo algumas exceções, ele sempre foi extremamente carinhoso comigo, ele não joga com a tortura física, ele se molda atráves de vulnerabilidades.
Bruce não imaginava, ele sabia que o ex-psiquiatra de Arkham tinha descoberto uma vulnerabilidade, algo no passado do Coringa e tinha se aproveitado disso. No entanto, ele sempre achou que Andy fosse um torturador padrão, e pela expressão no rosto do Coringa, ele sabia que o loiro também queria que fosse.
-Era como se ele realmente se importasse comigo, era diferente do que eu estava acostumado - falou o loiro com uma voz distante, retirando Bruce de seus devaneios, o moreno sabia o que o loiro queria dizer - eu não podia fingir que era como antes, ele não estava apenas me usando como um buraco quente, ele cuidava de mim, não me deixava passar fome, mas ao mesmo tempo…ao mesmo tempo era ainda mais nojento, porque todo esse carinho era mentira, e isso fez com que doesse mais, porque ele fingia que o que sentia importava, mas continuava…bem, você sabe.
-Ele continuava usando isso contra você - ofereceu Bruce simplesmente, foi como tirar um esparadrapo - ele continuava abusando de você e fingindo que se importava.
Bruce ficou em silêncio depois disso com um gosto ruim na boca, ele ficou olhando para o ex-terrorista que continuava encarando o nada. Essa tinha sido a maior confissão que o palhaço tinha feito sobre Arkham, e Bruce estava grato pelo loiro estar se abrindo. No entanto, Bruce não sabia o que fazer, o que falar. O moreno estava com raiva, uma raiva serpenteava no fundo de sua mente, raiva de si mesmo novamente, por não ter ido verificar Arkham, raiva por ter se atrapalhado com os remédios, e feito mesmo que inconscientemente, com que o Coringa ficasse a mercê de um cara que já fez tanto mal a ele. Bruce estava com raiva.
-Vem deitar aqui Brucie - falou o louco, retirando o moreno de seus pensamentos - eu estou vendo suas engrenagens girando daqui, vem cá.
Bruce lentamente caminhou e subiu na cama com um suspiro derrotado antes de se deitar. Ele tinha que fazer alguma coisa para o palhaço comer, mas no momento, ele só queria descansar.
-Vira - falou o loiro, um fundo de zombaria em sua voz.
O moreno fez o que foi indicado, ficando de costas para o loiro, que rapidamente o puxou pela cintura, colando as costas de Bruce contra o seu abdome e enterrando o rosto em sua nuca.
Isso foi um pouco inesperado, o moreno geralmente era a colher maior, e essa era uma das raras ocasiões onde o palhaço o segurava por trás. Não que Bruce não gostasse disso, mas era uma mudança na dinâmica.
O moreno sabe que esse era um dos momentos onde ele devia confortar o outro homem, mas estava acontecendo o inverso, o Coringa estava acariciando suas costelas e respirando contra sua nuca em silêncio. O ex-bilionário sabia que a mente do louco estava barulhenta agora, e sentia mais raiva ainda por não conseguir ajudar.
-Brucie pare - falou o louco um pouco sonolento contra a nuca do outro homem - você precisa se acalmar.
-Não posso me acalmar - ferveu o moreno, sua voz era raivosa.
-Foi um erro, todos cometem erros - falou o palhaço com um tom neutro, antes de lamber o canto dos lábios - agora vamos dormir, você parece exausto.
Com essas palavras do ex-terrorista, Bruce se levantou em um salto, saindo da cama e indo até a cômoda, os remédios pareciam rir dele, pareciam zombar. O loiro levantou para ir até o moreno que parecia frenético, o ex-bilionário pegou todos os frascos e os estava levando para o banheiro da suite.
Bruce abriu os frascos e começou a despejá-los no vaso sanitário. O louco suspirou, ele odiava mais do que ninguém tomar aquelas coisas, mas Bruce não estava sendo racional, tinha sido uma decisão judicial, eles eventualmente teriam problemas e isso era insustentável a longo prazo.
-Já chega - rosnou o moreno com um tom que queimava de irritação - você não vai tomar mais isso.
Com essas palavras Bruce terminou de jogar todo o conteúdo dos frascos no vaso sanitário e puxou a descarga, ele sabia que estava sendo irracional e infatil, ele foi tomado por uma vontade quase insuportável de chorar. O moreno estava olhando para o nada por um momento, segurando para não desabar.
-Bruce - chamou o Coringa, a falta do apelido fez o outro homem encará-lo por um momento, os olhos do moreno estavam brilhando com lágrimas não derramadas - está tudo bem, eu estou bem, vem aqui.
Na sequência o palhaço puxou o moreno para um abraço apertado, fazendo com que as lágrimas não derramadas caíssem rapidamente. O louco sabia que Bruce estava passando por um momento difícil, que ele estava cansado, e que a realidade estava batendo em sua porta rapidamente. Sem o Batman, o louco sabia que Bruce não tinha onde canalizar sua raiva, então ela muitas vezes se transformava em auto ódio.
-Vem, vamos deitar - chamou o palhaço guiando o outro homem em direção a cama - você está cansado, eu estou tonto, e ganhamos um dia de folga, então vamos aproveitar.
Bruce seguiu o outro homem, fazendo o que foi dito pelo Coringa. Na sequência, o loiro o puxou para perto, quase colando seus rostos juntos. O palhaço levou uma das mãos para limpar o resto de lágrimas no rosto do moreno carinhosamente, seu semblante era sereno. Bruce estava com vergonha, por ter surtado por nada, mas ele sabe que é o estresse acumulado, que ele tem segurado muitas coisas.
-Vira, Brucie - falou o louco passando a língua no lábio inferior antes de sorrir minimamente - você está muito tenso, deixa que eu abraço você.
O moreno fez o que foi dito com um suspiro, deixando o palhaço o segurar nos braços. Eles ficaram em silêncio por alguns momentos antes do ex-bilionário tornar a falar:
-Minha mãe me chamava de “Brucie”, quando eu era bem pequeno.
-Eu não vou parar, independente de você gostar ou não - riu o louco em suas costas antes de dar ênfase em sua voz - você ouviu ? Brucie, Brucie, Brucie.
O moreno riu antes de se virar no abraço do outro homem, ficando cara a cara com o palhaço na sequência.
-Você é um idiota - falou o moreno com um sorriso.
-Eu sei - respondeu o loiro com um sorriso de canto, antes de passar a língua no lábio inferior - sua vida sem mim seria muito chata.
Bruce suspirou antes de tornar a falar, seu tom mais sério, mas sem perder a suavidade:
-Desculpe pelo surto, você que deveria estar surtando depois do que aconteceu hoje.
-Por favor - zombou o louco - já passamos disso, você não precisa pedir desculpas, aconteceu e tudo bem.
Essa era uma das coisas que o moreno nunca conseguiu fazer o ex-terrorista entender, o louco não aceitava pedidos de desculpa, o loiro sempre dizia que Bruce pedia desculpas demais por tudo, que para ele, não havia a necessidade de pedir desculpas. Que eles estavam bem. Além disso, o palhaço não podia desculpas pelas coisas que fazia.
Quando eles brigavam, o que acontecia com bastante frequência, não havia um pedido de desculpas, eles não conversavam sobre isso, somente lambiam suas feridas em um canto e depois voltavam como se nada tivesse acontecido. Não era funcional, Bruce sabia.
Quando eles tinham começado a se envolver, o moreno disse que precisavam mudar a dinâmica, de fato, ela mudou em partes, mas não o suficiente. Quando eles começaram a se envolver, ele disse que não queria cair em um relacionamento sem diálogo e abusivo, no entanto, esse discurso meio que caiu por terra no meio do caminho. Em algum momento, simplesmente virou normal eles brigarem e começarem a gritar um com o outro, geralmente partindo para a agressão física, e depois não falando sobre isso.
Não era o tipo de relacionamento disfuncional que o moreno queria ter, mas simplesmente funcionou e foi cômodo para ambos. Eles se ajustaram para viver no meio disso, mas o moreno se sentia culpado, embora não dissesse nada, e não fosse somente culpa dele. Foi por isso que o moreno começou a beber, eles brigavam e Bruce bebia. Às vezes o moreno bebia antes, porque ele pressentia a briga chegando, a tensão ficando no ponto de explodir em seus rostos, e essas eram as piores brigas.
Bruce não estava achando que era a vítima, não existiam vítimas, ele começou tantas brigas quando o ex-terrorista, talvez mais se contar o período onde Roger Elliot foi preso e a Wayne Enterprises adentrou de vez na falência. O ponto era que ambos eram violentos um com o outro com bastante frequência, mas estranhamente, nunca pensaram em se afastar um do outro. Eles poderiam destruir a casa toda no horário do jantar, e momentos depois estariam deitados juntos ouvindo a respiração um do outro.
-Você pensa demais Brucie - suspirou o louco, retirando o moreno de seus pensamentos.
Bruce se aproximou do outro homem plantando um beijo casto em seus lábios lentamente, falando com os lábios ainda roçando os do outro homem:
-Eu apenas estava me perguntando, como você olhou por baixo da máscara e ainda assim gostou do que viu.
-Você era um cara muito bonito e rico - zombou o louco antes de pressionar novamente seus lábios nos do moreno - Você já se olhou no espelho ? Não foi nenhum sacrifício.
Bruce riu contra os lábios do outro homem antes de beijá-lo novamente, ele sabia que isso era uma mentira, porque o Coringa era a pessoa menos superficial que o ex-bilionário conhecia.
-Aliás, Brucie - começou o loiro antes de fazer uma pausa para lamber o canto dos lábios - você é tipo um panda.
Bruce segurou uma gargalhada, ele não sabia de onde tinha vindo isso.
-Um panda pode te matar, você sabe disso - falou o moreno com uma sobrancelha arqueada.
-Por isso mesmo - continuou o palhaço - mas também são incrivelmente fofos e adoráveis, todo mundo gosta de pandas
-Você quer dizer que sou desastrado - falou o moreno rindo.
-Não, mas você não olha para si mesmo quando acorda - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios antes de esboçar um sorriso - é igualzinho um panda caminhando para fora da cama.
Eles ficaram em silêncio sorrindo um para o outro por um momento, apenas aproveitando a proximidade que exalava de momento. Bruce queria ficar assim para sempre.
-Do que você está rindo ? - perguntou o palhaço arqueando as sobrancelhas.
Foi só aí que o moreno percebeu que estava com um rindo com um sorriso bobo nos lábios. Estranhamente, a raiva havia se dissipado como pó.
-Acho que você deveria tentar dormir - disse o loiro levando uma das mãos para acariciar uma das olheiras do moreno - isso não vai sumir sem um bom descanso.
Bruce bufou antes de concordar com a cabeça, fechando os olhos na sequência, ele estava exausto. O loiro observou o moreno com os olhos fechados, a respiração quente do outro fazendo cócegas em seu rosto.
O ex-terrorista ficou nisso por um tempo antes de desviar o olhar, olhando por cima do ombro do outro homem para encontrar o mesmo garoto loiro, sentado em cima do colchão, atrás de Bruce. Seu rosto estava escondido nos joelhos, ele estava sujo e machucado, parecia murmurar coisas em um tom muito baixo para o palhaço entender.
O Coringa foi tomado por uma vontade de fugir, um gelo subiu pela sua espinha. Mas ao invés disso, ele se concentrou em olhar para Bruce, se concentrar na respiração do moreno, ignorando a alucinação. Ele não podia entrar em pânico.
Notes:
Obrigado a todos que leram até aqui. Comente se você está acompanhando, isso me deixa saber que existem pessoas esperando uma atualização e me motiva bastante em vencer a preguiça e atualizar kkkkk Mais uma vez, muito obrigado.
Chapter 4: The Gotham We Have (Parte 4)
Notes:
Olá, mais um capítulo semanal postado no tempo certo. Eu estou tentando me organizar para postar mais seguido, eu realmente gostaria de escrever mais do que eu capítulo por semana, mas por enquanto, isso é um sonho distante. Bem, fiquem com o capítulo da semana.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Richard Grayson tinha chegado atrasado, o que lhe rendeu um amigo decepcionado e uma namorada zangada. No entanto, o aspirante a jornalista investigativo não podia deixar de achar que estava na razão, ele gosta de pensar que se existisse um Batman quando ele era criança seus pais não teriam caído daquele trapézio, ele não teria que aprender a viver sem eles tão jovem.
Ele sempre apoiou a justiça, ele sempre acreditou, mas muitas coisas mudaram ao longo dos anos. A polícia nunca pegou o culpado, aquele que sabotou as cordas e isso o deixou com uma ferida incapaz de fechar, incapaz de curar. No entanto, quando o Batman apareceu, Dick sentiu uma luz brilhando na escuridão, ele precisava saber quem era o morcego, quem estava por trás da filosofia do vigilante.
O aspirante a jornalista investigativo foi arrancado de seus pensamentos quando sua namorada Stella o alcançou no corredor:
-Dick, eu queria me desculpar, mas você sabe que eu e Roy só estamos preocupados com você.
-Eu sei - Richard se apressou em dizer com um meio sorriso - mas mudando de assunto, planos para hoje a noite ?
-Eu não sei - riu a garota - achei que você fosse trabalhar em sua obsessão.
-Não é uma obsessão - retrucou Dick - eu não devo ser o único que acha que essa investigação inconclusiva sobre o Batman foi conduzida de forma estranha.
-Dick - suspirou Stella colocando as mãos nos ombros do namorado - você não pode realmente achar que Bruce Wayne é o Batman, isso é impossível, além disso, o Wayne foi investigado, não encontraram nada que o ligue, mesmo que minimamente, com o morcego.
-Eu organizei as linhas do tempo - comentou o aspirante a jornalista com um tom frustrado - elas batem, eu só preciso de provas mais concretas, preciso observá-lo mais de perto, preciso de equipamentos melhores também.
Stella ficou em silêncio, ela não gostava quando Richard começava a falar dessa forma, porque admitindo ou não, o homem estava obcecado com isso. Isso estava definhando o relacionamento deles.
-Desculpe - entoou Dick frente ao silêncio de Stella - não vamos falar disso, como vai o seu projeto ? Não perguntei dele.
-Eu apresentei na semana passada - comentou a mulher com um tom amargo e cheio de ressentimento - você saberia se não estivesse tão envolvido investigando sobre a vida de um decadente ex-bilionário e seu marido sociopata.
Com essas palavras Stella continuou seu caminho, ignorando Dick chamando-a. Richard sabia que ela tinha razão, ele a tinha negligenciado nas últimas semanas. Stella era sua namorada desde o colégio, e eles tinham uma ligação forte, ele sabia que ela só estava brava no momento. Todavia, ele odiava esse clima em seu relacionamento.
Dick foi em direção a biblioteca, ele tinha alguns trabalhos pendentes, ele tinha negligenciado sua vida acadêmica e sabia que Stella e Roy estavam certos em se preocupar com ele. Até mesmo ele estava preocupado consigo mesmo. O Grayson suspirou, ele tinha passado a noite quase em claro analisando tudo o que tinha reunido nos últimos tempos, reportagens nas revistas e jornais, recortes sobre a vida de Bruce Wayne. A dor de cabeça no dia seguinte era meio inevitável, então ele não estava reclamando.
O aspirante a jornalista investigativo sabia que estava no caminho certo, ele só precisava olhar mais de perto, ele precisava dar um jeito de se aproximar sem ser notado.
-Dick - chamou seu amigo Roy se aproximando, retirando Richard de seus pensamentos - passei por Stella agora a pouco, ela parece zangada.
-Eu pisei na bola de novo, você sabe, com toda essa história do Batman - falou Dick sem humor, enquanto os amigos caminhavam até a biblioteca - eu sei que tenho negligenciado meu namoro com a Stella, mas é que andei muito ocupado.
-Você está sempre ocupado hoje em dia - falou Roy tom um tom neutro - você passa muito tempo investigando esse lance do Batman, ainda tem o seu estágio no Gotham Times e a Universidade para se preocupar, você esqueceu de Stella no meio disso.
-Eu sei - suspirou Dick passando uma das mãos nos cabelos bagunçados - eu amo Stella, sempre pensamos que íamos noivar quando nos formássemos, iríamos morar em um lugar bacana, longe dessa cidade.
-Não vão mais ? - indagou Roy com uma das sobrancelhas arqueadas.
-Não é isso, é só que as coisas são diferentes agora - respondeu Dick com um tom frustrado - a gente não pode fugir da realidade, eu não tenho dinheiro para sair de Gotham, e nem sei se vou conseguir alguma coisa com o meu diploma universitário, mesmo que tudo dê certo, não vai ser da forma como pensamos que seria.
-Não sei se consigo te entender Dick - suspirou Roy.
-Eu também não.
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Bruce acordou se virando para olhar o relógio em cima do criado mudo, já havia passado do horário do meio dia. O moreno piscou para espantar o sono antes de se virar novamente, olhando para o loiro deitado ao seu lado que ainda parecia estar dormindo.
O ex-bilionário carinhosamente plantou um beijo sob o nariz do outro homem, antes afastar os cabelos loiros do rosto do ex-terrorista e se inclinar para beijar sua orelha antes de sussurrar :
-Acorda, estamos perdendo a nossa tarde de folga.
-Dormir não é perder tempo, Brucie - falou o louco com os olhos ainda fechados - e eu estou com sono.
-Vamos, precisamos comer - insistiu o moreno antes de morder levemente a orelha do palhaço - e eu queria fazer outra coisa hoje.
O louco abriu os olhos antes de passar a língua pelo canto dos lábios e entoar em um tom zombeteiro e manchado pelo sono:
-Se vamos comer basta pedir alguma coisa por telefone, e pare de me olhar como se eu fosse o almoço.
Bruce se inclinou para depositar um beijo casto nos lábios do ex-terrorista antes de dizer zombeteiramente com uma sobrancelha arqueada:
-Eu acho que você é um ótimo almoço.
-Cala a boca - riu o louco - eu sou uma ceia de natal, querido.
Bruce não conseguiu conter a risada. Ele riu antes de ficar em silêncio apenas observando o outro homem, o moreno podia ficar olhando para o ex-terrorista durante horas. Mas o ex-bilionário sabia que havia algumas palavras não ditas entre eles, eles não estavam transando nos últimos dois meses.
Eles tentaram, mas depois que o Coringa começou a tomar os remédios, o louco simplesmente ficou muito mais instável, facilmente ficando preso em episódios psicóticos bizarros que faziam com que a espinha de Bruce congelasse, principalmente se engatilhado.
Eles não falaram sobre isso, eles não precisavam, mas simplesmente pararam de tentar depois da terceira tentativa totalmente frustrada. Uma noite que acabou infernal, onde os vizinhos chegaram a chamar a polícia, porque o Coringa não parava de gritar acuado contra uma das paredes do quarto, como se estivesse sentindo muita dor.
Bruce não se importou com a falta de sexo, não que o sexo com o Coringa não fosse bom, era ótimo. No entanto, essa não era uma parte fundamental do relacionamento deles, o ex-bilionário se contentava com a companhia do outro homem, com sua presença em sua vida cotidiana, o moreno não forçaria nada, ele nem sequer fez qualquer movimento para buscar conforto carnal. Ele não queria pressionar.
No entanto, ele sabia que o assunto pairava entre eles, o moreno sabia que eles precisavam falar disso uma hora ou outra, nem que fosse para rirem. Bruce queria dizer que estava tudo bem, mas ele sabia que de alguma forma o palhaço sabia disso, ou simplesmente não se importava, talvez os dois.
O ex-bilionário sabe que ninguém consegue tirar vantagem do outro homem, seja fisicamente ou psicologicamente, a menos que o loiro esteja amarrado ou drogado demais. Todavia, nessas horas de pânico, Bruce não consegue deixar de se sentir um maldito abusador muito assustador, porque o Coringa olha para ele de um jeito que deixa o ex-bilionário muito desconfortável. Bruce sabe que não é realmente para ele, mas ele não pode deixar de olhar de volta para o loiro, um pedido de desculpas silencioso em seu olhar, mas pelo que ? O moreno também não sabe.
-O que você vai pedir para comer, Brucie ? - entoou o louco puxando o moreno para mais perto, um sorriso provocador em seus lábios cheios de cicatrizes.
-Eu ainda estou pensando nisso - respondeu o moreno emaranhado uma de suas pernas com as do loiro, puxando-o para ainda mais perto.
O Coringa soltou uma respiração que não sabia que estava segurando, seus corpos estavam colados um no outro. Eles ficaram em silêncio por um momento apenas ouvindo a respiração de ambos que se emaranhavam lentamente. Quem quebrou o momento foi o palhaço que selou seus lábios com os do moreno em um beijo lento e molhado, o ex-vigilante correspondeu antes de quebrar o beijo acariciando o rosto do loiro, olhando-o atentamente em silêncio, um pedido terno e silencioso.
Bruce gostava de pensar que hoje é melhor em ler o ex-terrorista, principalmente depois de todos os acontecimentos, todavia, sempre foi complicado prever o que o outro homem iria fazer a seguir, então o moreno sempre procurava por pistas no rosto do Coringa. O momento se estendeu até que o ex-terrorista se inclinou para beijar os lábios do outro homem novamente, um consentimento não verbal, mas que Bruce já conhecia.
Com o movimento executado pelo outro homem, o ex-bilionário empurrou o loiro para trás, para que ambos rolassem, ficando em cima do palhaço ainda sem quebrar o beijo, que já começava a ganhar contornos mais acentuados e menos lentos.
Bruce levou uma das mãos para segurar os cabelos loiros entre os dedos, ainda sem separar o beijo, perseguindo a boca do outro homem entre selinhos desajeitados e beijos profundos. Ambos estavam ofegantes quando Bruce se separou para observar o outro homem, antes de enterrar o rosto na curva do pescoço do palhaço para beijá-lo até o colarinho da camisa de manga comprida.
O moreno escutou a respiração do louco engatar enquanto ele virava o pescoço para o lado, para dar ao ex-vigilante um melhor acesso. Com essa reação positiva, o moreno levou sua mão livre para acariciar o peito do loiro por baixo da camisa, deixando seus dedos pressionarem na caixa torácica do ex-terrorista levemente.
Bruce já estava o pau duro dentro das calças, mas ele queria ir com muita calma, o momento exigia preliminares lentas e ternas. O moreno sabia que qualquer um que olhasse de fora acharia que Bruce conduzia a dinâmica do quarto, Bruce sempre foi incrivelmente controlador com tudo em sua vida, mas na cama isso era completamente ridículo, porque o Coringa que sempre ditava o ritmo e o limite.
Tudo sempre foi baseado nas reações do loiro, eles podiam fazer preliminares mais duras e caóticas as vezes se estivessem com vontade de brincar, mas o sexo em si sempre foi lento e carinhoso. Era uma regra não expressa em palavras, mais muito sólida entre eles, o sexo nunca era duro, rápido ou raivoso. Eles não brigavam na cama.
Eles não falaram sobre isso, eles não falaram sobre várias coisas. No entanto, Bruce sabe que o loiro gosta de ser tratado com carinho na hora H, o moreno sabe que possívelmente isso se dá porque quase todas as relações sexuais do ex-terrorista foram incrivelmente violentas, doentes e degradantes. Bruce não gostava de pensar nisso.
O moreno continuou beijando o pescoço do ex-terrorista antes de levar uma das mãos até o cós das calças do outro homem, um pedido silencioso para dar continuidade na forma de um selinho casto nos lábios do outro homem antes de se afastar.
Bruce podia ver nos olhos do loiro, era um carinho tão vulnerável, tão diferente das costumeiras expressões cruéis, frias ou zombeteiras sempre presentes nos olhos do outro homem. O moreno não resistiu em se inclinar para beijar a testa do palhaço antes de entoar suspirando contra a pele do outro homem:
-Está tudo bem ?
-Sim - respondeu o louco desviando o olhar.
Bruce ternamente puxou o rosto do loiro para encará-lo antes de dizer com um tom que só era usado em momentos como esse, ou quando o palhaço estava tendo seus surtos psicóticos:
-Está tudo bem se você não quer, você sabe disso, é você quem decide.
-Eu estou bem - suspirou o louco, no entanto, o moreno não estava convencido, o olhar do loiro dizia o contrário.
Bruce beijou o rosto do loiro antes de sair de cima dele, deitando ao lado no colchão. O moreno sabia que estava dolorosamente duro, essa era uma quase tentativa frustrada, ele podia acrescentar isso na sua lista.
O ex-bilionário não queria deixar sua frustração vazar, no entanto, seu silêncio facilmente foi interpretado pelo loiro. Bruce queria dizer que era a situação, mas ele não conseguia dizer nada, o Coringa também não parecia querer quebrar o silêncio. Ambos sabiam que precisavam falar sobre isso.
-Podemos continuar - começou o loiro com um tom um pouco tenso antes de virar de lado na cama, de frente para o moreno - mas não acho que consigo ir até o fim.
Com essas palavras do loiro, o ex-vigilante levou uma das mãos até a parte da frente da calça do outro homem, acariciando preguiçosamente através do tecido. Bruce não desviou o olhar do rosto do loiro que vacilou por um momento antes de soltar um suspiro suave.
Bruce aproximou seus rostos no momento seguinte, beijando carinhosamente o outro homem, uma garantia. O palhaço soltava pequenos suspiros entre o beijo, ele tinha acabado de endurecer. O moreno parou por um momento, apenas a respiração agitada do outro homem podia ser ouvida.
-Posso ? - perguntou Bruce segurando o cós da calça do louco. O palhaço acenou positivamente, sua respiração ainda agitada.
Bruce adentrou o cós da calça do outro homem, apalpando o tecido fino das boxers do loiro, ouvindo o outro homem suspirar.
O moreno lentamente apalpou uma das bolas entre as pernas do palhaço com cuidado através do tecido, sentindo um curto suspiro contra seu rosto. Bruce inclinou-se um centímetro para frente, depositando um selinho demorado contra os lábios do outro homem.
-Posso ? - perguntou novamente o moreno de forma audível. Ele estava pedindo para tocar a pele do loiro, por baixo do tecido.
O palhaço acenou positivamente, o que fez com que Bruce enfiasse a mão dentro das boxers do outro homem, apalpando a pele quente carinhosamente.
O loiro gemeu cortado entre os dentes, o que fez uma faísca ir em direção ao pênis do moreno. Não havia nada mais excitante para Bruce na cama do que ver o loiro sentindo prazer.
Bruce continuou acariciando enquanto beijava o rosto do outro homem, ocasionalmente dando selinhos desajeitados de boca aberta, ouvindo o Coringa ofegar em sua boca.
O moreno lentamente retirou o pênis do loiro para fora das calças para ter um melhor acesso. O ex-bilionário acariciou levemente a glande entre os dedos em movimentos circulares e lentos, absorvendo os suspiros do ex-terrorista com a boca.
O louco estendeu as mãos para segurar a frente da blusa de Bruce com força, ele estava tremendo, seus olhos estavam semicerrados e sua respiração estava ofegante O moreno deslizou os dedos lentamente pelo comprimento ereto do loiro, quase como uma carícia fantasma. Ele ouviu um gemido escorrer pela garganta do ex-terrorista.
Bruce continuou acariciando, sua própria ereção estava dolorida dentro de suas calças, roçando involuntariamente com a do louco. Ele sabia que não aguentaria muito mais, ouvir o Coringa gemer e suspirar baixinho contra o seu rosto estava o deixando louco.
Não demorou muito, o palhaço veio logo, com um gemido quebrado absorvido entre os lábios de Bruce. O moreno acariciou o rosto suado e a expressão serena do ex-terrorista, se demorando em uma das salientes cicatrizes, estampadas em suas bochechas. O ex-bilionário ainda estava extremamente duro.
Na sequência, depois de alguns segundos para se recuperar de seu estado pós orgasmo, o louco alcançou as calças de Bruce, sendo rapidamente impedido pelo moreno.
-Você não precisa fazer isso - começou Bruce retirando a mão do palhaço de suas calças - eu vou cuidar disso e então podemos ir comer alguma coisa.
-Brucie, pelo amor de deus, se estou oferecendo é porque posso fazer isso - zombou o louco passando a língua pelo lábio inferior - você sabe que eu só faço o que eu quero fazer.
O moreno ficou em silêncio, ele sabia que era verdade. Apesar da vulnerabilidade que o moreno observou momentos atrás, o Coringa jamais faria qualquer coisa que não quisesse, e jamais deixaria que alguém o tocasse se ele não quisesse. A questão é que o palhaço queria, mas não estava bem para isso. No entanto, Bruce sempre fez questão de enfatizar que o louco tinha escolha, que o moreno jamais o machucaria dessa forma.
Com o silêncio do ex-bilionário, o palhaço levou a mão novamente até a frente das calças do outro homem. Notando a excitação do moreno, o louco rapidamente puxou o pênis do ex-vigilante para fora, que já estava completamente ereto.
O ex-terrorista deu algumas puxadas lentas, antes de se nivelar no colchão com a pélvis do moreno agarrando suas coxas com força e trazendo o membro do outro homem para perto de seu rosto.
Bruce olhou para baixo, observando todos os movimentos do outro homem. O Coringa lentamente roçou os lábios na glande, respirando quente contra a cabeça do membro, antes de depositar pequenos beijos. A pressão estava fazendo Bruce suspirar.
O moreno em um movimento leve, pousou uma das mãos sob a cabeça do palhaço, seus dedos penteando os cabelos loiros e levemente cacheados para trás. Bruce gostava de ver o rosto do louco enquanto faziam isso, era algo estabelecido entre eles, e o moreno sabia que o Coringa precisava olhar para ele em alguns momentos, então ele fazia questão de facilitar isso.
Muitas pessoas achariam estranho, mas Bruce entendia perfeitamente essa necessidade, ele sabia que o loiro precisava lembrar que quem estava com ele era Bruce. O moreno entendia.
O ex-terrorista colocou a glande entre os lábios, lambendo levemente a ponta antes de colocar o membro todo na boca. Bruce gemeu com o ato.
Na sequência o palhaço começou a chupar com um som molhado, levando a cabeça do membro até a garganta sem dificuldades, sua língua percorria o comprimento e sua garganta se contraia contra a instrução, fazendo Bruce ver estrelas.
Isso sempre fazia o moreno se dar conta do quanto era péssimo nesse departamento, eles já tinham falado sobre isso. Na ocasião absurda, o louco apenas riu e disse que Bruce era inexperiente, e que o membro do moreno não era o maior que o loiro já teve em sua garganta.
Apesar do clima absurdo e leve induzido por álcool, o moreno podia sentir que havia um fantasma de tristeza entre eles. Ambos estavam bêbados, falando bobagens, mas depois dessa fala do loiro, eles apenas ficaram em silêncio.
O moreno sabia que estava quase no clímax, ele nunca durava muito na boca do Coringa. O loiro levou uma das mãos até as bolas do moreno, acariciando-as com os dedos.
Na sequência, o ex-terrorista respirou pesadamente pela boca, ainda com o pênis do moreno na garganta, mas cessando os movimentos, antes de continuar a sucção em movimentos de vai e vem. Bruce estava no limite, ele ejaculou enterrando ao máximo seu membro na boca do outro homem, sentindo a garganta do ex-terrorista se contrair ao seu redor enquanto o líquido era derramado.
Depois de um momento nublado pela sensação pós orgasmo que o moreno percebeu que suas coxas estavam no pescoço do palhaço, apertando os lados da cabeça do loiro, ainda com o membro agora sensível de Bruce na garganta. O moreno rapidamente o soltou, sabendo que o louco entrava em pânico nessa situação.
-Jay - chamou o moreno rastejando para os pés da cama, onde estava o ex-terrorista - você está bem ? Desculpe, eu n-
O moreno foi interrompido pelo louco que disse com um tom de zombaria:
-Pelos seus reflexos de orgasmo que são involuntários ?
-Eu não precisava ter me enterrado, ou ter prendido você daquele jeito - falou o moreno com um suspiro.
-Eu estou bem, Brucie pare de se martirizar - falou o loiro revirando os olhos antes de passar a língua pelo lábio inferior desviando o olhar e começando a arrumar suas calças - você se preocupa demais com coisas inúteis.
Bruce franziu a testa, o moreno conhecia o palhaço muito bem, ele sabia que pelo jeito esquivo que o Coringa estava se protegendo. Era o modus operandi dele, fingir que nada no mundo o afeta e que o moreno é dramático por se importar. Todavia, Bruce conhece demais essa postura do louco para cair na bravata.
O loiro estava se levantando da cama quando o ex-bilionário o puxou violentamente para o colchão, fazendo o ex-terrorista cair com estremecimento chocado antes de colocar um sorriso de escárnio nos lábios, corrigindo sua expressão cuidadosamente para uma de zombaria.
-Seus sentimentos importam para mim - disse o moreno com um tom sério - eu sei que você está mexido, pode fazer essa expressão o quanto quiser.
-Quer que eu faça o que ? - ferveu o loiro com um chiado baixo antes de umedecer os lábios com uma lambida nervosa - quer que eu chore ? Tudo bem, me senti angustiado, em pânico, achei que ia morrer e foi horrível.
A forma como o louco cuspiu isso fez o moreno se sentir mal, era como se o ex-terrorista não se importasse com seus próprios sentimentos. Bruce sabe que é exatamente isso. O moreno suspirou, suavizando seu semblante antes de entoar:
-Tudo bem se você não quer falar sobre isso, eu não devia ter pressionado você, vem cá.
Com essas palavras o moreno puxou o loiro para seus braços, enterrando o rosto no cabelo loiro antes de tornar a falar:
-Que tal você ficar aqui enquanto eu vou pegar alguns bolinhos de carne na padaria do quarteirão ?
O louco riu antes de entoar com um tom sonhador:
-E traga aquelas rosquinhas de creme e açúcar, não são tão boas como as de Jeeves, mas serve.
Bruce se limitou a sorrir, estranhamente Alfred e o Coringa se davam relativamente bem, era diferente da relação passiva agressiva que o louco tinha com Harvey e Chuck, ou ainda, da relação um pouco nervosa e desconfortável com Rachel. A única pessoa do círculo fora dos internos de Arkham que o palhaço tinha uma relação mais confortável do que a que ele mantinha com Alfred, era com Gordon.
O moreno sorriu para si mesmo quando quase um mês atrás, arrumando o arquivo médico do Coringa, descobriu que além dele, o número de Gordon constava nos contatos de emergência do loiro. O louco foi o grande alicerce do ex-comissário quando Jim se separou de Bárbara, a amizade deles era um tanto inusitada para a maioria das pessoas que não acompanhou os acontecimentos do ano passado, mas eles funcionavam. Os dois homens bebiam café e jogavam poker com bastante frequência, e Bruce gostava disso.
O ex-bilionário estava preocupado com Gordon, ele sabia que não tinha perguntado muito sobre o outro homem nos últimos tempos, mas ele sabia que a separação não foi fácil, a entrada de Jimmy na academia de polícia e a formatura a duas semanas atrás. Bruce sabia que Jim temia por seu filho, a vida como policial em Gotham era difícil, Gordon era a prova viva disso, de como o sistema pode te endurecer.
-Você anda tão pensativo - comentou o loiro diante do silêncio, ambos estavam perdidos em pensamentos, mas Bruce não comentou.
-Só estou com sono - mentiu o moreno se separando do loiro e se levantando da cama - vou sair agora comprar os bolinhos e as rosquinhas, ou vou perder a coragem.
Bruce se inclinou na cama para depositar um selinho nos lábios do ex-terrorista antes de entoar baixinho contra os lábios do loiro:
-Eu já volto.
O moreno se afastou colocando sapatos fechados e saindo pela porta do quarto, deixando o louco com um pequeno sorriso nos lábios. Só o Coringa mesmo para fazer Bruce comprar tanta porcaria doce e não saudável. O moreno bufou com esse pensamento.
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Chuck estava irritado, eles tinham tanto trabalho, tanta papelada para organizar. As coisas estavam caóticas sem Gordon por aqui. Não fazia dois meses que o ex-comissário havia se aposentado, isso veio logo depois que Bárbara foi embora, os papéis do divorcio enviadas por seu advogado.
A relação de Jim com o filho também não estava bem, eles nunca foram muito próximos nos últimos anos, e Jimmy já era um homem crescido. Foi um choque para Gordon quando seu filho entrou na academia de polícia.
O garoto era inexperiente, novato, mas Castro não deu ouvidos quando Chuck falou que o garoto precisava de alguém experiente como parceiro de patrulha. Castro colocou Jimmy com outro novato, Ryan Thompson. Como era esperado por qualquer policial experiente, as coisas não saíram muito bem. Thompson foi baleado, estava em estado grave no hospital e Jimmy se culpava por isso.
O tenente sabia que poderia ter acontecido uma tragédia, as gangues estavam aumentando e a guerra por novos territórios se intensificou, a polícia apenas estava no meio do fogo cruzado tentando proteger o cidadão comum.
Chuck sabe que Jimmy e Thompson não tinham a menor chance, estariam mortos se a sua equipe não estivesse fazendo uma diligência nas redondezas. O sangue do tenente congelou quando ouviu a voz de Jimmy pelo rádio, como uma criança assustada, dizendo que não queria morrer, o som do tiroteio ecoava ao fundo.
O tenente tinha formado uma equipe fixa, ele pela primeira vez estava tentando deixar o passado ir. Ele precisava superar isso. Escolher Sarah foi uma obviedade, ela era experiente tanto em trabalho de campo quanto administrativo, no entanto, a integração do Coringa na equipe foi uma surpresa para todos, até mesmo para o próprio tenente. Todavia, o conhecimento tático improvisado em situações extremas, facilidade na criação de ferramentas e rotas de fugas, que o Coringa possui sempre foi muito impressionante e Chuck admitia que era uma boa aquisição para o grupo.
Ele ficou receoso em criar uma nova equipe, ela era nova, formada a menos de um mês atrás. As obrigações de cada uma ainda não estavam definidas, mas contava com quatro agentes, fora o tenente encabeçando a liderança.
Chuck evitava sair com todos eles, ele preferia deixar o Coringa na delegacia com a agente Dawson. Saindo apenas com Sarah e o agente Taylor. No entanto, naquele dia felizmente a operação exigia a equipe toda. Jimmy estava se sentindo culpado por algo que não tinha controle, Chuck tentou tranquilizá-lo.
O tenente foi retirado de seus pensamentos quando uma pasta foi jogada sob sua mesa, o homem levantou os olhos para ver Sarah, ele não teve tempo de dizer nada, antes que a mulher começasse a entoar:
-Esses são os arquivos da operação de ontem, não tivemos grandes dificuldades.
-Vocês já começaram o inventário dos últimos acontecimentos ? - começou o tenente massageando as têmporas - algumas coisas não batem, e até agora a única coisa que temos é um número de série de um container desaparecido a mais de 3 anos, cujo destinatário ainda não foi identificado e nem o proprietário.
-Talvez não seja nada Chuck - suspirou a agente com pesar - o contador de histórias já não faz uma aparição desde a prisão de Roger Elliot no ano passado, não acho que ele vai voltar a aparecer, o melhor é arquivar esse caso, estamos gastando recursos que não temos nisso.
-Não podemos simplesmente deixar que ele saia impune - disse o tenente com um tom medido.
-Mas já faz um ano, Chuck - respondeu a mulher - talvez seja hora de aceitar a derrota, ou você vai acabar como Jim.
O tenente lançou um olhar significativo para a agente, ele sabia que Gordon havia estragado sua vida familiar por conta de sua luta incansável pela justiça, e quando tudo acabou, a família se desgastou por conta da ausência, e a fé na justiça foi abalada, só o que restou foi a solidão e uma carcaça amarga. Uma mulher a quem Jim disse um dia amar o deixando, e um filho que nunca se conectou com o pai e o vê quase como um estranho. Chuck sabia muito bem onde Sarah queria chegar.
-Sei que está ressentido - continuou a agente frente ao silêncio do tenente - eu também ficaria no seu lugar, você sabe que a maioria das pessoas aqui queriam você naquela sala agora.
-O prefeito discorda - falou Chuck, tentando que o tom de amargura não vazasse em sua frase, mas falhando.
-E o que o prefeito sabe ? - Zombou a mulher, seu tom era cheio de escárnio.
-Sarah Essen insultando o prefeito ? - riu o tenente - eu nunca acharia isso possível.
-Sempre levei meu trabalho na delegacia muito a sério - comentou Sarah pensativamente - sempre achei que poderia sobreviver ao sistema sem ser engolida por ele, fui imatura, tive várias paixões, me destruí em todas elas, e agora, bem, só quero rir de mim mesma.
Chuck olhou para a agente com um olhar conhecedor, ele sabia sobre ela e Jim, sobre tudo que aconteceu entre eles, e como tudo acabou tão mal. O tenente lamentava por isso.
-Você acha que eu posso estar ficando louca ? - perguntou a mulher de repente no silêncio estabelecido.
-Acho que para acreditar em justiça em uma cidade como Gotham você necessariamente precisa ser um pouco louco.
Notes:
Muito obrigado a quem leu até aqui. Deixem um comentário, isso me motiva a continuar a história :)
Chapter 5: The Gotham We Have (Parte 5)
Notes:
Mais um capítulo novo, desculpem o atraso sem aviso prévio, mas eu estava um pouco atarefado demais. Todavia, aqui vai o capítulo da semana :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Chuck estava enterrado em papeladas. Eles tinham recebido mais duas ocorrências estranhas, alguém parecia querer pedir ajuda. O tenente sabia que isso tinha relação com o aumento do número de gangues, e na verdadeira guerra ocorrendo entre criminosos que outrora eram vistos como meros asseclas. Além disso, o aumento no número de assaltos e roubos também tinha relação com o sumiço da figura do Batman, o tenente sabia que precisava reconhecer isso.
Todos os dias apareciam novos casos, novas gangues, novos integrantes. Gente de fora, gente de dentro dessa zona que sempre foi essa cidade. E os jornais perguntam do Batman e cobram das autoridades a prisão dos chefes das gangues. Chuck sabe que eles estão no direito de indignar a população, mas ele se sentia encurralado de todos os lados.
-Chuck - entoou uma voz retirando o tenente de seus pensamentos, era Castro - eu preciso falar com você na minha sala.
-Claro - respondeu o tenente se dirigindo com o novo comissário até a antiga sala de Gordon. Chuck ficou em silêncio enquanto Castro ia se sentar. Ambos se encararam por um momento, eles não tiveram tempo para conversar sobre Castro ter assumido como comissário. O silêncio reinava.
-Sua equipe está de prontidão ? - perguntou o atual comissário com um tom estritamente profissional - eu preciso que você comande uma diligência, coisa simples, parece que nosso assaltante favorito voltou a aprontar.
-Novamente ? - questionou Chuck com o cenho franzido - é a segunda vez essa semana, o que ele levou dessa vez ?
-Nada demais, dinheiro e alguns produtos enlatados, nenhum ferido - suspirou Castro - você vê algum padrão ?
-Bem - começou Chuck - o “Capuz Vermelho” não parece alguém que rouba a muito tempo, pelo menos não da forma que vem fazendo, além disso, ele sempre rouba estabelecimentos comerciais perto do fim do expediente, isso talvez demonstre alguma insegurança em sua habilidade, ele é inexperiente.
-Capuz Vermelho ? - indagou Castro com uma sobrancelha arqueada - eu imagino de quem partiu o apelido, mas porque ?
-É auto-explicativo - bufou Chuck - além disso, antes de ser o Coringa, ele também cometia assaltos com um moletom vermelho de capuz.
-Falando nele - comentou Castro de repente, acentuando com um suspiro - ele já chegou ? Queria que ele tentasse reconhecer alguns rostos, recebi de um informante algumas fotos de alguns homens desagradáveis que vem ganhando força nas ruas, quero neutralizá-los antes que se tornem realmente perigosos.
-Não - disse o tenente simplesmente - ele não vem hoje, Bruce me ligou, parece que aconteceram alguns problemas.
Castro suspirou, ele não parecia nada feliz com isso. O atual comissário pareceu refletir por um momento antes de entoar:
-Ele tem andado pior nos últimos dois meses, temo que seja até perigoso deixar que ele integre sua equipe, ele me parecia fora de si da última vez que conversamos, talvez seja mais seguro designá-lo para algo mais…não sei, fácil talvez ? Ele poderia atender o telefone e anotar os recados.
-Ele sempre foi louco - comentou o tenente com uma expressão azeda, Chuck detestava quando falavam do Coringa como se o palhaço fosse um incapaz - você não o conhece como eu, é louco mas não é burro, é extremamente perigoso, está com medo que ele leve um tiro ?
Castro ficou em silêncio, não era isso. Mas essa conversa fez com que o atual comissário notasse uma mudança na postura do tenente. Chuck parecia irritado.
-Se um dia essa delegacia pegasse fogo - entoou o tenente notando o silêncio do atual comissário, seu tom era frio - e eu só pudesse apostar em uma pessoa para sair daqui com vida, eu apostaria no assassino sanguinário e sem escrúpulos que divide o mesmo recinto com todos aqui, desculpe mas você não é de Gotham, você não faz ideia do quão frio, cínico e doente é aquele maldito filho da puta.
-Você não gosta nem um pouco dele, não é tenente ? Me pergunto porque ele integra sua equipe.
-Não - Chuck se apressou em responder - eu não gosto, não vou mentir e dizer que me importaria se uma bala acertasse a cabeça dele, mas como profissional não posso deixar de admitir que ele tem muitas qualidades.
-Bem, Gordon gosta bastante dele, desculpe mas eu não pude deixar de notar a clara afeição dele pelo Coringa.
-Gordon está emocionalmente fragilizado - comentou o tenente com um tom cansado, seus dentes estavam pressionados com força - ele perdeu a filha em circunstâncias horríveis e estava enfrentando problemas no casamento como você bem sabe, depois Bárbara foi embora de vez, ele saiu da polícia e seu filho, Jimmy, não parece tem qualquer apreço pelo pai, Gordon apenas…bem, ele se agarrou no que pode no meio de tudo isso.
Castro olhou para o tenente com um olhar de compreensão, ele notou como Jim Gordon parecia cada vez mais cansado. Não foi uma surpresa a aposentadoria.
-Desculpe me meter nisso - começou o atual comissário - eu e Gordon nunca desenvolvemos uma amizade, mas sei que vocês tem uma bastante sólida, sei que você deve estar preocupado com tudo o que aconteceu com ele desde o ano passado.
-Obrigado pelas suas palavras, comissário Castro - respondeu o tenente com um falso tom de agradecimento - mas eu acho que devemos nos atentar no nosso trabalho acumulado aqui na delegacia.
-Sim, eu concordo tenente - comentou Castro com um tom nivelado - eu queria falar outra coisa com você também, sobre o caso do contador de histórias, você tem novidades ?
-Não - respondeu prontamente o tenente - ele sumiu depois da prisão de Roger Elliot e de outros criminosos e acionistas da Wayne Enterprise, também envolvidos com o tráfico de pessoas e todas aquelas barbaridades que você conhece bem.
-O que eu quero dizer - disse o atual comissário levantando da mesa e começando a andar pela sala ficando em silêncio por um momento - é que talvez devêssemos arquivar esse caso, não temos recursos sobrando para gastar nisso.
-Sarah falou com você ? - se exaltou o tenente por um momento - vamos deixá-lo sair impune ? E todas aquelas pessoas que ele matou ?
-É como você mesmo disse tenente - suspirou Castro resignado - nós não temos nada sobre o cara, e não foi Sarah que trouxe isso para mim, eu que levei até ela, precisamos nos concentrar em desarticular as gangues existentes e prevenir o aparecimento de outras.
Chuck ficou em silêncio, sua expressão não mudou, ele fervia em indignação. O tenente saiu da sala do atual comissário frustrado, ele não sabia que essa decisão tinha partido de Castro. Ele não podia desistir, tinha que existir alguma coisa, qualquer coisa que ele pudesse fazer. Chuck foi retirado de seus pensamentos por Sarah indo ao seu encontro.
-Ele não parece de bom humor hoje - comentou a agente com um olhar de compreensão.
-Bem, eu também não - respondeu o tenente - mas deixa isso, temos que terminar aquele inquérito, pode trazer para mim, vou dar uma olhada.
-O clima aqui está uma droga - comentou Sarah com um suspiro.
-Eu sinto que desde que Jim se aposentou as coisas tem andado estranhas - respondeu Chuck - não é só a atmosfera de suspense, é a administração estranha, é a forma estranha como Castro conduz as coisas para becos sem saída.
O silêncio reinou entre os dois presentes de forma pesada, como o ambiente ao redor, eles podiam sentir, alguma coisa estava acontecendo.
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O palhaço acordou depois de alguns momentos olhando a sua volta, ele tinha pegado no sono. O louco rapidamente olhou para o criado mudo e franziu a testa ao ver o horário, eram 3 da tarde.
-Brucie ? - chamou o loiro, seu tom ainda bêbado de sono. No entanto, ninguém respondeu, e depois de alguns momentos, o ex-terrorista se esgueirou para fora da cama. O Coringa caminhou pelo corredor ainda chamando pelo outro homem antes de parar um pouco pensativo. Bruce ainda não tinha retornado da rua ? Era uma caminhada de menos de 20 minutos de ida e volta até a padaria, na pior das hipóteses.
O palhaço sabia que seu querido era capaz de resolver eventuais problemas,mas ele não podia deixar de se preocupar, Bruce não telefonou, o loiro não escutou o celular tocar em momento nenhum, ou ainda não parecia que o moreno havia enviado mensagem, isso era muito estranho.
O Coringa rapidamente calçou tênis e um moletom, ele precisava ir atrás do moreno e descobrir o que estava acontecendo. Então o palhaço apenas saiu de casa, andando na rua em direção a padaria onde Bruce iria anteriormente, a rua parecia pouco movimentada, o que era estranho para esse horário. O loiro estreitou os olhos com a observação, passando a língua no lábio inferior pensativamente.
Não demorou muito para que o ex-terrorista encontrasse o estabelecimento, ele olhou pela vitrine de comidas por um momento, não vendo nenhum cliente, apenas uma mulher no caixa que apresentava um comportamento estranho. O palhaço passou normalmente pela frente da loja se dirigindo para os fundos, estava acontecendo alguma coisa muito estranha.
Cerca de 1 hora e meia atrás - 13:30 da tarde (Gotham City - New Jersey (EUA))
Bruce estava finalizando sua compra quando duas figuras encapuzadas adentraram na padaria rendendo todos os clientes. O moreno trincou os dentes quando dois homens mascarados com bandanas adentraram no recinto segurando um garoto menor, ele tinha a cabeça baixa e usava um moletom vermelho de capuz, mas não tinha o rosto coberto.
-Todo mundo abaixado ! - gritou um dos homens apontando uma arma para os clientes - só queremos o dinheiro !
O moreno ficou em silêncio e se abaixou, era muito arriscado fazer um movimento agora. Ele tinha que esperar.
-Vá e pegue o que conseguir - disse um dos homens para o garoto, empurrando-o para frente. O garoto se encolheu, mas começou a pegar os pertences das pessoas que estavam no recinto. Ele andava de uma forma estranha, parecia estar mancando.
Quando o garoto chegou em frente ao moreno, este levantou os olhos e sussurrou:
-Socorro.
Seu rosto apresentava algumas escoriações, e seu olhar desesperado despertou em Bruce a vontade de estar com seu traje agora.
-Faça o que eu disser - sussurrou de volta o moreno.
-Ei ! - gritou um dos homens indo até o garoto e agarrando-o pelo braço violentamente e arrastando-o para o lado - o que você está fazendo ?
Bruce ferveu, mas tentou manter a cabeça fria, ele não era o Batman, ele era apenas um cidadão comum, ele não podia sair fazendo alguma coisa da qual se arrependeria. O moreno respirou fundo, alguém podia sair machucado se o ex-bilionário não agisse da forma certa.
O ex-vigilante viu o garoto ser arrastado, seus olhos arregalados e chocados contrastavam e se encontravam com resignados de Bruce. O moreno precisava dar um jeito de ajudar o garoto sem colocar a vida de ninguém em risco.
Bruce estava pensando no que fazer quando um dos clientes tentou ligar para a polícia, embora tentasse ser discreto, era impossível não notar. O moreno ouviu quando o disparo soou, acertando o homem que caiu morto atrás das prateleiras. Logo um tom irritado entoou em alto e bom som:
-Não estamos aqui brincando ! Quem reagir vai levar chumbo !
O ex-vigilante olhou em volta um pouco alarmado, ele precisava fazer alguma coisa, ou essas pessoas acabariam se machucando. No entanto, o ex-bilionário não teve muito tempo para pensar, os dois assaltantes rapidamente começaram a conduzir os clientes e funcionários para o fundo da padaria, deixando apenas a atendente um pouco desorientada no caixa com uma ameaça clara, olhar de “não desperte atenção”.
Bruce não teve tempo de traçar um plano, ele rapidamente foi jogado para dentro de um banheiro, juntamente do restante dos clientes, funcionários e do garoto, sob ameaça para ficarem em silêncio. O moreno podia ver melhor agora, ele podia ver o rosto dos que estavam cativos junto dele, eram 4 pessoas fora ele próprio e o garoto desconhecido com moletom vermelho. Um idoso, um casal e uma moça. Todos pareciam a beira do pânico, Bruce precisava dar um jeito de manter todos a salvo.
-Não entrem em pânico - começou o rapaz do casal - se colaborarmos eles não farão nada com a gente.
-Precisamos ligar para a polícia - exclamou de repente a moça do outro lado do banheiro.
-Como ? - retrucou a mulher do casal - eles levaram nossos celulares e aquele homem que tinha um extra e conseguiu ficar com ele está morto lá na frente, não acho que devemos chamar a polícia.
-E o que devemos fazer ? - disse o idoso entrando na conversa - não podemos apenas esperar que eles entrem aqui e nos matem.
Bruce sentia a tensão escalando rápido, ele podia ver que isso evoluiria para uma discussão e uma possível briga, eles não precisavam disso agora. Ele queria ser o Batman nesse momento.
-Me escutem - disse Bruce de repente, ganhando atenção de todos - fiquem calmos, nos desesperamos apenas fará com que as coisas piorem, precisamos usar a cabeça.
-Você não é Bruce Wayne ? - disse a moça com o nariz torcido, sua expressão um pouco desconfiada. O ex-bilionário conhecia essa expressão, ele não gostava, ela o perseguia onde quer que fosse. O ex-vigilante ficou em silêncio por um momento, tentando processar a expressão que ganhou da mulher, isso ainda o afetava.
-Sim - falou o moreno com um tom seguro - eu sou Bruce Wayne.
-O que faz aqui Sr. Wayne ? - perguntou o rapaz do casal com uma expressão um pouco curiosa.
-O mesmo que todos vocês - falou o moreno simplesmente - mas isso não importa, escutem, não podemos entrar em pânico, precisamos usar a cabeça.
Todos ficaram em silêncio por um momento, olhares preocupados e receosos giraram pelo pequeno recinto. Bruce precisava dar um jeito de proteger essa gente. O tempo estava passando.
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O palhaço do lado de fora do estabelecimento parecia estar ciente de que alguma coisa estava acontecendo. Ele sabia que deveria ligar para Chuck, pedir reforços e agir dentro do que era aceitável, dentro das normas sociais. No entanto, o louco se sentia mais vivo agora do que nos últimos dois meses. Seu mundo estava ganhando cores.
O loiro sabia que não devia, mas ele agiu, entrando despreocupadamente no estabelecimento, dando de cara com dois homens com bandanas cobrindo o rosto, qu o olharam um pouco surpresos.
-Olá senhores, eu só quero saber onde está o meu marido, vocês o viram ? - começou o louco com um tom zombeteiro enquanto arqueava as sobrancelhas - talvez vocês precisem de mais informações, ele é da minha altura, tem cabelos castanhos e-
O loiro foi interrompido por um dos homens que disse em um rosnado indignado:
-Quem é você ? Vamos Boris amarra esse cara e coloca junto com os outros.
-Na verdade eu prefiro não ser amarrado…ah e eu gosto de pensar que sou um cara original - comentou o louco olhando em volta antes de passar a língua no canto dos lábios, seu tom ainda era de zombaria crua - entendendo que estejam ganhando seu pão de todo dia..bem, nisso que estão fazendo, mas eu realmente preciso achar meu marido.
Os dois homens ficaram em silêncio antes de olhar o palhaço mais atentamente, um reconhecimento nervoso pairando sobre suas feições. O Coringa foi facilmente reconhecido, mesmo sem a pintura de guerra, suas longas e grosseiras cicatrizes o denunciavam.
Todos ficaram em silêncio, então o louco tornou a falar com um tom baixo enquanto passava a língua no lábio inferior:
-O que aconteceu? Vocês parecem nervosos, eu só estou procurando o meu marido.
Novamente, os dois homens não emitiram um único ruído, ambos pareciam presos no terror do que estava por vir. O Coringa transbordava mania crua.
Um dos homens tencionou os dentes com força, ele não tinha percebido antes, o homem moreno não havia lhe chamado atenção antes, mas agora, Bruce era nítido em sua cabeça, eles tinham cometido um erro grotesco.
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Todos do lado de dentro do banheiro se pressionaram fortemente contra a parede oposta quando a porta foi aberta. Bruce observou tudo com um olhar cauteloso. O moreno notou quando o homem parado na porta permaneceu imóvel e preocupado, mas o ex-bilionário não teve tempo de reagir, em um momento o homem estava morto no chão, uma poça de sangue aos seus pés.
Bruce não desviou o olhar do cadáver, ele escutou os gritos de alguns dos outros cativos ao seu lado, mas isso não o afetou como deveria. O moreno não conseguia parar de olhar para o homem morto. Bruce apenas desviou o olhar do cadáver quando notou passos, o moreno olhou para a origem do som apenas para ver o palhaço com um sorriso torto e frio. O olhar do louco fez o moreno estremecer.
-N-Nós precisamos chamar a polícia - falou de repente uma das mulheres com um tom choroso no meio do silêncio opressivo - tem um homem morto aqui no chão.
Essa fala da mulher fez o moreno sair de seu transe, ele não podia deixar que nenhum deles chamasse a polícia, ele precisava consertar isso. Bruce precisava fazer algo.
-Ninguém vai chamar a polícia - disse o moreno simplesmente.
-Tem um homem morto aqui - falou um dos homens, antes de lançar um olhar para o palhaço, desviando rapidamente.
-Eu vou dar um jeito nisso - falou o moreno com uma voz tensa - não tem a necessidade de chamar a polícia.
-Onde está o meu celular ? - entoou uma das mulheres se levantando em um surto de coragem - eu vou ligar para a polícia, tem um homem morto na minha frente !
Bruce queria protestar, mas ele sabia que isso não adiantaria, ele se limitou a suspirar cansado. A mulher caminhou em direção da porta sendo barrada pelo palhaço que estreitou os olhos lambendo as cicatrizes.
-Meu querido ainda não terminou de falar.
-Coringa - interveio Bruce com um tom firme, a falta do apelido mostrava a seriedade - deixe que ela vá.
O palhaço ficou em silêncio, parado por um momento antes de abrir passagem pela porta, por onde a mulher passou alarmada. O Coringa olhou para o moreno por um momento antes de se aproximar lentamente, seu rosto e moletom estavam respingados de sangue. Bruce parecia ter um tom seco, sua expressão era dura, mas ele não disse nada. Eles ficaram em silêncio, os olhares da sala se fixaram nos dois.
Bruce estava com raiva, ele não conseguia contornar a situação, ele não via uma forma. O moreno respirou fundo, ele não podia deixar que levassem o Coringa, ele não podia. O ex-bilionário se bateu internamente, ele tinha pelo menos um homem morto, ele não podia acobertar mais um homicídio.
O moreno estava imerso em seus pensamentos, quando um grito o fez correr porta afora, parecia da mulher que estava na sala antes. Bruce rapidamente a encontrou em pé, o outro assaltante também estava morto. A mulher parecia em choque.
-Levem-na para o banheiro - falou Bruce de repente, sua voz era dura, quase um comando. Os outros presentes ficaram em silêncio, mas não fizeram um movimento para retornar para o banheiro.
-Agora - ordenou Bruce em um rosnado, seu tom mais parecido com o do morcego - entrem no banheiro, se tranquem lá e não saiam, vocês não viram nada.
O tom usado por Bruce era quase assustador, ele parecia no piloto automático. Rapidamente os outros presentes no recinto adentraram no banheiro e fecharam a porta. O outro homem morto ainda estava em frente a porta que dava para o banheiro.
Bruce caminhou lentamente até a faca abandonada no pescoço do homem, observando-a com cuidado. Bruce tinha uma ideia, ele precisava dar um jeito. O moreno pressionou os dentes com força, precisava servir.
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Chuck estava cheio de trabalho em sua mesa, ele tinha muito o que lidar no momento, e ainda tinha o caso parado do contador de histórias. Esse caso era como um fantasma assombrando sua cabeça desde o ano passado. Chuck não sentia que não conseguia seguir em frente, ele se lembrava da conversa anterior com Castro, do pedido do atual comissário, para deixar o caso.
Eles tinham pego Elliot, eles tinham pego várias figuras importantes, mas não era o suficiente, nunca era, porque ainda havia sujeira por trás dessa história. Chuck não sabia como chegar no responsável por tudo, chegar ao fundo.
-Tenente - exclamou o agente Taylor indo em direção a sua mesa - mais um arquivo, assalto a uma padaria, com testemunhas, dois mortos, pelo jeito eles tiveram uma briga e acabaram ambos esfaqueados, um pouco suspeito.
Chuck franziu o cenho, não era comum esse tipo de inquérito vir para ele.
-E você intimou as testemunhas para deporem ? - indagou o tenente, analisando um dos papéis em sua mesa, não dando a devida atenção ao agente.
-Não - respondeu Taylor - mas pegamos o Capuz Vermelho.
Chuck parou o que estava fazendo e olhou para o agente por um momento em silêncio. Alguns segundo havia se passado quando o homem de meia idade disse:
-Vocês pegaram o Capuz Vermelho? Como ?
-Foi um golpe de sorte, ele ainda não foi interrogado, mas parece que estava junto com as vítimas do assalto, preso no banheiro.
-Que horas será o interrogatório dele ? - perguntou Chuck largado o que estava fazendo com um tom sério - eu gostaria de assistir isso.
Taylor olhou um pouco surpreso para o tenente, ele não esperava por isso. Chuck nunca havia demonstrado ter uma curiosidade pessoal para com esse caso
-O que você está pensando ?
-Eu acho que o caso do Capuz Vermelho tem alguma relação com o caso do Contador de Histórias - entoou Chuck um pouco pensativo.
-Você trabalha com qual suposição ? - se interessou o agente.
-Nenhuma, apenas uma suspeita, mas eu ainda não sei como colocar isso, de qualquer forma, me notifique quando ele for interrogado.
O agente assentiu se retirando do recinto, deixando o tenente imerso novamente em seus pensamentos.
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A volta para casa foi tensa, mas nada se comparava a tempestade que desabou quando ambos chegaram até o apartamento. Bruce estava zangado, frustrado. Ele tinha acabado de fazer de novo, o ex-vigilante estava fechando os olhos para as atitudes do Coringa, e pior, estava acobertando. Mais uma vez ele tinha mexido na cena de um crime, mais uma vez ele tinha jogado sua moral para o alto por medo de perder o que ele demorou tanto tempo para admitir que queria para si, uma vida ao lado do palhaço.
-Não posso continuar fazendo isso - rosnou o moreno no silêncio tenso e incômodo, seguindo o loiro até a cozinha. O Coringa não disse nada, ele apenas tinha aquele ar levemente zombeteiro e maníaco ao seu redor, Bruce odiava, porque ele sabia que o ex-terrorista estava adorando mexer as cordinhas, como se soubesse que Bruce não o entregaria. O louco achava fascinante a forma como a mente do moreno funcionava.
A tensão entre eles era demais, carregada de estática crua. Bruce agarrou o braço do louco para que o ex-terrorista o encarasse.
-Porque você fez isso ? - disse Bruce de repente, ele estava muito sério e seu aperto era quase doloroso. O moreno não sabia o que queria do palhaço com isso, talvez se convencer de que tinha que ser feito, talvez captar no Coringa algum resquício de culpa, de humanidade, qualquer coisa. Todavia, o moreno não se surpreendeu quando olhos frios e afiados se fixaram nele.
-Porque eu não devia fazer ? hum ? - perguntou o palhaço lambendo o canto dos lábios, como se a resposta não fosse óbvia para Bruce.
-Tinha maneiras mais c-
Bruce foi cortado pelo loiro, que disse rindo:
-Não fale como um deles, você não é, ouça - o palhaço fez uma pausa passando a língua pelo lábio inferior, antes de continuar seu discurso, Bruce sabia que com “eles” o Coringa queria dizer as pessoas normais, zeladores da moral e da ética - eu fiz aquilo porque eu queria fazer, foi bom e eu adorei, a adrenalina disso é indescritível, não é o que nós somos ? Dois do mesmo, viciados em nos sentirmos vivos, você está louco para brigar comigo por isso, eu vejo nos seus olhos.
-Não sou como você - rosnou o moreno puxando o louco para si, seus rostos estavam a centímetros de distância - escute, se continuar com isso eu mesmo vou te entregar.
Os olhares de ambos estavam fixos um no outro, Bruce tentava a todo custo encontrar alguma coisa a mais nos olhos frios e afiados do Coringa, mas não havia nada, era uma piada sem graça. O palhaço sorriu cruelmente para o moreno, o ex-bilionário entendeu, ele entendeu a piada nos olhos do loiro, isso tudo era apenas para mexer com ele. O Coringa queria ver o que o ex-bilionário faria.
-Não me provoque - começou o moreno com um tom de ameaça - estou farto das suas piadas, faça isso de novo e te mando para o Arkham.
O sorriso sinistro do loiro não vacilou com a menção da instituição, muito pelo contrário, o Coringa estava zombando. O loiro sabia que Bruce nunca faria isso, era tarde demais para a bravata.
Eles estavam à beira de continuar a discussão quando houve uma batida na porta. Os dois pararam e ouviram a segunda batida soar audivelmente.
-Vá para o quarto - disse o moreno caminhando em direção à sala, ele não tinha paciência para lidar com o Coringa agora, ele tinha outra coisa para tratar.
-Não vou - desafiou o loiro ainda com o sorriso de zombaria em seus lábios cheios de cicatrizes. O palhaço estava testando os limites de Bruce.
-Eu disse agora - continuou o moreno sem olhar para o loiro - eu não quero falar com você, tenho outra coisa para tratar.
O palhaço estreitou os olhos, ele não gostava disso, o loiro estava aos poucos perdendo seu tom divertido e assumindo uma postura irritadiça. Ele queria brigar, ele queria rolar no chão aos chutes e socos com Bruce e deitar ao lado dele quando tudo acabasse.
-Eu não vou me trancar no quarto, eu não quero ficar lá.
Isso foi o suficiente para que o moreno começasse a arrastar o loiro para o quarto, obviamente o ex-terrorista lutou, mas Bruce não estava brincando, ele era muito mais forte e estava um muito melhor forma. O ex-bilionário rapidamente conseguiu trancar o palhaço no quarto do casal.
-Bruce me solta - falou o loiro atrás da porta, seu tom era irritado, frio.
-Não - rosnou o moreno irritado do outro lado da porta - você vai ficar aí até que eu não queira mais arrebentar a sua cara no soco, não vou te dar essa satisfação.
-Você não pode me manter em cárcere privado - rosnou o louco com um tom cheio de mania, ele parecia mais o que realmente era, menos um palhaço ácido e zombeteiro, mais um homem perturbado e doente. Isso fez um frio subir pela espinha de Bruce, ele tinha pavor de quando o Coringa perdia seus contornos divertidos e só parecia um cara estranho e perturbado.
-Quem disse ? Eu mando aqui, então cala essa maldita boca e faça o que eu disse - rosnou o moreno entre os dentes em um tom frio, batendo na porta com força com o punho cerrado. Bruce estava com raiva, mas ele não daria ao Coringa o que ele queria.
-Você é um idiota - rosnou o loiro do lado de dentro.
-Você também - retrucou o moreno indo atender a porta do apartamento, onde quem quer que fosse ainda o esperava.
Bruce não estava animado para conversar com quem quer que fosse. Todavia, o ex-bilionário se recompôs e atendeu.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui :) Até a próxima quinta.
Chapter 6: The Gotham We Have (Parte 6)
Notes:
Gente do céu kkkkk estou atrasado. Enfim, foi um problema no meu docs, ele simplesmente apagou quase metade do capítulo, e só vi quando fui postar ontem, que raiva que me deu. Mas eu contornei a situação, então aqui está o capítulo que era de ontem.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce não conhecia o homem parado em sua porta, por um momento, ele pensou que se tratava de um engano. No entanto, logo o homem entoou estendendo a mão para o moreno com um sorriso amigável:
-Bruce Wayne ? Eu sou o Simon Adams, somos colegas na promotoria.
O moreno ficou em silêncio por um momento, ele não sabia porque motivos o outro homem estava em sua casa. Bruce estreitou os olhos antes de dizer em um tom medido:
-Muito prazer, Sr. Adams.
-Não vai me convidar para entrar ? - disse Adams em um tom descontraído - acho que temos muito que conversar, nossas mesas são lado a lado, e eu queria te situar sobre a organização.
Bruce olhou para o homem com cautela antes de abrir espaço para que esse adentrasse no recinto. O moreno estava achando isso estranho, não era um procedimento comum, e Harvey já o tinha colocado a par sobre o funcionamento do seu cargo dentro da promotoria.
-Você tem um apartamento bem…- começou o homem retirando Bruce de seus pensamentos. Adams estava olhando em volta, ele parecia um pouco curioso, antes de sentar no sofá.
-Estranho ? - completou Bruce indo até o outro sofá, sua voz era medida.
-Não, estranho não, é diferente, original - disse o homem fazendo uma pausa, olhando para a mesa de centro onde havia uma pistola 9 milímetros - é sua Sr. Wayne ? Não sabia que você era um amante de armas.
Bruce torceu o nariz, ele não estava gostando dessa conversa, a pistola não era dele, o moreno tinha pavor de armas de fogo. O ex-bilionário pressionou os dentes com força, ele queria saber onde Adams queria chegar.
-Não sou muito afeiçoado a armas de fogo, Jack deixou isso jogado - entoou Bruce simplesmente, seu tom falsamente confortável - ele é policial, como você bem sabe.
Esse era outro ponto, “Jack Wayne” ainda era um nome um pouco nebuloso na mente de Bruce. Esse era o nome oficial que constava nos recém feitos documentos do Coringa, que foram expedidos agora que ele tinha casado com Bruce. No entanto, ambos sabiam que sempre seria um nome artificial. Era apenas um nome para colocar nos prontuários médicos, para colocar na certidão de casamento.
O nome não significava nada, o louco nem sequer tinha um nome de batismo real, e para Bruce “Jay” e até mesmo “Coringa” soavam muito menos artificiais, embora somente Bruce chamasse o loiro por “Jay” e detestava que outras pessoas fizessem o mesmo. Isso o fazia pensar em Matthew, e o ex-bilionário não queria pensar no ex-psiquiatra.
-Ele está em casa ? - perguntou o homem tirando o moreno de seus pensamentos, seu tom era carregado de uma energia que Bruce não gostava, era analítico, curioso, como se sua casa fosse um zoológico. O moreno não gostava de estranhos xeretando, muito menos mexendo com sua família, ele pensava no Coringa como parte do seu núcleo familiar, junto com Alfred e Rachel, que assumiu o papel da irmã que o ex-bilionário nunca teve, e relutantemente, Harvey, o cunhado que ele não pediu.
Mas Bruce não estava reclamando, Rachel tinha o apoiado, e mesmo quando todos torceram o nariz para ele depois do casamento com o Coringa, Rachel não o abandonou, mesmo tendo seus próprios problemas para lidar.
No começo o ex-bilionário se sentia desconfortável interagindo com Harvey, principalmente porque o promotor público e o ex-terrorista deixavam claro que não gostavam nem um pouco da presença um do outro. Em contrapartida, embora Rachel e o Coringa tenham uma relação um pouco hesitante, eles se aproximaram, principalmente, porque foi o Coringa que fez o parto de Duela no banco de trás de um carro, no meio de um congestionamento infernal.
Bruce se lembrava muito bem desse dia, da chuva torrencial, da ligação de Harvey dizendo que ele, Rachel e Coringa estavam presos no trânsito. O moreno se lembra da voz tensa do promotor público no telefone com ele, sentado atrás do volante e sendo repreendido pelo Coringa para que não olhasse para o banco de trás, o moreno ouvia Rachel ao fundo em trabalho de parto.
Flashback on:
Bruce podia ouvir os gritos de Rachel pelo viva-voz do celular, estava misturado com os apelos de um Harvey muito nervoso.
-Wayne…diga que a Rachel vai ficar bem, diga que a minha filha vai nascer bem…- o promotor público dizia isso olhando fixamente para frente, seus olhos grudados no congestionamento, na fileira interminável de carros. Ele parecia em choque.
-Você já fez isso antes ? - perguntou Harvey para o ex-terrorista, seu tom ainda tenso, o promotor suava.
-Parto ? Bem, hããm, parto é a primeira vez, mas para tudo tem uma primeira vez né ? - respondeu o louco lambendo o canto do lábios revirando os olhos - relaxa, eu tenho experiência em outras áreas piores.
-Tipo o que ? - perguntou o promotor tentando manter a calma. No entanto, o louco não respondeu, ele parecia sério de repente, Harvey viu pelo retrovisor. Bruce que escutava tudo pelo viva-voz do celular subia do que o louco estava falando, o Coringa tinha experiência médica de guerra.
-Queridinha, eu preciso que você faça força agora - disse o louco com um tom sério no meio dos grunhidos de dor de Rachel, Bruce podia ouvir pelo telefone - suas contrações estão irregulares e menos espaçadas, respire fundo e empurre, um, dois, três, empurre.
Harvey estava olhando pelo espelho retrovisor, ele não conseguia respirar, estava em pânico pensando no que poderia dar errado, sua filha estava nascendo no banco de trás de uma carro. Ele se sentia um fracassado, ele fracassaria se algo acontecesse com sua mulher ou filha.
-Segura a onda Harvey, não olha para cá, se concentre no trânsito, só olhe para frente - disse o palhaço de repente, sua voz era calma, antes de se referir a Bruce com uma pitada de zombaria encoberta - Brucie querido, converse com nosso cavaleiro branco, ele está dando mais chilique que Rachel que está parindo.
Bruce podia sentir o fiapo de zombaria, escorrendo do comentário do louco. No entanto, o ex-bilionário não disse nada sobre isso, ele se concentrou em tentar tranquilizar o promotor. Todavia, Harvey só respirou aliviado quando ouviu o choro de sua filha emergir dos grunhidos e suspiros de dor e agonia de sua mulher. Sua filha tinha nascido.
Flashback off:
O ex-bilionário foi arrancado de seus pensamentos ao notar que o homem à sua frente esperava uma resposta para a pergunta feita anteriormente.
-Ele está descansando - comentou Bruce, ele queria encerrar a conversa, ele não queria pensar no Coringa fervendo de raiva no quarto deles com um olhar assassino. Bruce sabe que está sendo paranóico, e que o homem possivelmente é apenas um colega de trabalho curioso, mas ele não estava gostando disso. Ele nunca tinha gostado de receber tanta atenção.
-Acredite, talvez eu não saiba como é, mas minha mãe era um pouco difícil - ofereceu Adams de repente com um suspiro - eu a amo, mas às vezes é simplesmente demais, sabe ?
Bruce piscou para isso antes de estreitar os olhos, ele não sabia onde o homem queria chegar. O momento de silêncio se estendeu.
-Desculpe - comentou Adams com um suspiro antes de continuar - além de direito, eu também cursei a área da psicologia na faculdade de medicina, não consegui me conter, mas então, Bruce, posso te chamar assim ? Onde você se formou em direito ?
Bruce ficou em silêncio por um momento, ele não tinha se formado exatamente, Bruce tinha estudado muitas coisas, mas não tinha exatamente um diploma universitário.
-É segredo ? - brincou o homem vendo o silêncio do moreno. O ex-bilionário estava pronto para responder a Adams quando ouviu um barulho alto vindo do quarto. Bruce apertou os dentes com força, ele queria gritar para que o palhaço parasse de agir como criança.
-Me solta agora Bruce ! Eu vou te matar quando eu sair daqui ! Me solta ! - o moreno ouviu a voz furiosa gritar do quarto, outro barulho alto pode ser ouvido.
O moreno queria gritar para o palhaço calar a boca, mas não podia, porque não estava sozinho. Bruce apertou os punhos com força, era uma péssima hora.
-Você poderia voltar outra hora ? - perguntou o moreno se levantando, não dando abertura para perguntas que viriam do homem - eu preciso r-
Bruce foi cortado por Adams que se apressou em dizer:
-Você precisa de ajuda ?
O ex-bilionário congelou, ele fechou os olhos e respirou fundo, talvez o homem tivesse boas intenções, mas o moreno não queria lidar com isso agora, então ele respirou fundo mais uma vez antes de se virar para Adams e dizer em um tom ríspido:
-Saí da minha casa, por favor.
O homem parou suas divagações e apenas olhou para o moreno sem se mexer.
-Eu disse para você sair - rosnou o moreno, seu tom agora frio, ele estava cansado de ser educado - eu não preciso de ajuda.
Bruce estava queimando de raiva, o ex-bilionário se sentia encurralado dentro de sua própria casa, ele podia escutar o Coringa ao fundo, o que só o deixava mais irritado, ele só queria que tudo parasse. Ele precisava de um momento para organizar seus pensamentos.
-Cala essa maldita boca ! - gritou o moreno na direção do quarto - se você não parar de gritar eu vou te deixar trancado aí até amanhã !
Isso era mentira, o ex-vigilante só estava com raiva, ele nunca faria algo assim, a menos que o palhaço representasse um perigo para si mesmo. O ex-bilionário empurrou as memórias dos últimos 2 meses de lado, ele não queria pensar nisso agora, ele precisava beber alguma coisa.
Bruce voltou seu olhar para Adams que parecia pregado no chão, o homem não se movia. Ele parecia chocado com a explosão do moreno. O ex-bilionário sabia que não era uma atitude esperada de Bruce Wayne, e que o homem possivelmente ficou com a ideia errada, mas ele não se importava com o que as pessoas pensavam, ele só queria viver em paz.
-Você quer que eu te arraste para fora ? - questionou Bruce, ele estava farto - saia por favor.
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-Dick eu não acho que é uma boa ideia - falou Harper para seu amigo enquanto eles guardavam seus livros em suas mochilas - Simon pode se dar muito mal com isso.
-Ele concordou em me ajudar - comentou Richard terminando de colocar suas coisas dentro da mochila - eu não obriguei a fazer nada.
-Não, mas você encheu o saco do cara até ele ceder - disse Roy revirando os olhos - eu só acho que você precisa ser mais cuidadoso com isso.
-Já está feito - retrucou Dick, ele estava um pouco chateado pelo tom utilizado por seu amigo, ele sabia que Roy apenas se preocupava com ele, mas o aspirante a jornalista investigativo não gostava de ser tratado como criança. Notando o ar pesando no recinto, Roy suspirou antes de dizer:
-Vai encontrar Stella ? Você precisa se resolver com ela.
Recebendo o silêncio de seu amigo, Harper revirou os olhos. Ele, Dick e Stella eram um trio muito antes de Dick começar a namorar com ela. Roy não queria ficar no meio de um fogo cruzado.
-Seja o que for que esteja acontecendo entre vocês, resolvam - disse Roy o silêncio, ele estava jogando a real, ele não faria parte disso - sabe que ela tem razão, você tem andado distante desde que botou na cabeça que precisa provar que Bruce Wayne é na verdade o Batman, você não deve nem acreditar nisso de verdade.
-Vocês não entendem, tudo se encaixa - comentou Dick com um tom frustrado.
-Não Dick, nada se encaixa.
Os dois amigos ficaram em silêncio na sala por um momento, Harper apenas queria que Richard abrisse os olhos. Todavia, Roy sabia que Grayson era cabeça dura.
-Pelo menos fale com Stella, não quero ter que escolher um lado nessa briga de vocês - disse Roy indo em direção a saída da sala com um tapinha no ombro de Dick, ele fez uma pausa, antes que sua voz voltasse, cheia de zombaria - e não fique até tarde debruçado em cima de um artigo de revista sobre o Wayne, se eu fosse Stella eu teria ciúmes, eu acho que você joga para os dois times.
-Cala boca seu idiota - riu Dick diante da provocação de Roy - eu tenho uma namorada, não fico batendo para revistas de mulher pelada como você.
-A questão é por quanto tempo Grayson - zombou Harper saindo pela porta.
-Idiota - disse Dick para a sala vazia, seu tom era falsamente indignado.
Grayson e Harper eram amigos a algum tempo, Roy foi uma adição bem vinda em sua vida, eles se conheceram durante os anos mais rebeldes da vida de Dick, quando ele achava que nada mais fazia sentido, quando estava desesperado para descobrir quem realmente era. Foi então que Roy Harper, sob o codinome de “Speedy” entrou em sua vida sem bater na porta. Estranhamente, era isso que Dick precisava, só não sabia ainda.
Eles ficaram chapados juntos, eles foram em festas, eles quebraram as regras. Mas a adolescência chegou ao fim, eles entraram na Universidade e as coisas mudaram. Inclusive Roy. O aspirante a jornalista investigativo sabia que seu amigo tinha ido e voltado do poço das drogas muitas vezes. Dick não queria pensar nisso agora.
Richard sabia que não devia ter pedido para Simon ir bisbilhotar a vida de Bruce Wayne, mas ele precisava arriscar, e Simon Adams trabalhava dentro da promotoria, ele não passaria como suspeito. Simon Adams era amigo do pai adotivo de Roy, mas mesmo assim, foi preciso muito para convencer o homem. Dick se perguntava se seu amigo estava certo quando disse que não era uma boa ideia.
Dick saiu pela porta da sala indo em direção ao pátio, ele precisava tentar falar com Stella, nisso Roy tinha razão, ele não podia deixar essa situação como estava. Richard suspirou, sua vida estava caótica.
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Chuck estava assistindo ao interrogatório do Capuz Vermelho, era um tanto estranho. Ele descobriu nesse meio tempo que o nome real do garoto é Jason Todd, mas por mais que tentassem fazer perguntas, o garoto não respondia a elas. Ele ficava em plano silêncio.
-Vamos tentar novamente - Chuck ouviu o policial que estava conduzindo o interrogatório. O tenente parou de prestar atenção, era óbvio que o garoto não tinha pensado em tudo sozinho, havia alguém por trás.
-Eu posso falar com ele ? - indagou o tenente para o policial, por mais que fosse uma pergunta, seu olhar não deixava brecha para objeção - a sós.
O policial rapidamente deixou o recinto, deixando o tenente e Jason frente a frente.
-Escute Jason - começou Chuck, seu tom era neutro e baixo - quem quer tenha te mandado para lá está apenas esperando a oportunidade de eliminar você, você sabe disso.
O garoto permaneceu em silêncio, ele não parecia instigado a falar, notando esse fato, Chuck continuou:
-Você nunca pisou em uma penitenciária, pisou ? Você é menor de idade então eu acredito que não, mas eu posso te oferecer uma visita para ver se você gosta das instalações, porque é para lá se continuar fazendo esse tipo de coisa, você está sozinho nisso garoto, já foi para uma prisão de detenção juvenil ?
Chuck não recebeu uma resposta, então ele continuou:
-Quero te ajudar, mas não posso se você não me ajudar, porque você estava preso junto com os reféns ? O que aconteceu ? Quem te mandou para lá ?
Novamente, Jason não disse uma única palavra. Ele não parecia ter medo do que poderia acontecer. Chuck teria que pedir um dossiê sobre esse garoto, o tenente não tinha material para persuadi-lo a falar.
-Jason, eu preciso que você fale comigo, proteger as pessoas que fizeram com que você fosse pego, que colocaram você nisso, não não é uma escolha inteligente.
O garoto ainda parecia inflexível, até mesmo entediado com as divagações do tenente. Ele por um momento pensou em deixar para amanhã, quando o Coringa estivesse na unidade. O tenente rapidamente descartou essa ideia, ele não ia pedir para o Coringa conduzir esse interrogatório. Jason é só um garoto. Chuck acharia um jeito melhor.
-Tudo em se você não quiser falar hoje, ok ? - disse o tenente simplesmente se levantando - eu vou pedir para que o carcereiro te leve até uma das celas aqui da delegacia até amanhã de manhã, aí eu acho que você vai estar pensando com mais clareza e com certeza irá colaborar com a gente para que possamos te ajudar.
Com essas palavras, Chuck fez sinal para o carcereiro, saindo da sala de interrogatório e retornando para sua mesa.
-Como foi ? - perguntou Sarah trazendo para Chuck mais um arquivo - teve sorte ?
-O garoto não diz nada - suspirou o tenente frustrado - isso não faz sentido, eles o entregaram, eles queriam que ele fosse pego, ele foi deixado junto com os reféns.
Sarah fez uma pausa, considerando suas palavras por um momento.
-Talvez ele tenha medo de dizer - falou a mulher interrompendo o silêncio - isso é bem plausível, mas você não acha que é isso, acha ?
-Eu não sei.
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Bruce estava queimando de raiva, depois que seu convidado indesejado deixou a casa um pouco em estado de choque, o moreno caminhou em direção à porta do quarto com passos duros e dentes trincados. O ex-bilionário sabia que eles precisavam parar com isso, com esse ciclo interminável de altos e baixos, era muita coisa para um dia só, Bruce estava exausto.
Em um único dia eles já tinham ido do céu ao inferno, mas isso era tão recorrente, mais do que Bruce gostava de admitir. Foi uma sucessão de merda, eles acordaram bem, então teve o lance estressante e frustrante dos remédios, mas logo eles estavam bem e em casa, aí teve a padaria, e agora eles estavam com raiva. Eram muitos sentimentos diferentes para um único dia.
O Coringa oscilava intensamente por poucas coisas, e tudo que Bruce fazia era se deixar levar pelo embalo, se sentindo hora bem, hora irritado, hora cansado, depois carinhoso e irritado antes de voltar a ficar bem, ele repetiria até que se sentisse frustrado e explodisse.
Bruce não era estúpido, ele sabia que as vezes o Coriga fazia de propósito, como se fosse um experimento, como se o ex-bilionário fosse seu próprio projeto de teste pessoal, onde ele iria cravar seus alfinetes como o bom manipulador que era, e observar as reações que inegavelmente viriam. O moreno odiava isso, porque o palhaço queria irritá-lo, para que eles entrassem em espiral mais uma vez, sem se importar em como Bruce se sentia com isso, em continuar girando até que se chocassem.
Isso o levava para outro ponto, o Coringa não parecia se importar com o que Bruce sentia se era ele que tivesse causado o fator de desconforto. Não é como se o palhaço gostasse de ver o moreno remoendo por coisas que não estavam no controle dele, mas certas vezes, como hoje na padaria, eram um exemplo de como o Coringa gostava de criar conflitos morais na mente do ex-bilionário. No entanto, era a primeira vez dele fazendo algo tão sério desde o assassinato no agente Martin, a mais de um ano atrás.
O ex-vigilante não se deixaria manipular pelo jogo do Coringa. Não, Bruce não iria dar o braço a torcer, se o palhaço queria brigar, ele não brigaria. Ele faria o louco ver que não tinha força para ganhar uma guerra com ele. Bruce também sabia jogar esse jogo, é como adestrar com cachorro que morde, retire a mão e ele vai pensar que sua mordida tem força, você precisa mostrar o contrário, mesmo que não seja verdade. Bruce não iria brigar.
Respirando fundo e com esse pensamento, o moreno adentrou no quarto, o Coringa estava com uma expressão sombria e energia maníaca que transbordava de seus olhos. Ele tinha aquele ar tempestuoso que Bruce detestava nele, que era familiar demais e que geralmente era acompanhado de tinta graxa e terno roxo. Eles ficaram em silêncio, apenas estudando um ao outro. Bruce foi o primeiro a romper a atmosfera tensa, sabendo que precisava remediar a situação.
-Não posso compactuar com isso - falou o moreno em um tom firme, mas não raivoso, ele não queria ocasionar uma briga - não quero ser separado de você, mas você sabe que a-
O moreno foi cortado pelo palhaço entoando enquanto revirava os olhos:
-Você não vai brigar ? Quando foi que você se tornou tão chato Brucie ?
-Então é isso que eu sou para você ? - endureceu o moreno - uma fonte de diversão ?
O loiro levantou as sobrancelhas por um momento, ele estava zombando.
-Uau Brucie - entoou o loiro lambendo o canto dos lábios - pare com o chilique, você está pior que minha ex-namorada.
-Você não tem uma ex-namorada - falou o moreno franzindo a testa.
-Não, realmente não tenho, mas ela seria assim se eu tivesse.
-Não mude de assunto - entoou o moreno entendendo que o loiro apenas estava querendo sair da conversa - acha que isso é um jogo para mim ? Eu passe por cima de muitas coisas para ficar com você, eu desisti de t-
-Desistiu de que ? - interrompeu o Coringa, seu semblante era frio - da sua reputação que você sempre detestou ? Aquele cara não era você.
-Desisti de ter a família que sempre sonhei em ter quando eu finalmente aposentasse o manto do Batman - completou Bruce.
O Coringa ficou em silêncio, mas seu silêncio era ensurdecedor para o moreno. Bruce não estava mentindo, ele sempre sonhou com a família que teria quando deixasse de ser o Batman. Essa família sempre incluía Rachel e os filhos que eles teriam juntos, e depois que Rachel decidiu ficar com Dent, bem, ele ainda pensava nesse modelo de família, embora não a incluísse. Era uma família segura, cercas brancas, torta de maçã, filhos e almoços calorosos e alegres. Bruce tinha jogado isso na lata do lixo.
-Escute - disse Bruce, seu tom era sério - joguei isso para o alto para ficar com você, então pare de sabotar tudo, porque não quero me arrepender dessa escolha.
O ex-terrorista suspirou antes de revirar os olhos, como se o moreno estivesse fazendo muito drama com isso. Mas ele não tinha mais aquele ar tempestuoso e homicida, embora agora estivesse sarcástico e ácido. O ex-bilionário sabia que o Coringa não era muito sensível, na verdade parecia que ele tinha uma pedra fria e afiada no peito.
Se não fosse tudo que ambos passaram juntos, Bruce duvidaria que o louco pudesse sentir amor por ele. Todavia, o moreno sabia que não era verdade, o ex-terrorista morria de amores por ele, até o próprio Bruce podia notar.
O Coringa não sentia a necessidade de fingir que gostava de alguém, quando ele desprezava a presença de qualquer pessoa, era possível notar em sua postura de desdém. Até mesmo com pessoas que ele relativamente mantinha um contato, ele tinha aquele fio afiado e defensivo. A única pessoa que é capaz de derrubar suas paredes de sarcasmo frio sem encontrar um verdadeiro sociopata por trás, é Bruce.
-O que quer que eu diga ? - perguntou o louco de repente, sua língua umedecendo o lábio inferior - eu não te obriguei a ficar comigo.
-Não diz nada, só vem aqui - disse o moreno puxando levemente o loiro para seus braços. O ex-terrorista se deixou ser puxado com uma expressão mista, ele parecia desconfiado.
Bruce o abraçou por um momento em silêncio, o louco tinha certeza, ele finalmente tinha conseguido fazer o ex-vigilante virar a chave, isso era meio perturbador. Bruce continuou no abraço, era isso que ele faria, ele ainda estava fervendo de raiva, mas só abraçaria até que a vontade de arrebentar o Coringa na porrada se dissipasse. Ele não ia dar ao louco o que ele queria, o Coringa podia brigar sozinho o quanto quisesse.
-Você está se sentindo bem ? - perguntou o loiro depois de alguns minutos em silêncio, ele parecia um pouco confuso.
-Sim - mentiu Bruce, ele queria descarregar sua raiva - você quer ir jantar ?
-Tem um monte de enlatados aqui, Brucie, o que você quer ? É o meu dia de fazer a comida de qualquer forma.
-Não, vamos sair.
Notes:
Obrigado a quem chegou até aqui, até semana que vem :)
Chapter 7: The Gotham We Have (Parte 7)
Notes:
Bem, voltando kkkkkk desculpem, não consegui postar dia 08 de agosto. Então aqui vai o capítulo atrasado.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Foi uma noite tranquila, mas Bruce ainda estava com raiva, embora sair tivesse feito algo para acalmar seus ânimos por um momento. Mas agora eles estavam de volta no apartamento, e havia um elefante na sala que não podia mais ser ignorado. Todavia, eles ignoraram, eles eram bons nisso, em não falar sobre as coisas.
O moreno foi se trocar, fazia um tempo que ele não praticava luta corpo a corpo, embora ainda estivesse em forma. Não era algo que ele gostava de fazer com frequência, isso o deixava muito próximo da figura do Batman, algo que ele tinha deixado para trás. No entanto, no momento era algo que serviria para acalmá-lo, principalmente porque ele não queria ficar embriagado.
Bruce adentrou em sua mini-academia com um suspiro resignado, ele precisava descarregar essa raiva frustrada, ele sabia que não faria bem, ele só precisava parar de pensar que era sua própria culpa por um momento. Não era culpa dele, era do Coringa. Era o palhaço que estava tentando arrastá-lo para alguma das suas piadas.
O ex-vigilante só precisava pensar em atacar o saco de boxe, em descarregar toda sua frustração nisso, ele não precisava pensar em nada. Bruce não precisava pensar que estava mais uma vez acobertando os crimes do Coringa por medo de ser separado dele. Bruce o amava o suficiente para fechar os olhos para uma das primeiras coisas que o moreno pode constatar sobre o palhaço quando o conheceu, o Coringa não tinha escrúpulos.
Bruce tentava não pensar nisso, porque cada vez que pensava assim, havia uma voz no fundo de sua mente dizendo que o palhaço estava apenas brincando com seus sentimentos. O moreno sabia que não seria fácil, e que estava sendo ridículo, que o Coringa tinha seu próprio jeito de demonstrar que se importava, embora fosse meio torto. Ele se sentia tão cansado, tão velho, um idoso de trinta e poucos anos. O ex-vigilante parou encostando a testa no saco de boxe por um momento, suspirando pesado e coberto de suor. Sua mente estava em outro lugar.
-Já está cansado, querido ? - zombou o Coringa, sua voz soando ao longe na mente conturbada de Bruce. O moreno abriu os olhos e olhou na direção da voz, o palhaço estava encostado na parede com uma expressão zombeteira. O ex-bilionário não disse nada, apenas voltou a socar o saco a sua frente novamente, ele não queria falar com o louco, Bruce só precisava acalmar seus pensamentos.
O louco deu de ombros frente ao silêncio do outro homem, se sentando no chão sem cerimônia para ver o moreno treinar. Depois de um momento de silêncio, Bruce parou e encarou o palhaço com uma expressão penetrante.
-O que você quer ? - entoou o moreno com um tom ríspido, mas sem conseguir esconder o cansaço.
-Ei ei Brucie - falou o louco lambendo o canto dos lábios, sua expressão era divertida enquanto ele levantava as mãos em em falso gesto de rendição - eu só estou assistindo, você está todo sensível hoje.
-Não esqueci o que você aprontou hoje - falou o moreno estreitando os olhos.
O palhaço revirou os olhos antes de dizer gesticulando amplamente com as mãos:
-Você leva tudo muito a sério querido, tente levar a vida de uma forma mais leve, é muito triste ser tão apegado a regras morais ridículas, é muito chato.
Bruce não disse nada, apenas ficou encarando o palhaço com uma expressão mista, entre cansaço e raiva. O louco apenas bufou frente ao silêncio do ex-bilionário.
-Sabe Brucie, você está cada vez mais estranho - zombou o palhaço umedecendo o lábio inferior.
-Deve ser a companhia - devolveu o moreno voltando a socar o saco de boxe.
-Ora meu bem, isso não é uma coisa ruim - falou o louco com um tom zombeteiro - faz parte, é inevitável quando você passa por situações de quase morte, ou situações que mudam uma parte essencial de quem você é, apenas faz parte da vida.
O moreno fez uma pausa antes de suspirar, voltando a olhar para o loiro antes de dizer:
-Falei sério quando disse que desisti da família dos meus sonhos por sua causa - a voz do moreno era séria. Bruce decidiu apontar para o elefante na sala, eles precisavam falar sobre isso cedo ou tarde.
-Hãã…sim - falou o louco passando a língua no canto da boca - eu não sou a pessoa que você imaginou casar e blá-blá-blá, eu sei, podemos passar para o próximo tópico de conversa.
O ex-vigilante olhou para o louco por um momento ainda em silêncio. O loiro suspirou derrotado.
-Você hããã…- o Coringa faz uma pausa, ele não sabia o que dizer, então ele fez uma careta e falou a primeira coisa que veio a sua cabeça - você queria ter filhos e essas coisas, cercas brancas e uma garota bonita ?
-Não sei - disse o moreno com um tom sincero, mas neutro - sempre pensei que era o caminho natural para quando eu me aposentasse, uma garota, cercas brancas e filhos, era a minha forma de me agarrar a uma ideia de normalidade eu acho.
-E você ainda pensa nisso ? - perguntou o louco com um tom curioso - nessa sua “ideia de normalidade” ?
-Não - admitiu Bruce com um suspiro - o que nós temos é muito maior do que eu pensei que poderia ter com alguém um dia, eu tinha essa ideia de família, mas nunca conseguia me ver fazendo parte dela, era algo que eu queria para o “Bruce Wayne”.
-Por um momento você me deixou preocupado - riu o louco zombando, o Coringa não conseguia levar nada a sério - achei que você ia me deixar para correr atrás de uma mãe divorciada.
-Cala a boca - brincou Bruce rindo, o clima estava um pouco menos tenso - apesar disso, eu ainda não descartei a possibilidade de filhos.
-Eu detesto crianças - falou o louco fazendo uma careta - e nós temos Budie.
-Bud é um cachorro - apontou Bruce arqueando as sobrancelhas divertido, olhando para o cachorro que estava entrando no recinto, indo até as pernas do Coringa.
-É o mais próximo de um filho que vamos ter - falou o palhaço simplesmente enquanto acariciava o pelo do cachorro.
Bruce bufou, havia uma verdade por trás dessas palavras. Eles estavam apenas brincando, mas Bruce tinha lá no fundo a vontade de ser pai, a vontade de ver seu filho crescer, como ele gostaria que seu pai o tivesse visto. Ele não pode deixar de pensar nisso com mais frequência quando a filha de Rachel e Harvey nasceu. O loiro notou o ar um pouco pensativo de Bruce, o silêncio se estendeu por um momento antes do palhaço tornar a dizer:
-Eu acho que você seria um bom pai - o tom do palhaço era um pouco desconfortável.
Bruce olhou para o louco surpreso, ele não esperava isso do Coringa. O palhaço desviou o olhar, o loiro estava sendo sincero em sua fala, isso fez Bruce sorrir com carinho.
-Acho que eu gostaria de ser um pai como o meu pai foi - disse o moreno dando de ombros - como eu acho que ele teria sido se tivéssemos mais tempo, sabe ?
-Sempre achei que você tivesse sua figura paterna em Jeeves, vocês interagem muito como pai e filho - observou o louco.
-Alfred é outra coisa, embora você esteja parcialmente certo - disse Bruce com um suspiro - mas e você? Nunca pensou nisso?
-Humm não - respondeu o Coringa passando a língua pelo canto dos lábios, fazendo uma careta - mas eu seria um pai horrível, eu não tive um modelo como você teve Brucie, o homem que eu penso ser meu pai era uma pessoa desprezível, eu nem lembro do seu rosto ou nome, então eu não sei como eu agiria com um filho se eu tivesse um.
Bruce assentiu, ele sabia o que o palhaço queria dizer, mas ele conseguiu encontrar uma vulnerabilidade por trás das palavras do loiro. Eles ficaram em silêncio antes que Bruce se aproximasse, sentando ao lado do palhaço.
-Eu criaria um filho com você - falou Bruce despreocupadamente.
-Se concentre em cuidar do cachorro, Brucie - zombou o louco - você é um pai ausente, não é só colocar ração na tigela todas as manhãs.
-Eu seria mais presente se você não tivesse o hábito de monopolizar ele - brincou Bruce colocando uma das mãos no cachorro - ele gosta mais do seu colo.
Bruce gostava desses momentos, onde eles apenas agiam como um casal sem toda a merda que tinham em seus ombros. O momento se estendeu até que o palhaço encostasse a cabeça em seu ombro com murmúrio de satisfação. O moreno não queria estragar a atmosfera de calmaria recém estabelecida, mas eles precisavam conversar sério.
-Não gosto quando você joga comigo - desabafou Bruce - pare de tentar estragar o que nós temos, me sinto uma peça no seu tabuleiro e não gosto disso.
-Bruce eu só faço as coisas - suspirou o palhaço - quando eu vejo aconteceu, eu deixo seguir o fluxo dos acontecimentos para ver no que vai dar, eu não planejei nada disso, nem mesmo ficar com você.
-Quando você se sentir assim… - começou Bruce, seu braço puxando o louco para acomodá-lo mais fortemente contra si - fale comigo, eu vou tentar ajudar.
-Você diz quando eu me sentir mais como eu mesmo ? - zombou o palhaço passando a língua pelo lábio inferior - Brucie eu sou instável e inconstante, você sabia muito bem disso antes de querer ficar comigo, não é uma coisa que eu posso mudar.
-Eu não quero que você mude - o tom de Bruce saiu mais ríspido e duro do que deveria, isso fez o loiro arquear uma sobrancelha.
Os dois ficaram em silêncio por um momento antes do moreno suspirar e continuar:
-Eu amo você como você é, eu não entendo metade das coisas que você faz, ou porque você faz, mas…eu só quero você pare de fazer coisas que eventualmente vão fazer com que a gente se separe, porque a minha tolerância para as suas brincadeira termina quando outras pessoas se machucam.
-Sempre um justiceiro não é ? - zombou o louco levantando o rosto para olhar para o moreno - sabia que essa é uma das coisas que eu mais amo em você ?
O ex-bilionário riu antes de dizer se desvencilhando ex-terrorista se levantando do chão:
-Vem, vamos dormir, amanhã eu levanto cedo e você também.
-O momento de comercial estava tão bonitinho - zombou o palhaço se levantando também junto com Bud que saiu de suas pernas.
-Vamos continuar o comercial lá no quarto - disse o moreno guiando o loiro para o quarto dos dois - eu preciso tomar um banho, estou muito suado e estou cansado, só quero ter uma noite de sono, então cala a boca e deita.
O Coringa levantou as mãos em rendição um um semblante divertido antes de se dirigir para a cama.
-Você é mandão, sabia ? - observou o loiro lambendo o canto dos lábios, como se não fosse uma coisa óbvia - deve ser por isso que você nunca conseguiu ter relacionamentos estáveis,
O ex-vigilante bufou divertido, era verdade que Bruce era controlador, que queria as coisas à sua maneira. No entanto, em momentos como esse, era apenas uma brincadeira entre eles, Bruce não falava sério. O palhaço sabia exatamente quando o moreno estava realmente mandando.
-Eu não vou nem dar ouvidos às suas bobagens - disse o moreno caminhando para o banheiro, não lançando outro olhar para o ex-terrorista, que olhava para ele com um falso olhar incrédulo, mas segurando uma gargalhada divertida.
—------
A manhã não tinha começado bem na delegacia. Chuck estava frustrado, ele tinha que tentar novamente uma abordagem para fazer Jason cooperar com ele, no entanto, o garoto não parecia colaborar. O tenente já estava farto.
Chuck não queria ter que utilizar de métodos duvidosos, Jason era só um adolescente e ele tinha sua moral que o impedia de colocar um garoto contra a parede. O tenente nunca foi chegado de fato em interrogatórios, embora muitos possam pensar o contrário, e ele tenha endurecido com os anos na polícia, Chuck era consideravelmente mais fraco para essas coisas do que Jim.
-Ele ainda não disse nada ? - perguntou Sarah de aproximando da mesa do tenente.
-Não - entoou o homem com um tom claro de frustração.
-Você sabe, agora temos um dossiê sobre ele - suspirou a mulher - você sabe que pode usar as informações para fazer ele falar com você.
-Eu só gostaria de saber - começou Chuck com um tom medido - como esse garoto chegou em Gotham ?
-Talvez ele tenha fugido, garotos são complicados nessa idade - ofereceu a agente.
-E deixado a mãe doente no Texas ? - comentou o tenente - eu não acho que ele faria algo assim, eu p-
Sarah o interrompeu em um tom de advertência:
-Você não pode prever que tipo de pessoa ele é, por trás desse rostinho de garoto recém saído da infância pode ter qualquer tipo de maluco.
O tenente sabia que a agente estava certa, Jason podia ser qualquer tipo de pessoa. No entanto, por baixo da fachada inquebrável, ele podia notar, o garoto não era experiente, talvez nunca tenha estado em uma delegacia.
-Você devia tentar ler o dossiê sobre ele, tem bastante coisa interessante, a mãe biológica está desaparecida e a mãe adotiva, que o adotou com 3 anos sempre teve vários problemas de saúde.
-Pai ? - perguntou Chuck curioso.
-Nenhum - falou Sarah pegando o dossiê e abrindo na mesa do tenente - ele nasceu em Gotham, mas quando foi adotado logo se mudou em sua mãe para uma cidadezinha no Texas, foi detido duas vezes por pequenos furtos, uma vez aos 12 anos, e uma no ano passado, aos 14.
-Mais alguma coisa relevante? - perguntou o tenente olhando para os documentos abertos na mesa - alguma coisa suspeita ?
-Não - disse Sarah - ele é um delinquente juvenil, nada demais, infância difícil tendo que cuidar de uma mãe doente, porque ele viria para sua cidade natal ?
-Atrás da mãe biológica ? - perguntou Chuck.
-Acertou em cheio, ele está atrás dela, ou está atrás de dinheiro - comentou Sarah recolhendo os papéis - o que você acha ?
-Eu acho que quem quer que seja que o mandou para lá prometeu ajuda para achar a mãe desse garoto - disse o tenente - e se livraram dele quando foi conveniente.
-Isso faz sentido, mas porque descartá-lo agora ? Porque entregá-lo para a polícia e não matá-lo ? - indagou Sarah intrigada com o cenho franzido.
-É isso que temos que descobrir - falou o tenente - dessa vez vou pegá-lo.
-Então você acha que é ele ?
-Pode apostar que sim.
Os dois presentes ficaram em silêncio por um momento antes de Sarah suspirar quebrando a atmosfera cuidadosamente constituída:
-Você vai conduzir o interrogatório dele ?
-Não, eu vou pedir para o agente Taylor tentar fazer uma nova sessão com o garoto hoje, mande para ele uma cópia do dossiê, e o auxilie no que ele precisar.
-Você sabe que Taylor não é tão bom em interrogatórios n-
-Não importa - disse Chuck firme cortando a fala de Sarah - é o melhor que temos agora que Jim se aposentou.
-Você sabe que n-
A agente foi cortada novamente por uma batida seca na mesa.
-Coringa vai comê-lo vivo.
O silêncio reinou por um momento antes que o tenente se recompusesse com um pedido de desculpas:
-Desculpe Sarah.
-Não, tudo bem - disse a mulher - você tem razão, mas o Coringa ainda é o melhor quesito interrogatório, não temos um melhor que ele, ele vem assumindo quase todos os interrogatórios importantes, e funciona.
-Funciona porque ele não tem escrúpulos - cuspiu Chuck irritado - Castro não faz nada, ninguém diz nada, ninguém faz nada, só deixam aquele maldito homocida torturar as pessoas emocionalmente.
-Não sabia que você se importava com o bem estar de criminosos - disse Sarah arqueando uma sobrancelha.
-Não me importo - disse Chuck irritado - mas você sabe que ele conduz o interrogatório por caminhos ilegais, debaixo do nariz de todo mundo.
-Eu sei como se sente - suspirou a mulher - não pense que eu gosto da presença dele aqui, você sabe, Annie embora não fosse minha amiga, era uma colega de trabalho com quem tive muito contato, fui ao enterro dela e do restante da sua equipe também, foi trágico.
-Eu não posso esquecer o que aconteceu - disse o tenente com um olhar vago - eu estou tentando curar, mas tem noites que eu sonho com a morte deles.
-Eu não posso nem imaginar como você se sente - suspirou a agente - você já pensou em…não sei, talvez conversar com a família dos que morreram ? Conversar com Rogers e Ben talvez ?
-Não - suspirou o tenente - eles não vão querer falar comigo, Rogers está tetraplégico e Ben virou um alcoólatra recluso.
-E conversar com os familiares ? Talvez ajude você, eles passaram pela perda tanto senão mais do que você, você devia dar uma chance.
-Não isso não ajudaria - falou o tenente - eu nem acho que teria coragem de encará-los, o filho do Michael até hoje está na minha cabeça, as filhas de Anthony…eu não posso passar por isso de novo, não posso.
-Você falou com Matthew ? - perguntou Sarah de repente - nunca te perguntei como você se sentia em relação a tudo que aconteceu com ele.
Chuck ficou em silêncio, ele nunca teve uma interação muito profunda com o marido de Annie, ele era apenas o chefe da mulher do homem, eles não eram amigos. No entanto, ele não podia deixar de notar que de alguma forma, tudo que aconteceu com Matthew parece ter serpenteado em seu âmago. Tinha sido tudo muito bizarro.
-Porque essa pergunta ? - entoou o tenente curioso.
-Nada demais - a agente deu de ombros - apenas Wayne, ele veio aqui mais cedo antes de ir para a promotoria, veio abrir um boletim de ocorrência, ele disse que Matthew tem se aproximado dele e do Coringa.
-E o que ele quer ? - Chuck revirou os olhos - medida protetiva ? Tenho coisas mais urgentes para lidar, além disso, do que Wayne está com medo ? Ele é casado com um sociopata, Matthew é inofensivo se comparar com a pessoa que ele tem dentro da própria casa.
Chuck achava curioso, isso era muito estranho, Wayne era o Batman, embora Sarah não soubesse disso. O que intrigava o tenente era o porquê do ex-bilionário estar tão preocupado com um cara como Matthew rondando sua vida ? Gordon também parecia meio estranho sobre isso, quando Matthew foi solto, o ex-comissário que na época ainda estava ativo no cargo, fez uma pressão absurda para segurá-lo preso. Chuck embora tentasse, nunca conseguiu entender o que tinha de fato acontecido.
Claro que o tenente sabia que Matthew tinha sido o executor das torturas sofridas em Arkham pelos presos que não aceitaram a reabilitação, mas mesmo assim, não justificava. Algo tinha acontecido, Gordon e Bruce sabiam de mais alguma coisa.
Foi um pouco chocante para Chuck na época, mas logo depois que Matthew recebeu ordem de soltura, e estava terminando de arrumar suas coisas em Blackgate, oex-psiquiatra recebeu uma visita de Bruce. Foi uma visita estranha. Wayne geralmente é uma pessoa contida quando não está com seu traje de kevlar, mas naquela ocasião em específico, ele tinha ameaçado Matthew. O tom do ex-vigilante era estranhamente gelado, e Chuck teve dificuldades de entender pela gravação da sala de contenção, se ele estava de fato falando sério.
“Escute, se eu te ver de novo, se você se aproximar da gente, eu dou um jeito de te matar, eu vou esconder o corpo de uma forma que nunca vão achar seus pedaços, você entendeu ?”
Chuck não acha que Bruce mataria alguém, o Batman não mata. Todavia, a forma como o moreno disse isso, o tom que ele usou, deixava margem para que o tenente achasse que não era uma ameaça vazia. Isso só o fazia pensar no quão sério poderia ser o assunto do que aconteceu no Arkham. Mas, apesar da curiosidade e estranheza, ele tinha mais no que pensar do que nos problemas pessoais do Wayne, que inclusive, ele via com uma frequência da qual não gostava.
Ele sabia que com o Coringa de volta para a unidade, ver Bruce era uma coisa óbvia. No entanto, o tenente não gostava, algo sobre o Wayne o incomodava, o tenente não sabia se era a estranheza de ver o ex-vigilante tão presente dentro da delegacia sem seu traje, ou a estranheza com qual ele interagia com o Coringa sem a máscara do morcego.
Era como se o ex-bilionário estivesse mais leve, mas ao mesmo tempo, isso fazia com que fosse mais perceptível suas emoções. Algo sobre Bruce realmente amar o Coringa o incomodava, algo sobre eles se encaixarem tão bem um no outro de uma forma que era tão assimétrica. Chuck não gostava de como o Coringa parecia um pouco menos monstruoso em sua mente, era cada vez mais difícil associá-lo com o terrorista que colocou a cidade de joelhos, com o monstro que matou sua equipe. E o tenente não gostava de pensar dessa forma.
-Vai assistir ao interrogatório do Capuz Vermelho ? - perguntou Sarah retirando Chuck de seus pensamentos.
-Vou, mas preciso que você ajude Taylor nisso - respondeu o tenente arrumando suas coisas - e quanto a Castro ? O que ele pensa sobre isso ?
-Eu não sei - admitiu Sarah - ele não parece muito interessado no caso, ele parece muito distante, ou pouco fora do lugar.
-Eu percebi.
—-------
O ex-comissário estava fervendo água quando alguém bateu na porta. Jim rapidamente foi em direção a pequena sala para atender. Ele estava terminando de arrumar suas coisas, depois de ir embora, um pouco abalado com o processo de divórcio. Gordon abriu a porta com um suspiro para encontrar o Coringa parado com um sorriso que não era visto em quase dois meses.
-Você não devia estar trabalhando ? - perguntou Jim abrindo espaço para que o loiro entrasse.
-Nossa, bom dia para você também - falou o palhaço revirando os olhos e adentrando no apartamento - eu estou bem, obrigado por me perguntar.
Gordon sorriu minimamente, o palhaço parecia mais de bom humor, depois de muito tempo parecendo tão deslocado de si mesmo. Gordon sabia que os remédios estavam induzindo um quadro depressivo grave como consequência para tentar barrar as oscilações e ciclos de humor.
Jim tinha certo conhecimento de que o Coringa já foi diagnosticado com comorbidade bipolar tipo 1, associada ao seu quadro de transtorno de personalidade antissocial. Na bipolaridade tipo 1 o que prevalece são as alterações maníacas em detrimento dos episódios depressivos, então a pessoa passa por períodos de intensa energia e impulsividade, e isso associado a um transtorno como o transtorno de personalidade antissocial, pode acentuar certas características como a impulsividade, comportamento agressivo e manipulação.
Jim foi retirado de seus pensamentos quando o louco entoou lambendo o canto dos lábios, olhando em volta com uma expressão divertida:
-Você já tomou café ?
-Eu estava fervendo a água - disse Gordon - eu ia tomar café agora.
-Vou tomar com você - falou o palhaço zombando, indo até a cozinha e mexendo na geladeira - eu estou com fome, Brucie não tem me alimentado.
Gordon não pode deixar de sorrir minimamente para isso, era até um alívio ver o ex-terrorista agindo mais como ele mesmo. Jim foi em direção a cozinha dizendo simplesmente:
-Você está muito atrasado, Castro não vai gostar disso.
-E quem liga para isso ? - falou o loiro revirando os olhos - para um aposentado você está pensando muito me horários, relaxa, mas se você quiser que eu -
Gordon interrompeu a fala do ex-terrorista:
-Não não, eu não quis dizer isso.
-Eu sei que não, você adora a minha companhia - zombou o loiro com um olhar divertido, antes de sua voz ficar um pouco mais séria - Jimmy tem aparecido ?
-Não - admitiu Jim com um suspiro - não posso realmente culpá-lo, não fui exatamente um pai muito presente.
-Parece que minha última conversa com ele não surtiu tanto efeito, talvez eu deva ser um pouco mais… persuasivo ? - considerou o louco passando a língua no lábio inferior.
-Deixe-o em paz - suspirou Jim - ele não tem a obrigação de querer me ver.
-Ele tem sim - zombou o louco com uma expressão de escárnio - não se preocupe, da próxima vez que eu vir aqui, trago seu filho.
-Eu estou falando sério garoto - disse Jim com um tom cansado - meu filho está tendo que lidar com muitas coisas, não quero pressionar.
Coringa suspirou, ele tinha tido uma conversa com Jimmy, talvez tenha sido um pouco intimidante para o homem mais novo, mas ele não se importava realmente. Gordon não merecia passar por isso, pelo desprezo do próprio filho. Ele ainda se lembrava da conversa, o louco não tinha paciência para o drama de Jimmy. O Coringa odiava draminhas de jovens adultos.
Para o ex-terrorista, embora Gordon não tenha sido o melhor pai do mundo e o mais presente, era um pai que se importava visivelmente com sua família, um pai que mesmo que não estivesse lá em todos os momentos, sempre fez de tudo para fazer parte da vida de Jimmy oferecendo conselhos. Jim se importava demais com as pessoas. Talvez seja isso que acabou aproximando o palhaço do ex-comissário, essa aura que Jim passava. Coringa não sabia como era ter um pai, mas se ele tivesse um, ele gostaria que fosse parecido com o ex-comissário.
-Como vão as coisas na delegacia ? - perguntou Jim começando a passar o café.
-Você sabe - falou o loiro se sentando empoleirado em uma das cadeiras - as coisas estão meio caóticas desde que você se aposentou, e sem chance de melhora.
-E o contador de histórias ?
-Bem - começou o loiro passando a língua pelo lábio inferior - Chuck continua investigando isso, você sabe, ele não vai deixá-lo escapar.
-Ouvi dizer que você está na equipe dele - comentou Gordon de brincadeira - fico feliz que ele esteja se recuperando, que vocês não estejam tentando matar um ao outro sem mim naquela delegacia.
-Chuckie me adora - zombou o loiro rindo - eu dou alegria a vida dele.
-E como está Bruce ?
-Brucie vai bem - comentou o palhaço pegando uma rosquinha em cima da mesa - como sempre você sabe, ou pegando no meu pé ou sendo um querido, hora me amando e hora com raiva.
-Ele me parece muito cansado - comentou Jim servindo duas canecas de café e entregando uma para o palhaço - acho que talvez fosse bom ele procurar ajuda profissional, talvez um psicólogo, alguém para conversar, você sabe que Bruce segura uma barra nas costas, ele se esquece que é uma pessoa de carne e osso.
-Eu sei - suspirou o palhaço antes de passar a língua pelos lábios - mas você sabe como Bruce é, e isso não é algo que ele vai conseguir resolver na terapia.
Jim suspirou, ele sabia que era verdade.
-Bem, tente não irritar ele - completou Gordon.
Coringa não pode deixar de rir.
Notes:
Obrigado a quem esperou. Até a próxima semana :)
Chapter 8: The Gotham We Want (Parte 8)
Notes:
Postando novamente atrasado, acho que vocês já se acostumaram com isso kkkkkk
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Chuck estava intrigado assistindo ao interrogatório do Capuz Vermelho, ele via a forma como o agente Taylor conduzia com uma expressão neutra e crítica. Ele não estava conseguindo resultados. O tenente sabia que precisava pegar mais pesado, no entanto, ele ficava um pouco receoso, Jason não parecia ter estado nessa situação antes. Ele era jovem e Chuck não gostava da ideia de intimidar adolescentes, principalmente sem advogados.
Ele estava muito imerso em observar o interrogatório quando a porta se abriu e o Coringa adentrou com uma xícara de café e uma expressão insolente no rosto. O palhaço tinha noção de que estava muito atrasado, que já deveria estar na delegacia horas atrás, mas isso nunca o impediu, o Coringa só aparecia quando lhe convinha. Chuck deixou de se importar com isso depois de um tempo. O ex-terrorista olhava pelo vidro os acontecimentos com uma expressão zombeteira tomando um gole de café.
-Sarah e colocou por dentro dos acontecimentos - começou o louco tomando outro gole de café, antes de sorrir frio - você sabe que ele é só um garoto e que posso fazer com que ele cante a música que queremos rapidinho, me dê dez minutos.
O tenente olhou para o louco de canto de olho por um momento, o que o palhaço queria com isso era um mistério, não é como se o Coringa fosse um grande zelador da justiça e estivesse louco para prender quem quer que fosse. Chuck não tinha energia no momento para tentar entender como a mente do ex-terrorista funciona, então ele apenas suspirou antes de dizer:
-Te dou cinco.
-Sete - retrucou o palhaço lambendo o canto dos lábios.
-Feito.
Os dois ficaram em silêncio por mais um momento, olhando pelo espelho o desenrolar dos acontecimentos dentro da sala de interrogatório. O tenente tinha uma inimizade velada pelo ex-terrorista, todavia, eles aprenderam a conviver. Chuck tentava a todo custo pensar no colega de trabalho como um monstro frio, mas ele sabia que o palhaço tinha várias facetas, que embora fosse um sociopata perverso,isso era uma simplificação.
O palhaço tinha várias camadas, e a superfície ácida e despreocupada era apenas a mais visível, apenas sua superfie. O tenente descobriu quando viu o louco perder o ar engraçado, naquele dia que Chuck foi atrás de Gordon no apartamento do palhaço. Coringa parecia surtado, fora de si, parecia menos um palhaço calculista e cruel, e mais um maluco realmente doente.
Foi difícil para o tenente reconhecer isso, que o Coringa não era de fato, um monstro saído magicamente de tudo que há de mais sujo na cidade como uma personificação de tudo que há de mais podre nas ruas de Gotham, mas uma pessoa doente com um senso de humor um bastante distorcido.
-Você vai querer ler o dossiê sobre ele ? - perguntou o tenente de repente - acho que talvez seja mais fácil.
-Mas aí onde estaria a graça ? - indagou o palhaço com um sorriso gelado, o tom humorado mascarando uma concentração intensa..
-Acho importante você saber, ele nasceu em Gotham mas foi adotado e se mudou para o Texas, tem uma mãe doente, foi detido duas vezes por roubo, não tem pai - divagou Chuck - é um “garoto problema”, achamos que ele voltou para Gotham atrás da mãe biológica, e que quem quer que o tenha deixado junto com reféns naquela padaria, queria que ele fosse pego.
O ex-terrorista parou por um momento ao ouvir a palavra padaria. Ele olhou pelo vidro para dentro da sala, para o garoto e se lembrou…era o garoto que estava junto com Bruce. Isso fez com que um sorriso predatório se instalasse no rosto do louco, isso seria divertido, muito divertido.
-Isso muda as coisas - riu o louco de repente, o tenente não entendeu.
Chuck observou o Coringa com um misto de desconfiança, sabendo que o ex-terrorista provavelmente tinha em mente uma série de táticas manipulativas e destrutivas. Mas, no fundo, o tenente também reconhecia que, se alguém poderia fazer o Capuz Vermelho "cantar", seria o Coringa.
-Faça o que quiser - disse Chuck, seu tom exausto e resignado - mas lembre-se, não queremos que isso saia do controle.
O Coringa riu, um som sinistro e animado, enquanto se preparava para adentrar a sala de interrogatório. Chuck não pôde deixar de sentir um calafrio ao imaginar as consequências que viriam com a intervenção do Coringa. Enquanto o palhaço se dirigia para a porta, Chuck observou com uma sensação de inevitabilidade.
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Jason estava a horas nisso, ele não aguentava mais ouvir perguntas. Não era novidade que ele não responderia a nada. De repente a sala foi aberta e uma figura de cabelos loiros escuros e grotescas cicatrizes no rosto entrou. Chuck, o tenente acima do peso e com uma expressão cansada, fez um sinal silencioso para que Taylor, o agente responsável pelo interrogatório, se retirasse.
Taylor, visivelmente perturbado e sem querer enfrentar o novo cenário, levantou-se rapidamente da cadeira e deixou a sala, sem lançar um olhar ao recém-chegado. Chuck fechou a porta atrás dele, criando uma separação entre o interior da sala e o mundo exterior. Jason, que já tinha visto o Coringa de relance na padaria, agora via de perto o homem cuja mera presença lhe causava desconforto. A atmosfera na sala imediatamente mudou para algo mais opressivo e ameaçador.
O louco lentamente foi até a mesa e virou a cadeira ao contrário, se sentando com o encosto contra o peito em sequência. Sua expressão era despreocupada e um pouco divertida olhando o garoto de cima a baixo. Jason ficou desconfortável, pois ele sabia quem era, era o homem loiro da padaria que estava junto com Bruce Wayne, aquele que esfaqueou um dos assaltantes. Jason não sabia seu nome, mas ele não parecia um policial.
Jason tinha sido criado em uma pequena cidadezinha no estado do Texas, sem muito acesso a coisas de fora do seu estado. Ele conhecia Bruce Wayne pelas revistas antigas vendidas em algumas lojas de conveniências. Mas ele era diferente das fotos, talvez mais velho, mas era inconfundivelmente ele.
-Você parece nervoso garoto - começou o Coringa, seu tom zombeteiro e voz baixa, carregada de um tom de crueldade - vamos aos fatos, você está longe de casa, devia tomar cuidado com quem se envolve em uma cidade como Gotham, aqui não é o seu território.
Jason não disse nada, a voz e a expressão do outro homem deixavam o ambiente pesado, ele se sentia uma presa e não gostou disso. Jason prometeu a si mesmo que não se sentiria mais assim. Mas esse cara, ele era…diferente.
-Você quer um espelho para ver sua expressão de pânico ? - zombou o loiro coçando os cabelos sujos antes de passar a língua no lábio inferior - são as cicatrizes ? Elas te assustam ?
-Não - disse Jason simplesmente, quebrando seu silêncio. Era a primeira palavra dele desde que chegou na delegacia.
O sorriso do Coringa se ampliou, predatório e frio. Ele parecia encantado com a reação de Jason, encontrando uma espécie de prazer na tensão do garoto. Jason parecia interessante.
-Temos um corajoso então ? - provocou o loiro - cicatrizes são marcas de guerra, você não lutou o suficiente se não tem nenhuma delas sabe ? Quer saber como eu consegui as minhas ? Humm ?
O louco fez uma pausa descansando os cotovelos nas costas da cadeira, como se estivesse em sua própria casa. Ele olhou para a expressão desconfortável de Jason por um momento antes de entoar:
-Quando se é jovem se é inconsequente, eu me meti com as pessoas erradas, fui para uma casa de detenção juvenil - o palhaço sorriu mais amplamente, passando a língua pelo cantos dos lábios na sequência - meu colega de cela fez isso com o meu rosto enquanto eu estava dormindo, não foi bonito.
-Você está mentindo - disse Jason, sua voz tentava se manter firme, mas vacilou no final, o homem à sua frente exalava uma aura de perigo contido, o desafiando a questioná-lo.
A expressão do Coringa ficou ainda mais divertida, ele gostava do desafio do garoto. O palhaço riu por um momento antes de esticar sua cabeça em direção a mesa, como se estivesse contando um segredo ao garoto.
-Não importa se estou mentindo ou não, é uma boa história, e isso é a coisa mais leve que pode acontecer com você em um centro de detenção juvenil, acha que é durão ? Já vi caras bem mais velhos e experientes que você chorarem em uma maldita cela, acredite, você não está preparado para isso - disse o palhaço passando a língua no lábio inferior - aqueles caras lá fora…aquele cara que estava aqui falando com você, todos sabem que você vai ser engolido em um lugar assim, eles só querem algumas informaçõezinhas, sabe ?
-Eu não sei de nada - retrucou Jason fazendo uma pausa - e você não parece um policial.
-Vamos pular as formalidades - continuou o palhaço - você já me viu antes, eu sei disso, dá para ver na sua cara, senão, porque motivos você estaria tão assustado? Vamos garoto, porque proteger quem te mandou para cá ? Eu não sou como esses idiotas que prenderam você, eu já estive do outro lado da mesa, porque você voltou para Gotham ?
O sorriso do Coringa era predatório e frio, as íris de seus olhos queimavam como gasolina. Ele estava se divertindo ao apertar os botões do garoto.
-Olha, você não sabe nada sobre mim - falou Jason, sua voz tremia de raiva - eu já disse que não sei de nada.
-E quem disse que me importo em saber algo sobre você ? - zombou o palhaço com um olhar ácido - eu não ligo para sua vida, para nada disso, eu só preciso saber o que você estava fazendo aqui em Gotham, não quero saber a sua historinha triste.
O Coringa estava provocando, ele queria ver até onde o garoto poderia aguentar. Jason franziu o rosto com o comentário do ex-terrorista antes de rosnar com raiva batendo na mesa:
-Você não sabe tudo que eu passei para chegar aqui !!
-Não - concordou o palhaço lambendo o canto dos lábios - e ninguém liga para isso, bem-vindo ao mundo real, para eles você é só mais um garoto problema, é tudo que você é, agora, vai me dizer o que veio fazer em Gotham ? Posso te levar para tomar um sorvete antes que eles te coloquem em uma casa de internação e joguem a chave fora, a escolha é sua.
Jason suspirou, ficando em silêncio por um momento antes de dizer:
-Eu vim procurar a minha mãe, preciso do dinheiro.
-Humm - continuou o palhaço - mas você não chegou aqui sozinho, quem estava te ajudando ?
O garoto não respondeu ao questionamento. Jason não diria, ele não podia. Contar era desistir de encontrar sua mãe, e ele não iria desistir.
-Talvez você ache que protegê-los agora pode de alguma forma fazer com que eles voltem atrás - disse o palhaço passando a língua no lábio inferior - mas nós dois sabemos que eles descartaram você, seja qual for o trabalho que eles te deram, ou você já cumpriu, ou não fez direito, independente, você é um descarte, eles te sacanearam, a pergunta é, porque não mataram você ? Alguma coisa saiu errada ?
Jason continuou em silêncio, ele se sentia acuado, como uma presa. O palhaço sabia como entrar na mente das pessoas, ele sabia como acabar com todas as defesas cuidadosamente construídas. O louco continuava encarando o garoto com um sorriso sinistro.
-Sabe, eu conheci vários garotos como você - continuou o Coringa arqueando as sobrancelhas - tão desesperados e perdidos, lutando por uma chance, sabe o que todos eles têm em comum ? Humm ? Nenhum deles chegou na fase adulta, você acha que é esperto ? Você é um amador.
-Eu faço isso a muito tempo - disse Jason com o ego ferido - não sou um novato.
-Se você fosse bom não seria pego, sabe Jason, criminosos são uma fraude, todos são incrivelmente burros, são como porcos, só ligam para dinheiro e poder.
-Você disse que já esteve desse lado da mesa - zombou o adolescente tentando obter alguma vantagem - isso significa que você foi burro.
-Não entrei por dinheiro ou por poder- disse o louco passando a língua no lábio inferior.
-Então porque ?
-Eu queria me sentir vivo - disse o louco simplesmente, dando de ombros - todos somos viciados em nos sentirmos vivos, em dar sentido para nossas tristes existências.
-E porque parou ? - perguntou Jason estranhamente interessado.
-Porque encontrei outra coisa muito mais divertida, algo que faz bem mais sentido - Coringa se inclinou para trás, com um olhar contemplativo e, ao mesmo tempo, ameaçador.
Jason se perguntou mentalmente se o outro homem estava falando do ex-bilionário, ou se estava falando de outra coisa. Havia alguma coisa diferente no jeito como o ex-terrorista disse sua última fala.
-Você está falando do Wayne ? - perguntou Jason, a curiosidade transparecendo em sua voz
-Sim - disse o palhaço passando a língua no lábio inferior, um brilho diferente em seus olhos, quase carinhoso - Brucie é a minha outra metade, sabe ? Somos como almas gêmeas, ele me completa de uma forma que nem mesmo o caos consegue, e todos precisamos de alguma coisa para nos sentirmos inteiros, alguns buscam o dinheiro, o poder, outros encontram o sentido no trabalho ou em outra pessoa, mas e você Jason ? O que te deixa inteiro ? O que te completa ?
Jason ficou em silêncio, ele não sabia. Quando o garoto descobriu que era adotado ele ficou tão revoltado e zangado. Ele queria encontrar sua mãe, olhar para ela e perguntar porque, porque ela o deixou, porque não o procurou. Jason queria a família que sentiu que não teve com sua mãe adotiva que vivia doente de hospital em hospital. Jason queria a infância que não teve.
O Coringa observava com uma expressão de expectativa, quase como se estivesse ansioso para ver até onde Jason iria se desmoronar sob pressão. O ambiente estava carregado, e a sala de interrogatório se tornava um campo de batalha psicológico, onde cada palavra, cada provocação tinha o potencial de desmantelar a resistência do jovem.
Jason permaneceu em silêncio, a pergunta do Coringa reverberando em sua mente. Ele lutava para manter a compostura, tentando não deixar o ex-terrorista ver o quanto suas palavras o afetavam. Sentia-se como se estivesse à beira de um precipício, com o Coringa como uma força constante empurrando-o para a beira do abismo emocional.
O Coringa observava o garoto com um olhar que misturava crueldade e curiosidade, um sorriso sinistro brincando em seus lábios. Ele parecia se deleitar com o desconforto e a confusão que estava semeando na mente de Jason.
-Ah, então você não sabe o que te completa - disse o Coringa, passando a língua pelo lábio inferior - é compreensível mas triste, muitos de nós passamos a vida inteira buscando esse algo, tentando preencher o vazio… que é que você faz para se sentir menos perdido ?
Jason lutou para conter a raiva que crescia dentro dele. O Coringa estava manipulando-o com habilidade, fazendo com que se sentisse exposto e vulnerável. Ele queria gritar, queria bater em algo, mas sabia que isso só o colocaria em mais problemas. A sensação de impotência era quase insuportável.
-O que eu faço para me sentir inteiro é da minha conta - respondeu Jason, a voz tremendo de raiva e frustração - eu não tenho que explicar isso para você.
-Ah, mas você vê, Jason, essa é exatamente a questão - o palhaço inclinou a cabeça de lado, com um olhar de interesse perverso- você está aqui, sozinho, com um grupo de pessoas que não ligam para você. Eles só querem informações. E eu? Eu estou aqui porque gosto de saber o que motiva as pessoas, o que as faz se mexer, é um jogo para mim, um quebra-cabeça para resolver.
O palhaço se levantou lentamente da cadeira despreocupadamente, dando um passo em direção a Jason com uma aura de ameaça crescente. Ele parecia se divertir com o jogo psicológico que estava jogando.
-Você está aqui tentando proteger alguém que não está nem aí para você, então por que se incomodar? Eles te usaram e depois te descartaram - o louco se inclinou para mais perto, sussurrando - diga-me, Jason, o que faz você se levantar todas as manhãs sabendo que tudo está contra você?
Jason tentou manter a calma, mas sentia que o Coringa estava conseguindo perfurar suas defesas emocionais. Ele tinha que se manter firme, mas a dor e a frustração estavam começando a transbordar.
O tempo parecia se arrastar. A cada minuto que passava, o som da ventilação e o zumbido constante das luzes se tornavam mais altos, amplificando o silêncio opressivo da sala. Jason tentava se concentrar em seu objetivo, sua missão para encontrar sua mãe, mas as palavras do Coringa ecoavam em sua mente.
-Eu…- Jason hesitou, tentando formular as palavras - eu não vou te dar o que você quer.
A fala do garoto fez o ex-terrorista dar um sorriso largo, um brilho quase de satisfação em seus olhos.
-Ah, o bravo garoto não vai me dizer nada, você é realmente interessante, Jason - ele fez uma pausa, passando a língua no lábio inferior, observando o garoto com um olhar calculista - mas vamos ser realistas, você sabe que seu tempo aqui não vai durar para sempre, as pessoas que te colocaram aqui, elas não se importam com você, e eu…bem, eu posso ser um aliado ou um inimigo, a escolha é sua.
Jason levantou a cabeça, olhando para o Coringa com uma determinação renovada. Mesmo sob a pressão intensa, ele se recusava a ceder. Havia algo no olhar do Coringa que parecia quase familiar, uma sombra de algo que ele não conseguia identificar, mas sabia que precisava resistir.
-Eu vou encontrar minha mãe - disse Jason, tentando manter a firmeza na voz - nada do que você diga vai mudar isso.
-Encontrar a sua mãe é um objetivo nobre, mas talvez um pouco ingênuo, o mundo real é cruel e cheio de armadilhas, e… Gotham? Bem, Gotham é uma cidade que engole os desavisados, mas quem sou eu para dizer o que você deve ou não fazer?
O Coringa se afastou, voltando a se acomodar na cadeira de maneira despreocupada, o olhar ainda fixo em Jason.
-Bem, parece que nosso tempo está acabando, o que você me contou é… interessante, mas ainda há muitas perguntas sem resposta - disse o palhaço se levantando - vou deixar você com seus pensamentos por um tempo, aproveite.
O ex-terrorista caminhou lentamente, abrindo a porta e lançando um olhar para Jason antes de sorrir de forma enigmática.
-Lembre-se, Jason, no final das contas, todos nós temos nossos próprios monstros, alguns são apenas mais evidentes que outros.
O Coringa saiu, a porta se fechando atrás dele com um estalo seco. Jason ficou sozinho na sala, sentindo o peso das palavras do ex-terrorista e o impacto do confronto psicológico. Ele estava perturbado, mas havia uma pequena faísca de determinação dentro dele, uma vontade de continuar lutando, de não deixar que o Coringa e o mundo ao seu redor o derrotassem.
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Dick estava ansioso, ele finalmente iria encontrar com Simon Adams e ver os detalhes sobre a visita do outro homem à casa do ex-bilionário Wayne. O aspirante a jornalista investigativo já tinha tudo preparado, ele gravaria o relato de Simon, esse era o primeiro passo para uma investigação mais agressiva. Ele precisava provar seu ponto, precisava de qualquer coisa para conseguir os equipamentos.
Simon estava atrasado, Grayson estava seriamente pensando que ele não viria. Todavia, contra todas as possibilidades, o homem apareceu. Simon Adams se sentou no sofá, ele parecia um pouco perturbado, olhando para o gravador que Richard possuía em cima da mesa de centro.
-Como foi lá Simon ? - perguntou o homem mais jovem ainda sem ligar o aparelho - alguma coisa ?
-O que quer que eu diga ? - disse Simon - Wayne não…ele não é a pessoa que eu pensava que fosse.
Dick arqueou uma sobrancelha, isso parecia interessante, muito interessante.
-Porque você diz isso ? - perguntou o aspirante a jornalista - você notou alguma coisa ?
Simon se encostou no sofá, olhando para as mãos antes de voltar a encarar Dick. -Alguma coisa ? Só que o cara é estranho, ele ficou o tempo todo na defensiva - explicou o homem mais velho - eu sempre tive a imagem de que Bruce Wayne era um playboy fútil e arrogante, criado na alta sociedade, mas esse cara parece outra pessoa.
-Outra pessoa - refletiu Dick pensativo por um momento.
-Sim - continuou o homem mais velho - a casa dele, pelo que eu pude ver da sala, não é o que você espera de um homem que foi bilionário, é um lugar esquisto, levemente bagunçado, com poucos móveis baratos, e Wayne parecia desconfortável com a minha presença na sua casa, estava na defensiva, contava coisas pela metade ou desconversava, e teve uma parte muito bizarra, quando eu estava conversando com ele, o Coringa, ou Jack, sei lá como o chamam hoje em dia, estava em algum lugar no apartamento e parecia possesso de raiva, ele gritava ameaças, pelo que eu entendi, o Wayne tinha o trancado em algum lugar.
Dick escutava tudo com um olhar intrigado, ele precisava olhar isso mais de perto. Ele sabia que tinha alguma coisa muito errada, havia mais que isso. O aspirante a jornalista investigativo indagou curioso:
-E qual foi a reação do Wayne ? Digo, ao ouvir as ameaças do Coringa.
-O Wayne ? Ele gritou, fez umas ameaças de volta e literalmente me expulsou do apartamento, ele parecia muito bravo - disse Simon Adams continuando - sempre tive a visão de que Bruce Wayne era um homem da farra, mas que sempre se mostrou uma pessoa equilibrada, contida e elegante para as câmeras, no entanto, ele gritou e ameaçou o Coringa como se o cara não fosse perigoso.
Dick se inclinou para frente, absorvendo cada palavra. O comportamento de Wayne estava começando a fazer mais sentido para ele, mas ainda havia lacunas a serem preenchidas. Ele continuou a ouvir, absorvendo os detalhes cruciais.
-Eles são casados - comentou Dick dando de ombros, evidenciando o óbvio - Wayne não se casaria com o Coringa se tivesse medo dele, é preciso confiança para morar com uma pessoa e resolver construir uma vida com ela.
-Não importa, independente do nível de confiança - disse o outro homem fazendo uma pausa - aquilo foi de gelar a espinha, aquele com certeza não era o Wayne das revistas, eu me pergunto que tipo de pessoa você precisa ser para poder falar com alguém como o Coringa naquele tom.
O aspirante a jornalista investigativo sabia, você precisava ser um ex-vigilante que se vestia de morcego até um ano atrás. Você precisa ser o Batman. Dick refletiu por mais um momento, ele precisava de câmeras discretas, escutas, ele precisava dar um jeito de conseguir provas concretas. Ele precisava mexer seus pauzinhos.
-Você pode contar tudo que aconteceu parte por parte ? - perguntou o homem mais jovem mexendo no gravador - se atente aos detalhes, não deixe nada de fora, por favor.
Simon Adams assentiu antes que Dick entoasse em alto e bom som, iniciando a gravação:
-Estados Unidos da América, New Jersey, Gotham, 23 de Outubro de 2010, oito horas e dezessete minutos da noite, começamos o depoimento número um do informante x, que não deve ser identificado para sua segurança…
Enquanto Simon começava a detalhar os eventos que ocorreram durante a visita a Wayne, Dick anotava cada ponto crucial, os olhos fixos no informante. A gravidade das palavras e a atmosfera densa indicavam que Dick estava à beira de algo significativo. Ele sabia que, se os detalhes que Simon estava fornecendo fossem confirmados, poderiam ser o primeiro passo para descobrir uma verdade ainda mais complexa.
O que Dick descobria ali não era apenas uma parte do quebra-cabeça, mas uma peça vital que poderia abrir portas para uma investigação muito maior. A verdade estava começando a se revelar, e com ela, a promessa de uma descoberta que poderia mudar tudo nesta cidade. Grayson não desistiria de provar a identidade do Batman.
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Bruce entrou no apartamento com a gravata afrouxada e um olhar cansado. O peso das horas intermináveis na promotoria estava claramente marcado em seu rosto e postura. Ele largou a pasta de trabalho sobre o sofá com um gesto cansado, o som do material caindo sobre o estofado quebrando o silêncio do ambiente. Tudo era estranhamente silencioso.
-Jay ? - começou Bruce caminhando em direção ao quarto - já está em casa ?
O apartamento estava todo escuro, isso fez o ex-playboy franzir a testa. Seu corpo ficou em alerta, anos de memória corporal caindo sobre seus ombros enquanto andava pela casa sorrateiramente. Bruce estava no corredor quando uma figura pulou em suas costas, lhe aplicando uma gravata forte ao redor do pescoço, o puxando para trás repentinamente.
O moreno, em resultado aos anos como Batman,rapidamente se jogou de costas contra a parede do corredor, derrubando algumas fotografias emolduradas no chão com um barulho estridente, antes de se jogar no chão, imobilizando a figura com um golpe simples de Jiu Jitsu. O silêncio reinou por um momento antes que a figura começasse a rir dizendo:
-Que violência é essa querido, adorei - o palhaço estava pendurado ao redor do pescoço de Bruce, com as pernas enroladas em sua cintura como um abraço de uma cobra venenosa em sua presa.
-Já disse para você não fazer isso - bufou Bruce soltando o palhaço imobilizado - eu podia ter te machucado.
-Mas eu gosto do seu lado que nunca vai deixar de ser o morcego - sussurrou o Coringa, sua voz cheia de provocação contra o ouvido de Bruce, ele se aninhou mais perto, rindo com uma satisfação quase infantil - você tinha que ver a sua cara.
Bruce bufou, ele estava cansado, com dores nas costas de ficar sentado o dia todo examinando papéis e ainda conseguia achar graça das bobagens do Coringa. Na verdade, essa espontaneidade era uma das coisas que o moreno mais gostava. A forma como o louco conseguia tornar os dias mais suportáveis era incrível.
-Você é inacreditável - disse o moreno com um bufo - vamos ficar aqui no chão e no escuro ? Eu tô com fome, cansado e louco para tomar um banho.
-Pare de ser chato, Brucie - retrucou o louco lambendo o canto dos lábios.
- Vamos levantar - falou o moreno se levantando, não se importando com o palhaço ainda grudado em seu pescoço e com as pernas ao redor de sua cintura - para de ser criança e me solta.
Coringa bufou e revirou os olhos, desdenhando a queixa de Bruce com um sorriso malicioso. Bruce riu, achando a situação mais engraçada do que deveria ser. Tudo com o palhaço era tão absurdo.
-Você está bem hoje hein - falou o moreno.
-Não estou medicado - zombou o palhaço - algum maluco jogou meus comprimidos na privada e deu a descarga.
-Bem - brincou Bruce beijando brevemente os lábios do outro homem - acho que esse maluco prefere você meio doidinho e desregulado do que triste.
Era uma brincadeira e o clima era leve, mas havia um fundo de verdade nisso, Bruce não gostava de vê-lo tão perdido e cansado, tão diferente de si mesmo, que sempre foi tão vibrante. Bruce lidaria com isso, ele lidaria com a imprevisibilidade e o humor mórbido do ex-terrorista, lidaria sem ter que enchê-lo de remédio.
Eles ficaram em silêncio por um momento apenas olhando um para o outro, em seus próprios pensamentos. Bruce gostava de momentos assim, embora já começasse a sentir o peso do palhaço, ainda pendurado em seu pescoço e com as pernas ao redor de sua cintura.
-Você foi perturbar Jim hoje ? - perguntou o moreno de repente, quebrando o silêncio.
-Que isso, Brucie - zombou o louco passando a língua no lábio inferior, sua expressão divertida - Jim me adora, mas bem, como você está se sentindo, querido? Não muito entediado com esse trabalho entediante?
-Você sabe como esse trabalho é uma droga, mas paga as contas - disse o moreno com um bufo antes de continuar -e a delegacia ? Alguma coisa?
Coringa riu antes de entoar:
-Acho que vou te contar enquanto a gente janta, é uma longa história com detalhes hilários.
-Longa história é? - o moreno arqueou uma sobrancelha - então me solta para a gente ir comer, estou com fome.
-Não - zombou o loiro encostando a testa na do moreno e olhando-o com um sorriso travesso.- você puxa ferro todas as manhãs como se estivesse se preparando para um apocalipse zumbi, então pode andar comigo assim até a cozinha, eu estou confortável.
-Você é um idiota - respondeu o moreno tentando esconder um sorriso.
-Sim, e você ama que eu seja - disse o palhaço antes de passar a língua pelo lábio inferior se inclinando para trás com uma risada de zombaria - agora vá, me carregue.
-Abusado - zombou Bruce indo em direção a cozinha com o palhaço. A sensação do ex-terrorista ainda pendurado em seu pescoço e a falta de espaço para se movimentar deixavam a situação ainda mais engraçada. Qualquer outra pessoa acharia que era uma forma estranha de se encerrar o dia, mas Bruce não estava reclamando.
Notes:
Comentem para me deixar feliz, tive que reescrever o capítulo tudo do zero :)
Chapter 9: The Gotham We Have (Parte 9)
Notes:
Finalmente postar no dia certo gente. Novamente, desculpem o transtorno das últimas semanas :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Dick estava decidido a conseguir instalar câmeras e escutas no apartamento de Bruce Wayne. Ele tinha passado seis dias após a sua conversa com Simon Adams tentando conseguir esse equipamento. Depois de muita insistência, o aspirante a jornalista investigativo conseguiu o material com um amigo da universidade, que estava estagiando na parte de equipamentos e testagem em outro departamento do The Gotham Times. Foi preciso muito para convencê-lo, então Richard tinha o dever de não envolvê-lo se as coisas não saíssem como a encomenda.
O aspirante a jornalista investigativo tinha passado os últimos dias tentando espionar a rotina do ex-bilionário e do ex-terrorista, eles pareciam ter uma vida normal. Bruce saía mais cedo para o seu trabalho na promotoria, por volta das seis horas, voltava tarde, perto das nove. O Coringa saia mais tarde, ele tinha horários mais irregulares, ia ao psiquiatra nas segundas feiras por volta das sete da manhã, mas seus horários de trabalho variavam. Dick observou tudo com uma paciência medida, nos últimos cinco dias, ele também tinha conseguido identificar o homem que Wayne brigou no restaurante árabe, o nome dele é Matthew Cole, ex-psiquiatra do Arkham, foi detido no ano passado por tentativa de terrorismo. No entanto, o aspirante a jornalista investigativo não tinha conseguido mais nada além disso. Ele não tinha acesso aos arquivos da polícia.
Richard estava esperando o ex-terrorista sair de casa para entrar no apartamento, ele já estava com todos os equipamentos e tinha calculado cerca de no máximo quarenta minutos até conseguir instalar tudo. Dick tinha subido até o andar do Wayne nos dias que se passaram, com roupas diferentes, sempre tentando passar despercebido. Ele precisava saber onde estavam as câmeras de segurança e também evitá-las. Dick tinha calculado o intervalo de tempo e onde se posicionava para que seu rosto não ficasse à mostra. Ele precisava tomar cuidado.
Quando o Coringa saiu do prédio, logo o aspirante a jornalista investigativo colocou seu plano em ação. Ele vestia um macacão de eletricista e se identificou para o porteiro como Allan Becker, ele tinha ficado sabendo que o síndico do prédio havia solicitado alguém da assistência. Dick tinha feito isso de forma muito calculada, ele não podia cometer erros. Afinal, invadir um apartamento é crime.
Dick seguiu pelas escadas e depois pelo corredor, cronometrando o tempo para se esgueirar de forma que as câmeras capturaram o menos dele possível. Não era difícil, ele era ágil, afinal, foi criado no circo.
Não demorou muito para que o aspirante a jornalista investigativo estivesse na frente do apartamento de Bruce Wayne. Não foi difícil descobrir qual era o apartamento do Wayne, uma simples conversa com o porteiro, algum pedido de ajuda, uma distração e o resultado era um Dick Grayson com a informação que precisava.
Foi fácil, ele apenas precisou inventar que precisava entregar uma encomenda no apartamento de outra pessoa. Uma garota que ele viu entrar no prédio, que Dick descobriu ser Jane, uma moça que trabalhava em uma cafeteria. Como Dick descobriu ? Ele tinha seguido ela até seu local de trabalho, lendo a identificação em seu uniforme.
Talvez ele estivesse passando dos limites, mas precisava ser feito, ele facilmente inseriu um pendrive no computador e através do nome de Jane conseguiu abertura com o porteiro, que abriu o arquivo dos moradores. O aspirante a jornalista sabia que era isso que ele precisava.
Dick se ajoelhou em frente a porta, e com alguma dificuldade conseguiu abrir a porta do apartamento. Richard Grayson adentrou lentamente, ligando o interruptor de luz para olhar o espaço à sua volta. Ele teve que concordar com Simon, o apartamento não parecia de alguém que já foi bilionário.
Ele lentamente caminhou retirando uma câmera fotográfica de dentro da mochila, tirando fotos da sala. Era um local comum, um jogo de sofás, uma televisão que parecia ser de segunda mão, duas estantes cheias de livros velhos, um tapete com padrões geométricos e uma pequena mesa de centro. Não havia decorações nas paredes.
Dick caminhou para a direita, onde havia uma abertura, parecia a cozinha. Dick ascendeu a luz, era um espaço comum e pequeno, uma mesa encostada na parede do lado da porta, um fogão não muito longe, uma pia com armários e uma geladeira. Parecia uma cozinha normal. Dick colocou uma luva e foi abrir os armários, não havia nada de incomum à primeira vista, comidas enlatadas, alguns suprimentos de academia, e algumas porcarias doces e baratas. O aspirante a jornalista olhava tudo com um tom cético.
Abrindo um dos armários, no fundo, ele encontrou um tubo, isso o intrigou, ele não sabia para que servia, mas parecia um tubo flexível que não fazia sentido estar em uma cozinha. Dick rapidamente o fotografou antes de colocá-lo no lugar, se levantando e indo novamente em direção a sala, havia um corredor à esquerda.
O aspirante a jornalista rapidamente se esgueirou pelo corredor, não era um corredor muito longo e haviam quatro portas, duas na direita, outra na esquerda e a última no fim do corredor. Haviam várias fotografias nas paredes do corredor, Dick parou para olhá-las. A maioria eram fotos do Coringa com Bruce, e haviam algumas fotos de Bruce criança, uma com seus pais. E havia também, no meio de tantas fotos, uma que chamava atenção pelo estado amarelado e desgastado mesmo através da moldura. Uma versão do Coringa sem cicatrizes e outro homem, ambos vestidos de soldado, com fuzis em mãos. Dick retirou uma foto por precaução.
Grayson tentou abrir a primeira porta do lado direito, mas estava trancada. O aspirante a jornalista rapidamente se abaixou para arrombar a fechadura. Todavia, mesmo conseguindo, ele não conseguiu abrir a porta, ela parecia totalmente lacrada, isso o deixou frustrado, mas ele decidiu não insistir, o plano era que ninguém soubesse que ele esteve no apartamento.
Ele rapidamente passa para a outra porta do lado direito, era um banheiro simples, nada muito diferente. Dick facilmente vai para a porta única do lado esquerdo e se depara com alguns equipamentos de academia. Nada fora do comum, Bruce Wayne nunca negou que treinava regularmente, era evidente olhando seu porte físico.
O aspirante a jornalista investigativo na sequência se volta para a última porta no fim do corredor e vai até ela. Depois de abri-la e ligar a luz, ele nota uma porta à direita, que ele rapidamente descobre se tratar de outro banheiro.
No entanto, rapidamente uma figura saiu debaixo da cama cheirar seus pés com um rosnado, um cachorro. Dick não sabia que o Wayne e o Coringa tinham um vira-latas, e um vira-latas que não parecia muito amigável.
Dick congelou por um momento, sentindo o rosnado baixo e contínuo do cachorro vibrar contra seus pés. Ele sabia que precisava manter a calma. Qualquer movimento brusco poderia fazer o animal avançar, e ele não podia correr o risco de chamar a atenção de qualquer pessoa que estivesse nas proximidades. O vira-lata não era grande, mas parecia determinado a proteger seu território.
-Ei, amigão... calma aí - disse o aspirante a jornalista investigativo para o animal - não estou aqui para te machucar.
Ele lentamente se agachou, tentando parecer o menos ameaçador possível. Seus olhos encontraram os do cachorro, que o observava com desconfiança. Dick notou que o animal tinha uma pelagem curta, de cor marrom escura com algumas manchas brancas, e seus olhos eram de um tom castanho profundo, brilhando com uma mistura de curiosidade e alerta.
-Eu só vou dar uma olhada por aqui, tá bom? Sem problemas entre a gente - continuou Dick.
O cachorro continuou rosnando, mas diminuiu a intensidade quando Dick estendeu uma mão lentamente, deixando que o animal cheirasse. Ele sabia que precisava de comida para oferecer no momento, precisava ganhar a confiança do cachorro de alguma forma. Lentamente, Dick tirou uma barra de proteína da mochila. Ele abriu o embrulho com cuidado, sem fazer barulho, e quebrou um pedaço, estendendo-o na direção do cachorro.
-Vamos lá, rapaz - disse o aspirante a jornalista com um tom amigável - é só um lanchinho, você vai gostar disso.
O vira-lata cheirou o ar, hesitando por um momento antes de dar um passo à frente. Com um movimento rápido, ele pegou o pedaço de proteína da mão de Dick e recuou, ainda cauteloso, mas agora menos hostil. Ele mastigou o pedaço com atenção, sem tirar os olhos do aspirante a jornalista.
-Isso, bom garoto - disse Dick mais confiante - viu? Não sou tão mau.
Enquanto o cachorro mastigava o pedaço, Dick aproveitou a chance para olhar em volta. O quarto não era grande, havia um roupeiro na parede ao lado da porta do banheiro e uma cama de casal com dois criados mudos do lado oposto.
A janela permanecia fechada por uma cortina pesada, e nas paredes era possível ver uma infinidade de desenhos feitos de giz de cera, rabiscos que decoravam de uma forma meio incomum, as paredes do quarto. Era até meio perturbador de uma forma caótica. Dick foi até o roupeiro, analisando o que podia encontrar, mas não achou nada demais, nada comprometedor. Bruce Wayne sabia se esconder.
O aspirante a jornalista investigativo ficou um pouco frustrado, ele não tinha tempo para fazer uma busca mais minuciosa, ele não tinha tempo. Dick rapidamente começou a posicionar os microfones e as câmeras nos lugares que achou apropriado, ele precisava de qualquer coisa comprometedora. Ele suspirou, Bruce só precisava pisar um pouco na bola.
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Jason não ficou surpreso quando novamente foi arrastado pelo carcereiro até a sala de interrogatório, sua mente ainda estava mexida pela conversa que teve no dia anterior, com o policial assustador com as cicatrizes no rosto. Jason já tinha visto algumas figuras desagradáveis ao longo de sua curta estadia em Gotham, todavia, algo gritava no fundo da sua mente, que aquele cara era diferente de tudo que ele já tinha visto.
O adolescente teve tempo para refletir, sobre o que seu interrogador disse, sobre já ter estado do outro lado da mesa, já ter estado na cadeira dos interrogados. Jason sabia o que isso queria dizer, o outro homem teve seus problemas com a justiça.
A noite tinha se arrastado lentamente e sem trégua para Jason. Ele mal dormiu, a cabeça cheia das palavras do Coringa, que ainda ecoavam como um martelo batendo em sua mente. Ele sentia raiva, mas também uma pontada de medo que se recusava a desaparecer. Jason queria resistir, mas a intensidade da conversa do dia anterior ainda o deixava abalado.
De repente, a porta da sala de interrogatório se abriu e Chuck entrou, trazendo consigo um ar de tédio e exaustão, seguido por Taylor, que parecia desconfortável. Taylor evitava olhar para Jason, e a tensão na sala era palpável. Chuck tinha uma pasta em mãos e a jogou sobre a mesa com um baque pesado.
-Bom dia, garoto, dormiu bem? - entoou o tenente.
Jason não respondeu. Seus olhos estavam fixos na pasta na mesa. Ele estava cansado, mas ainda tinha forças para resistir.
-Jason, precisamos de algumas respostas - falou Taylor depois de limpar a garganta - não estamos aqui para te fazer mal, mas sua recusa em cooperar não ajuda em nada sua situação.
O adolescente manteve seu olhar no chão, tentando ignorar os dois homens à sua frente. Seus pensamentos estavam divididos entre o que o Coringa disse e a razão pela qual ele estava ali. Ele se perguntou por que aquele homem estava tão interessado em sua história.
Chuck suspirou, batendo a pasta para ter a atenção de Jason antes de dizer meio atrapalhado:
-Escuta, a gente sabe que você tem medo, e esse cara ontem... o Coringa…Jack, não deixe que ele mexa com sua cabeça.
Jason finalmente levantou o olhar, uma mistura de raiva e desafio queimando em seus olhos.
-O que ele quer de mim? Ele nem deveria estar aqui, vocês sabem disso.
Chuck para por um momento, encarando o adolescente com intensidade antes de entoar:
-Ele tem um jeito de conseguir o que quer, garoto, todos achamos que você sabe mais do que está dizendo.
-Jason, olhe, nós só queremos a verdade - Taylor se inclinou para frente, dizendo um um tom conciliador - quem você está protegendo? O que você está fazendo em Gotham?
Antes que Jason pudesse responder, a porta da sala de interrogatório se abriu mais uma vez, e o Coringa entrou sem cerimônia, um sorriso satisfeito no rosto. Chuck e Taylor trocaram olhares nervosos, mas não se atreveram a desafiar sua presença. O clima na sala mudou imediatamente, se tornando mais pesado e mais opressivo.
Coringa disse com um tom despreocupado, andando até a mesa:
-Ah, eu estava me perguntando quando poderia voltar para nossa conversinha, garoto.
Jason se enrijeceu na cadeira, sentindo um frio na espinha. A presença do Coringa o afetava de uma maneira que ele não conseguia explicar. Ele tentava manter a calma, mas a aura do homem à sua frente era sufocante. O palhaço, notando a reação do adolescente disse se sentando na cadeira de frente para Jason:
-Vamos, Jason, por que essa expressão? Pensei que estávamos começando a nos entender.
-Por que você está fazendo isso? - rosnou Jason com um tom de raiva velada - o que você quer de mim?”
O Coringa inclinou a cabeça, observando Jason com um olhar curioso e intenso. Ele achava isso muito divertido.
-Quero saber o que te move, o que te faz levantar da cama de manhã sabendo que tudo está contra você - entoou o louco passando a língua pelo lábio inferior com um olhar quase carinhoso - quero saber o que você realmente procura, Jason, e talvez, só talvez, eu possa te mostrar algo que você nunca imaginou.
Jason sentiu um nó apertado na garganta. Ele não sabia o que o Coringa queria realmente, mas cada palavra parecia uma armadilha cuidadosamente montada para despedaçar suas defesas. Ele fechou os olhos por um momento, tentando acalmar o turbilhão de emoções dentro de si.
-Coringa, isso já foi longe demais - disse o tenente tentando intervir - estamos tentando fazer nosso trabalho aqui.
Chuck não queria o ex-terrorista novamente nisso, ele não queria que Jason tão acuado. O tenente achava que poderia lidar com isso sozinho, sem a intervenção do louco.
-Jason, você está em um jogo muito maior do que imagina - falou o loiro ignorando a fala do tenente - você pensa que veio para Gotham para encontrar respostas, mas talvez... as respostas encontrem você.
Jason olhou diretamente nos olhos do Coringa, sua determinação lentamente voltando, como uma chama prestes a reacender. Ele sabia que tinha que lutar contra isso, que tinha que manter sua mente clara.
-Eu não vou te dar o que você quer - a voz do adolescente era firme - eu não vou quebrar.
O Coringa sorriu amplamente, diante da fala do garoto, um brilho de malícia e aprovação em seus olhos.
-Ah, garoto, não quero que você quebre, quero que você desperte - falou o louco com um olhar conhecedor antes de lamber o canto dos lábios - em Gotham, você é forçado a enfrentar os monstros,tanto os lá fora quanto os dentro de você, vamos ver do que você é realmente feito.
O adolescente sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ele sabia que estava em um jogo perigoso, e que o Coringa estava jogando com regras que só ele entendia. Mas ele também sabia que não podia ceder, que tinha que resistir, não importava o quanto fosse difícil.
O Coringa, por sua vez, observava Jason com um interesse perturbador, quase carinhoso. Havia algo de inquietante no jeito como ele inclinava a cabeça, como se estivesse examinando cada reação, cada emoção que passava pelo rosto de Jason.
-Você sabe, garoto... às vezes, a dor é a única coisa real que temos, você já sentiu isso, não é? Aquela ardência... aquele vazio que consome tudo ao seu redor, até mesmo a esperança - disse o louco com um tom baixo.
Jason apertou os punhos sobre a mesa, as palavras do Coringa perfurando suas defesas como lâminas afiadas. Ele sabia que precisava se manter forte, mas as palavras do palhaço se infiltravam em sua mente, mexendo com suas inseguranças mais profundas.
-Eu já disse, eu não tenho nada a ver com você, ou seja o que for que você quer - disse Jason com um tom irritado - Você não vai me manipular, eu não sei de nada.
O Coringa soltou uma risada suave e baixa, como se a resposta de Jason fosse uma piada particular. Ele se inclinou para frente, seus olhos ardendo com uma intensidade maliciosa.
-Você realmente acredita que é tão diferente de mim, Jason? Eu vejo isso nos seus olhos... essa raiva... essa dor, já fui como você - disse o loiro, seu tom ainda baixo, como se estivesse contando um segredo - a única diferença entre nós é que eu abracei os meus demônios, enquanto você ainda tenta lutar contra os seus, mas você vai perder todos aprendem.
Jason engoliu em seco, tentando ignorar a sensação de pânico que ameaçava dominá-lo. Ele sabia que o Coringa estava tentando jogar com sua mente, tentando provocá-lo a reagir de alguma forma.
-Chega! Não estamos aqui para ouvir sua filosofia barata, Coringa - interrompeu o tenente claramente incomodado com as palavras do louco - estamos aqui para encontrar respostas, não para alimentar seus jogos mentais.
O Coringa não tirou os olhos de Jason, ignorando completamente a presença de Chuck. Sua voz se tornou um sussurro afiado, dirigido diretamente ao garoto.
-Deixe-me te contar um segredo, Jason - continuou o loiro, fazendo uma pausa para passar a língua no canto da boca - às vezes, as pessoas mais próximas de você são as que mais te traem, você veio para Gotham procurar respostas, certo? Talvez as respostas não estejam aqui, mas em quem você menos espera.
Jason sentiu o coração acelerar. Ele sabia que o Coringa estava tentando plantar dúvidas em sua mente, mas algo na forma como ele disse isso fez um calafrio percorrer sua espinha. Será que ele sabia algo que Jason não sabia?
-Jason, escuta - começou Taylor tentando assumir o controle - a única maneira de sair dessa situação é cooperar, por favor, nos diga o que você sabe, quem está te ajudando? Quem te trouxe para Gotham?
Jason respirou fundo, lutando para manter a calma. Ele sabia que a única coisa que tinha agora era sua determinação de não se dobrar, de não deixar que eles o quebrassem, não importa o que acontecesse. O adolescente disse com um leve tremor na voz, mas tentando soar firme:
-Eu vim para Gotham sozinho, ninguém me trouxe aqui, eu só quero encontrar minha mãe.
O Coringa soltou uma risada curta e fria no silêncio que se instalou, balançando a cabeça como se estivesse ouvindo uma piada, antes de dizer com humor:
-Você ainda está jogando esse jogo, garoto? Nós dois sabemos que ninguém vem a Gotham sozinho, sempre há alguém puxando as cordas, alguém manipulando as peças, e no seu caso, eu diria que a teia é muito mais emaranhada do que você imagina.
-E o que você sabe sobre isso? - falou Jason sem conseguir se conter - por que você está tão interessado na minha história?
O Coringa se levantou lentamente, seu sorriso se alargando. Ele se aproximou de Jason, inclinando-se perto o suficiente para que apenas ele pudesse ouvir.
-Não estou interessado Jason - falou o louco com um suspiro conspiratório, antes de fazer uma pausa para umedecer os lábios - mas a sua história pode ser o início de algo muito maior, algo que nem você consegue entender ainda, e eu adoro assistir o caos florescer.
Com isso, o Coringa se afastou, ainda sorrindo, antes de se virar para Chuck e Taylor com uma expressão despreocupada dizendo:
-Bem, parece que nossa sessão de terapia acabou por hoje, não se preocupem, temos todo o tempo do mundo, eu, pelo menos, estou me divertindo.
Ele saiu da sala com um passo leve, como se nada o perturbasse. A porta se fechou atrás dele com um clique metálico, deixando Jason sozinho com Chuck e Taylor.
A sala de interrogatório parecia ainda mais pequena e sufocante agora, as paredes fechando-se sobre Jason como se estivessem vivas. Ele sabia que precisava sair dali, que precisava encontrar sua mãe e descobrir a verdade antes que fosse tarde demais.
Mas, enquanto ele olhava para a porta fechada, ele não podia deixar de sentir que o Coringa estava certo sobre uma coisa, ele estava preso em um jogo muito maior do que ele poderia imaginar. E, de alguma forma, ele teria que descobrir como jogar.
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O dia na promotoria se arrastou de forma descomunal. Bruce agradeceu mentalmente a uma entidade superior quando deu seu horário de saída. Já fazia mais de uma semana que ele estava nesse emprego. No entanto, ainda estavam na terça-feira.
O Wayne rapidamente chegou no apartamento, no entanto, algo chamou sua atenção. Quando ele foi colocar a chave na fechadura, ela parecia um pouco folgada, como se a porta tivesse sido arrombada e depois fechada. Bruce fez uma nota mental em relação a isso.
Bruce entrou no apartamento com a expressão serena de quem está acostumado a manter as aparências. Mas por dentro, seu coração batia um pouco mais rápido, e sua mente calculava rapidamente todas as possibilidades. Ele sentiu o frio da suspeita se espalhar por sua espinha quando a chave girou sem a resistência usual. Ele sabia que alguma coisa estava errada.
-Jay, você está em casa? - a voz do moreno era casual, mas havia algo por baixo, uma tensão.
Não houve resposta por parte do Coringa. Bruce fechou a porta atrás de si, ouvindo o clique suave da tranca, e seus olhos percorreram o ambiente com atenção. Tudo parecia estar no lugar, mas havia uma sensação incômoda de que algo estava fora do comum. A intuição de Bruce, aguçada por anos de experiência, estava em alerta.
Ao passar pela sala de estar, ele notou que o ar parecia diferente, como se uma presença recente ainda estivesse pairando. Ele fez um esforço consciente para desacelerar sua respiração, tentando ouvir qualquer som fora do normal. Havia apenas o silêncio do apartamento, um silêncio que parecia mais pesado do que o habitual.
-Jay, se você estiver brincando comigo, não é engraçado - entoou o moreno.
O ex-bilionário entrou na cozinha, acendendo a luz. Os armários estavam fechados como sempre e não havia sinais óbvios de que alguém havia estado ali. Mas quando seus olhos caíram no chão, ele notou uma leve marca de sujeira que não deveria estar ali. Uma pegada sutil, muito sutil.
Bruce fechou os olhos por um momento, forçando sua mente a se acalmar e a raciocinar, podia ser deles, não precisa ser de outra pessoa. O morno tinha que descobrir se o Coringa estava em casa ou se algo mais estava acontecendo. Bruce se dirigiu rapidamente ao corredor, decidindo verificar o quarto deles.
Enquanto caminhava pelo corredor, ele olhou para as fotos na parede, tentando se lembrar se estavam todas na mesma posição de antes. Seus dedos tocavam a parede, como se procurando por um detalhe imperceptível. Algo o fez parar, e ele se virou para a porta trancada. Algo estava diferente ali. A porta, que antes estava sempre imaculadamente fechada, agora parecia um pouco desalinhada, como se alguém tivesse tentado forçá-la. A fechadura parecia um pouco mais solta do que ele lembrava.
-Merda - sussurrou Bruce entre os dentes, definitivamente alguém tinha entrado em sua casa. Bruce marchou em direção ao quarto abrindo devagar, mantendo a outra mão preparada para se defender, se necessário.
Quando ele entrou no quarto, encontrou Jay sentado na cama, com um livro aberto nas mãos. O palhaço levantou os olhos, surpreso.
-Brucie, o que foi? - disse o louco - parece que viu um fantasma.
Bruce relaxou um pouco, mas apenas externamente. Ele fechou a porta atrás de si e se aproximou, mantendo um sorriso calmo.
-Talvez tenha visto - disse o moreno se sentando na cama - senti algo estranho quando entrei, como se a fechadura estivesse um pouco solta.
O ex-terrorista franziu a testa e fechou o livro, colocando-o de lado. Ele parecia ponderar as palavras de Bruce.
-Você acha que alguém esteve aqui? - a voz do loiro assumiu um tom levemente tenso.
-Sim, acho que sim - falou o moreno com um misto de preocupação e frustração - e não acho que foi por acaso.
O Coringa ficou em silêncio por um momento, então seus olhos brilharam com uma intensidade que Bruce conhecia muito bem. Era o brilho de uma mente afiada, uma mente que não recuava diante de um desafio. O ex-terrorista sentiu um sorriso sombrio se formando em seus lábios.
-No que você está pensando, querido ? - entoou o palhaço passando a língua pelo lábio inferior.
-Eu acho que foi Matthew - disse o moreno simplesmente.
-Andy ? - entoou o palhaço arqueando uma sobrancelha - sempre pensei que ele tinha mais cérebro do que coragem, se ele realmente entrou aqui, então talvez ele esteja procurando por problemas.
Bruce começou a andar pelo quarto, checando as janelas e certificando-se de que tudo estava seguro. Ele sabia que Jay podia se defender, mas a ideia de Andy estar por perto, potencialmente planejando algo, o deixava inquieto.
O ex-terrorista inclinou a cabeça de um jeito divertido antes de entoar com um tom divertido:
-Você me parece muito preocupado.
-Eu tenho motivos para me preocupar - disse o moreno em um tom tenso - Andy não é uma ameaça comum, e você sabe disso tão bem quanto eu, talvez mais.
O ex-terrorista apenas observava Bruce, o sorriso brincando em seus lábios. Era como se ele estivesse saboreando a tensão que emanava de Bruce, quase se alimentando dela.
-Oh, Brucie, sempre o protetor... Sempre achando que pode controlar tudo e todos ao seu redor - disse o loiro se levantando da cama e se aproximando do moreno, ficando bem perto - você deveria saber melhor, eu não sou uma donzela em perigo, e Andy? Bem, ele é só mais um idiota sem senso de autopreservação.
Bruce franziu o cenho, irritado com a leveza com que Jay tratava a situação.
-Você não entende... Se ele realmente estava aqui, se ele realmente forçou a fechadura, isso significa que ele está mais perto do que gostaríamos - rosnou o moreno.
O palhaço revirou os olhos, claramente achando o comportamento de Bruce um exagero. Seu sorriso desdenhoso não vacilou quando ele recuou alguns passos dizendo:
-Oh, por favor, Brucie, você realmente acha que ele é uma ameaça real ?
-Não é só isso, Jay - insistiu Bruce asperamente, ele estava com raiva - Andy é maluco, ele não vai parar de perseguir você.
O Coringa parou, seu sorriso desaparecendo por um breve momento. Seus olhos encontraram os de Bruce, e por um instante, o ar no quarto pareceu congelar. Havia uma intensidade ali, uma compreensão silenciosa que passava entre eles.
-Você não está levando isso a sério - suspirou Bruce no silêncio - ele tem um plano, e se ele realmente invadiu nosso apartamento, é porque ele está pronto para o próximo passo.
-E você está fazendo exatamente o que ele quer, Brucie, ficando paranóico - continuou o louco antes de fazer uma pausa, passando a língua no lábio inferior - Andy sempre foi um manipulador, ele quer que você se sinta encurralado, quer que você cometa erros.
-Não estou disposto a subestimá-lo - murmurou o moreno, suas palavras um pouco mais calmas, mas ainda tensas - não depois do que ele fez, não posso arriscar isso.
O ex-terrorista suspirou, dando um passo à frente e colocando os braços ao redor do pescoço de Bruce. Seus olhos estavam mais suaves agora, olhando para o ex-bilionário cansado e irritado.
-Eu sei que você quer me proteger, Brucie - suspirou o louco - mas eu sei me defender sozinho, Andy é um idiota se acha que vai me assuatar.
Bruce fechou os olhos, sentindo o calor e a proximidade do Coringa, e por um momento ele permitiu que essa conexão, esse breve instante de paz, acalmasse seu coração acelerado. Ele sabia que precisava manter a cabeça fria e a estratégia afiada. A presença de Jay, mesmo que reconfortante, não deveria fazê-lo esquecer a gravidade da situação.
-Eu confio em você para se defender, Jay - começou Bruce com um tom neutro - mas se há algo que Andy pode fazer, ele vai tentar, e você melhor que eu que ele adora brincar com a mente das pessoas.
O Coringa inclinou a cabeça, um sorriso de satisfação aparecendo em seus lábios. Ele parecia apreciar a preocupação de Bruce, mesmo que estivesse zombando dela.
-Brucie querido, você sempre é tão sério, Andy já é uma novidade velha, ele não tem o mesmo impacto que costumava ter, se ele tentou entrar aqui, é porque ele está desesperado, e quando alguém está desesperado, eles cometem erros.
E esses erros podem ser perigosos - continuou o moreno - se ele está tão desesperado, pode ser que ele esteja se preparando para algo grande.
O Coringa riu baixo, uma risada que parecia misturar diversão e uma leve frustração.
-Ele é um pé no saco, estou cansado de ter que lidar com ele - disse o loiro, seu tom vazava frustração, embora ele tentasse esconder - ele não quer me matar, se quisesse teria feito, eu não sei o que ele quer depois de tudo.
-E é exatamente isso que me preocupa, Andy nunca faz nada sem um motivo, sem uma razão para mexer com as pessoas ao seu redor - disse o moreno em um tom tenso - ele gosta do jogo, da manipulação, de fazer com que seus alvos duvidem de si mesmos e dos outros, e ele conhece você Jay, ele sabe como você pensa, sabe como você reage.
O ex-terrorista suspirou, passando a mão pelos cabelos e inclinando a cabeça para o lado. Por um momento, ele parecia cansado, como se a constante vigilância e o jogo mental estivessem começando a pesar em seus ombros.
-Você acha que eu não sei disso, Brucie? Eu sei que ele está tentando me enlouquecer - falou o palhaço lambendo o canto dos lábios com uma expressão maníaca -ele acha que pode me quebrar porque sabe algumas coisas delicadas sobre mim, porque já viu meus pontos fracos, mas ele não entende... não realmente
O ex-bilionário observou o rosto do ex-terrorista, tentando ler as emoções que dançavam ali. O Coringa sempre foi um enigma, uma combinação de imprevisibilidade e astúcia, e mesmo agora, Bruce não tinha certeza do que o loiro estava pensando.
-E o que ele não entende? - perguntou o moreno curioso.
O louco sorriu, um sorriso que misturava amargura e desafio, antes de dizer:
-Ele não entende que eu já estive no inferno e voltei, mais vezes do que consigo contar, ele não entende que meu maior trunfo é que eu não tenho nada a perder porque eu nunca tive nada, o que ele fez comigo não foi nada em comparação ao que eu já tive que aturar para sobreviver.
Bruce ficou em silêncio absorvendo as palavras do outro homem em silêncio antes de suspirar se afastando:
-Vou olhar por aí, algumas peças ainda não parecem se encaixar e eu quero checar o apartamento, não mexe em nada.
-Não tenho medo dele, Brucie você está exagerando - disse o louco com uma pontada de irritação.
-Mas eu tenho.
Notes:
Obrigada a quem leu até aqui, estão vivos ?
Chapter 10: The Gotham We Have (Parte 10)
Notes:
Obrigado a todo mundo que ainda segue acompanhando, mesmo com os últimos problemas para postar. Mas eu prometo gente, vou tentar manter isso semanal. Não vou desistir !
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
No dia seguinte Bruce ainda estava prestes a explodir, ele estava irritado e com dor de cabeça. A recente invasão de Andy ao seu apartamento tinha acendido uma chama de frustração e raiva que ele não conseguia apagar, principalmente depois de encontrar câmeras e escutas pelo apartamento.
Mesmo depois de sua discussão com Jay, o sentimento de impotência e necessidade de proteger sua família persistia. Ele decidiu ir a delegacia, confrontar Chuck na esperança de encontrar algum apoio, ou pelo menos uma maneira de lidar com a ameaça crescente que Andy representava em suas vidas. Bruce não achou que o ex-psiquiatra voltaria a perturbar suas vidas assim. Mas Andy estava lá, nas sombras, só espreitando.
Ao chegar à delegacia, Bruce atravessou-a com passos pesados e determinados, ignorando os olhares curiosos dos oficiais. Seu destino era claro: o escritório de Chuck. Sem bater, ele abriu a porta com força, entrando com uma presença que emanava tensão e urgência. O tenente que estava em sua mesa, concentrado em alguns papéis, levantou os olhos ao ouvir a porta se abrir, e uma expressão de irritação imediata tomou conta de seu rosto ao ver o ex-bilionário.
-O que você está fazendo aqui, Wayne? - Chuck perguntou, sua voz fria e cheia de desdém. A presença do moreno em sua sala raramente significava algo bom.
-Matthew- respondeu Bruce sem rodeios, o tom de voz carregado de tensão - ele invadiu meu apartamento
Chuck franziu o cenho, visivelmente cético antes de suspirar:
-Invadiu seu apartamento? E como você sabe disso, Wayne?
Bruce avançou até a mesa, batendo as mãos na madeira com força suficiente para fazer alguns papéis voarem. Ele estava farto das pessoas não entenderem a ameaça que Andy representava a tudo que ele construiu.
-Porque eu sei! Eu conheço esse tipo de jogo, eu posso sentir quando algo está fora do lugar na minha própria casa.
Chuck recostou-se na cadeira, cruzando os braços com uma expressão de ceticismo. O tenente estava cansado dessa história, Matthew ficou fora do radar desde que saiu de Blackgate, porque voltar a importunar de repente meses depois ?
-Bruce, você sabe que eu respeito sua intuição, mas precisamos de provas concretas antes de fazer qualquer acusação, não podemos nos basear em palpites ou instintos.
-Ele estava seguindo o Coringa - disse Bruce tentando se acalmar - eu fiz um boletim de ocorrência aqui, mas agora ele entrou na minha casa.
A paciência do ex-bilionário estava se esgotando rapidamente. Ele balançou a cabeça, frustrado com a relutância de Chuck.
-Sabe o que eu acho, Bruce? Acho que você está exagerando tudo isso porque está excessivamente protetor - disse o tenente depois de um momento tenso de silêncio - você está deixando suas emoções pessoais com o Coringa interferirem no seu julgamento.
Bruce respirou fundo, controlando a vontade de explodir. Ele sabia que Chuck estava tentando provocá-lo, mas a acusação cutucava fundo.
-Talvez você só não consiga ver que está muito perto da situação - disse chuck frente ao silêncio do outro homem - eu entendo que você quer proteger o Coringa, por algum motivo que me escapa, mas não acho que isso seja o mais importante aqui, precisamos focar no que realmente importa.
A frustração de Bruce chegou ao ápice, e ele bateu na mesa novamente, fazendo alguns papéis caírem. O moreno sentiu o sangue ferver com a insinuação de que ele estava errado em suas preocupações, especialmente porque Chuck parecia não querer considerar a seriedade da ameaça.
-Você acha que isso não importa?
-Eu não posso esquecer o que aconteceu com Annie, você sabe disso - suspirou Chuck - talvez eu ache que, de alguma forma, Matthew está fazendo justiça, mesmo que você não goste.
-Você acha que isso não importa ?! - explodiu o moreno.
-Você sempre foi bom em proteger quem você se importa, Bruce - chuck disse, a voz mais baixa, mas carregada de significado - mas talvez seja hora de perceber que você não pode salvar todos, talvez você precise aceitar que nem todos são vítimas aqui.
Bruce apertou os punhos, tentando controlar o impulso de responder de forma mais agressiva. Ele sabia que Chuck estava certo sobre uma coisa: ele estava perto demais da situação. Mas isso não significava que ele estava errado sobre Andy.
-Eu vou continuar essa investigação, com ou sem sua ajuda - disse Bruce, a voz firme e decidida - eu não vou deixar esse desgraçado chegar perto da minha família de novo.
Chuck balançou a cabeça, claramente frustrado.
-Ah, sua família - ele enfatizou as palavras com sarcasmo - vamos falar sobre famílias então, lembra de Annie? E a família dela ? Lembra o que o seu querido sociopata de estimação fez com ela? Annie era da minha equipe, ela era uma boa pessoa, e agora está morta, e você espera que eu me importe com o fato de que Matthew pode estar atrás do Coringa?
A menção de Annie fez Bruce respirar fundo, seu controle vacilando por um momento. Ele sabia que o nome dela ainda era uma ferida aberta para Chuck e para todos que a conheciam. Mas ele também sabia que precisava manter o foco.
-Eu não espero que você se importe com o Coringa - Bruce respondeu com frieza.
-Apenas se certifique de que não está protegendo o homem errado, Wayne - disse o tenente - Andy…Matthew também é uma vítima aqui, você fala de justiça, mas você se casou com o homem que matou a mulher dele, minha colega e amiga, como você consegue olhar no espelho ? Como dorme a noite fingindo que está tudo bem?
Bruce fechou os olhos por um momento, tentando acalmar a tempestade de emoções que se agitava dentro dele. Quando ele abriu os olhos novamente, sua voz estava mais calma, mas carregada de dor.
-Eu não finjo que está tudo bem, Chuck - entoou o moreno com um tom neutro, mas duro - eu sei o que Jay fez, e eu também sei o que Andy fez com ele, o que eles fizeram um ao outro, eu não posso mudar o passado, mas posso proteger meu presente e meu futuro, e eu não vou deixar Andy tirar isso de mim.
O tenente o olhou por um longo momento, ele não sabia o que tinha acontecido entre o ex-terrorista e o ex-psiquiatra, era algo velado, algo silencioso entre o Bruce e Jim. A tensão na sala era quase palpável. Então, ele se virou, pegando um arquivo da mesa e jogando-o na frente de Bruce.
-Eu nunca soube o que aconteceu entre eles, você quer minha ajuda, Wayne? - o tenente disse, sua voz cheia de desgosto entregando um arquivo para o moreno - aqui está, o Contador de Histórias está de volta, não tínhamos pistas dele há mais de um ano, mas agora temos um rastro, e sabe o que mais? Temos motivos para achar que Talia está nisso.
Bruce franziu a testa ao ouvir o nome do Contador de Histórias e de Talia. Isso era inesperado e perigoso.
-Talia? - Bruce perguntou, pegando o arquivo que foi oferecido - o que ela tem a ver com isso?
Chuck deu de ombros, a frustração evidente em sua expressão.
-Não sabemos ainda.
O silêncio se instalou pesado por um momento. Havia muita tensão.
-Encontramos o DNA dela em uma das cenas do crime recentes - Chuck continuou com um suspiro, seus olhos observando cada reação de Bruce - parece que sua antiga paixão está de volta ao jogo.
-Isso foi há muito tempo, Chuck - Bruce respondeu, a voz tensa - as coisas são diferentes agora, o que houve entre mim e Talia é coisa do passado.
Chuck olhou para Bruce com um olhar penetrante.
-O passado sempre tem uma maneira de voltar para assombrar o presente - Chuck provocou - e se Talia está envolvida, não importa quanto tempo tenha passado, seu passado pode ter voltado para complicar sua vida novamente.
Bruce respirou fundo, tentando não se deixar levar pelas provocações. O moreno respirou fundo, tentando não se deixar levar pelas provocações. Ele sabia que Chuck estava provocando as feridas antigas, mas precisava manter o foco no presente e na ameaça que Andy representava.
-O que importa agora é que temos uma nova pista - Bruce disse, tentando recuperar a calma - Se Talia está envolvida, precisamos descobrir o que está acontecendo e como isso se conecta com o Contador de Histórias.
Chuck arqueou uma sobrancelha, ainda cético, o ex-bilionário iria voltar às investigações ? Bruce olhou fixamente para Chuck, seu olhar carregado de frustração.
-Se Talia está de volta, isso significa que algo maior está em movimento, você está certo - o moreno continuou, o tom mais firme agora - o passado pode estar voltando para nos assombrar, mas isso não vai impedir que eu faça o que é necessário para proteger minha família e a cidade.
Chuck olhou para Bruce com uma expressão misturada de cansaço e resignação. A tensão entre os dois era palpável, e o desgosto de Chuck ainda era evidente.
-Então, o que vai fazer agora? - o tenente perguntou, cruzando os braços - vou te dar o benefício da dúvida, deixar você seguir em frente e ajudar com a investigação, como Jim faria, mas, não espere que eu me deixe levar por suas emoções, porque se Talia está envolvida, será necessário um plano bem mais sólido.
Bruce balançou a cabeça, os músculos tensos em sua mandíbula. Ele não queria ter que lidar com isso agora, o ex-bilionário estava com muita coisa na cabeça. Ele não entendia porque Talia voltou de repente, não fazia sentido. E ainda tinha Andy rondando sob suas cabeças. Ainda eram nove da manhã, ele precisava falar com o ex-psiquiatra primeiro.
-Você sabe onde Matthew está morando agora ? Você deve ter a ficha dele, o que ele tem feito, sei que ele está em liberdade provisória e que vocês tem o endereço atual dele.
O tenente suspirou, sabendo que o Wayne não ia desistir.
-E o que você pretende com isso ? - perguntou o tenente um com tom cauteloso.
-Vou ter uma conversa.
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O ex-terrorista estava em sua mesa olhando para a tela do computador com um misto de raiva e ansiedade. Bruce tinha encontrado uma série de escutas e câmeras no apartamento, e o ex-bilionário tinha feito uma cena sobre isso. O louco tentou parecer calmo e descontraído, mas isso não ajudou o moreno a relaxar. Bruce estava uma pilha de nervos.
Bruce sempre teve esse lado, esse lado que nunca vai deixar de ser um protetor, uma pessoa que acha que precisa cuidar de tudo e de todos, que precisa resolver todos os problemas. O palhaço sempre admirou isso no moreno, sua capacidade tão humana de se importar, o ex-terrorista nunca conseguiu sentir isso.
O Coringa pensava que talvez isso fosse uma das consequências diretas de nunca ter tido nada significativo em sua vida, e essa vontade quase obsessiva de cuidar de tudo e todos, de resolver cada problema, uma marca registrada de Bruce, era um contraste gritante com a natureza caótica e indiferente que o Coringa costumava ter em relação ao mundo. O ex-terrorista sabia que nunca teve essa capacidade de se importar genuinamente, de se apegar às coisas de uma maneira que o fizesse querer protegê-las. Exceto, talvez, por Jack… mas esses pensamentos eram perigosos, complexos demais para ele querer explorá-los.
O palhaço não sabia como se sentir sobre isso, sobre tudo, Andy era problema dele, não de Bruce. Uma parte dele sabe que o ex-bilionário jamais o deixaria lutar sozinho, mas outra não poderia deixar de achar estranho, o Coringa estava acostumado a lutar suas batalhas sozinho, ele levantava o peso que precisava, e aguentava o quanto podia. Era sempre assim. Ele não estava acostumado com isso.
Enquanto olhava fixamente para a tela do computador, o palhaço tentava manter a calma, mas era difícil. Sua mente estava cheia de pensamentos caóticos, cada um mais sombrio que o outro. Ele sabia que Bruce estava planejando algo, o ex-terrorista o conhecia bem o suficiente para saber que ele não ia deixar isso passar.
O louco não podia negar para si mesmo, ver o ex-psiquiatra depois de meses o abalou momentaneamente, ele não gostava nem um pouco de Andy. Ele entende a raiva de Bruce, mas algo dentro dele não gosta disso, dessa maneira como Bruce vem agindo sobre algumas coisas, ele tem andado instável. Mais irritado do que antes.
O ex-terrorista sabe que por um lado é o estresse, não só pelo que aconteceu com as empresas no ano passado, o julgamento e os últimos dois meses torturantes, não, mas tudo que aconteceu no ano passado. Eles não falaram muito sobre o tempo de ambos cativos, o louco notou que o moreno tinha dificuldades para falar sobre isso. Eles foram torturados por quase duas semanas, e embora não tenha sido nem de longe sua primeira tortura, era a primeira de Bruce. E eles nunca falaram de como isso poderia ter afetado a personalidade do moreno.
Agora, ao observar Bruce se mover em direção a uma linha mais tênue, o Coringa percebia uma mudança. Havia uma flexibilidade moral que antes não existia, o código rígido que o ex-vigilante seguia começava a mostrar sinais de desgaste, adaptando-se às exigências de uma realidade que Bruce não poderia controlar totalmente. Foi assim quando, no ano passado, o palhaço matou o agente Martin, e o moreno, mesmo que irritado, o encobriu, escondeu o corpo. E mais recentemente, na padaria, quando o Coringa matou os dois assaltantes.
Havia algo retorcido e quebrado no seu morcego, uma parte dele não conseguia aceitar totalmente a maneira como o moreno estava lidando com certas situações,outra achava isso muito interessante. Bruce não era mais o mesmo homem que seguia um código moral inquebrável. Agora, ele parecia disposto a tomar medidas que antes teriam sido impensáveis, tudo para proteger coisas que ele não sabia que precisava até tê-las. O Coringa não achava que o moreno fosse capaz de assassinato, claro que não, Bruce não era assim, mas ele já não era mais o mesmo, e isso era um lembrete de que, por mais que tentassem, ninguém podia ser totalmente inflexível diante das crueldades do mundo.
O loiro foi retirado de seus pensamentos quando viu Bruce sair da sala de Chuck, ele não parecia bem, um pouco alterado. Abalado, como se algo estivesse errado.
-Uau, parece que você parece estar prestes a explodir, Brucie - comentou o palhaço passando a língua no lábio inferior despreocupadamente com um sorriso zombeteiro, embora seus olhos revelassem uma preocupação genuína.
-Andy não vai parar - Bruce respondeu, a voz mais grave do que pretendia. Era apenas uma constatação, eles já tinham tido essa conversa antes.
O Coringa observou-o por um momento antes de falar:
-Ele nunca foi do tipo que desiste facilmente, mas agora está... bem, digamos que ele encontrou uma nova forma de aplicar os novos ensinamentos do seu terapeuta, ele foi de estuprador, para torturador e agora é um stalker, há uma evolução no quadro, temos que dar um prêmio para o cara que está tratando ele.
Bruce lançou um olhar gelado para o Coringa, claramente irritado com o sarcasmo. O palhaço, no entanto, manteve um sorriso desafiador, suas palavras carregadas de um humor sombrio que só ele poderia entender.
-E você acha isso engraçado? - Bruce rosnou, sua paciência se esgotando rapidamente.
-Não estou dizendo que é engraçado, Brucie - o Coringa respondeu, com um brilho de malícia nos olhos, passando a língua no canto dos lábios - apenas estou observando o espetáculo, Andy é um caso triste, realmente, ele pode se achar a última bolacha do pacote, mas no fundo é só um desajustado tentando parecer importante.
-O que você faria se estivesse no meu lugar? - rosnou o moreno, um tom baixo e medido.
O Coringa sorriu frio, os olhos cintilando com algo entre loucura e lucidez, mania pura e ardente.
-Eu faria o que sempre faço, Brucie - ele deu de ombros com uma leveza que não condizia com a gravidade da situação, embora seu sorriso fosse calculista e seu olhar gelado como aço - esse cara está procurando por isso.
-Eu não vou matá-lo - disse Bruce em um tom definitivo - essa não é uma linha que posso cruzar, não importa o quanto ele mereça.
-Eu sei querido, eu sei, você não é como eu Brucie, e acho que é isso que me faz... te respeitar, de certa forma - disse o palhaço com um sorriso mais brando, quase carinhoso - porque, por mais que tentem quebrar você, você ainda resiste, é quase fofo, sabe ?
Bruce olhou para o Coringa, um misto de frustração e afeto em seus olhos. Ele sabia que a situação era complicada e que sua relação com o Coringa era um labirinto de emoções e conflitos.
-Esse comentário não me tranquiliza - disse Bruce por fim.
-Você sempre foi tão sério, amor - murmurou o louco, seu tom carregado de um misto de carinho e zombaria, entes que ele fizesse uma pausa, passando a língua no lábio inferior - mas eu gosto assim, torna as coisas mais... interessantes.
-Eu preciso me concentrar em resolver isso - Bruce murmurou, tentando afastar os pensamentos que o assombravam. Ele estava ciente de que Andy era uma ameaça real e presente, mas também sabia que a entrada de Talia e o retorno do Contador de Histórias complicavam ainda mais a situação. O ex-bilionário estava frustrado, era muita coisa acontecendo.
-Cuidado para não fritar seus miolos - disse o Coringa em um tom humorado - eu ainda preciso de você inteiro, você sabe disso.
Embora as palavras do ex-terrorista fossem proferidas em um tom de zombaria, havia um resquício de vulnerabilidade velada por baixo. Coringa não estava tão calmo quanto tentava parecer externamente.
Bruce lançou um olhar penetrante para o ex-terrorista, notando a fraqueza não revelada por trás da fachada do palhaço. Havia algo de quase terno na maneira como o Coringa se preocupava, mesmo que envolto em sarcasmo. Bruce sabia que o Coringa, apesar de sua natureza caótica e destrutiva, ainda tinha suas próprias complexidades e inseguranças, do seu próprio jeito.
-Eu realmente não sei como isso vai acabar - Bruce admitiu, sua voz carregada de um peso inesperado. - e tenho medo de que, no processo, possa acabar perdendo o controle sobre o que sou.
O palhaço sabia que Bruce não estava falando somente sobre Andy, haviam outras coisas mexendo com a mente do ex-bilionário. O ex-terrorista se aproximou lentamente, colocando as mãos nos ombros do moreno com um sorriso quase conspiratório, antes de se inclinar e sussurrar no pé de sua orelha:
-Tem algo mais mexendo com essa sua cabeça de morcego, não é ?
-Talia - suspirou Bruce - parece que está relacionado com o Contador de Histórias.
O louco se afastou alguns centímetros para olhar para a expressão do ex-playboy com um sorriso desagradável e frio antes de dizer:
-Sua antiga paixão ?
-Com ciúmes ? - brincou Bruce arqueando as sobrancelhas.
O Coringa riu, uma risada curta. Não, ele não tinha ciúmes de Talia.
-Ciúmes ? Por favor - o palhaço revirou os olhos antes de passar a língua no lábio inferior com um tom de zombaria - vocês tiveram um caso de quanto tempo ? Três semanas ? Um mês ? Ela que deveria ter ciúmes de mim.
O ex-vigilante queria rir disso, mas estava preocupado. Era muita coisa acontecendo em um ritmo constante, era como voltar para o ano passado, para as frustrações, perseguições, desilusões…torturas. Isso ainda estava no fundo de seu sistema.
-Não é só sobre Talia - Bruce continuou, sua voz mais baixa e carregada de um peso pessoal - é sobre tudo o que estamos passando, às vezes, sinto que estou me perdendo no meio disso tudo, da culpa, da raiva, da dor… tudo isso está começando a me consumir.
O Coringa deixou seus dedos escorregarem para o pescoço de Bruce, oferecendo um toque inesperadamente gentil. Seus olhos encontraram os de Bruce com um olhar que, por um breve momento, parecia compreensivo.
-Eu não sou o melhor em consolo, Brucie - ele disse, a voz um pouco mais suave - eu nunca fui bom nisso, mas você tem a mim, por mais bagunçado que eu seja.
Bruce sentiu um peso sair de seus ombros, mesmo que temporariamente. O toque gentil do Coringa, a compreensão inesperada em seus olhos, trouxe uma breve sensação de alívio para a tempestade interna que o consumia.
-Eu sei - suspirou o moreno.
O Coringa sorriu com um brilho multifacetado nos olhos, que misturava malícia com uma pincelada de algo que poderia ser chamado de carinho. O louco sabia que Bruce estava lutando com seus próprios demônios e, embora não fosse o tipo de consolo tradicional, o ex-terrorista estava lá de uma forma própria e peculiar. O palhaço, percebendo o turbilhão mental de Bruce, decidiu mudar um pouco o tom da conversa, tentando trazer um pouco de leveza ao ambiente.
-Você sabe, Brucie - ele disse, com um sorriso enigmático, antes de lamber o canto dos lábios com um toque de mania - se a vida estivesse um pouco mais divertida, talvez não estivéssemos lidando com todas essas merdas, mas eu gosto da forma como você lida com o caos, é quase... poético.
Bruce lançou um olhar curioso para o Coringa, um misto de frustração e curiosidade. Apesar do sarcasmo, havia algo genuíno na forma como o Coringa falava.
-Poético… - Bruce repetiu - espero que as coisas se tornem mais chatas em breve, menos poéticas, só quero um pouco de paz.
-Não seja chato Brucie - o Coringa riu, seu tom carinhoso e irônico - a vida é uma grande peça de teatro, e você está no meio dela, interpretando o papel do herói torcido, lutando contra vilões e fantasmas do passado, é quase como se estivéssemos em uma peça trágica, só que com mais explosões e menos diálogos solenes e grandes monólogos.
Bruce sorriu sem querer, achando uma diversão estranha no comentário um tanto perturbador. Ele sabia que o Coringa, apesar de sua natureza caótica, tinha uma maneira única de ver o mundo, e às vezes, isso ajudava a aliviar um pouco do peso que ele carregava.
-Bem, se a vida é uma peça de teatro, espero que possamos garantir um final que não seja tão desastroso - Bruce disse, tentando manter o tom leve, embora sua mente ainda estivesse cheia de preocupações.
-Vou te contar um spoiler, quer ouvir ? - perguntou o louco com um tom zombeteiro.
Bruce não sabia se queria.
-Depende do spoiler - murmurou o moreno resignado.
O loiro inclinou-se para frente, os olhos brilhando com uma mistura de malícia e entusiasmo.
-Ah, o spoiler é o melhor de todos - o palhaço disse com um sorriso enigmático e encharcado de mania contida - no final, não importa o quanto você tente, a peça sempre acaba em uma bagunça, no caos não existem vencedores, só sobreviventes, e talvez, no final, o caos seja o que mantenha tudo junto, e não a ordem que você tanto tenta impor.
Bruce riu baixo, o som quase um resmungo, era engraçado como o Coringa via o mundo, Bruce não entendia. Ele não podia entender, mas ele tentava.
-Você sempre tem uma maneira de olhar para o caos e encontrar algum tipo de sentido nele.
-O caos é a única constante, Brucie - o Coringa respondeu com um brilho de loucura nos olhos, passando a língua pelo lábio inferior despreocupadamente - é a única certeza absoluta, a ordem é apenas uma ilusão temporária, e enquanto você tenta manter o nosso mundo a dois nos trilhos, eu estou aqui para lembrá-lo que, no fundo, todos nós estamos apenas tentando sobreviver nessa mesma bagunça.
Bruce ficou em silêncio por um momento, era sempre perturbador ouvir o loiro filosofar, mas havia algo nisso que Bruce achava cativante, em todo esse papo de maluco.
-Você é tão estranho - observou o moreno um uma pontada de carinho.
O palhaço deu um sorriso torto, sua expressão suavizando em um misto de afeto e provocação.
O ex-bilionário não conseguiu conter o sorriso também, apesar da situação tensa. O Coringa, mesmo com sua maneira peculiar de lidar com as coisas, tinha uma forma de tirar o peso das situações mais complicadas. Ele sabia que o palhaço tinha uma maneira muito própria de mostrar que se importava, e isso, de alguma forma, era reconfortante. Era como estar em casa, e Bruce amava isso.
-Mas você é o meu estranho - completou Bruce aproximando seus lábios dos do louco.
-Você sempre sabe como fazer uma garota se sentir especial - disse o palhaço arqueando a sobrancelha com um tom de brincadeira.
-Você nem precisa das minhas palavras para se sentir especial - brincou Bruce - você sabe que gira o meu mundo inteiro de pernas para o ar com um sorriso.
O Coringa sorriu, um daqueles sorrisos raros e genuínos, não de escárnio, não de zombaria. Era um daqueles sorrisos que Bruce amava ver nele. O palhaço encostou a testa na do ex-bilionário antes de dizer:
-Você precisa parar de falar essas coisas.
-Falo quantas for preciso se isso significa que você vai sorrir assim pra mim - disse o moreno.
Bruce gostava desse lado mais suave do Coringa, que ocasionalmente escapava. O ex-bilionário olhou para ele, sabendo que, por mais que o Coringa gostasse de brincar com as emoções dos outros, ele tendia a baixar suas defesas e espinhos diante dos momentos realmente complicados do moreno. O passado de ambos estava cheio de escolhas e caminhos que moldaram quem eram agora, e nem sempre para melhor.
O ex-vigilante observou o loiro com um olhar pensativo, a vulnerabilidade no fundo dos olhos do ex-terrorista, revelando um lado que poucos, ou talvez ninguém além dele, conseguia enxergar. Essa faceta mais humana do Coringa, sempre à beira de se quebrar, de colapsar, mas se mantendo.
O palhaço, notando o olhar pensativo do outro homem, deslizou os dedos pelo maxilar de Bruce, seus olhos seguindo o contorno do rosto que conhecia tão bem agora, um rosto familiar. Ele reconhecia a força por trás dessa fachada endurecida, mas também sabia que até mesmo os pilares mais sólidos podiam ruir sob a pressão constante. E Bruce, apesar de tudo, continuava firme, sustentando o peso do mundo nas costas como sempre fazia. Sempre o herói.
-Eu sei que você não vai parar, não importa o quão ferrado as coisas fiquem - disse o loiro de repente, fazendo uma pausa para umedecer os lábios - mas eu tô aqui, às vezes, a gente precisa dar um passo pra trás, assistir a bagunça se desenrolar, e simplesmente… respirar no meio dela.
Bruce olhou para ele, os olhos cansados, mas com um brilho de gratidão. Ele sabia que o Coringa não era do tipo que oferecia conselhos ou conforto tradicionais, mas, de alguma forma, essas palavras tinham um peso diferente vindo dele. Talvez fosse o reconhecimento tácito de que, mesmo nas profundezas da insanidade, o palhaço ainda encontrava uma forma de se importar, de querer mantê-lo de pé.
-Não posso simplesmente deixar tudo desmoronar - Bruce murmurou, sua voz firme, mas com um toque de exaustão - tem muita coisa acontecendo agora, e eu não sei como lidar com tudo, estou cansado.
-Eu sei - o Coringa suspirou, seu sorriso era suave - você não vai soltar esse osso, e é por isso que eu tô aqui, pra te lembrar que, enquanto você estiver segurando a cidade, tentando mantê-la em pé, eu vou estar segurando você, te mantendo em pé.
Aqueles momentos de intimidade, onde o sarcasmo dava lugar a uma honestidade crua, eram raros, mas preciosos. O Coringa sabia que, em algum lugar do coração de Bruce, ele encontrava conforto em saber que, apesar de tudo que os cercava, havia uma constante: eles tinham um ao outro.
-Obrigado - disse o moreno, deixando que a tensão diminuísse um pouco. Ele não costumava desabafar, contar o que lhe afligia, talvez Alfred seja o que mais ouviu seus momentos de angústia. Ele não era bom nisso, em se abrir, mas estranhamente, era fácil com o Coringa.
Bruce se inclinou levemente, plantando um selinho casto nos lábios do outro homem antes de se afastar. Não era como se as pessoas na delegacia nunca tivessem visto uma demonstração de carinho entre eles. Não era isso nem de longe, Bruce na verdade poderia ser visto como uma pessoa carinhosa.
-Pare de pensar tanto - o Coringa murmurou, aproximando-se novamente, seus lábios roçando de leve os do moreno - posso ouvir sua cabeça trabalhando.
Bruce fechou os olhos por um momento, absorvendo o toque e as palavras. Ele sabia que a vida nunca seria simples para ele, nem para o Coringa. Mas, talvez, se pudesse encontrar um equilíbrio, entre a necessidade de proteger e a vontade de simplesmente existir, e no meio disso, finalmente, encontrar um pouco de paz.
-Um dia de cada vez - Bruce sussurrou, mais para si mesmo do que para o Coringa, como se estivesse tentando convencer-se de que essa era a única forma de sobreviver à tempestade que se aproximava.
-Isso amor - disse o louco baixinho, lambendo o canto dos lábios com uma expressão de zombaria - a única coisa que eu quero você pensando agora é o que vamos fazer no jantar hoje de noite.
Bruce balançou a cabeça com um suspiro, seu coração dividido entre a lógica racional que sempre o guiou e o caos irresistível que o Coringa representava. Mas, no fundo, ele sabia que precisava disso, precisava dele.
—--------
Dick estava sentado na frente de seu computador escutando e assistindo as fitas que conseguiu do apartamento do ex-bilionário. Bruce rapidamente tinha notado que alguma coisa estava diferente. Foi quase um trabalho perdido, ele não tinha nada concreto para ligar o Wayne com o morcego, nenhuma confissão, nada. O aspirante a jornalista investigativo estava frustrado.
No entanto, apesar de sua tentativa de bisbilhotar a vida do ex-bilionário não ter saído da maneira que ele queria, Dick pensa que de alguma forma, conseguiu alguma coisa. Na conversa um pouco acalorada do moreno com o ex-terrorista, na qual Bruce parecia irritado, procurando freneticamente pelas escutas e câmeras. O aspirante a jornalista investigativo fez uma nota mental acerca de um nome: Andy, ou ainda como às vezes era referido, Matthew.
Dick se perguntava quem era esse homem, e qual a relação com o Wayne e o Coringa. Porque Bruce parecia tão irritado com a possibilidade desse tal de Andy estar espreitando sua casa ? Tudo que o Grayson conseguiu averiguar é que os dois já tiveram problemas com esse cara, apesar de não ter ficado explícito o porquê ou como, mas parecia envolver o Coringa, Bruce parecia preocupado em proteger o ex- terrorista.
Richard recostou-se na cadeira, cruzando os braços enquanto observava a tela. Seu instinto dizia que Andy, ou ainda, Matthew, era uma peça importante no quebra-cabeça para provar a identidade do Batman. Bruce raramente perdia o controle dessa forma, e o tom de sua voz na gravação deixava claro que esse nome despertava algo profundo nele. Mas por quê? E qual a verdadeira conexão entre esse homem, Bruce e o Coringa?
Ele sabia que precisava descobrir mais. Desde que Bruce deixara de ser o Batman, havia algo de errado no ar. Era como se uma sombra pairasse sobre Gotham. E agora, com esse novo nome surgindo em suas investigações, Dick estava ainda mais convencido de que havia mais nessa história.
Ele começou a vasculhar seus arquivos, cruzando informações, buscando qualquer menção a um tal Andy ou Matthew nas notícias dos últimos tempos. Nada muito conclusivo, apenas pequenos fragmentos de histórias que pareciam não se relacionar de imediato, existiam várias pessoas com esses nomes. Contudo, uma matéria antiga chamou sua atenção: um caso de terrorismo, no ano passado, envolvendo um homem chamado Matthew Cole... e o Coringa.
Dick olhou para isso por algum momento, não fazia sentido. Porque o Wayne estaria tão preocupado com um terrorista como Andy ? Tinha que haver outra coisa, outro motivo. Dick não conseguia tirar os olhos da matéria antiga, tentando conectar os pontos que não faziam sentido.
Um terrorista chamado Matthew Cole, ligado ao Coringa, era certamente intrigante. Mas o que Bruce Wayne, um ex-bilionário supostamente afastado de qualquer atividade heroica, tinha a ver com isso? A preocupação de Bruce parecia mais pessoal do que apenas uma ameaça comum. Algo sobre esse Andy, ou Matthew, tocava em um ponto sensível.
-Por que isso te incomoda tanto? - Dick murmurou para si mesmo, enquanto rolava mais uma vez pela reportagem - porque você parecia tão nervoso ?
Havia algo que Dick não estava olhando.
-Isso ainda não faz sentido - murmurou para si mesmo novamente. O que ele sabia até agora não era suficiente para formular uma acusação ou sequer uma teoria consistente. Ele precisava de mais provas, mais contextos, mas estava no caminho certo. Se conseguisse descobrir quem realmente era Andy, talvez tivesse a chave para provar que Bruce Wayne e o Batman eram a mesma pessoa.
Com determinação renovada, Dick começou a procurar qualquer referência a Matthew Cole. Ele sabia que havia algo mais a ser descoberto, algo que conectava Bruce Wayne, o Coringa, e esse misterioso Andy de uma maneira que ele ainda não conseguia entender.
Dick continuava a cavar, vasculhando os cantos mais obscuros da internet e das notícias do último ano. Ele estava prestes a desistir quando algo finalmente chamou sua atenção. Um nome que aparecia repetidamente em alguns registros antigos envolvendo o sequestro de alguns policiais: Annie Cole. O sobrenome dela não passaria despercebido,"Cole", o mesmo que o de Matthew.
Dick clicou em um dos arquivos mais antigos. Era um relatório policial detalhando a morte de Annie, ela era uma polícial de Gotham, cometeu suicídio depois de uma operação fracassada, onde ficou com o rosto desfigurado, a mais de dois anos atrás. O autor do crime? Ninguém menos que o Coringa. A brutalidade da morte de outros agentes que estavam juntos com Annie, e as sequelas nos sobreviventes, fez com que o aspirante a jornalista investigativo sentisse um arrepio subir pela espinha. Era mais uma tragédia no longo rastro de destruição deixado pelo palhaço.
Se Annie morreu por conta do trauma ocasionado pelo Coringa, o que ligava Matthew a Annie ? Qual era o envolvimento deles ? Um novo impulso de curiosidade o fez querer cavar mais fundo na história dela. Ele precisava de novas informações, um jeito de conseguir alguém na polícia. O aspirante a jornalista investigativo sabe que está indo muito longe, olhando muito de perto. Ele estava perdido em pensamentos quando seu celular tocou. Ele rapidamente viu no visor o nome de Stella.
Grayson ia enfrentar uma namorada zangada. Dick suspirou, ele sabia que estava adiando a conversa com ela por tempo demais, mas sua mente estava mergulhada nesse caso. Ele atendeu o telefone, preparando-se para o inevitável.
-Oi, Stella…
-Você está brincando, não é? - a voz dela soava exasperada - onde você estava hoje ? Você não foi para a orientação, liguei para Roy e nem ele sabia onde você estava? Te liguei 3 vezes, Dick, o que está acontecendo com você? Estou preocupada, fiquei sabendo por Roy das escutas e microfones, não briguei com ele, eu o obriguei a falar, eu sei que isso é importante para você mais, mas…está indo longe demais.
Ele esfregou o rosto com a mão livre, sentindo a tensão acumulada em seus ombros. Ele a amava, mas essa investigação o consumia. Cada nova descoberta o empurrava para mais perto da verdade, e isso o fazia ignorar tudo o que estava fora daquele mundo.
-Desculpa, Stella. Eu... eu estou perto de algo grande, entende?Eu não podia deixar isso de lado agora.
-Você nem apareceu no prédio do Gotham Times - disse Stella com um tom preocupado, era difícil Dick não ir trabalhar. Ela suspirou do outro lado da linha notando o silêncio por parte do namorado.
O aspirante a jornalista investigativo continuou em silêncio por um momento, as palavras dela pesando sobre ele.
-Stella, eu prometo que vou compensar isso, só preciso resolver isso, está bem? - Dick suspirou.
-Estou cansada de promessas.
Notes:
Obrigado a quem chegou tão longe. Comentem para me deixar feliz :) Até a próxima quinta.
Chapter 11: The Gotham We Have (Parte 11)
Notes:
Novamente no dia certo kkkkk Um marco. Esse capítulo é comprido e serve como transição para o que vai se desenrolar nos próximos. Desculpem se está meio chato, o começo das minhas histórias geralmente são.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce estava sentado sentado em um canto do quarto, já era passado de uma hora da manhã. Ao seu redor, papéis e documentos estavam espalhados, uma confusão de mapas, relatórios e fotografias. Já fazia mais de uma semana que ele estava procurando pistas sobre o paradeiro atual de Talia.
As últimas notícias eram de mais de um ano atrás, quando ela estava viajando, tentando se conectar com o povo árabe e com antigos conhecidos de Rá´s. Os olhos do moreno estavam cansados, mas sua mente não conseguia descansar. Ele passou a mão pelo cabelo, frustrado, enquanto olhava para o mapa da região onde ela foi vista pela última vez.
Desde que deixou Gotham, anos atrás, Talia se tornara ainda mais difícil de rastrear. Seus passos eram cuidadosos, como sempre, mas algo estava diferente. As últimas notícias dadas por Chuck deixavam o moreno intrigado, porque Talia voltaria ? Qual seria a sua ligação com o Contador de Histórias ? Alguma coisa não batia. Não ajudava que o tenente Chuck não tivesse novas informações.
-Por que você simplesmente desapareceu? - ele murmurou para si mesmo, olhando para uma foto de Talia.
Bruce apertou a foto entre os dedos, seus olhos presos na imagem da mulher, como se ela pudesse responder à sua pergunta. O silêncio do quarto parecia pesado, refletindo sua frustração crescente. Ele estava acostumado a decifrar enigmas, a rastrear pessoas e descobrir seus planos…ou uma vez esteve.
Ele sabia que algo estava errado. A conexão dela com o Contador de Histórias o incomodava profundamente. Bruce não conseguia entender o que a levaria à voltar, especialmente agora, depois de tanto tempo.
-Por que agora? - ele sussurrou novamente, mais para si mesmo do que para a imagem dela. Seu olhar caiu sobre um dos relatórios que indicava a última transação financeira de Talia, algumas grandes somas de dinheiro movimentadas, sem explicação clara, em nome de uma empresa de fachada, com um presidente com laranja. Algo estava sendo preparado, algo grande. No entanto, o ex-bilionário não sabia o que.
Seria possível que ela estivesse tentando reativar a Liga das Sombras de alguma forma? Mas por quê? E por que agora ? O que isso tinha a ver com o contador de histórias ? Bruce olhou novamente para a foto de Talia, os olhos dela pareciam desafiá-lo, como se soubesse que ele estaria ali, tentando encontrá-la.
A atenção do Wayne foi desviada da foto pela entrada do Coringa no recinto, que tinha Bud em seus pés, seguindo-o de perto.
-Você parece frustrado - entoou o louco em um tom despreocupado, antes de passar a língua pelo canto dos lábios - vai continuar aí fritando seu cérebro até quando ?
Bruce não se moveu, mas seus olhos escuros se ergueram para o Coringa, irritação brilhando por trás do cansaço. Ele não queria uma briga, mas ele sabia que o palhaço estava entediado com Bruce se enterrando em papelada por uma semana.
-O que você quer? - o moreno perguntou em voz baixa, voltando a olhar para os papéis à sua frente, tentando ignorar a presença desconcertante do palhaço no quarto.
O ex-terrorista deu uma risada curta, aproximando-se um pouco mais, seus passos leves e despreocupados, como se estivesse andando em um parque.Bud continuava seguindo-o, farejando o ambiente e ocasionalmente espiando Bruce.
-Só estou curioso, Brucie - o Coringa falou, inclinando-se contra a parede, cruzando os braços, seus olhos brilhavam em diversão - E, francamente, é entediante te ver assim, afundado em papéis velhos, tentando rastrear sua ex-namorada maluca, ela realmente te deixou tão mal assim? Que eu lembre ela que te deu um pé na bunda.
Bruce apertou a mandíbula, tentando manter o foco, mas as palavras do Coringa pareciam perfurar sua concentração. Ele odiava como o palhaço sempre sabia exatamente como irritá-lo.
-Isso não tem nada a ver com você - respondeu Bruce, sua voz um pouco mais firme - E você sabe disso.
O Coringa sorriu, um brilho divertido nos olhos. Ele parecia querer entender o que estava acontecendo com o moreno.
-Ah, claro, claro - disse ele passando a língua no lábio inferior, fingindo desinteresse, mas claramente observando tudo - Mas eu não posso evitar, sabe? Ficar intrigado com o que está acontecendo na sua cabecinha de morcego.
Bruce ignorou a provocação e virou-se, recolhendo alguns documentos que estavam espalhados. Mas ele sabia que o Coringa não desistiria facilmente.
-Talia está envolvida com algo perigoso, algo que pode colocar muitas vidas em risco - disse Bruce, finalmente admitindo o que estava o consumindo - E eu preciso descobrir o que é antes que seja tarde demais.
-Perigoso? - ele repetiu, balançando a cabeça com um sorriso divertido se aproximando mais, inclinando-se sobre a mesa e pegando um dos papéis com desinteresse - honestamente, o que te faz pensar que ela quer ser "salva" ? Talvez... ela tenha escolhido o lado dela, querido, e…talvez não seja o seu.
Bruce o encarou com uma intensidade fria, mas havia um fragmento de dúvida em seus olhos. A última vez que ele e Talia haviam conversado, havia uma distância emocional entre eles, um abismo que ele não sabia como atravessar. Foi a ruptura.
Bruce ficou em silêncio, ainda refletindo sobre as palavras do Coringa, mesmo sabendo que ele gostava de jogar com sua mente. Mas, dessa vez, ele sabia que algo estava errado com Talia. E ele precisava de respostas antes que fosse tarde demais.
-Isso não é coisa para você - Bruce disse finalmente, sua voz baixa, mas firme - não vou deixar que você faça disso um jogo para brincar comigo.
O Coringa o observou por um longo momento, e seu sorriso suavizou por um momento, antes de ele dar de ombros, voltando ao seu tom provocativo usual.
-Você está certo, querido - o louco entoou despreocupado - não é o meu jogo, mas a comida está esfriando lá na cozinha.
O ex-bilionário observou o loiro por um instante, tentando decifrar as intenções por trás daquele tom despreocupado. Havia algo em seu sorriso, algo que Bruce conhecia bem. Mesmo quando o palhaço parecia distante, sua mente estava sempre ativa, sempre jogando, testando os limites. No entanto, desta vez, parecia o mesmo olhar que ele lançava para Bruce quando esse estava tentando provar a inocência de seu pai, meses atrás.
-Não vou demorar - respondeu Bruce, com um suspiro contido, enquanto empilhava os papéis, tentando colocar sua mente em ordem. Ele sabia que não adiantava insistir agora. O cansaço pesava sobre ele, e o Coringa estava certo sobre uma coisa: ele precisava de uma pausa, por mais que odiasse admitir.
O ex-terrorista não saiu imediatamente. Ele continuou ali, de pé, observando Bruce, um brilho malicioso nos olhos. Lentamente, ele se inclinou, puxando Bruce pela mão com um toque inesperadamente gentil.
-Vamos, Você vai ficar aí até apodrecer se eu deixar - disse o palhaço, puxando-o com mais firmeza, sua voz mantendo o tom leve, mas com um toque de carinho que poucas pessoas jamais ouviriam dele.
O moreno se deixou ser puxado, ainda que sua mente estivesse dividida entre a preocupação com Talia e o peso da presença do Coringa. Havia algo tranquilizador na forma como o palhaço o distraía do caos ao seu redor, mesmo que fosse apenas por alguns momentos.
-Você não vai desistir, vai? - Bruce perguntou, um leve sorriso escapando de seus lábios enquanto se levantava, mesmo que envolto em cansaço.
-Não, qual seria a graça então ? - entoou o louco com um sorriso de diversão contida.
Bruce sabia que o Coringa estava certo em sua própria maneira distorcida. O palhaço tinha um jeito de forçá-lo a pausar, a escapar, mesmo que temporariamente, da montanha de problemas que carregava. Mas a sombra de Talia, seus segredos e sua ligação com o Contador de Histórias, ainda pairava pesadamente sobre sua mente.
Quando os dois entraram na cozinha, com Bud em seus encalços, Bruce se surpreendeu ao ver a mesa posta macarrão instantâneo com queijo. O Coringa podia ser muitas coisas, mas a maneira como ele, às vezes, tentava humanizar as interações entre eles era, no mínimo, intrigante.
-É algo comestível, mas pode estar meio duro - comentou o louco com uma pontada de deboche na voz.
Bruce olhou para o prato de macarrão instantâneo com um misto de ceticismo e cansaço. Ele sabia que não deveria esperar algo elaborado vindo do Coringa, mas o contraste entre o caos em sua mente e aquela tentativa quase... normal de convivência o desarmava de uma maneira inesperada. Ele se aproximou da mesa lentamente, sentando-se, enquanto o palhaço o observava com aquele sorriso provocativo de sempre.
-Você realmente se supera - comentou Bruce, levantando a sobrancelha ao espetar o garfo na massa, que parecia mais resistente do que deveria.
-Não xingue a massa, ela vai ficar triste e te dar dor de barriga - zombou o louco antes de lamber o canto dos lábios.
Bruce soltou um suspiro resignado, mas um canto de sua boca se ergueu levemente. Era difícil não ceder à peculiar maneira que o Coringa tinha de tirar sarro de momentos sérios e transformar o absurdo em normalidade. Por mais caótico que fosse o palhaço, Bruce sabia que essas pequenas distrações eram uma forma disfarçada de se conectar com ele, de tirá-lo das profundezas da sua própria mente, ainda que por um breve momento
O moreno levou um garfo de macarrão à boca, mastigando lentamente, estava duro, mas a fome e o cansaço venceram qualquer resistência. Ele mastigou em silêncio, seus pensamentos ainda vagando pela confusão de pistas sobre Talia.
O Coringa observava-o, ainda sorrindo, mas seus olhos acompanhavam cada movimento de Bruce com um brilho atento. Ele sabia que o homem à sua frente estava consumido por algo maior, algo que o perturbava profundamente. O que o fascinava era a obsessão de Bruce, a maneira como ele nunca conseguia desligar totalmente.
-Você deveria dormir mais, Brucie - o Coringa comentou de repente, quebrando o silêncio, sua voz surpreendentemente suave. Ele o observava com um olhar que parecia misturar preocupação e zombaria.
-Eu não posso no momento - disse o moreno simplesmente, continuando a comer o macarrão com textura duvidosa.
-E então? - o palhaço começou, sua voz mais suave agora, sem o tom usual de deboche - Vai me contar o que diabos está acontecendo ou prefere continuar se torturando em silêncio? Você sabe que vou descobrir de qualquer jeito.
Bruce terminou de mastigar, colocando o garfo sobre o prato e passando a mão pelo rosto, exausto. Ele sabia que não poderia ignorar o Coringa por muito mais tempo. De alguma forma, a presença dele sempre o forçava a encarar suas preocupações mais profundas.
-Talia está envolvida com o Contador de Histórias - começou Bruce, sua voz baixa, como se estivesse processando as palavras enquanto as dizia - Mas eu ainda não sei como, ela está movimentando dinheiro, escondida em algum lugar que eu não consigo rastrear, e isso... isso está me deixando maluco, não sei como conectar tudo isso.
O Coringa inclinou a cabeça para o lado, seus olhos estreitando enquanto processava as palavras de Bruce. Ele puxou uma cadeira, sentando-se de frente para o moreno com uma expressão mais séria do que o habitual. Contador de Histórias significava problemas.
-Hmmm... o Contador de Histórias, hein? - murmurou o louco com um tom mais sério - ele é uma peça curiosa, não é? Sempre por trás das cortinas, manipulando os outros como marionetes, mas nunca mostrando o rosto.
Bruce olhou para ele, surpreso pelo súbito tom de seriedade. O Coringa raramente levava qualquer coisa a sério, mas algo no jeito como ele falou sobre o Contador de Histórias sugeria que ele entendia mais do que Bruce gostaria de admitir. Depois do que ambos passaram por conta desse cara, a tortura e todo o resto…era um fantasma voltando para assombra-los.
O palhaço notou a tensão no rosto do ex-bilionário. Não era apenas Tália, não, eram todas as coisas que ele e o ex-bilionário passaram juntos, naquelas quase duas semanas de cativeiro. Aquilo foi um divisor de águas para o moreno, e o louco sabe disso. A tortura molda as pessoas, racha as bordas de sua mente. Fragmenta sua personalidade de uma forma que, ao final dela, mesmo que você junte os pedaços novamente, você não será o mesmo.
-Eu sei que você ainda está perturbado com o que aconteceu no cativeiro - disse o louco de repente, não ignorando o elefante na sala - talvez você devesse considerar criar uma porta na sua cabeça também, acredite em mim querido, a vida fica mais fácil depois.
Quando o Coringa sugeriu a construção de uma porta mental, Bruce ficou em silêncio por um momento. Ele sabia exatamente o que o palhaço estava tentando fazer, jogar com suas emoções e, ao mesmo tempo, oferecer um conselho reconfortante. Bruce tinha uma compreensão íntima da metáfora do Coringa, especialmente porque sabia de onde ela vinha.
Jack, o amor perdido do Coringa na guerra do Iraque, o traidor que ensinou ao ex-terrorista esse conceito destrutivo de construir uma porta mental para proteger sua sanidade em meio ao caos. Bruce lembrava-se bem da maneira como o palhaço sempre voltava a esse tema, a porta, quando estava particularmente perturbado.
Bruce encarou o Coringa, a expressão em seu rosto revelando uma mistura de cansaço e compreensão.
-Você realmente acha que uma porta mental é a solução para tudo? - Bruce perguntou, sua voz carregada de um tom profundo e sério - eu sei o que você esconde atrás da porta, Jay.
O Coringa bufou, falsamente divertido tentando manter a postura de deboche. Mas havia uma placa de pare estampada em suas microexpressões. Eram pequenas nuances, que o moreno ainda estava aprendendo a entender.
O macarrão instantâneo agora frio de repente se tornou muito interessante enquanto o ambiente ficava tenso. Ambos ficaram em silêncio por um momento.
-Não posso enfrentar o que está atrás da minha - disse o Coringa de repente, cortando o silêncio, passando a língua no lábio inferior nervosamente - algumas coisas não merecem ver a luz do dia.
-Não é só sobre o que está atrás da sua porta - começou Bruce, a voz calma e contemplativa. - é sobre como você lida com isso, eu tenho certeza de que há muito mais do que você revela Jay, ainda estou tentando te conhecer.
O Coringa fechou os olhos por um momento, as memórias dolorosas e traumáticas se agitando em sua mente. Ele sabia que Bruce estava correto, que havia uma profundidade de sofrimento que ele tentava enterrar. O louco sabia que Bruce estava tocando em um território sensível, algo que ele preferia manter oculto. Ele ficou em silêncio por um momento, mexendo com o macarrão antes de entoar em um tom misto:
-Todos precisamos arrumar uma forma de continuar vivendo, você sabe mais do que eu gostaria que você soubesse.
-Você sabe, Brucie - começou o Coringa, sua voz um pouco mais suave enquanto ele lambia o canto dos lábios - há coisas que você não entende, não por falta de vontade, mas porque alguns buracos são profundos demais, é como olhar para o abismo esperando ele te olhar de volta, e se eu fizer isso, tudo desmorona.
-Não precisa olhar para o abismo sozinho - sugeriu Bruce com uma suavidade sincera - eu sei que não é fácil, e eu não tenho todas as respostas, mas se você quiser, eu sempre estou aqui para conversar, nem que seja para discutir sobre a consistência horrorosa do seu macarrão.
O ex-terrorista riu suavemente, o som carregado de uma leveza inesperada. Ele pegou um garfo e começou a mexer no macarrão, seu olhar perdido em pensamentos. O riso parecia uma forma de aliviar a tensão, uma maneira de lidar com o peso das conversas e das emoções que estavam sendo trazidas à tona.
-Eu ainda estou tentando entender você - disse Bruce com uma sinceridade palpável - mesmo que seja um desafio constante, mesmo que eu nunca te entenda totalmente, eu acho que é um desafio que vale a pena.
O Coringa olhou para Bruce, seus olhos revelando um traço de vulnerabilidade. Era um olhar raro, uma faísca de humanidade que não costumava mostrar. Ele respirou fundo, sua expressão suavizando um pouco. Ele se recostou na cadeira, seu olhar distante, quase como se estivesse refletindo sobre a profundidade das palavras de Bruce.
O silêncio entre eles agora era mais contemplativo do que pesado. O macarrão instantâneo, apesar de seu estado deplorável e frio, parecia quase um símbolo da conversa.
-Eu não prometo que um dia vou ser mais fácil de lidar - disse o Coringa, finalmente quebrando o silêncio com um tom de sinceridade misturado com seu humor característico - mas se você está disposto a continuar lidando com a minha bagunça, talvez eu possa começar a aceitar um pouco mais da sua ajuda, mesmo que isso signifique que você vai precisar aguentar mais do meu macarrão de vez em quando.
Bruce riu suavemente, um som reconfortante que parecia aliviar a tensão que ainda pairava no ar.
-Eu aceito o desafio - disse Bruce, com um sorriso que refletia um misto de carinho e determinação - e mas eu faço o próximo macarrão.
O Coringa ergueu uma sobrancelha, um sorriso de satisfação se formando em seus lábios. Esses momentos com Bruce eram tudo que ele sempre quis, antes mesmo de saber que queria. O ex-bilionário o fazia baixar as defesas, fazia o palhaço sentir algo que ainda não sabia explicar totalmente.
-Você tem um acordo, Brucie - disse o palhaço passando a língua no canto dos lábios, sua voz carregada de um tom de brincadeira misturado com algo mais genuíno - agora, suas habilidades culinárias são tão deploráveis quanto as minhas.
Bruce riu, era verdade. O moreno era tão amador na cozinha quanto o ex-terrorista. No entanto, eles não estavam reclamando.
-Esses são os meus momentos favoritos, sabia ? - disse Bruce simplesmente, seu tom carregado de carinho.
-Achei que fosse o sexo - zombou o Coringa com seu tom de escárnio, sabendo que sexo com certeza não era o motivo pelo qual estavam juntos, embora ele fosse muito agradável.
O moreno arqueou as sobrancelhas por um momento antes de soltar uma risada contida.
-Você é um idiota - entrou o moreno revirando os olhos - mas obrigado, eu precisava disso, para aliviar a cabeça da tensão, com a investigação de Talia e do Contador de Histórias…eu estava explodindo.
-Sempre, querido - zombou o Coringa começando a juntar os pratos na mesa - não gosto de te ver frustrado quando não é por minha causa.
Bruce o abraçou por trás, beijando sua nuca por um momento e balançando levemente. O moreno suspirou levemente dizendo :
-Vou voltar para a investigação, já está tarde, tenta dormir, deixa a louça aí que depois eu lavo.
-Você também precisa dormir Brucie - disse o loiro, seu tom era carregado de uma ponta de frustração - você não dorme direito a uma semana.
-Eu estou bem - retrucou o moreno descansando a testa contra a cabeça do palhaço - amanhã você precisa conversar com sua psiquiatra, então acho melhor você dormir nem que seja um pouco.
O Coringa soltou um suspiro, entre frustrado e resignado. Ele sabia que discutir com Bruce sobre descanso era inútil. O moreno era teimoso quando se tratava desse tipo de coisa, especialmente em momentos como aquele, quando a investigação parecia consumir cada parte de sua mente.
-Você sabe, querido - começou o palhaço, virando-se de leve no abraço, agora de frente para Bruce, com uma expressão que misturava cansaço e afeto - a psiquiatra pode esperar, mas você... - ele fez uma pausa, passando os dedos pelo rosto do ex-bilionário - você precisa parar de tentar carregar o mundo nas costas, nem mesmo você pode fazer isso pra sempre.
Bruce sorriu de leve, um sorriso cansado, mas genuíno. Ele estava sempre exausto hoje em dia.
-Eu sei, Jay... mas é só mais um pouco. Se eu puder descobrir o que Tália e o Contador de Histórias estão planejando... - Bruce parou por um momento, seu olhar distante, perdido em pensamentos sobre a investigação, antes de voltar para o Coringa. - eu prometo que vou descansar depois disso.
O Coringa revirou os olhos dramaticamente antes de passar a língua pelo canto dos lábios despreocupadamente.
-Ah, claro, "depois disso", já ouvi essa antes - ele zombou, embora houvesse uma preocupação genuína por trás de sua provocação. - vou te fazer uma proposta, se você dormir pelo menos três horas essa noite, eu prometo que vou para a minha consulta.
Bruce arqueou uma sobrancelha, claramente cético. Antes de bufar com um misto de rara diversão:
-Você é obrigado judicialmente a comparecer.
O ex-terrorista arqueou uma sobrancelha, um sorriso malicioso se formando em seus lábios.
-Obrigado por lembrar, mas eu estou falando de algo mais... divertido - o palhaço se inclinou para Bruce, seus olhos brilhando com um humor sutil e perigoso - e, se você quer mesmo saber, eu estou curioso, ver se ela vai dar falta dos remédios, eu vou adorar vê-la confusa.
Bruce fechou os olhos por um momento, respirando profundamente. Ele sabia que essa conversa poderia continuar por horas se ele deixasse, mas o Coringa, no fundo, estava apenas preocupado. De uma maneira distorcida e única, mas estava. Ele abriu os olhos e sorriu, um sorriso cansado, mas sincero.
-Você confunde todo mundo, Jay.
O louco deu uma risada baixa, inclinando a cabeça de forma exagerada.
-Essa é a graça, mas você... - ele parou passando a língua no lábio inferior, seus olhos se suavizando por um instante - você sempre acaba voltando ao mesmo ponto, o fardo, o sacrifício, eu sempre me pergunto por quê, por que não deixar tudo desmoronar de vez? Quem sabe o que podemos reconstruir depois? A resposta nem sempre está no caos e na ordem.
Bruce sabia que o Coringa adorava esse tipo de provocação, sempre empurrando os limites de sua lógica, tentando fazê-lo questionar o motivo pelo qual ainda lutava. Mas naquele momento, não era uma discussão filosófica que ele queria. Estava cansado, exausto de tantas camadas de dor, memórias e dever. O moreno estreitou os olhos, ouvindo a mudança de tom.
-E o que sobra depois que tudo desmorona ? - perguntou o moreno em um tom misto - se nem o caos, nem o controle são a resposta, o que sobra ? E se não sobrar nada?
O Coringa deu uma risada curta, fria, como se estivesse se divertindo com a complexidade da própria vida.
-O que sobra, Brucie? - os olhos do louco brilharam com uma intensidade estranha - você e eu, só isso, a verdade é que não há resposta, não há solução mágica, e francamente, acho que a ideia de "lidar" com as coisas é uma piada, porque no final, nós apenas... sobrevivemos, um dia de cada vez, nada faz tanto sentido quanto a falta de sentido.
Bruce ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Ele não concordava inteiramente, mas havia algo de verdadeiro naquilo. Sobreviver, dia após dia, era muitas vezes a única coisa que ele conseguia fazer.
-Então - disse Bruce, com um meio sorriso, tentando aliviar a tensão - o que você sugere? Vivermos de macarrão frio e terapia até tudo acabar? Até que tudo desmorone sobre nossas cabeças ?
O Coringa deu de ombros, sua expressão relaxando novamente, voltando à sua habitual postura de desdém casual.
-Não sei, Brucie, talvez seja o bastante, ou não, talvez um dia a gente queime e veja o que sobra das nossas próprias cinzas - o palhaço riu, provocando Bruce, embora soubesse que estava empurrando um limite perigoso, falando sobre coisas que Bruce não poderia entender, mesmo se tentasse.
Eles ficaram em silêncio por um momento, antes que o loiro soltasse um riso contido, uma piada que só ele entendia e continuasse em um tom mais leve:
-Mas enquanto não queimamos, vamos dormir, temos um filho para alimentar.
Bruce bufou segurando uma risada, era engraçado como Bud, o vira-latas que o Coringa adquiriu de forma nada ortodoxa, virou uma piada interna para de filho.
-Três horas? - perguntou o moreno voltando ao assunto que realmente importava, deixando as divagações apocalípticas do palhaço de lado.
-No mínimo - insistiu o Coringa, cruzando os braços como se estivesse em uma negociação séria. - Se eu vou fazer o esforço de mexer com minha cabeça bagunçada, você também tem que cuidar da sua.
Bruce suspirou, sabendo que essa era uma batalha que ele não venceria.
-Certo, três horas.
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De manhã, na sala abafada do comissário Castro, o ambiente carregava a tensão de uma conversa que ambos os homens sabiam que não seria fácil. O comissário, um homem de estatura média, mas com uma presença imponente, estava parado perto da janela, as mãos nos bolsos do casaco, observando a rua abaixo enquanto pensava na conversa que estava prestes a ter.
Ele se virou lentamente, seus olhos cravando-se em Chuck, que estava parado perto da mesa, mais relaxado do que deveria estar para alguém na sua posição.
-Tenente, o que exatamente você e Bruce Wayne estavam discutindo na sua sala ontem mais cedo? - a voz de Castro era calma, mas carregava uma pressão subjacente que Chuck não podia ignorar.
Chuck sabia que essa pergunta viria, e já havia preparado sua resposta. Não era a verdade completa, mas o comissário não precisava saber disso. Com um leve encolher de ombros, e mantendo o tom casual, o tenente começou:
-Estávamos falando sobre Matthew Cole, o Wayne está preocupado, parece que Matthew anda rondando a vida dele e do Coringa de novo, nada demais, você sabe que não é a primeira vez que ele faz esse alarde por conta disso.
-Matthew Cole? - o comissário cruzou os braços - Bruce Wayne está preocupado com ele? Por que ele falaria sobre isso com você de todas as pessoas ?
Chuck manteve a calma. Ele sabia que Castro era astuto, que não aceitaria qualquer desculpa. Mas ele também sabia como manipular a situação.
-Eu não sei, isso é uma coisa que você só poderia perguntar para ele - entoou o tenente.
Castro o observou em silêncio, a tensão na sala quase palpável. Ele descruzou os braços e deu alguns passos em direção à mesa, os olhos ainda cravados em Chuck. O comissário tinha um jeito peculiar de examinar as pessoas, como se pudesse enxergar além das palavras, e Chuck sabia que esse era o momento em que sua mentira seria testada. O tenente respirou fundo, mantendo a compostura. Ele sabia que o comissário estava tentando pressioná-lo, tirá-lo do eixo, mas Chuck não era do tipo que se intimidava facilmente.
-Eu não acredito em coincidências, não nessa cidade - a voz do comissário soou baixa e perigosa - tem algo mais que você não está me contando? Alguma coisa sobre o Contador de Histórias ?
Chuck sustentou o olhar, mas por dentro sentia o peso crescente da desconfiança de Castro. O tenente sabia que não estava jogando limpo, mas ele não podia abrir o jogo, ele não podia contar que pediu ajuda do Wayne no caso. Castro não tinha se mostrado confiável, e Chuck não estava querendo comprometer as novas pistas. O comissário não podia saber sobre Talia.
-Eu te disse tudo o que sei, não estou escondendo nada, Wayne está preocupado, só isso - disse o tenente em um tom de seriedade - agora, se quer mais detalhes, pode falar com ele, mas eu duvido que ele vá te dizer mais do que já me disse.
Castro não estava convencido, mas também sabia que, por enquanto, não tinha provas para contrariar o tenente. Soltando um suspiro pesado, ele deu as costas a Chuck, voltando-se para a janela. Ele permaneceu em silêncio por alguns instantes, observando a movimentação da cidade pela janela. O silêncio prolongado fez com que a tensão na sala se tornasse quase insuportável. Chuck sabia que ele estava pensando, analisando cada detalhe do que havia sido dito.
-Não subestime o que eu posso descobrir, tenente - disse Castro, sem se virar - eu posso não ter provas agora, mas isso não significa que não as terei em breve.
Chuck manteve a postura calma, mas por dentro sentiu um leve tremor de preocupação. Ele sabia que Castro era um homem determinado, e qualquer erro seria suficiente para desmascarar sua mentira. Mas ele não podia vacilar agora.
-Comissário, com todo o respeito, se eu soubesse de algo mais, te diria - disse Chuck, mantendo o tom firme - Minha lealdade é ao departamento.
Castro finalmente se virou, seus olhos fixos nos de Chuck, estudando cada nuance em sua expressão. Ele caminhou lentamente de volta até sua mesa, parando bem em frente ao tenente.
-Lealdade, tenente? - ele perguntou, sua voz carregada de desconfiança - lealdade é uma palavra forte, difícil de acreditar, vindo de alguém que esconde informações.
Chuck sentiu o golpe, mas não deixou transparecer. Ele sabia que Castro estava jogando com as palavras, tentando tirá-lo do sério. Mas Chuck estava preparado para isso.
-Eu não estou escondendo nada - respondeu o tenente com firmeza - tudo o que sei, você sabe.
O rosto do comissário escureceu por um momento, endurecendo nas bordas, antes que ele entoasse:
-Espero que isso seja verdade, porque se eu descobrir que você está mentindo para mim, vou enterrar a sua carreira.
A ameaça pairou no ar como um veneno lento, se infiltrando nas rachaduras do silêncio. Chuck sentiu o peso daquelas palavras, mas manteve sua postura firme, com os olhos fixos em Castro. Sabia que estava andando em um terreno perigoso, mas não tinha escolha.
-Estamos no mesmo time, tenente - falou de repente Castro, seu tom menos carregado.
A mudança repentina no tom de Castro pegou Chuck de surpresa. O comissário havia passado de um tom ameaçador para uma abordagem mais conciliatória, embora a tensão ainda estivesse evidente. Chuck aproveitou a abertura, tentando se adaptar à nova dinâmica da conversa.
-Claro, comissário - disse o tenente - estamos todos aqui para proteger a cidade.
Castro assentiu lentamente, seus olhos avaliando Chuck mais uma vez. O tenente por sua vez, parecia estar avaliando se a mudança de atitude era genuína ou apenas uma estratégia para evitar um confronto direto.
-Bom, então vamos manter isso em mente - disse Castro, voltando-se para sua mesa - se houver algo mais, qualquer detalhe que possa surgir, você me avise imediatamente, não quero surpresas, não faça nada sem antes me consultar, estamos entendidos?
Chuck fez um gesto de concordância, aliviado por ter saído da linha de fogo, pelo menos por agora.
-Sim, senhor.
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Se alguém o dissesse a dez anos atrás que ele seria amigo de um cara como Dick Grayson, Roy teria rido da cara de quem quer que fosse. Dick e ele eram muito diferentes.
Stella tinha o encontrado no café do campus e o enchido com as preocupações acerca de Dick. Ela tinha o convencido a marcar com ele em uma lanchonete e conversar. Ele sabia que Stella sabia que Dick tendia a escutá-lo, ou pelo menos escutava no passado.
Stella estava genuinamente preocupada com o quanto Dick estava se perdendo em sua busca pelo Batman. E Roy, embora tentasse racionalizar, não podia negar que a obsessão de Dick havia cruzado uma linha. Colocar escutas no apartamento de Bruce Wayne? Isso não era só imprudente; era ilegal. Stella tinha razão em se preocupar. E agora, um espião na polícia, quando seu amigo se tornou essa pessoa ?
Mas apesar de tudo, Roy também entendia de onde essa obsessão nascia. Ele sabia que, no fundo, Dick via o Batman como uma espécie de salvador mítico, o herói que poderia ter impedido a tragédia que matou seus pais. Richard tinha passado anos se agarrando à ideia de que, se o Batman tivesse estado lá, as cordas que sustentavam seus pais, os Graysons Voadores, nunca teriam sido cortadas. A busca de Dick não era só uma questão de curiosidade jornalística, era uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pela perda.
Roy esfregou os olhos com as mãos, sentindo o peso da situação. Ele conhecia bem aquela sede de justiça. Também tinha seus próprios fantasmas, cicatrizes que o mundo não via. Mas, de alguma forma, a de Dick era mais profunda, mais dolorosa. Era como se, a cada pista que ele seguia, estivesse tentando se aproximar não apenas do Batman, mas de algo que pudesse dar sentido ao caos que foi sua vida após a morte dos pais.
Ele sabia que Dick admirava o Batman, via nele um ideal inalcançável, um símbolo de justiça inabalável. Mas a busca por sua identidade real estava arriscando a própria integridade do amigo. O jovem que outrora buscava apenas a verdade e a justiça agora estava cruzando linhas que Roy nunca imaginaria que ele cruzaria. E isso preocupava Roy profundamente. Porque Dick não poderia saber em que terreno estava pisando antes que fosse tarde demais.
Roy tamborilava os dedos na mesa de metal, impaciente. Cada minuto que passava só aumentava sua inquietação. A lanchonete, com suas luzes fluorescentes e cheiro constante de café requentado, parecia o cenário perfeito para aquele tipo de conversa: discreta, sem pretensões, um lugar onde as palavras poderiam ser ditas sem medo de que ecoassem demais.
Ele olhou para o relógio mais uma vez. Quinze minutos de atraso. Normalmente, isso seria irritante, mas com tudo o que sabia sobre o que Dick estava fazendo, cada segundo parecia uma confirmação de que seu amigo estava mais fundo nesse buraco do que Roy imaginava.
O sino da porta da lanchonete soou, e Roy olhou para cima, vendo finalmente Dick entrar. Ele parecia cansado, os ombros ligeiramente curvados, como se estivesse carregando o peso do mundo nas costas. E talvez estivesse, pelo menos no que dizia respeito a ele mesmo.
O aspirante a jornalista investigativo parou na entrada por um momento, seus olhos varrendo o ambiente antes de finalmente avistar Roy. Ele caminhou em direção à mesa com passos medidos, se sentando à frente do amigo sem dizer uma palavra.
-Quinze minutos - Roy disse, tentando aliviar o clima com um sorriso fraco - já estava começando a pensar que você tinha dado pra trás.
-Desculpe - respondeu Dick, passando a mão pelos cabelos escuros.
-Você tá bem, cara? - Roy perguntou, olhando com mais atenção para o rosto de Dick. Ele estava pálido, com olheiras profundas - isso tudo tá te consumindo de um jeito que não é normal, você precisa parar e pensar no que está fazendo antes que…
-Antes que o quê, Roy? - Grayson o interrompeu, sua voz um pouco mais afiada do que de costume - antes que eu descubra algo que não quero? Antes que eu cruze alguma linha invisível? Eu já tô bem além disso.
Roy suspirou, inclinando-se para frente na mesa, tentando não perder a paciência.
-Colocar escutas no apartamento do Bruce Wayne, Dick? - Roy manteve o tom calmo, mas havia uma firmeza em suas palavras - isso não é jornalismo investigativo, é crime.
Dick abaixou os olhos, sua mandíbula tensa, mas não disse nada de imediato. O silêncio que se seguiu foi quase insuportável, ele permaneceu em silêncio, o olhar fixo na mesa de metal. Seus dedos mexiam nervosamente no guardanapo, rasgando-o em pequenos pedaços. Ele sabia que tinha cruzado uma linha, mas não conseguia se afastar da ideia de que estava tão perto de descobrir a verdade.
-E pelo que você me contou é ainda pior - Roy continuou, sua voz firme, mas cheia de preocupação - Ele descobriu, Bruce Wayne sabe que alguém colocou as escutas no apartamento dele, mesmo que não saiba que é você, isso é arriscado, ele deve estar em alerta agora.
Dick soltou um suspiro pesado, encostando-se na cadeira, como se finalmente deixasse o peso da situação cair sobre ele.
-Eu sei - admitiu o Grayson, a voz mais baixa, quase sussurrada - eu sei que é arriscado, mas o que você quer que eu faça? Parar agora? Desistir ? Eu… eu não posso.
Roy inclinou-se para frente, seus olhos fixos nos de Dick, tentando encontrar algum traço do amigo que conhecia antes, aquele que ainda tinha seus limites bem definidos.
-Você pode e deve - Roy disse com uma firmeza surpreendente - olha, eu entendo que isso significa muito pra você, mas você não está pensando claramente, Bruce Wayne não é um cara qualquer, pode não ser mais um bilionário, mas ele ainda deve ter alguma influência, e se descobrir que foi você... isso não vai acabar bem, Dick.
-Eu sei que ele não é qualquer um - Dick retrucou, impaciente - é exatamente por isso que eu preciso continuar, se o Wayne for mesmo o Batman, então ele está mentindo pra todo mundo, inclusive pra cidade que ele tanto protegeu.
-Eu entendo cara - suspirou Roy - eu sei, mas isso já passou dos limites, e agora você quer ter alguém dentro da polícia para, não sei, descobrir quem foi Annie Cole e sua relação com esse tal de Matthew, o cara que o Wayne acha que colocou as escutas e as câmeras ? Isso vai além do trabalho de um jornalista.
-Eu sei disso - falou Dick com um tom sério - mas eu acho que encontrei uma coisa muito maior, procurei o que eu pude sobre Matthew Cole, ele pode ter algum nível de relação com Annie Cole pelo sobrenome, uma polícial que cometeu suicídio a mais de dois anos atrás, que foi afastada depois de uma operação onde foi mantida refém por dias, junto com uma equipe de políciais…bem, todos foram brutalmente torturados, alguns mortos, Annie foi uma das sobreviventes, ficou com o rosto desfigurado.
Dick fez uma pausa olhando para o rosto atento de seu amigo, Roy parecia considerar as palavras do Grayson com cuidado.
-O que é mais intrigante é quem foi o algoz, o Coringa - continuou Dick com um tom baixo - ele é culpado pela morte da policial, depois aparece envolvido junto com esse cara, Matthew, em terrorismo no ano passado, e agora Bruce Wayne acha que esse cara, que tem o mesmo sobrenome dela, de Annie, colocou escutas e câmeras na casa e está alarmado com isso ? Isso diz muita coisa, só não sei o que ainda.
-Cara, você está pisando em território perigoso - disse Roy, tentando soar calmo, mas notavelmente nervoso - se o Coringa está envolvido, as coisas podem ficar muito piores do que você imagina.
-Eu sei disso - concordou Dick - aceitei os riscos, e não posso parar, se Matthew está realmente ligado ao Coringa, e se Bruce Wayne está escondendo alguma coisa, eu vou descobrir.
-Você ouve o que está dizendo? - Roy retrucou, agora perdendo parte da paciência. - O Coringa, cara! O Coringa destrói vidas, manipula as pessoas e brinca com elas, se você continuar mexendo nisso, você não vai acabar só sendo preso, mas morto.
A tensão no ar era palpável. Roy podia sentir a exaustão mental e emocional emanando de Dick, mas isso não diminuía sua preocupação. Ele sabia que quando alguém se envolvia com o Coringa, as coisas sempre terminavam mal. Não havia exceções. E ver Dick, seu amigo, se afundando cada vez mais nisso o deixava apreensivo.
Dick soltou um riso sem humor, como se a ideia de morrer já tivesse cruzado sua mente tantas vezes que não a temia mais.
-Você acha que eu não sei disso? - disse Dick, sem olhar diretamente para Roy - eu sei exatamente no que estou me metendo, Roy, o que você não entende é que eu não tenho outra escolha, não se trata mais só do Batman ou de Bruce Wayne, tem algo maior acontecendo, e se eu não chegar ao fundo disso, quem vai?
Roy esfregou o rosto com as mãos, frustrado. Sabia que Dick era teimoso, mas isso estava indo longe demais. Havia uma linha entre coragem e imprudência, e Dick a tinha cruzado há muito tempo.
-Cara, escuta o que você tá dizendo. "Se eu não fizer, quem vai?" Você não tem que salvar o mundo - Roy se inclinou para frente, tentando alcançar seu amigo - Bruce Wayne pode ser o Batman, ou pode não ser, pode estar escondendo segredos ou não, e você ainda quer lidar com marido sociopata com histórico de terrorismo ?
Dick finalmente ergueu os olhos, e Roy pôde ver a dor misturada à determinação em seu olhar.
-Eu não posso Roy, desculpe - disse o amigo com um tom definitivo - eu só quero respostas, preciso delas, e se isso significar que eu tenho que cruzar algumas linhas... então que seja.
Roy ficou em silêncio por um momento, absorvendo o que Dick havia dito. Era difícil argumentar com alguém que estava tão consumido pela necessidade de entender, de encontrar algum sentido em meio ao caos. Mas ele também sabia que, se Dick continuasse por esse caminho, ele poderia se perder completamente.
-E quando você encontrar essas respostas? - perguntou Roy, finalmente - o que você acha que vai acontecer? Que tudo vai mágicamente fazer sentido? Que o vazio que você sente vai desaparecer?
Dick hesitou, como se aquela fosse a pergunta que ele vinha evitando se fazer.
-Eu não sei, Roy - o Grayson admitiu.
Roy sentiu um aperto no peito ao ouvir isso. Ele sabia que, no fundo, essa obsessão não era sobre o Batman. Era sobre a busca de Dick por algum tipo de fechamento, algo que o ajudasse a lidar com a tragédia de sua infância.
-Eu entendo que você quer respostas, cara, mas esse não é o jeito de conseguir elas - disse Roy, suavizando o tom - eu tô preocupado com você, Stella está preocupada, sabemos que você não está bem.
Dick desviou o olhar, mordendo o lábio inferior. O silêncio voltou a pairar entre eles, denso e desconfortável. Roy soltou um suspiro profundo, sabendo que convencer Dick a desistir dessa busca obsessiva seria uma tarefa quase impossível.
-Pelo menos, me deixa te ajudar - entoou Roy com um pequeno sorriso - vamos investigar esse tal de Matthew Cole juntos e sua relação com Annie e o Coringa juntos, se ele está envolvido, a gente vai descobrir o que ele quer, e o por que o Wayne acha que ele tá rondando, mas, por favor, para de se meter nessas coisas sozinho.
-Você e eu nos metendo em encrenca de novo ? - falou Dick em um tom divertido.
-Fazer o que…- Roy deu de ombros começando a tomar seu café. Haviam muitas coisas não ditas, mas elas podiam esperar.
Notes:
Obrigado a todos que chegaram até aqui. Eu agradeço o apoio :) Comentem para me deixar feliz.
Chapter 12: The Gotham We Have (Parte 12)
Notes:
Bem, estou a um dia atrasado, mas é porque meus capítulos estão somando agora cerca de 7 mil palavras. Meio que acabei não contando muito bem o tempo. Enfim, aproveitem !
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Na manhã seguinte Bruce acordou cansado, ele sabe que é por conta da investigação sobre o Contador de Histórias, sua ligação com Talia e a ameaça de Matthew Cole pairando sobre suas cabeças. O ex-bilionário se virou na cama com um suspiro contido para plantar um beijo casto no emaranhado de cabelos loiros escuros ao seu lado, como ele fazia todas as manhãs.
O moreno rapidamente se levantou olhando para o despertador, eram quase cinco. Sua cabeça doía. Bruce lentamente marchou para o banheiro para olhar no espelho por um momento e lavar o rosto na água gelada.
Enquanto se secava, sua mente vagava pelos últimos dias. Ele se perguntava, como sempre fazia, se estava fazendo o suficiente, se estava lidando com a situação da melhor forma. Não era mais o Batman, mas ainda carregava o peso da responsabilidade que um dia tinha sido inseparável de seu manto.
Bruce se apoiou na pia, fechando os olhos por um instante, buscando algum vestígio de clareza. Mas tudo o que encontrou foi um turbilhão de pensamentos: o Contador de Histórias, o ressurgimento de Talia, e a ameaça latente que Matthew Cole representava.
Ao abrir os olhos novamente, se forçou a focar no presente. Desviou o olhar para o quarto, onde ainda havia uma tranquilidade estranha, mas familiar agora. O Coringa ainda estava dormindo profundamente, alheio à tempestade que se desenrolava dentro de Bruce. O ex-bilionário não sabia por quanto tempo mais poderia manter essa paz, mas ele lutaria por isso. Bruce merecia depois de tantas lágrimas, sacrifícios e provações que teve que enfrentar no ano passado. O moreno não deixaria que isso fosse arrancado dele.
Mas a cada passo que dava, Bruce sabia que o equilíbrio frágil de sua nova vida poderia desmoronar. Ele havia desistido de ser o Batman, mas o mundo não parecia disposto a deixá-lo ir tão facilmente. A sombra do morcego ainda pairava sobre ele, não importava o quanto ele tentasse afastá-la.
O moreno voltou para o quarto, começando a se vestir, ele deixou a mente vagar por um momento até Talia. Eles tiveram algo que poderia ter sido descrito como um incêndio, foi rápido, foi intenso, e acabou rápido, muito diferente com sua próxima relação, Selina. Ele e Talia não terminaram em bons termos, a fidelidade do Wayne pela cidade era maior do que qualquer coisa que ele pudesse sentir pela mulher.
Talia tinha percebido isso quase imediatamente. Mesmo com todo o desejo que compartilhavam, ela viu que, no coração de Bruce, sempre havia um lugar que ela nunca poderia ocupar. Ele pertencia a Gotham de uma forma que era impossível de desvincular. Por mais que Talia o amasse, ou pelo menos, por mais que quisesse acreditar que o amava, ela não podia aceitar ser a segunda. Ela sempre foi uma mulher que buscava poder e controle.
Bruce olhou na direção do Coringa novamente, ainda dormia. Por um momento, Bruce se perguntou como ele havia chegado a esse ponto, como ele tinha acabado partilhando sua vida com alguém que, por tanto tempo, foi seu maior inimigo. O Coringa era a antítese de tudo o que o morcego acreditava, e ainda assim, havia algo entre eles que transcendia, algo que ele não podia explicar, mas que, de certa forma, preenchia o vazio que ele havia carregado por tantos anos. Não era perfeito, mas funcionava.
No fundo, ele sabia que a paz que ele tanto desejava nunca seria plena. Sempre haveria uma ameaça, um desafio, algo para lidar. Mas, por agora, enquanto se preparava para enfrentar mais um dia, ele estava determinado a proteger aquilo que havia conquistado, por mais estranho e disfuncional que fosse.
Ele caminhou lentamente até os pés da cama, olhando para a decoração nada convencional do quarto deles, seu olhar suavizando por um momento. Parte dele queria ficar, se afundar naquela cama e, por algumas horas, esquecer tudo o que o esperava do lado de fora. Mas essa não era sua natureza. Bruce Wayne sempre esteve em guerra, com o mundo, com si mesmo, e agora, com as sombras de seu passado e presente.
O ex-bilionário suspirou, um som baixo e cansado que ecoou na quietude do quarto. Ele estava acostumado à batalha constante, fosse interna ou externa. E agora, mais do que nunca, sentia o peso de cada uma delas, empilhadas uma sobre a outra. Era uma estranha dualidade que ele vivia, uma paz turbulenta, um amor incompreensível, e uma responsabilidade que ele nunca conseguia largar. Era um lembrete constante de que a vida do ex-bilionário agora era uma mistura de paradoxos.
Depois de um momento de reflexão, o moreno se dirigiu para sua mini-academia em outro quarto. Era incrível como, isso conseguia deixar sua mente mais leve. Bruce começou seu treino, movimentos metódicos e precisos, quase automáticos, como se o exercício físico pudesse exorcizar os demônios que o perseguiam.
Cada flexão, cada abdominal, parecia carregar um fragmento de suas dúvidas, suas frustrações. Ele havia aprendido ao longo dos anos que o corpo precisava tanto da disciplina quanto a mente. Mas sua mente voltava para a ameaça iminente. Matthew Cole, o Contador de Histórias, Talia... Todos representavam partes diferentes de um quebra-cabeça que Bruce ainda tentava desesperadamente montar. E, como sempre, ele se perguntava se estava vendo todas as peças ou se havia algo que lhe escapava. Gotham estava cheia de segredos, e ele não podia mais contar com as sombras para esconder os seus próprios.
O som ritmado de sua respiração enchia o ambiente, mas sua mente continuava inquieta. O que aconteceria quando todas essas forças colidissem? O treinamento durou mais do que o planejado, e o suor escorria por sua testa, pingando no chão de madeira da sala. Seu corpo estava exausto, mas sua mente continuava ativa, processando cenários, criando estratégias. Mesmo sem ser mais o Batman, Bruce nunca havia abandonado sua mania de investigador.
O Wayne respirou fundo, sua mente não estava mais leve, o cansaço físico era bem-vindo, mas não resolvia o peso emocional que o acompanhava. Ainda assim, havia um certo consolo no fato de que ele continuava se preparando, mesmo sem o capuz e a capa.
O moreno desligou as luzes e seguiu para o corredor, para a cozinha, continuar sua rotina matinal. Era tão automático depois de um ano. Enquanto o café passava e o som suave da cafeteira preenchia a cozinha, Bruce olhou pela janela, observando a cidade ainda mergulhada no silêncio da madrugada. Gotham parecia estranhamente pacífica àquela hora, mas ele sabia que essa calma era ilusória.
Ele alimentou Bud, um punhado de ração em sua tigela e começou a fritar seus ovos. Bruce gostava dessa calmaria de manhã, era quase reconfortante. Ele bateu seu shake de proteínas enquanto a cafeteira ainda passava o café do Coringa. Era calmo, mais caseiro do que ele imaginava que sua vida poderia ser.
Enquanto Bruce esperava o café ficar pronto ele rapidamente pegou duas fatias de pão para comer seus ovos mexidos. Ele ainda precisava de um banho antes de ir trabalhar, o suor, ainda estava grudado nele. O moreno tomou seu shake, escutando a cafeteira apitar lentamente. Bruce pegou no armário a caixa de cereal barata que o palhaço consumia todas as manhãs e colocou em uma tigela, antes de se virar e despejar o café em uma garrafa térmica. O Coringa não acordaria pela próxima hora.
Enquanto despejava o café na garrafa térmica, Bruce se pegou sorrindo de canto. Era um contraste bizarro com sua vida anterior, Bruce Wayne, o ex-Batman, preparando café da manhã para o Coringa. Tudo parecia fora de lugar, mas de alguma forma, fazia sentido. A rotina, mesmo que disfuncional, oferecia uma espécie de normalidade que ele nunca esperou ter.
Ele pegou a tigela de cereal e a térmica de café e marchou para o quarto, colocando sob o criado mudo com cuidado, já prevendo o sarcasmo que o Coringa soltaria ao acordar. Os comentários mordazes sobre o café, a falta de açúcar, ou qualquer outra coisa.
Depois disso, o ex-bilionário marchou para o banheiro, tomando um banho rápido e colocando seu terno. Ele tinha que ir para a promotoria, enfrentar mais um dia de papelada, sendo que sua vontade era de continuar investigando Talia. Ele saiu do quarto com um último olhar para o Coringa, ainda dormindo, como quase todas as manhãs.
Bruce estava a caminho da promotoria quando seu celular tocou e um número desconhecido apareceu no visor, o ex-bilionário franziu a testa levemente antes de atender.
-Alô ? - falou o moreno com um tom neutro.
O outro lado da linha ficou em silêncio por um momento, antes que uma voz desconhecida entoasse:
-Jigawa, Nigéria.
Bruce franziu a testa antes de dizer:
-Quem está falando ?
Quem quer que fosse, desligou na sequência. Bruce sabia o que isso significava, eram os dois códigos que sobraram da última pista do Contador de História, a mais de um ano atrás. Eram as sequências de números das palavras Nigéria e Jigawa. Com isso em mente, o moreno rapidamente mudou o curso, ele estava indo para a delegacia. Ele precisava conversar com Chuck.
—--------
O Coringa acordou mais cedo, como era costume em dias em que ia ver sua psiquiatra. O louco viu a térmica de café e o cereal doce em cima do criado mudo e não pode conter um pequeno sorriso, Bruce sempre fazia isso, o cara era um romântico sem causa. Parte dele sabia que, de uma maneira estranha, gostava disso. E talvez, só talvez, ele estivesse disposto a lutar por essa paz conturbada tanto quanto Bruce estava.
Chegava até a ser engraçado, porque o ex-bilionário sempre, estranhamente, era o mais carinhoso dos dois. Por baixo de toda aquela violência contida, o moreno era feito de açúcar. Esse pensamento divertia o ex-terrorista. Seria esse o conceito de felicidade ?
O louco rapidamente pegou a tigela de cereal e levou um punhado deles à boca, sentindo o sabor doce e artificial. Não era nem de longe o tipo de coisa que Bruce comeria, mas o moreno sempre comprava porque sabia que o Coringa adorava. Era nesses pequenos gestos que o palhaço via a verdadeira face de Bruce. Porque se o moreno não tivesse tido a infelicidade de perder seus país de forma tão trágica e em uma idade tão jovem, se a vida tivesse sido mais gentil, Bruce não teria criado essa casca fria de violência.
No entanto, talvez, essa seja a coisa que o palhaço mais ama no outro homem, Bruce tem um coração gentil. É apaixonante a forma como o moreno, mesmo com todos os problemas em sua vida, transformou sua raiva em um senso de justiça incorruptível, porque apesar da dor que o mundo insistia em infringir no moreno, Bruce nunca quebrou. Ele ainda era capaz de se importar.
O louco jogou a tigela de lado e abriu a garrafa térmica de café, observando o quarto ao seu redor. Havia algo de estranho na rotina que haviam construído. Não era normal, longe disso. Mas funcionava. Havia uma sincronia distorcida entre eles, uma dança que só os dois entendiam. Talvez fosse isso o conceito de felicidade, afinal. Não a ausência de conflito, mas sim a aceitação de que, mesmo com toda a bagunça, ambos encontraram algo que os conectava. Algo que os impedia de desistir do que construíram juntos.
O ex-terrorista tomou um gole do café, o calor descendo pela garganta enquanto seu olhar vagava pelo quarto. Ele não pôde deixar de pensar em como aquela situação toda era improvável. Eles eram um paradoxo ambulante, ele riu para si mesmo, baixinho.
O Coringa não conseguia imaginar a própria vida sem essa dinâmica. O mundo sem Bruce parecia insuportável. O loiro sempre achou que fosse o morcego, sua dinâmica com Batman que coloria seu mundo. Sim, o morcego vigilante era uma parte de Bruce, mas não era tudo sobre ele.
Por anos, o palhaço havia acreditado que era a presença do Batman, a constante batalha entre eles, que dava sentido à sua existência, mas agora, ele sabia que Bruce, o homem por trás da máscara, que tornava tudo isso tão fascinante. Havia algo no moreno que fazia o ex-terrorista sentir que podia, mesmo que de vez em quando, baixar seus espinhos.
O Coringa deixou escapar um suspiro quase imperceptível, algo que ele nunca admitiria em voz alta. Bruce o fazia sentir vulnerável, mas não da maneira que ele associava à fraqueza. Era diferente.
Ele tomou mais um gole do café, mais devagar dessa vez, absorvendo o momento. na sequência, o ex-terrorista passou a língua no canto dos lábios ainda pensativo.
-Que nojo, acho que estou realmente ficando mole - disse o louco com um tom de brincadeira - mas pelo menos é divertido.
Ele riu sozinho por um momento, antes de se levantar e ir até o banheiro. O louco se limitou em à um banho rápido antes de se vestir de forma apressada. Ele ainda tinha que caminhar até o metrô. O louco saiu do quarto tomando um último gole de café no corredor que dava acesso à sala. Ele deu um tapinha na cabeça de Bud antes de desaparecer pela porta do apartamento. Ele teria uma longa sessão de aborrecimento antes de ir para a delegacia.
O ex-terrorista caminhou lentamente até a estação de metrô. Não era muito longe, menos de 15 minutos a pé. Ele tinha a sensação de que estava sendo seguido, havia sempre esse sentimento quando estava saindo de casa, mesmo agora que ele não estava sob efeito de medicação. Ele odiava sua mania de paranóia.
O palhaço rapidamente subiu na plataforma e adentrou porta adentro quando o veículo chegou. Não seria uma viagem muito longa, 10 minutos. Ele se deixou ser absorvido pelo ambiente, apenas escutando o barulho dos trilhos, ferro com ferro. Era irônico, por mais que por fora ele estivesse silencioso, havia algo dentro dele gritando. Ele odiava manhãs assim.
Não demorou muito para que o vagão parasse, o louco desceu dele e seguiu seu caminho pela rua adentrado depois de uma quadra no consultório. Ele não gostava muito da psiquiatra, eles não conversavam muito. Ele não gostava de pessoas xeretando demais em sua cabeça.
Ele entrou e esperou na sala de espera, como todas as segundas de manhã. O louco tentou não ficar muito inquieto. Logo ele ouviu a mulher chamá-lo por seu nome de registro, registro que ele fez para casar com Bruce.
O ex-terrorista adentrou no recinto, já esperando as perguntas intermináveis. Ele não estava tomando seu remédio, mas ele não achava que a mulher notaria. Ela nunca olhava para ele de qualquer maneira.
-Então Jack, como foi a semana ? Você quer conversar sobre alguma coisa ? - perguntou a mulher com um falso tom amigável, que ela usava com todos os pacientes.
O loiro ficou em silêncio, ele não queria conversar. Não havia nada nele para ser consertado, ele odiava psiquiatras. Ele apenas lançou para ela um olhar ilegível, ele não voltaria a tomar os remédio, mesmo que eles tenham sido ordem judicial. Ele não permitiria que fizessem isso com ele, os dois meses de apatia, de depressão induzida, ele não voltaria para lá.
A psiquiatra, acostumada com o comportamento enigmático e muitas vezes evasivo do Coringa, manteve um semblante calmo e neutro. Ela sabia que enfrentaria resistência e que a comunicação direta poderia ser um desafio, especialmente com um paciente como ele. O Coringa não era uma pessoa nem um pouco aberta emocionalmente, isso dificultava seu tratamento.
Ela tinha prescrito, baseado no histórico médico de seu paciente, muitos remédios para estabilizar o humor, para diminuir seus comportamentos maníacos e pensamento acelerado. No entanto, algo parecia diferente nos olhos do ex-terrorista, era como se eles estivessem mais selvagens, mais acessos do que nos últimos dois meses. Era mais afiado. Quase como mania ácida dissolvida em suas íris.
-Meu objetivo é ajudar, Jack - disse a psiquiatra, seu tom era amigável - às vezes, o simples ato de conversar pode trazer à tona questões que talvez você não tenha considerado, se há algo que esteja pesando em sua mente, estou aqui para ouvir.
O ex-terrorista apenas ficou em silêncio, balançando a cadeira de rodinha levemente de um lado para o outro, de forma que poderia ter passado despercebido, mas não passou. Ela conhecia esse comportamento, era mania reprimida. Isso era estranho, o Coringa não devia estar tendo episódios maníacos, os remédios deveriam deixar o palhaço cansado demais para isso.
-Você não apareceu na nossa última sessão, o Wayne me disse por telefone que ocorreram alguns imprevistos - começou a psiquiatra com um tom cuidadoso - porque não começamos com isso ? Da última vez que conversamos você tinha me dito que estava vendo coisas, eu te disse que as alucinações poderiam ser um efeito colateral, elas sumiram ?
O Coringa continuou em silêncio, apenas balançando levemente a cadeira. Havia algo em seus olhos, algo que se misturava com a expressão de desinteresse e desdém.
-Os remédios estão fazendo efeito ? Talvez seja uma boa ideia aumentar a dosagem de alguns deles, você parece bastante inquieto.
-Eu não estou inquieto - falou o palhaço, quebrando seu silêncio pela primeira vez na sessão - essas porcarias me fazem muito mal, eu já te disse como isso faz com que eu me sinta, em um mundo sem cor e sem gosto.
-Você não tem tomado seus remédios, não é ? - suspirou a psiquiatra lendo nas entrelinhas.
O ex-terrorista não respondeu, mas não foi necessário, a psiquiatra entendeu. Ela ficou em silêncio por um momento antes de dizer:
-Eu sei que você não gosta deles, dos comprimidos, mas você precisa deles, e eu…eu não terei outra opção além de levar isso para a justiça se você recusar o tratamento.
O palhaço pressionou os dentes com força, sua mente estava serpenteando, a mania vazava. Ele mataria a mulher na sua frente. No entanto, ele tentou respirar fundo, isso seria uma atitude perigosa, ele seria afastado de Bruce e o loiro não queria isso. A psiquiatra olhava para o ex-terrorista como se soubesse o que se passava por sua mente. Ela lentamente abriu uma das gavetas em sua mesa e disse pegando um dos frascos com uma expressão neutra, embora fosse possível identificar o temor escondido por algumas camadas de profissionalismo:
-Se eu fosse você eu tomaria um desses agora, você pode até me matar e sair dessa sala, mas não vai muito longe - a mulher fez uma pausa olhandopara o louco com uma intensidade eletrizante - se você não quer voltar para o Arkham, para ver sua cabeça ser remexida de novo, eu sugiro que me escute e faça o que eu estou dizendo.
O Coringa estreitou os olhos, seu olhar perfurando a psiquiatra à sua frente. O ambiente parecia cada vez mais claustrofóbico, com o som do relógio na parede ecoando em sua mente. Ele sabia que ela estava certa, mas isso não tornava a situação menos irritante. A ideia de ser controlado o fazia estremecer. Ainda assim, havia algo de muito mais perigoso em jogo: Bruce e tudo que eles construíram desde o ano passado.
O ex-terrorista respirou fundo, as palavras da psiquiatra ainda reverberando em sua cabeça. Se ele fosse mandado de volta ao Arkham, não haveria mais manhãs com café doce ou cereal, não haveria mais o toque gentil de Bruce nas noites em que o mundo parecia desmoronar. Por mais que ele se odiasse por isso, ele sabia que não suportaria ser separado daquele mundo que, de forma distorcida, ele e Bruce haviam construído juntos.
Com um sorriso torto e sarcástico, ele pegou o frasco que a psiquiatra havia colocado na mesa, girando-o nos dedos. A sensação de plástico seco em suas mãos o irritava, como se fosse um lembrete de sua própria fraqueza. Ele olhou para a mulher, avaliando-a por um longo segundo, antes de finalmente abrir o frasco e tirar um comprimido.
-Você acha que está no controle, não é? - disse o palhaço lambendo o canto dos lábios, sua voz baixa e gotejando ironia - mas saiba de uma coisa, o controle é apenas uma ilusão saborosa que todos os idiotas adoram.
Ele colocou o comprimido na boca e o engoliu, não porque acreditasse que aquilo iria ajudá-lo, mas porque sabia que era necessário para manter a fachada, para evitar o retorno àquela cela sem janelas que já havia conhecido tão bem. A psiquiatra observou em silêncio, sua postura rígida, mas havia uma tensão no ar, como se ela esperasse uma explosão que não veio.
O ex-terrorista, no entanto, olhava para a mulher com uma intensidade assassina. Era sempre desconfortável ter os olhos do palhaço presos em seu rosto com essa intensidade. Era mania vazando silenciosamente, sua mente fervendo de pensamentos violentos. Ele não estava apenas aborrecido, havia algo mais profundo dentro dele, uma raiva que parecia estar borbulhando desde o início da sessão. A ideia de ser forçado a se submeter àquele tratamento o deixava à beira da loucura, e não no tipo de loucura que ele controlava, mas no tipo que o consumia. Ele se sentia um doente.
O palhaço sempre soube que psiquiatras eram uma ameaça. Ele entendia a verdadeira natureza das pessoas, suas fraquezas, suas vulnerabilidades, e a psiquiatra na frente dele não era diferente dos outros, por que ela pensava estar no controle, mas ele via além da fachada profissional.
Ainda brincando com o frasco de comprimidos, o Coringa inclinou-se para frente, seu sorriso esticando-se, como se estivesse a ponto de devorar a tensão que enchia a sala. Seu tom de voz caiu, mais sombrio, mais afiado:
-Você sabe o que eu poderia fazer com você agora? - ele sussurrou, cada palavra saindo lentamente, carregada de ameaça - eu poderia acabar com isso aqui, com você, com seus papéis, com suas tentativas patéticas de me ajudar, sabe..você já se perguntou como seria, doutora, sentir sua própria vida escorrendo pelas suas mãos? Seria emocionante ?
A psiquiatra, por mais que tentasse manter a compostura, deixou escapar um pequeno tremor. Ela sabia que o perigo era real. Sabia que, por mais que tentasse contê-lo com medicamentos e ordens judiciais, no fundo, o Coringa era uma força incontrolável. E naquele momento, ele a estava testando.
-Se me matar fosse a resposta, você já teria feito isso - disse ela, tentando parecer firme, mas com a voz traindo sua insegurança - você está aqui, Jack, porque parte de você quer viver ao lado dele, idenpendente das consequências, embora você não ache que vai durar.
O sorriso do Coringa diminuiu um pouco, seus olhos se estreitando. A psiquiatra estava tocando num ponto sensível, e ela sabia disso. Bruce. O único motivo pelo qual ele ainda se submetia a tudo isso. Mas isso não significava que ele não podia brincar com a psiquiatra. Que ele não podia instigar o medo, alimentar-se dele.
-Você tem sorte, doutora - ele murmurou passando a língua no lábio inferior - você tem sorte.
-Agora, só falta os outros, eu vou trazer para você - disse a mulher com um pequeno sorriso se levantando.
O palhaço queria matá-la. Ele poderia, não havia nada para impedir além da certeza de ser separado de Bruce.
—---------
Bruce adentrou na delegacia, a sombra da ligação ainda pairando em sua mente como uma nuvem espessa. O Contador de Histórias. A simples menção daquele nome fazia sua pele se arrepiar, como um sopro de vento frio sobre cicatrizes mal curadas, despertando memórias que ele havia enterrado com esforço. O Contador de Histórias sabia que Bruce estava de volta ao jogo. Sabia da investigação, e isso revirava as entranhas do ex-vigilante.
O Contador de Histórias sempre esteve um passo à frente, jogando com as emoções de suas vítimas como se fossem peças em um tabuleiro, manipulando suas vidas como um dramaturgo perverso, reescrevendo a realidade com a tinta da tragédia. Bruce não podia esquecer o quanto foram manipulados como marionetes no ano anterior, como cada movimento seu e de seus aliados tinha sido previsto e orquestrado. A lembrança fazia o ex-bilionário ferver por dentro, uma raiva silenciosa e controlada, mas que queimava com força em cada fibra de seu ser.
Enquanto caminhava pelos corredores da delegacia, os olhares dos policiais se fixavam nele. Alguns eram breves e cheios de curiosidade; outros carregavam a desconfiança de quem conhecia as sombras que cercavam Bruce Wayne. Ele não era mais o filantropo intocável de Gotham, e sua presença ali, embora frequente, sempre provocava um misto de surpresa e desconforto. Bruce sentia o peso desses olhares, mas os ignorava. Sua mente estava focada em algo muito maior.
Ao se aproximar da sala do Tenente Charles, um arrepio de tensão percorreu sua coluna. A porta estava entreaberta, e o som abafado de vozes vindo de dentro indicava que uma discussão acontecia. Bruce hesitou por um segundo, então bateu na porta de leve antes de empurrá-la.
Dentro da sala, Chuck estava com a agente Sarah, que parecia visivelmente alarmada. Ao ver Bruce, o tenente acenou para que ele se aproximasse, um gesto que pareceu quase fora de lugar. Chuck não gostava dele, e essa recepção cordial era, no mínimo, incomum.
-Castro está desconfiando que eu te passei informações sobre a investigação do Contador de Histórias - disse Chuck, sem rodeios, olhando diretamente para Bruce - estou tentando manter essa investigação longe dos olhos dele, mas de repente Castro se interessou demais, ele me chamou para a sala dele hoje cedo.
A expressão de Sarah oscilava entre preocupação e vigilância, seus olhos se movendo entre os dois homens. Ela claramente sentia a tensão que pairava sobre a delegacia. Desde que Gordon se aposentara, Castro havia assumido um papel mais ativo, mas algo em sua postura recente estava fora de lugar. Ela não confiava no que estava acontecendo.
-Eu acho que recebi uma mensagem do Contador de Histórias — disse Bruce de repente, quebrando o silêncio - eu estava indo para a promotoria quando recebi uma ligação. As únicas palavras que ouvi foram 'Nigéria' e 'Jigawa'.
Sarah franziu o cenho ao ouvir aquilo.
-As duas palavras que faziam parte do enigma final do Contador de Histórias? — ela perguntou, visivelmente surpresa - nós havíamos concluído que elas não significavam nada. Por que trazer isso à tona de novo?
Bruce balançou a cabeça, sem uma resposta definitiva, pensando cuidadosamente em sua próxima declaração.
-Eu não sei - respondeu o moreno, o tom grave, como se estivesse saboreando o peso das implicações - mas algo está acontecendo, isso não é coincidência.
Antes que Chuck pudesse reagir, o telefone em sua mesa tocou, quebrando o silêncio tenso da sala. Os três se entreolharam, e por um breve instante, tudo ficou suspenso no ar. Chuck finalmente se dirigiu ao telefone, atendendo com um tom controlado:
-Departamento de Polícia de Gotham, aqui é o Tenente Charles.
Do outro lado da linha, uma voz fria e enigmática respondeu:
“Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?”
A ligação foi encerrada abruptamente na sequência. Chuck ficou imóvel, o telefone ainda em sua mão, as palavras misteriosas girando em sua mente como um enigma venenoso. Sarah e Bruce o observavam, a tensão na sala atingindo um novo pico. As peças começavam a se mover, e o Contador de Histórias mais uma vez tomava o controle do tabuleiro.
-Isso... isso é um quebra-cabeça - murmurou Chuck, enquanto olhava para o telefone, seus olhos ainda fixos em um ponto distante, ele não olhava para os outros dois parados na sala. O tenente parecia perdido em seus próprios pensamentos.
O ex-bilionário observava Chuck com atenção, notando a mudança sutil em sua expressão. O tenente não era um homem fácil de impressionar, mas as palavras ditas pela voz do outro lado da linha haviam, claramente, abalado sua compostura. Ele parecia distante, perdido em algum labirinto mental, enquanto o eco do enigma ainda reverberava em sua mente.
-O que foi ? - Bruce quebrou o silêncio, a voz grave cortando o ar tenso da sala.
Chuck finalmente voltou a si, seu olhar encontrando o de Bruce por um momento antes de se desviar novamente. Ele engoliu em seco, como se lutasse para formar as palavras corretas.
-"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante... onde os segredos da água repousam em paz" - repetiu Chuck, a voz baixa, como se recitar o enigma fosse trazer algum esclarecimento - parece... um maldito quebra-cabeça.
Sarah cruzou os braços, a testa franzida em concentração enquanto analisava as palavras. Bruce ponderou, seus olhos fixos em um ponto distante enquanto processava a pista. O Contador de Histórias nunca deixava nada ao acaso, cada palavra era escolhida com cuidado, cada enigma uma peça fundamental em seu jogo macabro. Bruce não gostava disso.
O moreno não notou quando sua mente estalou, a charada parecia significar o fundo de um rio. O rio de Gotham. A mente do ex-vigilante apitou, isso podia ser sobre o assassinato do agente Martin, o assassinato que o Batman tinha encobrido um ano atrás. O agente que o Coringa tinha matado. Bruce não ia deixar isso vir à tona. O ex-vigilante apertou os dentes com força.
O Wayne cerrou os punhos, sentindo a tensão percorrer seu corpo. O Contador de Histórias estava desenterrando fantasmas que ele lutou para manter enterrados, fantasmas que ainda o assombravam. O assassinato do agente Martin, encoberto pelo moreno para proteger o Coringa, agora voltava à superfície como um cadáver jogado nas águas escuras de Gotham.
Bruce olhou para Chuck e Sarah, que ainda estavam presos na lógica do quebra-cabeça, tentando decifrar o que as palavras poderiam significar no contexto da investigação. Mas o ex-vigilante sabia que o enigma não era apenas uma pista, era um ataque direto a ele. O contador de Histórias queria jogar com ele.
-O que você acha ? - perguntou o tenente olhando para o moreno.
-Eu não sei - mentiu Bruce - pode significar muitas coisas.
Bruce observava Chuck e Sarah por mais alguns segundos, deixando que a tensão os mantivesse distraídos. A raiva interna se intensificava, misturada com uma culpa sufocante. Ele era cumplice de assassinato e ocultador de cadáver. Ele tinha que ter chamado a polícia, mas ele não queria perder o que tinha construído com o Coringa. Bruce o ama, ele não vai deixar que descubram o que aconteceu, ninguém precisa saber. Não importa mais.
Chuck olhou para Bruce, aguardando uma resposta mais concreta. Sarah ainda analisava mentalmente o enigma, os olhos se estreitando enquanto buscava alguma conexão com os casos que estavam investigando. Eles ficaram em silêncio por mais um momento.
Bruce sabia que estava numa corda bamba. A verdade sobre o assassinato do agente Martin era uma ameaça crescente, como um veneno invisível prestes a se espalhar. Ele precisava tomar o controle da situação antes que tudo saísse do seu controle.
-Talvez devêssemos começar pelo básico - disse Sarah, interrompendo os pensamentos sombrios de Bruce - como Bruce disse, pode ser qualquer coisa.
-Não podemos ignorar o fato de que o Contador de Histórias quer que achemos algo, ele nunca joga sem um propósito - suspirou Chuck.
Bruce sabia que eles estavam certos, mas o verdadeiro alvo do enigma era ele. O Contador de Histórias estava mexendo com algo que o moreno temia reviver. Ele precisava afastá-los daquela direção. O ex-vigilante estreitou os olhos, buscando uma maneira de desviar o foco.
-Sugiro começar pelo esgoto da zona industrial - Bruce falou com uma calma forçada - houve algumas operações ilegais por lá no passado, e é um lugar onde ninguém vai, onde os segredos podem repousar em paz, como no enigma.
-É uma possibilidade - respondeu Sarah, concordando com um leve aceno - vamos enviar uma equipe para lá.
Chuck, que ainda estava perturbado pelas palavras do enigma, hesitou por um momento antes de finalmente pegar o telefone para coordenar a busca.
Enquanto Chuck estava distraído com suas próprias indagações, Bruce se aproximou de Sarah.
-Sarah, mantenha Chuck por perto - sussurrou o Wayne, usando seu tom mais sério. - não deixe ele ir sozinho a nenhum lugar até termos respostas, se o Contador de Histórias está armando algo, ele pode usar qualquer um de nós contra o outro, preciso que você vigie isso.
A agente Sarah Essen o encarou por um instante, surpresa pela intensidade no olhar de Bruce. Ela assentiu, compreendendo a gravidade da situação.
-Tudo bem.
Bruce deu um olhar para o tenente preso em pensamentos. Ele não podia deixar que esse cara os jogasse uns contra os outros.
-Você descobriu alguma coisa sobre Talia ? - disse Chuck de repente, voltando para o presente depois de um suspiro.
-Não - admitiu o Wayne - eu acho que ela está se escondendo muito bem, não achei muito mais do que algumas movimentações de dinheiro que não consigo rastrear, isso ainda me intriga para ser honesto.
Sarah, que estava ao lado de Chuck, trocou um olhar com o tenente, seus instintos policiais acesos.
-Pode ser que ela esteja financiando alguma coisa, um novo grupo ou operação, algo que o Contador de Histórias possa estar utilizando a favor dele - comentou a agente.
O ex-bilionário sabia que Talia não trabalharia diretamente com o Contador de Histórias, mas isso não significava que seus interesses não se alinhariam em algum ponto. Talvez ela estivesse tentando desestabilizar Gotham para seus próprios fins. Ela era uma mulher inteligente e determinada. Se Talia estava nisso, ela tinha algo a ganhar, Bruce só precisava entender o que.
Era muita coisa acontecendo. Muitas perguntas serpenteando sua mente de forma caótica. Era a volta do Contador de Histórias, seu envolvimento com Talia, o fantasma de Matthew Cole, e agora o assassinato do agente Martin. Era muita coisa para Bruce lidar.
Chuck se levantou lentamente de sua cadeira, os olhos ainda fixos no telefone como se esperasse que ele tocasse de novo, trazendo mais um enigma perturbador. Ele suspirou pesadamente, os ombros tensos, antes de virar para Bruce e Sarah.
-Precisamos de respostas, e rápido - Chuck murmurou, esfregando o rosto com as mãos, o cansaço transparecendo em sua voz - mas eu não sei mais o que fazer.
Sarah assentiu, mas seus olhos se voltaram para Bruce, observando-o com mais atenção do que antes. Ela era perspicaz, sempre procurando por sinais nas entrelinhas. Bruce sabia que sua mentira, por mais convincente que tivesse sido, não passaria despercebida pela agente e pelo tenente por muito tempo. Ele precisava agir rápido, antes que as peças começassem a se alinhar de uma forma que o desmascarasse.
O ex-vigilante precisava encontrar uma forma de tirar o foco do assassinato do agente Martin antes que o Contador de Histórias usasse isso contra ele. O moreno amava o Coringa, e esse relacionamento era uma coisa que Bruce não estava preparado para desistir. Jay e ele andaram entre trancos e barrancos, mas estavam bem. No fim do dia, eles estavam bem. Bruce não quer perder isso, ele precisa de ajuda da única pessoa que ele podia contar que jamais iria deixá-lo ou traí-lo. Alfred.
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O palhaço estava saindo do consultório da psiquiatra com um gosto amargo na boca. Ele queria ficar irritado, ele queria gritar, mas não conseguia, o remédio era como uma um balde de água fria, apagando suas faíscas maníacas sempre que essas ameaçassem ascender. Ele as odiava.
Enquanto caminhava pelos corredores cinzentos da clínica, o Coringa sentia-se aprisionado. Não pelo lugar, mas pela própria mente. Ele havia permitido…não, ele havia sido forçado a aceitar aquele tratamento. O cheiro de desinfetante misturado ao som abafado de passos e portas se fechando só reforçava a sensação de controle que ele tanto abominava.
Seu reflexo no vidro de uma das janelas o fez parar por um instante. Ele parecia um daqueles malucos que ele via perambulando pelo Arkham. Era engraçado como um conjunto de comprimidos podia fazer isso com ele. Deixá-lo no escuro. A verdade é que o ex-terrorista não sabia como era viver sem sentir a energia ruim fluindo por seu sistema. A mente dele nunca esteve tão quieta, e isso de uma forma estranha, o perturbava, o silêncio era ensurdecedor.
O Coringa encarou seu reflexo no vidro, perdido naquela figura apagada que o observava de volta. O silêncio em sua mente o deixava inquieto, como se ele estivesse à beira de um precipício e, em vez de pular, fosse forçado a ficar parado. Ele odiava a sensação, havia muito silêncio, muito branco e preto.
O louco sabia que não era simples, ele sempre teve essa bola de caos em sua cabeça. Sua mente era um turbilhão desconexo, mas algo que ele conseguia administrar na maioria dos dias. No entanto, isso, o silêncio, deixava muito espaço, muito espaço para pensar. O ex-terrorista não queria pensar em nada.
Pensar era perigoso. Pensar trazia de volta memórias que ele preferia deixar enterradas. O silêncio, essa calmaria artificial forçada pelos comprimidos, era uma armadilha. Pensar demais era o problema. Era isso que os medicamentos faziam: eles criavam espaço para o pensamento racional, para a dúvida. E o Coringa sabia que esse era o perigo real. Racionalidade era para aqueles que ainda acreditavam em algo, que ainda se prendiam a alguma forma de sanidade ou propósito. Ele, por outro lado, era livre. Ou pelo menos costumava ser.
O Coringa continuou encarando seu reflexo no vidro, sentindo uma mistura de desprezo e vazio. Não havia um "antes". Nunca existiu nada além dele. Ele não era uma versão distorcida de alguém perdido, ele não se lembra de algum momento em que foi diferente. Não, ele sempre foi ele. Sempre. Mesmo com outros tantos nomes. Ele existia em sua forma completa, definitiva. Talvez alguns traumas tenham aflorado alguns comportamentos e tendências homicidas, mas ele não se lembra de como era viver sem isso. Ele sempre foi muito diferente.
O Coringa continuou a encarar seu reflexo, como se esperasse que algo mudasse, que aquela figura no vidro lhe revelasse uma verdade escondida. Mas na verdade, ele sabia, sempre esteve com ele, a mania ardente. Não havia um passado inocente, nem um ponto de partida que pudesse justificar quem ele era. Ele não era resultado de um mundo quebrado, ele era o caos que quebrava o mundo. Ele não aceitou ser a vítima da maldita história.
E, ainda assim, ali estava ele, domesticado por comprimidos, contido em sua própria cabeça. O silêncio o empurrava para um lugar estranho, onde memórias não eram mais borrões desordenados, mas ecos persistentes de uma vida que ele rejeitava. Ele sabia, porém, que ninguém podia compreender. Eles achavam que podiam "curá-lo", como se ele fosse algo que precisava ser corrigido, concertado. Mas como você conserta algo que nunca esteve inteiro ?
Perdido em seus pensamentos ainda estudando seu reflexo no vidro, o ex-terrorista de repente viu seu reflexo se distorcer. Ele fechou os olhos, era os efeitos colaterais das pílulas, a alucinação. O louco abriu os olhos apenas para ver um adolescente loiro e raivoso olhando para ele de volta. Ele tinha muitas alucinações com suas versões mais jovens.
O adolescente coberto de chuva e terra, segurando uma pá nas mãos. Seu primeiro assassinato, deseperado para fugir da morte, para fugir do trafico infantil. A fúria era palpável. O olhar do adolescente perfurava o crânio do ex-terrorista. O palhaço fechou os olhos com um suspiro, ele não queria pensar nisso agora. Ele não queria seu passado voltando para morder seus calcanhares.
No entanto, o adolescente não sumiu. Como poderia ? A aura assassina pairava como um fantasma. Coringa o ignorou e voltou a caminhar para a saída, ele já tinha começado a se acostumar com isso nos últimos dois meses. Ele sabia como lidar melhor. O adolescente o seguiu pelo vidro, arrastando a pá com um barulho agonizante.
Se o palhaço estivesse em seu estado normal ele sorriria para sua alucinação mais jovem…Jovem, perdido, irritado e faminto, vagando pelas ruas de Gotham, vendo o mundo pela primeira vez e sentindo na pele o quão insignificante é toda a existência. Escapar do tráfico de pessoas não resolveu seus problemas.
O Coringa continuou a andar, ignorando o arrastar da pá no chão e o olhar penetrante do adolescente. A angústia do passado o seguia como uma sombra indesejada, mas ele se recusava a dar atenção. Havia uma estranha tranquilidade em deixar a lembrança do garoto se perder na confusão do presente. O palhaço sabia que cada passo o afastava daquela versão dele mesmo, mas, em algum nível, não poderia escapar.
-Você acha que fugir vai resolver? - a voz do adolescente ecoou em sua mente, desafiadora - você sabe que não pode se esconder de si mesmo.
-Cala a boca - o Coringa murmurou, a frustração se acumulando. Ele desejava a liberdade, mas a ideia de enfrentar seu passado o aterrorizava.
-Como você pode ter deixado que tudo aquilo acontecer comigo ?! - gritou o adolescente com raiva contida de repente. O palhaço sabia que sua alucinação refletia sentimentos não resolvidos. Ele não pode salvar a si mesmo das coisas que marcaram seu passado. O adolescente era uma parte da sua mente que sempre sentiria no fundo dos ossos, raiva, fome, frio e desespero.
O palhaço se virou para o vidro, encarando o adolescente com um olhar frio. Ele estava cansado de pensar.
-Eu devia ter atirado na nossa própria cabeça quando tive a chance - falou o palhaço passando a língua pelo lábio inferior, seu tom era neutro - desculpe garoto, não tenho piadas hoje.
O adolescente ficou em silêncio, seu rosto sujo de terra e coberto por chuva era uma careta grotesca. Mania, era mania que vazava dele.
-O que quer que eu diga ? - continuou o Coringa - hummm ? Queria que eu tivesse deixado que eles matassem a gente ?
O palhaço se referia a tudo que eles passaram nas mãos não só dos traficantes de pessoas, mas da rua.
-O que você quer de mim? - o Coringa perguntou, a voz mais fraca, quase um sussurro. - O que você espera que eu faça?
-Encare isso! - o adolescente gritou, a intensidade de sua emoção fazendo o Coringa hesitar. - Encare o que aconteceu !
O palhaço fechou os olhos, a pressão do passado se acumulando. Em um momento de vulnerabilidade, ele se permitiu sentir a dor, as memórias que havia tentado enterrar. Ele se permitiu aceitar o que passou por um momento. A dor. A lembrança de cada grito, de cada lágrima, de cada momento em que ele se sentiu pequeno e impotente. O Coringa abriu os olhos novamente, encarando o adolescente, sua fúria agora misturada a um profundo desespero.
Uma única lágrima escapou dos olhos do ex-terrorista quando ele os fechou por um momento. Quando o palhaço os abriu, a imagem do adolescente havia se torcendo no reflexo de uma criança. A mesma criança que ele viu no metrô, a mesma que ele viu sentada em sua cama. Mas diferente da alucinação do metrô, o menino loirinho não ria com a boca cheia de sangue e dentes arrancados nas mãos. Ele era um espelho do presente. O garoto tinha uma expressão de angústia, uma lágrima escorrendo por sua face.Uma paródia da expressão atual do ex-terrorista.
O Coringa engoliu em seco, ele não conseguia respirar. Ele não podia se dar ao luxo de ter um ataque de pânico. Ele esticou a mão de forma trêmula para tocar o vidro,vendo a alucinação espelhar seu movimento.Em contrapartida, no momento seguinte, tão rápido como a alucinação surgiu ela sumiu. Se dissipando.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui. Deixe um comentário para me deixar feliz :)
Chapter 13: The Gotham We Have (Parte 13)
Notes:
Ai gente kkkkkk atrasado como sempre, mas pelo menos saiu, são mais de 8 mil palavras. Estou tentando fazer capítulos mais grandes :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O Coringa estava andando em direção ao metrô quando novamente se sentiu perseguido. Ele sabia que isso não era exatamente um dos efeitos dos remédios, e pelo menos as alucinações tinham desaparecido por hora. O louco suspirou tentando dissipar a paranóia que lentamente começava a lamber seus ossos. Ele sabia que ainda não tinha se recuperado exatamente da alucinação anterior.
O ex-terrorista rapidamente chegou até a estação de metrô, ficando em pé na plataforma com uma expressão mista no rosto. Sua mente estava muito barulhenta. Sons distantes de estética e ecos de zunidos confundiam sua percepção, fazendo com que ele olhasse nervosamente para os lados.
Ele esfregou as têmporas, tentando silenciar os pensamentos, mas a sensação de ser observado só aumentava. As portas do metrô se abriram com um ruído mecânico e a multidão começou a se mover. O Coringa hesitou por um momento antes de respirar fundo e entrar. Assim que o palhaço cruzou a entrada, todos os olhares pareciam ter se voltado para ele, isso fez sua espinha congelar estranhamente. Ele sabia que isso não era real, as pessoas não estavam realmente olhando para ele.
O ex-terrorista se posicionou no fundo do vagão, observando os passageiros com os olhos estreitos. A mulher ao seu lado segurava um livro, mas seus olhos estavam fixos nele, como se não tivessem vida. O Coringa podia sentir o zunido em sua cabeça ficando mais alto. De repente, como em um passe de mágica, todos estavam normais e conversando entre si. Era isso, uma alucinação.
O palhaço suspirou aliviado, as vozes ao redor dele se tornaram um murmúrio indistinto, o Coringa focou em cada expressão, em cada movimento. As pessoas estavam mergulhadas em seus próprios mundos. Ele queria rir, mas a sensação de ansiedade se acumulava como uma tempestade prestes a estourar. Ele estava enlouquecendo, e não no bom sentido.
O Coringa apertou os dedos ao redor do apoio de metal, seus nós dos dedos ficando brancos, tentando ancorar-se em algo tangível enquanto sua mente oscilava entre a realidade e o delírio. O zunido persistente em sua cabeça era como uma picada constante, minando sua sanidade e deixando-o com a sensação de estar à beira de uma implosão.
As portas do vagão se fecharam com um estalo metálico e o metrô começou a se mover, chacoalhando suavemente sobre os trilhos. O palhaço fechou os olhos por um momento, buscando algum alívio na escuridão interna, mas tudo o que encontrou foi mais ruído, fragmentos de lembranças, risadas distorcidas e a imagem de seu reflexo adolescente com a pá.
Ele abriu os olhos de novo e se forçou a observar os passageiros. A mulher com o livro já havia desviado o olhar, absorta nas páginas amareladas, e os demais pareciam alheios à sua presença. O metrô mergulhou em um túnel escuro, e as luzes piscavam intermitentemente, lançando sombras estranhas nas paredes do vagão. Ele observou o reflexo do vidro à sua frente, não havia ninguém atrás dele, mas a sensação de ser seguido ainda o perseguia como um fantasma. Era como uma coceira persistente.
De repente, o ex-terrorista viu um movimento rápido pelo canto do olho. Virou os olhos bruscamente, mas não havia nada. Ele relaxou por um breve segundo, antes de se endireitar, os sentidos ainda alertas.
-Droga... - murmurou para si mesmo, antes de passar a língua pelo canto dos lábios com uma careta.
-Você não parece bem - disse uma voz conhecida do outro lado no canto do vagão. O ex-terrorista estava tão imerso em seu problema que nem tinha notado a presença do homem. O loiro rapidamente olhou na direção da voz e reconheceu Andy.
O Coringa queria rir, ele com certeza estava alucinando. Andy não podia estar com ele no vagão sem que ele tivesse percebido. Ele apertou os dentes com raiva, ele precisava se livrar desse cara, o ex-psiquiatra o estava perseguindo pela cidade agora ? Era só o que faltava acontecer, mas em Gotham tudo era possível, essa era a terra do absurdo.
O ex-terrorista piscou o rosto contorcendo-se em frustração enquanto encarava Andy. A presença dele o deixava mais nervoso do que a confusão que estava em sua cabeça.
-Claro... você - o loiro murmurou, sua voz gotejando sarcasmo - como uma maldita praga, aparecendo sempre nos momentos mais... apropriados.
Andy, por sua vez, cruzou os braços, recostando-se na parede do vagão com uma expressão ambígua no rosto, o tipo de sorriso que não chegava aos olhos. O que o Coringa não sabia era que aquela mesma expressão escondia algo mais profundo. Algo que nem o próprio Andy compreendia completamente.
-E você... parece que não está lidando muito bem com as coisas, hein? - a voz de Andy tinha uma ponta de sarcasmo, mas havia também algo inquietante na preocupação embutida, como se, por um breve segundo, ele realmente se importasse.
-Oh, não se preocupe - o Coringa rebateu, os dentes cerrados, forçando um sorriso desequilibrado, antes de passar a língua pelo lábio inferior - as coisas na minha cabeça estão sempre... animadas, quem mais poderia aproveitar tanta "diversão", não é?
Andy inclinou a cabeça, observando o ex-terrorista com um olhar afiado, como se estivesse analisando cada gesto. Havia uma tensão no ar.
-É engraçado - Andy começou, sua voz casualmente cortante - você sempre foi tão bom em escapar da realidade, não é? Mas agora... você parece estar perdendo o controle.
O ex-psiquiatra deu um pequeno sorriso forçado, como se o sarcasmo fosse uma armadura, mas havia uma amargura escondida em cada palavra. O Coringa não sorriu, sua mente, já fragmentada, lutava para encontrar uma resposta rápida, mas ele sabia que Andy estava cutucando suas feridas. Eles eram bons nisso.
-E você? Qual é a sua desculpa? - disse o palhaço com olhos frios, antes de abrir um pequeno sorriso cínico - ainda brincando de psiquiatra? Ou isso aqui é uma sessão de terapia surpresa? Porque, se for...eu prefiro resolver isso à minha maneira.
O ex-psiquiatra não se mexeu, o olhar dele permanecendo fixo, as cicatrizes em um dos lados de seu rosto, onde a pele foi esfolada e enxertada novamente era um lembrete do que ambos haviam feito muito um ao outro.
-Ah, a sua maneira? - Andy arqueou uma sobrancelha, a voz agora gotejando veneno disfarçado de desinteresse - a sua maneira é sempre tão... criativa, não é? Mas não parece estar funcionando tão bem ultimamente.
O Coringa apertou os punhos, o barulho do metrô e os flashes de luz aumentavam a pressão no peito. Ele podia sentir o zunido em sua cabeça ficando mais alto, e a presença de Andy só piorava a situação. Ele sentia o início de um ataque de paranóia, de repente o vagão se tornou muito pequeno.
Ele apertou os dedos no apoio de metal, sentindo a frieza do material sob sua pele. O loiro precisava tentar manter o controle, ele precisava contornar essa situação.
-Você parece perdido, Andy - a voz do Coringa cortou o silêncio entre os dois, carregada de desprezo claro, independente das vozes ao redor.
-E Você não parece bem - Andy devolveu, sua voz carregada com uma ponta de sarcasmo disfarçado de preocupação. O ex-psiquiatra se aproximou, ficando a cerca de um metro do outro homem, os olhos fixos no Coringa como uma presa que não tem mais medo de um predador.
O Coringa revirou os olhos, tentando não deixar transparecer o quanto aquele comentário o incomodava. Ele odiava ser seguido, e Andy o fazia sentir como se estivesse sempre sob um microscópio. O ex-psiquiatra estava sempre observando.
-Engraçado você dizer isso - respondeu o palhaço lambendo o canto dos lábios antes de abrir um sorriso forçado e perigoso - afinal, eu sou o único de nós dois que não anda perseguindo o outro pela cidade como um cachorrinho perdido.
A provocação veio afiada, mas Andy apenas deu de ombros, sem morder a isca. Ele sabia jogar com o Coringa, ele sabia que essa era a forma que o palhaço atacava, tentava desestabilizar a mente primeiro. Mas isso não funcionaria com ele.
-E quem disse que estou perdido? - Andy cruzou os braços, o olhar dele penetrante, como se estivesse tentando decifrar algo no Coringa - talvez eu só esteja... observando, eu sou bom nisso.
O Coringa cerrou os dentes. Aquele joguinho de perseguição estava começando a testar seus nervos. Ele sabia o quanto Andy estava obcecado, mas o que o irritava ainda mais era o fato de que ele não entendia completamente o porquê.
-Para de me seguir porra, ou eu mato você - disse o Coringa com um tom baixo e frio. Era uma ameaça real, o louco não tinha seus contornos divertidos, mas Andy não se deixou intimidar.
-Talvez… - Andy começou, hesitante no silêncio entre eles, o tom agora mais suave, quase contido - talvez seja porque você... me lembra ela, às vezes.
O Coringa ficou em silêncio por um instante, ele não esperava por isso. Não esperava que Andy trouxesse Annie à tona. Muito menos que o tom dele parecesse meramente sincero. o louco não sabia o que fazer com essa informação.
-Ah, Annie... - o nome saiu dos lábios do Coringa com um tom de falsa doçura, seu sorriso assumindo uma expressão que beirava o desprezo, antes de ganhar contornos sarcásticos - então é isso? Que lindo, Andy, você se perdeu de vez, não é? Ficou realmente doido.
Andy continuou observando, seu olhar fixo e vazio, não afetado pela provocação. Ele sempre foi capaz de separar as palavras de suas emoções, mas, com o Coringa, isso era mais difícil. Porque, apesar de tudo, apesar de ambos terem se torturado, havia um pedaço de Annie que ele enxergava nos olhos do palhaço. Ele odiava e amava isso. Eles compartilhavam um nível de distorção que não sabiam como lidar. Algo nessa distorção atraia o ex-psiquiatra.
-Me poupe dessa baboseira emocional - retrucou o Coringa lambendo os lábios nervosamente, um tom mais ríspido, tentando recuperar o controle da conversa. Ele sentia um zunido no fundo de seu crânio, como um barulho de fundo irritante. Esses remédios não faziam bem. Eles ficaram em silêncio por um momento ininterrupto antes do ex-psiquiatra suspirar:
-Podemos conversar em algum lugar ? Você parece meio perturbado.
-Não - respondeu o loiro em um tom seco. Ele não iria com aquele cara a lugar nenhum, ele não tinha nada para falar com Andy. A ideia de estar sozinho com o ex-psiquiatra fazia seu estômago revirar, e ele não podia permitir que isso acontecesse. Era como se um instinto primitivo o alertasse sobre o perigo.
-Olha, eu não estou tentando te pegar de surpresa - Andy insistiu, seu olhar fixo no palhaço, tentando decifrar a turbulência por trás daquele olhar - mas você precisa ouvir o que eu tenho a dizer.
-Eu não quero ouvir nada - disse o loiro com um olhar gelado.
-Com medo, Jay ? - provocou Andy arqueando uma sobrancelha.
-Não me chame assim - ferveu o loiro, passando a língua no lábio inferior com um tom encharcado de mania fria - eu não tenho medo de caras como você.
O Coringa respirou fundo, tentando conter a raiva que fervia em seu interior. A última coisa que ele queria era dar a Andy a satisfação de parecer vulnerável. No entanto, a forma como o ex-psiquiatra o desafiava era como um fósforo aceso em um barril de pólvora. O ex-psiquiatra sempre soube como apertar as teclas certas, e o Coringa não estava disposto a dar a ele esse poder.
-Olha, você realmente precisa de um hobby - o palhaço se forçou a rir, mas soou mais como um grunhido - seguir pessoas no metrô não é exatamente um passatempo saudável.
Andy não reagiu. Ele apenas se manteve firme, o olhar intenso e penetrante. O Coringa começou a se perguntar se aquele encontro era realmente uma alucinação. Em uma fração de segundo, a ideia de que Andy poderia ser uma projeção de sua mente distorcida passou pela cabeça do palhaço. Mas a presença física dele era muito real. O jeito como ele se movia, o cheiro sutil de colônia que pairava no ar, tudo era incrivelmente tangível. Era muito bizarro.
Em um momento o ex-terrorista pensou que podia abrir a garganta do outro homem, ele podia facilmente conseguir alguma coisa se olhasse com atenção. O palhaço olhou ao redor com o canto dos olhos por um momento antes que a voz do ex-psiquiatra soasse levemente divertida:
-Está pensando em como pode me matar ?
-A ideia é tentadora - retrucou o louco revirando os olhos.
-Olha - começou Andy novamente - eu sei que você tem motivos para não confiar em mim, mas as pessoas estão começando a olhar para nós aqui, e eu preciso mesmo conversar com você, é sobre a sua casa, acho que alguém está observando você e Bruce.
O palhaço estreitou os olhos cheios de mania crua rodopiando nervosamente, no entanto, ele não disse nada, sua expressão continuava impassível. Era muita cara de pau Andy falar uma coisa dessas, era ele que os estava espionando.
-Vamos para o meu apartamento, não é longe da próxima parada, lá podemos conversar sobre isso - disse Andy por fim, seu tom era apaziguador.
O Coringa franziu a testa, o estômago se contorcendo com a proposta. Ele conhecia Andy o suficiente para perceber que, por trás daquela fachada calma, havia uma mente alerta, pronta para explorar cada fraqueza sua. O ex-terrorista balançou a cabeça, tentando afastar a ideia. O palhaço o odiava.
-Você acha mesmo que vou deixar você me levar para a sua casa ? - o loiro estreitou os olhos antes de lamber o canto dos lábios rapidamente - depois de tudo que aconteceu ?
A voz do louco era fria. O Coringa nutria um sentimento de cautela em relação a Andy, embora não sentisse medo dele racionalmente. Era um sentimento estranho que ele não sabia como explicar, mas a perspectiva de estar com ele em um lugar sozinho o deixava muito desconfortável.
-Você não precisa confiar em mim - respondeu Andy depois de um momento em silêncio - talvez você não se importe com o que pode ocorrer com você mesmo, mas com certeza, você se importa com a segurança de Bruce.
A menção do ex-vigilante fez o palhaço apertar os dentes. Tudo era mais difícil com Bruce envolvido. E era verdade, o Coringa podia não se importar muito consigo mesmo, mas ele se importava muito com o moreno, do jeito dele, no entanto. Ele odiava como Andy conseguia ler seus pontos fracos. Era irritante.
-Se você acha que eu vou correr para a sua casa só porque você me contou uma historinha assustadora, você está mais louco do que eu pensei - o Coringa retrucou, mas sua voz era mais baixa, o sarcasmo vacilando, embora infundido em mania não deixasse a frustração transparecer tão bem. Todavia, Andy notou, e sabia que tinha acertado um ponto delicado. Bruce.
Andy observou a reação do Coringa com um misto de triunfo e cautela. Ele sabia que tocar em Bruce era uma jogada arriscada, mas também era uma chance de alcançar o que realmente queria: um diálogo, um entendimento. Estranhamente, ele não sabia o que queria disso, ele só queria conversar.
-Olha, Jay - começou o ex-psiquiatra, usando o nome de uma forma que ainda provocava uma aversão visceral no palhaço - eu não estou aqui para te fazer mal, eu só quero conversar.
O Coringa hesitou, a raiva e a paranoia em sua mente se debatendo contra a lógica esfarrapada que ainda lutava para encontrar uma saída. A ideia de se encontrar com Andy em um espaço privado, onde não haveria testemunhas e ele estaria exposto, era um convite à vulnerabilidade que o ex-terrorista se recusava a aceitar. Ele não podia ficar sozinho com esse cara, mesmo sendo plenamente capaz de arrancar a cabeça dele se fosse necessário.
Esse era um ponto, o palhaço podia matar o outro homem, o ex-psiquiatra era feito de carne e osso como qualquer pessoa. No entanto, sempre quando estava perto de Andy a vontade de correr sempre supera a de lutar. O outro homem o dava calafrios, mesmo que em uma luta física eles fossem bem emparelhados. O louco sabia que a questão não era física, era psicológica. Afinal, o louco já tinha brigado com gente mais forte e mais habilidosa que ele em luta corpo a corpo.
O ex-psiquiatra notou as engrenagens do louco girando. Ele sabia que o Coringa estava em conflito, ele esperava por isso. O Coringa, por sua vez, ficou em silêncio, o olhar fixo em Andy, seu rosto uma máscara de desdém e desconforto. O loiro podia sentir a tensão no ar, como se o próprio vagão estivesse preso em uma rede de eletricidade estática.
-Você realmente acredita que eu me importo com o que você tem a dizer? - perguntou o Coringa lambendo o canto dos lábios, tentando manter a voz firme e estreitando os olhos perigosamente. Ele sabia que Andy estava tentando manipular sua mente, e isso o irritava.
-Ah, mas você se importa, Jay, na verdade você se importa muito - a voz de Andy era calma, quase suave, como se estivesse falando com uma criança assustada - pense na segurança de Bruce.
A menção do nome do moreno fez o Coringa franzir o rosto, Bruce não precisava de proteção, o cara era a porra do Batman. No entanto, a expressão de Andy não mudou, ele sabia que havia acertado um ponto crítico. O palhaço virou a cabeça, evitando o olhar penetrante do ex-psiquiatra. Andy o irritava.
-O que você sabe ? - O Coringa perguntou, a raiva subindo como um vulcão prestes a entrar em erupção. Ele não queria jogar, não dessa vez, ele só queria respostas. O zunido incômodo no fundo de sua cabeça continuava constante.
-Sei o suficiente para saber que ele pode estar em perigo. - Andy respondeu, sua voz mais baixa, quase íntima. - sei que você se preocupa com ele, e que, no fundo, você não quer que nada de mal aconteça.
O ex-terrorista hesitou, a luta interna visível em seu rosto. Ele não queria admitir que a preocupação por Bruce o afetava tanto.
-Brucie pode se cuidar - retrucou, tentando soar desdenhoso, mas a convicção em sua voz falhou no final. Ele sabia que o ex-vigilante podia se virar sozinho, Bruce era forte e inteligente.No entanto, o moreno era de carne e osso como todo mundo. Bruce ainda era uma pessoa por baixo de tudo aquilo.
Os dois homens ficaram em silêncio por um momento, antes de o ex-terrorista bufar, uma mistura de desdém e raiva.
-Você realmente acha que pode me manipular com essa conversa sobre Bruce? - O Coringa sorriu antes de passar a língua no lábio inferior, mas não era um sorriso verdadeiro, era uma máscara de desprezo, uma defesa contra o que Andy estava tentando fazer.
-Não estou tentando te manipular - entoou o ex-psiquiatra com uma postura resignada - estou tentando te fazer entender que você não pode ignorar isso, sei que você quer proteger Bruce, assim como ele quer proteger você, então, se isso significa ir para o seu apartamento e conversar, talvez você devesse considerar.
O palhaço cerrou os dentes com raiva, um turbilhão de emoções se agitando dentro dele. Ele odiava como Andy o conhecia, o ex-psiquiatra tinha cavado em sua cabeça bem mais do que o louco gostaria de admitir para si mesmo. O Coringa fechou os olhos por um momento, a batalha dentro dele se intensificando.
-Eu não confio em você - o louco fez uma última tentativa de manter sua defesa, mas a voz agora estava mais cansada, quase derrotada.
-Isso é um começo - Andy respondeu, mantendo o olhar fixo no palhaço enquanto o vagão do metrô desacelerava, se aproximando da próxima parada - só vamos conversar.
-Se você tentar alguma coisa eu te mato - rosnou o louco, seus olhos se tornando estranhamente maníacos e homicidas.
O ex-psiquiatra deu de ombros antes de entoar descontraído:
-Justo.
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Jason estaria saindo da delegacia em breve, seria transportado para a casa de detenção juvenil. Ele não tinha entregado as pontas, mesmo com as inúmeras dúvidas plantadas em sua cabeça. Ele tinha um propósito, ele precisava achar sua mãe, nem que fosse para conversar com ela, perguntar algumas coisas. Ele só queria saber o porquê, porquê de sua mãe ter feito a escolha que fez. Jason só queria entender.
O adolescente suspirou deitado em sua cama na cela. Ele não podia deixar de temer o futuro enquanto encarava o teto da cela, o concreto frio refletindo a dureza de seus pensamentos. Ele tinha vivido nas sombras de escolhas que nunca foram dele, decisões feitas muito antes de ele sequer entender o que significavam. Tudo o que restava agora era uma vontade insaciável de encontrar respostas que ninguém parecia disposto a lhe dar.
Jason precisava confrontar sua mãe, ouvir da boca dela os motivos. O adolescente fechou os olhos por um instante, se ele pudesse ouvir sua mãe, ele encontraria uma forma de quebrar essa corrente.
Ele foi posto em alerta ao ouvir o som de passos, que ecoaram pelo corredor, interrompendo seus pensamentos. Jason se sentou, o olhar cheio de desconfiança enquanto o homem parava em frente à cela, as chaves tilintando com um som metálico e impessoal. Era um dos guardas.
-Todd, hora de ir - o homem anunciou, abrindo a porta com um rangido. Jason sentiu o peso das algemas em seus pulsos enquanto elas eram colocadas novamente. O metal frio era uma lembrança constante de onde ele estava e para onde estava indo. Ele se perguntava se sua mãe estava em algum lugar ali fora, vivendo sua vida como se ele nunca tivesse existido.
-Vai ficar tudo bem, garoto - murmurou o guarda, talvez tentando oferecer algum consolo, mas Jason não respondeu. Ele sabia que eram apenas palavras vazias, usadas para tranquilizar a consciência de quem observava sua vida desmoronar novamente. Ele não sabia o que o esperava no seu destino. No entanto, ele se recusou a demonstrar isso.
-Onde está aquele policial estranho com cicatrizes no rosto ? - perguntou o adolscente achando estranho que o Coringa não estivesse lá para tentar tirar vantagem do seu último momento. Não era o modus operandi que o adolescente tinha notado até o momento.
-Coringa ? - perguntou o guarda com uma careta contida, tentando mascarar o claro desconforto - ele chega mais tarde às vezes, às vezes não aparece, ninguém diz nada de qualquer forma.
O guarda lançou um olhar para Jason, avaliando se valia a pena continuar aquela conversa sobre o Coringa. Aquele garoto parecia saber mais do que mostrava, mas ainda assim, não fazia ideia de com quem realmente tinha se envolvido. O silêncio entre eles foi quebrado pelo som metálico das correntes das algemas batendo levemente uma na outra, um lembrete incômodo de onde Jason estava.
-Olha, não importa o que aquele cara disse, não deixe que ele entre na sua cabeça, gente como ele sabe exatamente o que dizer pra bagunçar sua mente, ele é um manipulador, um cara perigoso - o guarda acrescentou, com um tom de amargura misturado com uma ponta de medo - não importa quem ele diz ser agora, eu não compro esse papo de reabilitado.
Jason manteve o olhar fixo no chão, mas absorvia cada palavra. O guarda falava com uma raiva contida, um rancor que transparecia em cada pausa.
-Ele se esconde atrás daquele sorriso torto, mas eu já vi o que ele fez, o que ele é capaz de fazer - continuou o guarda - antes de toda essa loucura com Bruce Wayne, com Gordon e principalmente com o Batman, ele era o tipo de cara que a gente caçava em operações, ele explodia prédios, sequestrava pessoas, matava a sangue frio e jogava a vida de inocentes como se fosse nada, e agora, olha só, é tratado como se fosse um policial.
-Batman ? - perguntou Jason sem entender.
-Sim, era um vigilante, está sumido faz mais de um ano, da última vez que foi visto, estava fugindo com o Coringa, nunca descobrimos quem é o cara, até mesmo o Wayne foi investigado, por conta da sua crescente relação com o palhaço, mas nada foi encontrado - continuou o guarda com um tom frustrado - não que pudéssemos achar realmente que o Wayne é o vigilante mascarado de morcego, mas digamos que Gordon não fez uma investigação muito profunda para desmascarar o morcego, quem quer que fosse.
Jason absorveu cada detalhe, tentando juntar as peças de um quebra-cabeça que parecia mais complexo do que ele poderia imaginar, tudo parecia ainda mais emaranhado.
-Gordon era próximo do Batman? - Jason perguntou, franzindo a testa, tentando entender a ligação entre aquelas figuras que pareciam tão diferentes, mas ao mesmo tempo conectadas de maneiras estranhas.
O guarda assentiu meio incerto, um olhar cansado e cínico cruzando seu rosto antes de entoar:
-Próximo? Talvez, eles trabalhavam juntos, meio que uma aliança não oficial, o Batman fazia o trabalho sujo, pegava os bandidos que a polícia não conseguia, e o Gordon dava cobertura pra ele, fingia que era só um mito,, só que, depois que o Coringa se meteu na história, tudo ficou mais estranho, um dia estávamos tentando pegar o cara, e no outro ele estava dentro da delegacia, sendo um de nós.
O guarda fez uma pausa antes de entoar como se contasse um segredo:
-Não sei exatamente o que aconteceu, mas sei que o Batman estava por trás disso, ele convenceu o comissário Gordon na época.
-Convenceu a deixar o Coringa entrar? - Jason perguntou, incrédulo. A ideia parecia absurda. Como alguém como o Batman, que tinha passado anos enfrentando criminosos, poderia querer um homem como o Coringa ao lado da polícia?
O guarda balançou a cabeça, claramente incomodado com as lembranças.
-Não sei como ou por que, só sei que de um dia para o outro o Coringa estava aqui, como se fosse um de nós, e Gordon parecia... diferente, como se estivesse cansado de lutar contra a maré, foi estranho ver um homem que sempre foi a linha dura se curvar assim, mas, era o Batman, sabe? Se ele te pede algo, é difícil recusar, o cara tinha essa aura de autoridade que você não consegue ignorar.
Jason digeriu aquilo. Batman, o vigilante implacável, e Gordon, o comissário que sempre parecia um pilar de justiça, todos de alguma forma entrelaçados com o Coringa. Aquilo não fazia sentido, mas ele conseguia sentir as linhas invisíveis que uniam aqueles homens.
-E o que aconteceu depois? - Jason pressionou, sentindo uma urgência que ele não conseguia explicar.
O guarda suspirou profundamente, como se estivesse carregando o peso de memórias dolorosas.
-Depois? Muitas coisas estranhas, Gordon começou a simpatizar pouco a pouco com o Coringa de um jeito que ninguém entende até hoje, talvez tenha visto algo no palhaço que a gente não via, quem sabe? - continuou o guarda resignado - só sei que depois disso, foi uma sucessão de bizarrices e no fim o Batman desapareceu, Gordon se aposentou, e o Coringa... bem, ele casou com o Wayne e continua por aqui, fazendo o que faz de melhor, confundir a cabeça de todo mundo.
Jason pensou por um momento, lembrando de suas sessões de interrogatório com o Coringa. O ex-terrorista tinha mencionado Bruce. Jason viu o ex-bilionário, naquele dia, quando o palhaço matou os assaltantes a sangue frio. Jason experimentou a dinâmica do relacionamento de ambos. Bruce parecia um cara estranho.
-E o Wayne ? O que você acha dele ? - perguntou o adolescente, sondando o que o outro homem podia lhe dizer. Essa era uma cidade bem peculiar.
-Wayne ? Ele sempre foi estranho, sempre envolvido com coisas que ninguém entendia, mas eu achava que ele era só mais um playboy excêntrico, daí ele se junta ao Coringa, e ficou ainda mais esquisito.
Jason, agora mais curioso do que nunca, franziu a testa. Ele nunca tinha pensado muito em Bruce Wayne além das manchetes antigas que tinha acesso em sua cidadezinha do Texas, e agora, ouvir o guarda falar desse jeito o fazia questionar algumas coisas.
-Wayne entrou em decadência, uns escândalos com as empresas, coisas malucas mesmo, ele simplesmente desistiu de tentar reerguer tudo - continuou o guarda olhando para o adolescente com uma sobrancelha arqueada - você sabe o que é ver um cara que tinha tudo de repente jogar tudo fora por causa de um lunático? Wayne não é um idiota, mas é estranho pra caramba, é o tipo de cara que desaparecia por dias, semanas, ninguém sabia onde ele estava, nem o que ele fazia, agora ele brinca de casinha com o Coringa, como se isso fosse normal, parece que ele tá sempre no lugar errado, na hora errada.
Jason processava cada pedaço dessa história, tentando entender a mente de um homem como Bruce Wayne. Para ele, tudo soava como um grande quebra-cabeça emocional, onde cada peça não se encaixava direito. Jason tinha ouvido o tom frio do Wayne naquele dia na padaria, quando o Coringa matou os assaltantes. Era como se o ex-bilionário tivesse retirado uma máscara de calma e polidez.
-Ele deve ter algum motivo, né? -Jason arriscou, sem saber ao certo se estava perguntando ou afirmando - tipo, para estar com o Coringa.
O guarda bufou, amargurado.
-Talvez, mas ninguém sabe qual é a do Wayne, ele é um cara reservado, distante.
Jason olhou pensativo para o guarda, que ficou em silêncio antes de bufar com um tom meio amargo e falsamente divertido:
-Fora toda a bizarrice, eles até que são um casal bonitinho.
Jason arqueou uma sobrancelha, surpreso. O guarda não parecia ter demonstrado qualquer coisa positiva em relação aos dois.
-Bonitinho? Você está falando sério? - entoou o adolescente.
-Sério, sim - confirmou o guarda, continuando - não me entenda errado, acho o Coringa um monstro e o Wayne um idiota, mas a relaçao deles é bem interessante, porque o Coringa é caótico, e o Wayne é todo certinho e sempre controlado, no entanto, quando eles estão juntos, parece que há uma química estranha entre eles, o Coringa provoca o Wayne, e ele fica todo sério, mas você vê um brilho nos olhos dele, como se ele estivesse se divertindo com isso, mesmo que não admita, mas eu já vi do que o Coringa é feito, garoto, e ele não muda, ele só se adapta, ele vai cansar de brincar de casinha.
Com essas palavras o guarda começou a escoltar Jason pelos corredores sombrios da delegacia. O adolescente pensou nas palavras do guarda. O trajeto até a van de transporte foi silencioso, sem mais palavras. Jason manteve o olhar fixo em frente, o peso das algemas ainda uma presença constante. Ele odiava a sensação de estar vulnerável, de não ter controle sobre o próprio destino.
Quando finalmente se acomodou no banco da van, ele sentiu os olhares dos outros detentos e guardas, mas não se importou. Seu pensamento estava distante, em algum lugar entre o medo do que estava por vir e o desejo incessante de encontrar respostas. O veículo deu partida, e Jason olhou pela pequena janela gradeada.
As ruas se desenrolavam à sua frente, a cidade viva e indiferente aos seus problemas. Ele se perguntava onde estaria sua mãe agora. Será que ela pensava nele? Será que ela sentia algum tipo de arrependimento pelas escolhas que havia feito? Jason queria acreditar que sim, mas a raiva e o ressentimento nublavam seus sentimentos. Parece que ele ficou lá por muito tempo. Ele não saberia dizer.
Jason foi arrancado de seus pensamentos quando a van parou abruptamente. Eles tinham chegado à casa de detenção juvenil. A porta traseira foi aberta, Jason respirou fundo e saiu, encarando a fachada do prédio cinzento que agora seria sua nova "casa". Cada passo era um lembrete de sua realidade, de que ele estava preso em um ciclo de abandono e desconfiança.
Ele foi conduzido para dentro. O processo de entrada era impessoal, mas isso não o afetava mais. O que o incomodava era o vazio que sentia, uma mistura de raiva e tristeza que ele não conseguia sacudir. Depois de ser registrado e revistado, foi levado a uma cela compartilhada. O outro garoto na cela o observou com curiosidade, mas Jason apenas jogou sua sacola no chão e se sentou na cama. Ele não estava interessado em amigos.
Jason encarou o nada por um momento antes de fechar os olhos, tentando se desligar daquela nova realidade. Ele ainda não sabia como iria encontrar sua mãe, mas o desejo de vê-la e exigir respostas crescia a cada segundo. Ele se forçou a lembrar da promessa que fizera a si mesmo: ele encontraria sua mãe, ele entenderia o que a havia feito escolher o caminho que escolheu
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Bruce saiu da delegacia um pouco transtornado. Tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. E a mais recente bomba pairando sobre suas cabeças, era o assassinato de agente Martin. O ex-bilionário suspirou entrando em seu carro com uma carranca, antes de bater no volante afrouxar a gravata. Ele estava frustrado.
A lembrança da brutalidade com que Martin fora morto o assombrava. Aquela morte não era apenas mais um crime, era um lembrete da falha de Bruce em proteger aqueles que estavam sob sua responsabilidade. Ele ligou o motor, mas não saiu imediatamente. Olhou para fora, observando o movimento frenético na delegacia.
O ex-bilionário não podia voltar para a promotoria. Ele estava pensando em ir até Bane, conversar sobre Talia.. Eles sempre tiveram uma ligação especial. Mesmo preso em blackgate, se alguém sabia alguma coisa sobre o paradeiro de Talia, esse alguém era Bane.
Bruce rapidamente deu partida, voltando para seu apartamento. Ele ainda tinha o kevlar no quarto lacrado, embora não o usasse a um ano. A figura do Batman era essencial para continuar com essa investigação, como Bruce Wayne ele não podia fazer muito mais.
Ao chegar ao prédio, a familiaridade do lugar o acalmou temporariamente, sua vida atual tinha uma suavidade estranha. No entanto, a urgência do que estava por vir o puxava para dentro, para aquele quarto escuro onde o passado e o presente se entrelaçavam de uma forma constante.
O moreno adentrou no apartamento soltando uma respiração que nem mesmo sabia que estava prendendo. Ele se dirigiu pelo corredor, o corredor com as fotos dele e do Coringa, pedaços da vida que ele conseguiu construir no último ano. Bruce olhou pela última vez em volta antes de chutar a porta algumas vezes. Ele sabia que a maioria dos vizinhos não estavam em casa.
Bruce sempre foi um homem cuidadoso, ele fez questão de escolher um apartamento simples, em um prédio modesto e com pessoas que não tem tempo para cuidar da vida dos outros. O moreno sempre foi um homem discreto sobre sua vida pessoal. A última coisa que ele queria eram pessoas prestando mais atenção do que o necessário nele e no Coringa.
A porta do quarto lacrado se abriu com um rangido suave, revelando um espaço que parecia congelado no tempo, repleto de lembranças de quem ele fora antes de abdicar de sua vida como Batman. A luz fraca filtrava-se pelas frestas, criando um jogo de sombras nas paredes, onde as armaduras e equipamentos do vigilante estavam meticulosamente organizados. Ele se aproximou do cofre que continha o traje. As texturas do kevlar, familiar e reconfortante, despertaram uma onda de nostalgia.
Ele já tinha aparecido como morcego no ano passado em plena luz do dia várias vezes, mas nunca deixava de ser estranho para ele. Bruce vestiu o traje, sentindo o peso em suas costas. Era sempre um fardo difícil de carregar. Ele tinha aposentado o morcego, aposentado para viver uma vida mais simples, uma vida ao lado do Coringa…de Jay. A cidade sobreviveu até o momento.
Ele olhou para suas roupas no chão; só faltava as luvas e o traje estaria completo. O moreno retirou sua aliança, um gesto automático que parecia tão carregado de significado. As luvas foram vestidas em um movimento rápido, mas, no momento seguinte, ele segurou a aliança na palma da mão, pensativo.
O peso do anel parecia muito maior do que seu tamanho real, como se contivesse todo o peso das decisões que ele tinha tomado. Bruce se lembrou do simbolismo que representava, um compromisso que não era apenas com Jay, mas com a vida que ele havia escolhido. Ele se viu preso entre o desejo de retornar a um mundo que conhecia e o medo de perder tudo o que havia construído ao lado do Coringa caso fosse pego pelas autoridades. Afinal, o Batman estava sendo investigado e respondendo a um processo em aberto. Se fosse descoberto, iria para a prisão, e seu segredo seria revelado.
O ex-bilionário suspirou e guardou a aliança no bolso do traje. Ele sabia que o Coringa não se importaria com isso. O louco nunca foi exatamente o tipo de pessoa convencional. Todavia, ele se via preso mais uma vez em um jogo. Bruce não gostava disso.
Ele não gostava de ser uma peça em um tabuleiro cujas regras mudavam a cada movimento. Era um papel que ele conhecia bem, mas agora, a pressão era diferente. Com um último olhar para o reflexo no espelho, ele se virou e saiu do quarto. O caminho para a porta de saída do quarto parecia mais longo do que nunca. Cada passo ecoava como um lembrete da escolha que estava prestes a fazer. Trazer de volta da aposentadoria, o morcego vigilante.
Bruce caminhou com passos pesados, sentindo cada passo como um desafio silencioso. Ao fechar a porta, a escuridão e a poeira ficaram trancadas do outro lado, junto com as memórias de quem ele fora antes de abdicar do manto. Mas agora, com o peso do kevlar em seus ombros, Bruce sabia que não podia mais se esconder.
Ele atravessou o corredor do apartamento, passando por fotos em molduras tortas que mostravam uma vida tão contraditória quanto ele próprio. Fotos dele e Jay sorrindo em momentos descontraídos, como se fossem apenas dois homens comuns vivendo uma vida comum. Em um canto, uma foto antiga do Coringa com maquiagem borrada, tirada em uma noite que nenhum dos dois lembrava direito. Essas imagens eram provas de que, contra todas as probabilidades, eles tinham encontrado um jeito de fazer aquela loucura funcionar. Mas o retorno ao traje, a máscara que o definia, ameaçava tudo isso. Bruce não se deixaria ser pego. Ele voltaria, seria só mais dessa vez.
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Bane estava em sua cela, quando o morcego adentrou com sua presença ameaçadora depois de tanto tempo. Bane não esperava ver o vigilante tão cedo. Mas ele não estava surpreso que ele estivesse de volta.
Bane ergueu a cabeça lentamente, os olhos sombrios e cansados encontrando a figura imponente do Batman. Apesar das correntes que prendiam seus pulsos e a cela fortificada de Blackgate, Bane ainda exalava uma aura de poder inquebrável. Ele se recostou na parede de concreto, ajustando a máscara respiratória que era ao mesmo tempo um símbolo de sua força e sua maldição.
-Pensei que havia pendurado a capa para sempre, morcego - Bane murmurou, a voz grave e arrastada ecoando na cela apertada - mas vejo que velhos hábitos são difíceis de abandonar.
Batman permaneceu imóvel por um momento, suas silhuetas mesclando-se com as sombras que preenchiam a cela. Seus olhos perscrutavam cada detalhe do rosto de Bane, cada movimento mínimo que poderia denunciar uma mentira ou uma verdade escondida. Ele sabia que Bane sempre foi um adversário astuto, um estrategista que raramente mostrava todas as suas cartas.
-Você sempre espera o pior de mim, Bane - respondeu Batman, a voz carregada de um cansaço silencioso, mas firme - mas eu não vim aqui para reviver o passado, eu quero informações, e você vai me dar.
Bane soltou uma risada seca, um som rouco que mais parecia um grunhido.
-Informações... Sempre um jogo de troca, não é? Mas você não tem nada para me oferecer desta vez - Bane enfatizou - está mais perdido do que nunca, se está voltando a vestir o traje, o que houve com sua aposentadoria feliz ?
Batman não reagiu à provocação. Em vez disso, ele deu um passo à frente, a capa se movendo silenciosamente atrás dele.
-Talia - disse o vigilante impaciente - onde ela está?
-Porque você acha que eu saberia ? Eu não vejo Talia há muito tempo - disse Bane com um bufo.
-Você deve saber alguma coisa, você sempre teve um carinho muito especial por ela - enfatizou o morcego - onde ela está, Bane ?
Bane estreitou os olhos, e por um momento, um lampejo de algo indecifrável passou por seu rosto, quase como se estivesse decidindo o quanto queria revelar. Ele ajustou a postura, as correntes tilintando levemente, um som que parecia marcar o tempo que corria contra Bruce.
-Talia não é uma criança perdida, Batman - Bane disse lentamente, a voz carregada de algo entre desdém e cansaço - ela é a filha de Ra’s al Ghul, ela sabe se esconder melhor do que qualquer um de nós, e se não quer ser encontrada, você vai precisar de mais do que perguntas para achá-la.
Batman avançou mais um passo, suas botas ressoando no concreto da cela. Ele estava próximo o suficiente para que Bane pudesse ver o brilho intenso dos olhos por trás da máscara.
-Eu sei que ela procurou você, se ela voltou, ela te procurou, porque vocês têm uma ligação antiga - falou o vigilante com uma pontada de impaciência - eu preciso saber o que Talia está planejando, o DNA dela estava em uma cena de crime deixada pelo Contador de Histórias.
-De novo esse cara ? - Bane arqueou a sobrancelha - o que ele quer agora ?
-Eu não sei - admitiu Bruce - mas Talia é a minha melhor pista até agora, então você precisa me contar o que você sabe.
Bane bufou divertido por um momento antes de dizer:
-Você ainda acha que pode me intimidar, Morcego? Eu não sei onde ela está, mas se ela está com o Contador de Histórias, é porque ele prometeu algo que nem mesmo Ra’s poderia oferecer, bom para ela, que tenha sucesso.
Batman se manteve firme, mas por dentro sentia a frustração crescer. Bane era um adversário difícil, alguém que só falava o que queria, quando queria. Cada resposta de Bane parecia um enigma, uma nova camada de um jogo que Bruce estava cansado de jogar. Ele sabia que não podia confiar plenamente nas palavras de Bane, mas cada detalhe, por menor que fosse, poderia ser uma pista vital.
-Você acha que isso é um jogo, Bane? - Batman rosnou, sua voz baixa e cortante como lâminas - se Talia está envolvida com ele, ela está em perigo.
Bane suspirou como se estivesse cansado da conversa antes de dizer:
-Se você quer encontrá-la, deve pensar como ela, Talia não deixa pistas sem razão, se o DNA dela foi encontrado, é porque ela quer que você saiba que ela está envolvida. Talvez ela esteja pedindo ajuda... ou te levando para uma armadilha, mas o que eu sei ? Você devia deixar Talia em paz, cansou de brincar de casinha com o Coringa ?
Batman estreitou os olhos, e sua expressão endureceu ao ouvir a provocação de Bane. As palavras carregavam veneno, uma tentativa clara de desestabilizá-lo. No entanto, ele não podia se dar ao luxo de perder o foco. Cada segundo perdido ali era um segundo a mais em que Talia e o Contador de Histórias poderiam estar agindo sem serem interrompidos.
-Deixe o Coringa fora disso - retrucou Batman, a voz baixa, mas cheia de intensidade - você sabe que o Contador de Histórias não deixa pontas soltas, não faz alianças sem segundas intenções, e se ele a trouxe para esse jogo, significa que ele tem um plano, e eu não vou permitir que mais inocentes paguem o preço.
Bane observou Batman por um longo momento, como se estivesse avaliando o quão longe o vigilante estava disposto a ir desta vez. Ele sabia o que era enfrentar o Morcego em seu auge e em seus momentos de queda. Ele sabia que o Batman atual não era o mesmo que enfrentara anos atrás. Esse era um Batman mais cansado, e Bane podia sentir isso no ar pesado entre eles.
-Você sempre precisa disso, ficar bancando o herói - zombou Bane.
-Você não sabe nada sobre o que eu preciso - respondeu Batman, a voz carregada de uma firmeza que escondia um cansaço antigo - mas eu sei o que você quer, você ama Talia, mas você vai ficar aqui, acorrentado e impotente, enquanto o mundo continua girando sem você, enquanto ela continua, sem você.
Bane não desviou o olhar. Seus olhos escuros, cheios de um ódio contido, encontraram os do Morcego. Havia uma ferocidade calma nele, uma aceitação de seu destino que o tornava ainda mais perigoso. Por mais que o Morcego tentasse pressionar, Bane não cederia tão facilmente. Bruce sabia que havia atingido um ponto vulnerável com suas provocações.
-Você fala como se tivesse todas as respostas - Bane murmurou, o tom sarcástico mascarando a dor em suas palavras - mas a verdade é que você está tão preso ao passado quanto eu, você sempre volta, não importa o quanto tente se afastar.
Batman manteve a postura firme, mas cada palavra de Bane era um lembrete cruel de que suas cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais, ainda estavam longe de serem curadas. Ele havia deixado o capuz de lado por um ano, mas, no fundo, sabia que jamais conseguiria se libertar completamente disso.
-Eu não preciso das suas lições de moral, Bane - rosnou Batman, a voz saindo firme, mas com uma ponta de exaustão que ele não conseguia mais esconder - você acha que é o único que entende sacrifícios? Você acha que é o único que sabe o que é perder?
-Eu sei que você perdeu muito mais do que vai admitir - bufou Bane se recostando na parede - mas o que você nunca vai entender, é que algumas perdas são escolhas, você escolheu o Coringa, escolheu Gotham, e agora está escolhendo essa obsessão pela Talia, mas ela... ela nunca vai escolher você, não de novo.
-Eu não quero que ela me escolha para nada Bane - rosnou o moreno apertando os punhos - só quero impedir que pessoas se machuquem, que inocentes paguem por uma guerra que não é deles.
-Sempre o mártir - zombou Bane frente ao que foi dito pelo morcego - o pobre menino rico empurrado para o abismo, no fim, você e eu não somos tão diferentes, nossas histórias sempre voltam para onde começaram: dor, perda, e a necessidade insaciável de controle.
Por um momento, um silêncio pesado pairou na cela, preenchido apenas pelo som distante do gotejar de água e o eco das correntes de Bane. Bruce sabia que precisava de mais do que provocação para extrair as respostas que queria. Ele precisava apelar para algo que Bane realmente valorizasse.
-Eu não estou aqui para discutir nossas tragédias pessoais - disse Batman, endireitando-se, voltando ao foco - se o Contador de Histórias trouxe Talia para o jogo, ele vai usá-la, e você sabe como isso termina, você pode me odiar, Bane, mas não pode negar que, no fundo, você se importa com ela.
Os olhos de Bane brilharam brevemente com algo que quase parecia ser dor, uma fração de segundo em que a máscara de força impenetrável vacilou.
-Você não sabe o que está falando - Bane sussurrou, mas a convicção não estava ali - Talia sabe se cuidar, e ela não precisa de você para isso.
-Só que ela não está lidando com qualquer um - insistiu Batman, sua voz se tornando mais incisiva - o Contador de Histórias é imprevisível, ele manipula, distorce, e se ela estiver ao lado dele, é só uma questão de tempo até que ela também se torne uma vítima.
Bane fechou os olhos, respirando fundo pelo aparato que mantinha sua dor à distância. Ele estava preso, impotente, mas isso não diminuía o ódio e o ressentimento que sentia por estar alheio aos acontecimentos que se desenrolavam lá fora. Em um mundo onde ele poderia agir, ele estaria ao lado de Talia, protegendo-a das garras de qualquer um, inclusive do próprio Batman. Mas naquele momento, ele era apenas um prisioneiro, incapaz de mover as peças que mais importavam.
-Se me ajudar a sair daqui - começou Bane abrindo os olhos - posso encontrar Talia, não acho que pega bem, o que o seu marido diria de te ver correndo atrás da sua ex-namorada dessa forma ?
-Na verdade ele acha terrivelmente hilário - ofereceu Bruce com um tom neutro.
-Isso é a cara dele - bufou Bane com humor - porque eu pensei que o palhaço seria ciumento ? Mas enfim, temos um acordo ?
Batman cerrou os dentes, ele esperava não se arrepender disso.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui, comente para me deixar feliz :)
Chapter 14: The Gotham We Have (Parte 14)
Notes:
Eu estou atrasado kkkk mas enfim, aqui está o capítulo dessa semana. Esses capítulos longos ocupam muito do meu tempo, mas acho melhor do que colocar muitos capítulos curtos. Obrigado a todos que estão acompanhando :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Sarah estava em sua mesa, havia outro DNA junto ao de Talia, embora estivesse em menor quantidade. No entanto, ele até o momento não tinha conseguido bater com o DNA de ninguém conhecido. Depois de um momento, a agente pensou nos DNA´s inconclusivos, outros cujo os donos nunca foram encontrados. Para a sua surpresa, o material genético bateu.
O material genético encontrado junto com o de Talia, era de uma cena de crime de mais de 3 anos atrás. Sarah abriu o arquivo do ocorrido. Não era nada muito interessante, um daqueles casos arquivados no qual ninguém foi preso. Era um caso de violência doméstica, um homem foi preso, mas…uma mulher e o filho de um mês de idade nunca foram encontrados. Sarah pensou por um momento em silêncio.
O nome do homem era Gerald Mullks, a mulher que realizou o boletim de ocorrência contra ele era sua esposa, Amélia Mullks. No entanto, a mulher desaparecida não era Amélia, havia outra mulher. Sarah abriu o restante dos arquivos sobre o caso, o nome dela e da criança não foram mencionados nenhuma vez. Isso era estranho.
A agente reuniu os papéis em um momento, se dirigindo para a sala do tenente Chuck. Ela andava pela delegacia em passos largos, ela tinha o endereço da casa. No entanto, a agente não sabia ao certo o que o Contador de Histórias queria, cruzando esse caso com o DNA de Talia, parecia muito incomum.
-Chuck - entoou a agente entrando na sala do tenente.
-Sarah ? - indagou o homem vendo a mulher adentrar em sua sala e fechar a porta com uma expressão dura.
-Chuck - continuou a mulher - eu acho que descobri uma coisa.
O tenente levantou os olhos da pilha de documentos em sua mesa, seu semblante se tornando mais sério ao notar o tom de urgência na voz de Sarah. Ele se recostou na cadeira, indicando para ela continuar.
-O que foi? - ele perguntou, já antecipando que o que ela trouxera seria relevante.
Sarah colocou os papéis na mesa de Chuck e apontou para o arquivo de um caso arquivado.
-Lembra do DNA que encontramos junto ao de Talia? Até agora, não tínhamos conseguido vinculá-lo a ninguém conhecido, mas… - explicou a agente - acabei de conseguir uma correspondência.
Ela fez uma pausa, organizando seus pensamentos antes de prosseguir :
-O DNA corresponde a uma cena de crime de mais de três anos atrás, um caso de violência doméstica envolvendo um homem chamado Gerald Mullks, ele foi preso, mas uma mulher e um bebê mês de idade desapareceram, o estranho é que a mulher desaparecida não era a esposa dele, Amélia.
Chuck franziu o cenho, pegando o arquivo e começando a folheá-lo rapidamente.
-Quem era a mulher ? - perguntou o tenente franzindo o cenho.
-Eu não sei, o nome dela não aparece nos arquivos, mas o DNA é dela - terminou a agente com um suspiro - temos o endereço da casa onde o DNA foi encontrado três anos, talvez devêssemos olhar com mais cuidado para outros aspectos.
-Qualquer coisa que estivesse lá já se deteriorou - suspirou o tenente - três anos é muito tempo.
-O Contador de Histórias possivelmente sabe disso - falou a mulher com um tom neutro - ele parece querer nos mostrar alguma coisa, de novo, bem…o que vamos fazer ? Avisamos o comissário Castro ?
-Não - falou o tenente se levantando para andar pela sala - vamos manter a descrição, vá com o agente Taylor e veja o que pode conseguir, mas tenha cuidado.
Sarah assentiu, pegando os papéis de volta e se preparando mentalmente para a próxima etapa. A última coisa que ela queria era atrair a atenção de Castro ou de qualquer outra autoridade superior enquanto o caso ainda estava envolto em mistério. Ela sabia que o Contador de Histórias tinha uma habilidade macabra de manipular as situações a seu favor, e qualquer passo em falso poderia custar mais do que estavam dispostos a pagar.
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O Coringa seguiu o ex-psiquiatra pela rua até chegar em um prédio um pouco desgastado. Eles subiram em silêncio, não dando muita atenção aos estranhos moradores. Quando adentraram no apartamento, ambos deram de cara com um cara deitado no sofá, com um jornal no rosto. Ele parecia dormindo, embriagado.
-Levanta Sam - entoou Andy batendo no pé do outro homem - nós temos visita.
O homem deitado se mexeu, afastando o jornal do rosto com um movimento sonolento. Ele não abriu os olhos, nem fez qualquer menção de se levantar.
-Quando aceitei dividir o apartamento, combinamos que você ia me deixar em paz - entoou Sam com um tom sonolento, ainda com os olhos firmemente cerrados pelo sono - não aguento mais os barulhos inapropriados que vem do seu quarto, procure um motel para fazer as suas merdas.
Andy revirou os olhos antes de dizer para o homem ainda deitado com um suspiro:
-A visita é diferente dessa vez, eu só preciso que você dê uma volta para a gente conversar.
Sam abriu os olhos, olhando para os dois homens de pé na sala com uma expressão desdenhosa antes de fixar os olhos no Coringa. Sam o reconheceu com um estremecimento, ele conhecia o palhaço. Em seus muitos anos no submundo de Gotham, ele já tinha cruzado com pessoas nada agradáveis.
Sam ficou paralisado por um segundo, o sono desaparecendo rapidamente de sua expressão. O jornal caiu no chão enquanto ele se sentava devagar no sofá, os olhos arregalados e agora totalmente despertos. Ele piscou, como se esperasse que a visão desaparecesse por pura vontade.
-Ah, não... não… - Sam disse, sua voz falhando com raiva enquanto se levantava apressadamente do sofá - você só pode estar brincando comigo, eu te avisei que não queria mais essa merda na minha vida ! Você trouxe ele pra cá? O que diabos você tá pensando ?!
O ex-psiquiatra cruzou os braços, visivelmente impassível diante da explosão de Sam. Seu olhar frio não se abalava com as palavras do outro homem.
-Relaxa, Sam - disse Andy, com um tom cansado, mas firme - ele só vai ficar aqui por um um momento, nós precisamos discutir algumas coisas... particulares, e como eu disse, seria melhor se você desse uma volta.
-Você tá louco, Andy? - devolveu Sam com um tom cansado - primeiro você começa a seguir o cara, e depois você o traz para cá ? Seu psiquiatra sabe disso ?
O ex-psiquiatra apenas revirou os olhos antes de repetir com firmeza:
-Sam, só preciso que você dê uma volta, não se meta nos meus assuntos.
Sam não disse nada, ele parou de falar, mordendo as palavras que quase saíram. Os olhos de Sam estavam carregados de uma mistura de raiva e algo próximo de medo, e ele lançou um olhar rápido para o Coringa, que o observava com um sorriso discreto, mas afiado. Sam sabia sobre a morte de Annie, ele sabia o que Andy já havia feito com o Coringa, e o que o palhaço tinha feito com o ex-psiquiatra também. Ele não precisava dizer em voz alta. A tensão na sala, o silêncio desconfortável que seguiu, falava tudo.
-Isso vai acabar muito mal - disse Sam, os dentes cerrados, enquanto pegava sua jaqueta jogada em uma cadeira próxima - e você quiser se queimar, tudo bem, mas não me envolve nessa merda.
Ele passou pelos dois, sem olhar para trás, e saiu, batendo a porta com força.
Quando o silêncio voltou ao ambiente, o Coringa finalmente se mexeu. Seus olhos brilharam de diversão enquanto soltava uma risada baixa e provocativa.
-Você realmente sabe como fazer amigos, Andy.
O ex-psiquiatra ficou em silêncio por um longo momento após Sam sair, encarando a porta batida com um olhar distante. Ele sabia que Sam estava certo, e talvez fosse isso que mais o incomodava. Mas não tinha tempo para se preocupar com as palavras do colega de apartamento. Havia algo mais urgente.
O Coringa, do outro lado da sala, parecia quase alheio à tensão, mas Andy podia ver as pequenas mudanças. O ex-terrorista estava imerso à névoa dos remédios. Ele parecia um pouco cansado.
-Você não quer se sentar ? - perguntou Andy olhando atentamente o loiro.
-Vá direto ao ponto - falou o palhaço entre os dentes - não quero ouvir a sua voz por mais tempo do que o suficiente.
-Sempre tão encantador…- zombou Andy revirando os olhos antes de continuar - tem um cara observando seu apartamento, notei ele a alguns dias, ele provavelmente entrou lá também, se eu fosse você ou Bruce, eu procuraria por câmeras ou escutas.
-Foi você que entrou - disse o louco simplesmente, passando a língua no lábio inferior, seu olhar embora cansado era tempestuoso - não tente me manipular.
-Eu não fiz isso - rebateu o ex-psiquiatra - se eu tivesse feito, porque estaria aqui te contando isso ?
-Porque não deu certo, Brucie é muito bom em notar as coisas - ofereceu o louco com um sorriso desdenhoso.
Andy respirou fundo, lutando contra a frustração que começava a subir. Ele sabia que era difícil convencer o Coringa principalmente levando em conta o histórico de ambos.
-Olha, eu estou falando a verdade - disse Andy, tentando manter a calma - não temos tempo para isso, o que eu vi foi sério.
O Coringa inclinou a cabeça para o lado, observando-o com uma expressão que misturava curiosidade e desdém. Ele bufou pouco, como se ver o outro homem tentando manter a calma o divertisse.
-Você sabe, Andy, essa sua preocupação toda me faz pensar que você realmente se importa - começou o louco passando a língua no canto dos lábios, sua voz embebida em um falso tom de diversão, antes que ele o mudasse para um tom frio e sombrio - pare com essa merda.
Andy se aproximou, ele podia ver além das camadas de veneno que o Coringa estava lançando agora. O loiro estava desconfortável, estava dopado de remédio. Ele não era uma ameaça real. O ex-terrorista estreitou os olhos na direção do outro homem ao notar que o ex-psiquiatra se aproximava. Seu sangue fervia, embora ele se sentisse cansado.
O ex-psiquiatra estava a menos de dois passos do loiro quando sua expressão ficou fechada. Andy parecia ter perdido seu tom gentil e manipulador.
-Escuta aqui, maluco - disse Andy entre os dentes - eu só estou tentando ajudar, eu nem sei porque, então não faça com que eu me arrependa disso.
O louco sustentou o olhar, lambendo o lábio inferior com uma expressão séria. A tensão no ar era palpável.
-Eu não pedi sua ajuda - devolveu o louco, seu tom era cortante.
Andy tentou levantar uma das mãos, mas rapidamente teve que recuar alguns passos para trás. O ex-terrorista empunhou uma faca, rasgando o ar com uma expressão de poucos amigos.
-Não encosta em mim, porra - ronsou o Coringa entre os dentes, seu tom pingando de raiva contida - se você fizer isso de novo, eu vou matar você.
Andy ficou em silêncio, ele sabia que o palhaço tinha motivos para não confiar no que ele estava falando, que o histórico deles não era dos melhores. O ex-psiquiatra suspirou se afastando, ele teria que tentar uma outra abordagem.
-Você quer um chá ? Um café ? - ofereceu o ex-psiquiatra se sentando no sofá do outro lado da sala com um bufo cansado.
O Coringa ficou em silêncio, ele nunca aceitaria nada que viesse do outro homem. Andy estava tentando pegá-lo de guarda baixa, mas isso não aconteceria. Ele podia ter os remédios em seu sistema, deixado sua mente confusa, mas ele não se deixava dobrar. Por outro lado, ele se sentia tão cansado. Ter concordado, meio a contra gosto, em ir com Andy, foi uma péssima escolha.
-Eu não estou aqui para te machucar - disse Andy, com a voz mais suave, embora seu coração estivesse acelerado. Ele queria que o Coringa soubesse que, apesar do que aconteceu entre eles, ainda havia um traço de empatia, ainda que pequeno.
O palhaço continuou em silêncio, sua expressão de raiva fria não vacilava. Ele não comprava as palavras do outro homem, ele sabia exatamente com quem estava lidando. Ele odiava estupradores, o palhaço nunca entendeu o propósito por trás desse ato em particular. O ex-terrorista não se importava com a moralidade disso, não, não se tratava de moralidade ou de ética, era só que, ele realmente não entendia a graça naquilo. Ele estava tentado a perguntar para o outro homem.
Andy notou a mudança sutil na postura do Coringa, a tensão se intensificando no ar, como se a sala estivesse prestes a explodir. O olhar do palhaço estava focado, os músculos tensos, pronto para reagir a qualquer movimento. O ex-psiquiatra respirou fundo, tentando reunir as palavras certas para quebrar o gelo.
-Olha, eu sei que temos um histórico complicado - começou Andy, escolhendo as palavras com cuidado - mas eu realmente não estou aqui para discutir o passado, o que aconteceu entre nós foi... complicado, mas eu me preocupo com você, e você precisa da minha ajuda.
O palhaço apertou os dentes com raiva. O ex-psiquiatra notou dando um suspiro antes de dizer:
-Ele, o cara que estava rondando sua casa e de Bruce, é um estudante, não sei quem ele é, mas parece fazer estágio no jornal, eu o segui até o Gotham Times, acho que ele é estagiário.
-Um estudante ? - indagou o Coringa surpreso, baixando a faca com um movimento lento antes de franzir o cenho e lamber o canto dos lábios - isso é interessante, mas o que ele ganharia com isso ?
-Eu não sei, mas acho melhor você ficar de olho nisso - falou o ex-psiquiatra - notei que ele parece saber exatamente a rotina de vocês.
-Eu não tenho uma rotina - o Coringa disse em um tom ilegível - os meus horários são irregulares.
-Sim, eu sei - falou o ex-psiquiatra - por isso eu acho que ele não está observando você, e sim Bruce, mas é apenas um palpite.
-Porque um estagiário do Gotham Times estaria vigiando Bruce ? Isso nem faz sentido - falou o louco passando a língua no canto dos lábios, uma pontada de frustração vazando um seu tom.
-Não faça ideia - respondeu Andy - mas tome cuidado, Jay.
O ex-terrorista ficou em silêncio por um momento antes de torcer o rosto em uma expressão de desconforto.
-Já disse para você parar de me chamar assim.
-Não parece justo te chamar de Coringa depois de tudo - o ex-psiquiatra deu de ombros - eu e você já passamos dessa fase.
-Escuta aqui - falou o palhaço passando a língua furiosamente pelo canto dos lábios, seu tom vazava mania - só existem duas pessoas nessa vida que podem me chamar assim, uma delas é Bruce, e a outra está morta.
-Bem, eu sou a terceira pessoa que pode te chamar assim, Jay - provocou o ex-psiquiatra com um tom divertido.
O Coringa apertou o cabo da faca com mais força, o olhar fixo em Andy, cada palavra do ex-psiquiatra provocando um misto de raiva e desprezo. Ele não gostava de ser manipulado, muito menos por alguém que conhecesse seu passado tão bem quanto Andy. Por um instante, pareceu que o palhaço iria reagir de forma mais agressiva, mas em vez disso, ele apenas bufou, os remédios o deixavam muito cansado.
-Esses remédios parecem te deixar cansado - observou o ex-psiquiatra - talvez você devesse considerar a minha oferta de tomar um café.
Coringa o encarou com uma expressão que misturava desprezo e uma pontada de vulnerabilidade. Ele sabia que Andy estava apenas tentando parecer prestativo, mas não confiava nele, nem um pouco. A ideia de compartilhar qualquer coisa com aquele homem, mesmo que fosse apenas um café, era repulsiva. Ainda assim, o ex-psiquiatra tinha razão sobre os remédios, eles o deixavam lento, e sua mente, que antes se movia rápido como uma lâmina afiada, agora estava enevoada, pesada. Ele odiava isso, ele sentia que não conseguia pensar com clareza.
O silêncio entre eles se alongou enquanto o ex-terrorista decidia se continuaria com as provocações ou se cederia ao cansaço que tomava conta de seu corpo. Finalmente, ele suspirou profundamente, balançando a cabeça levemente.
-Eu não quero seu café, eu não quero nada de você - disse o louco categoricamente, lambendo o canto dos lábios - o que eu quero é que você pare de achar que pode se aproximar de mim depois de tudo.
Andy olhou brevemente para o chão do sofá onde estava sentado, como se estivesse considerando algo importante, antes de se levantar com um ar resignado.
-Eu entendi, entendi na primeira vez - disse o ex-psiquiatra entre os dentes - não estou aqui pra te incomodar mais do que o necessário, mas só quero que você saiba que, por mais estranho que isso possa parecer, eu estou tentando fazer algo certo aqui... talvez pela primeira vez em muito tempo.
O Coringa não respondeu de imediato. Em vez disso, ele apertou ainda mais a faca em sua mão, os nós dos dedos brancos. Então, com um sorriso frio, ele respondeu:
-Você acha que pode me comover ? Não seja ridículo, eu desprezo você, só isso, mais nada.
Andy permaneceu em silêncio, o olhar vazio preso no chão, mas não respondeu. A verdade crua das palavras do Coringa reverberava dentro dele. Sabia que, de alguma forma, estava preso no mesmo ciclo, incapaz de se libertar daquilo que havia feito e daquilo que o Coringa representava em sua vida. Era como um câncer.
A tensão no ar permanecia quase insuportável, enquanto Andy absorvia as palavras do Coringa, o peso da verdade caindo sobre ele.
-Eu não me arrependo - disse Andy no silêncio que se seguiu, suas palavras eram pesadas - não me arrependo nem por um segundo.
O Coringa estreitou os olhos, os lábios se curvando em um sorriso que não alcançava seus olhos. O silêncio entre eles era denso, carregado de uma história que nenhum dos dois queria reviver, mas que nunca parecia completamente enterrada. As palavras de Andy, cheias de uma franqueza cruel, reverberaram pela sala como um eco distante.
O palhaço inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse analisando cada pedaço de Andy, decifrando suas intenções com o mesmo cuidado que se usaria para desmontar uma bomba. Ele sentia a raiva familiar fervendo, algo misturado com a amarga ironia. Ele entendia o sentimento, ele também não se arrependia de nada. Mas era diferente, ele não era capaz do sentimento de remorso ou culpa, simplesmente não estava nele.
-Eu faria tudo de novo - continuou o ex-psiquiatra com uma voz neutra - e eu iria adorar cada segundo, não estou pedindo desculpas.
O ex-terrorista bufou, ele não estava surpreso. No entanto, Andy parecia mais em seu elemento, menos histérico do que quando se viram em Blackgate, quando o palhaço amarrou uma bomba no outro homem.
-Bruce é tão carinhoso quanto eu ? - perguntou Andy caminhando até o ex-terrorista só para ter a faca do louco contra sua garganta, o material afiado pressionado contra sua pele - eu sempre fui muito mole com você.
O palhaço bufou entre os dentes, a mania fria lhe impulsionava a cortar a garganta do miserável. No entanto, sua mente sempre tão barulhenta, estava em branco por conta dos remédios. Ele se sentia muito cansado, a ideia de matar Andy, tortura-lo não parecia atrativa. Ele odiava isso, a forma como os remédios alteravam sua cabeça. Ele queria matar o cara, vê-lo engasgar com o próprio sangue e rir disso.
-Você sabe, Brucie é um pão de mel - zombou o louco, tentando esconder o desconforto sob camadas de sarcasmo frio.
-Sempre achei o cara um troglodita - falou Andy levando uma das mãos até o rosto do louco, tocando com os dedos um hematoma esverdeado que já estava sumindo na mandíbula. O Coringa viu vermelho, os dedos de Andy mal tinham tocado sua pele quando o ex-terrorista o empurrou com raiva para longe.
-Eu disse para você não tocar em mim - rosnou o palhaço cheio de mania reprimida.
-Não precisa ficar nesse estado - zombou Andy levantando as mãos em falso sinal de rendição - eu só estou brincando, fora a parte que acho Brucie um troglodita.
-Isso não é uma sessão de terapia - disse o louco em um tom sério, antes de passar a língua no lábio inferior.
-Sempre podemos fazer uma sessão de terapia, você sabe - zombou Andy com um tom de escárnio - sua criança interior que precisa de abrigo sempre terá um ombro amigo para chorar.
-Eu dispenso - falou o louco revirando os olhos, raiva se enrolando em seu interior.
-Independente - Andy deu de ombros - agora você vai aceitar o café ?
O Coringa o encarou por alguns instantes, ainda segurando a faca com firmeza, seus olhos semicerrados como se estivesse tentando decifrar a verdadeira intenção por trás da insistência de Andy. Ele não queria o café, não queria nada que pudesse ser interpretado como uma tentativa de civilidade entre eles. A ideia de compartilhar qualquer coisa com Andy, até mesmo algo tão simples quanto um café, lhe dava náuseas. Ele sabia que isso era parte do jogo do ex-psiquiatra.
-Eu não quero nada de você - rosnou o louco passando a língua no lábio inferior.
Andy, com seu rosto impassível, continuava a manter o tom calmo, mesmo enquanto o Coringa o olhava como se pudesse rasgá-lo em pedaços a qualquer momento. Ele entendia o ódio, a amargura, Andy sentia o mesmo, de uma forma distorcida, misturado com outras coisas que ele tentava lidar.
O ex-terrorista podia sentir sua mente revirando por conta dos medicamentos que tentavam arrastá-lo para uma onda de frenesi. Ele precisava ir embora daquele lugar. O louco sentia o zunido de fundo arranhar a parte de trás do seu crânio com força.
-Eu vou embora - sussurrou o louco, a voz rouca e tensa, embebida em mania contida - antes que eu faça algo de que com certeza não vou me arrepender.
Andy deu um pequeno sorriso, um sorriso que o Coringa detestava. Era um sorriso que dizia que ele sabia exatamente até onde podia ir, exatamente o quão longe podia pressionar o palhaço antes que ele explodisse. E o pior de tudo? Andy não tinha medo. Talvez fosse porque o ex-psiquiatra já enfrentou o pior do outro homem, sabia com quem estava lidando, ele não estava sendo descuidado.
-Você quer que eu ligue para Bruce ? - perguntou o ex-psiquiatra com um tom calmo.
-Não - rosnou o louco passando a língua no canto dos lábios em um tique característico - eu não preciso que você chame Brucie.
-Que tipo de remédios são esses afinal ? Não parece um simples estabilizador de humor - observou Andy com um tom clínico, voltando a ser o psiquiatra que fora outrora. Andy de repente parecia curioso, mas um pouco intrigado.
-Eles parecem acentuar sua psicose, embora pareça diminuir seu comportamento maníaco e agressivo - disse o ex-psiquiatra pensativo - isso é interessante, você não costuma ter ataques psicóticos sem gatilhos específicos.
-Pare de me estudar - disse o louco entre os dentes.
-Só estou intrigado - falou Andy dando de ombros, sua voz totalmente profissional - eu nunca cheguei no seu diagnóstico, sempre achei muito simplista te rotular como um sociopata com comorbidade bipolar tipo 1 e transtorno um esquizoafetivo clássico, eu com certeza não tentaria coibir sua mania acentuando seu comportamento psicótico.
-Não consigo me organizar quando minha cabeça está em silêncio, somente com esse zumbido irritante de estática - falou o palhaço frustrado, abaixando mesmo que momentaneamente suas defesas - eu lidei com a confusão e as vozes intrusivas a minha vida inteira, e quando tomo as pílulas, simplesmente tudo fica muito claro, muito silencioso, e os pensamentos que surgem me desencadeiam ataques psicóticos.
Andy inclinou a cabeça, um olhar de compreensão técnica cruzando seu rosto. Ele podia ver o desconforto do Coringa se manifestar em camadas: a frustração, a raiva reprimida, o vazio induzido pelos medicamentos. O silêncio que o palhaço descrevia era uma arma de dois gumes.
-Silêncio total pode ser aterrorizante quando você se acostumou a um caos interno - observou Andy, com aquele tom clínico que o louco conhecia tão bem - como você descreveria a forma como vê o mundo sob essa nova perspectiva ?
O ex-terrorista pressionou os dentes com força, ele não queria brincar com Andy de terapia, ele não ia dar armas para o outro homem. Ele se sentia mal, ele via o mundo cinza e sem graça, triste. Todavia, dizer isso para o outro homem era perigoso.
O Coringa estreitou os olhos, a expressão se tornando ainda mais fria enquanto encarava Andy, como se cada palavra do ex-psiquiatra estivesse perfurando uma camada invisível ao redor de sua mente. Ele sentia um desprezo crescente, mas misturado com uma angústia insuportável. Admitir qualquer fraqueza para Andy seria como se despir diante do inimigo.
-Não há nada para descrever - rosnou o palhaço, sua voz mais baixa, mas cheia de veneno enquanto ele passava a língua no lábio inferior - tudo parece... uma droga entediante, cinza, triste, é isso o que você quer ouvir?
Andy ficou em silêncio por um momento, analisando o rosto do Coringa com a calma que ele sabia que só o provocava mais.
-Cinza e triste... - repetiu ele, como se estivesse mastigando a palavra. - Isso é bem interessante, acho que isso te induz a um quadro depressivo.
-Você acha que eu me importo? - o Coringa levantou a faca outra vez, girando-a entre os dedos, seus olhos vidrados no ex-psiquiatra - você devia tomar cuidado, porque quando eu explodir, não vai ser nada bonito.
Andy manteve a calma, seu olhar clínico permanecendo fixo no Coringa, embora o brilho de fascínio quase imperceptível surgisse em seus olhos. Ele sabia o que estava fazendo, e o desconforto do palhaço lhe dava uma sensação de controle que ele há muito tempo não sentia. Era como se estivesse novamente no consultório, tentando entrar nas camadas mais profundas de seu paciente resistente. Mas ele também sabia que estava pisando em terreno perigoso.
-Eu nunca duvidei disso - respondeu Andy com a voz baixa, quase um sussurro - mas você está errado se acha que eu estou aqui tentando te provocar para uma explosão, no fundo, você sabe disso.
O Coringa riu, uma risada fria e vazia, enquanto a faca continuava a girar entre seus dedos. O som metálico era quase hipnotizante, mas Andy não desviou o olhar. Ele sabia que o palhaço estava tentando intimidá-lo, mas Andy já tinha passado pelo pior que o Coringa podia oferecer. Aquele jogo, embora perigoso, não era novo para ele.
-Eu sei o que você está fazendo, mas eu não sou mais seu paciente - zombou o Coringa, a faca parando abruptamente em sua mão - não estamos em Arkham, as coisas são diferentes aqui fora.
-Você nunca foi meu paciente de verdade - disse Andy com um tom medido, mas calmo - eu nunca te tratei como tal, eu só estava com raiva de você, eu queria me vingar.
-E não está com raiva agora ? - zombou o louco com um tom de escárnio.
-Eu estou - admitiu o ex-psiquiatra - mas entendi que o que eu sinto é mais…complexo.
O Coringa apertou a faca em sua mão, seus olhos semicerrados com pura repulsa. A resposta de Andy não o surpreendia mais. Não havia nada ali, nada além da mesmice de sempre, não era empatia, não era qualquer laço emocional. Apenas a insistência insuportável de Andy em analisá-lo. O louco não sentia nada por ele, apenas uma raiva velada, fria e constante, como uma brasa incandescente que nunca se apagava. Era ódio puro, não era complexo.
-Complexo? - zombou o palhaço com um bufo divertido, passando a língua ligeiramente pela parte superior do lábio - você acha que alguma coisa entre nós é complexa? É tudo bem simples, você me odeia, eu te odeio, fim da história.
Andy balançou a cabeça lentamente, mantendo seu olhar sereno, como sempre fazia, o que só irritava mais o Coringa. Havia uma calma artificial naquela postura, algo que apenas intensificava a raiva do palhaço. Ele odiava o fato de Andy continuar ali, como se tivesse qualquer controle ou entendimento sobre ele. Se o Coringa quisesse, já teria acabado com aquela cena, a verdade era que o Coringa podia ter saído a qualquer momento, podia ter se livrado do ex-psiquiatra sem pestanejar, mas não o fez. Porque não fez ? Havia uma nuance que Andy achava muito interessante.
-Não é tão simples assim - disse Andy, sua voz baixa, mas firme. - Se fosse, você já teria me matado.
A faca parou de girar nos dedos do Coringa, e por um breve momento, o silêncio reinou na sala. A tensão entre eles era palpável, uma corda esticada prestes a romper. O louco se aproximou um pouco mais de Andy, os olhos faiscando com raiva contida.
-Não me teste - ele sussurrou, sua voz carregada de ameaça - não estou em um bom dia, você sabe muito bem o que eu acho da sua espécie.
A forma como o louco disse a última palavra deixava implícito toda a sua repulsa por Andy, pelo maldito estuprador de merda. O Coringa sentia que matá-lo seria tirá-lo de sua miséria, seu tormento emocional. Não era um pensamento empático com vítimas desse tipo de crime, era um pensamento completamente egoísta. Era pessoal, sempre era.
-Eu deveria te cortar em pedaços - rosnou o louco, a faca tremendo em sua mão. - mas eu acho pouco para você.
Andy manteve sua postura calma, embora soubesse que o Coringa estava à beira de um surto de violência. Ele compreendia cada camada daquela raiva velada, aquele ódio latente que o palhaço tinha por ele.
-É curioso - disse Andy, sua voz permanecendo serena - você fala tanto sobre me odiar, sobre me cortar em pedaços, mas ainda estamos aqui, tendo essa conversa.
-Eu não preciso de uma razão para te deixar viver mais um dia - sibilou o Coringa, a lâmina brilhando à luz do ambiente - não acha que talvez eu só esteja guardando o melhor para o final? Uma surpresa, algo que você jamais poderia prever?
Andy não respondeu imediatamente. Em vez disso, inclinou levemente a cabeça, os olhos ainda presos no Coringa, como se estivesse avaliando cada palavra, cada movimento. Havia uma certa energia no ex-terrorista que fazia o outro homem querer sorrir, talvez fosse isso que tornava o palhaço tão fascinante.
-Talvez - respondeu o ex-psiquiatra - ou talvez... você esteja se perguntando se acabar comigo realmente te traria algum alívio, afinal eu mexi com a sua cabeça, derrubei todas as suas defesas, conheço mais de você do que você gostaria, e você odeia isso.
O Coringa ficou em silêncio, sua mente lutando contra a própria lógica. Ele odiava o controle que Andy parecia ter sobre ele, odiava a maneira como o ex-psiquiatra conseguia, de alguma forma, desarmá-lo apenas com palavras. Era irritante.
-E daí ? - zombou o louco antes de passar a língua no lábio superior - quer que eu chore ? Não tenho medo de você.
-Será que não ? - perguntou o ex-psiquiatra, seu tom era complacente.
Em um movimento rápido, o louco se aproximou, a lâmina tocando a pele do pescoço de Andy, deixando um filete vermelho no encontro com a pele. O ex-psiquiatra não recuou, desafiando-o, enfrentando o abismo que era o Coringa. No momento seguinte, com um movimento rápido, o ex-psiquiatra retirou um dardo tranquilizante do bolso e enfiou no pescoço do ex-terrorista.
O Coringa travou, a lâmina escorregando enquanto a surpresa se transformava em fúria em seus olhos. Ele tentou se afastar, mas a injeção já havia feito efeito. Um calor súbito invadiu seu corpo, como se cada partícula de raiva que o sustentava estivesse sendo dissolvida em um cansaço profundo.
-Eu vou te matar seu filho da puta - rosnou o loiro antes que seus olhos revirassem atrás do crânio e seu corpo ficasse mole.
O ex-psiquiatra o pegou antes que este encontrasse o chão, o baixando com cuidado no piso frio. O silêncio que se seguiu era espesso. Andy passou as mãos pelos própolis cabelos frustrado, que porra ele estava fazendo ? Ele precisava fazer alguma coisa.
Andy rapidamente arrastou o ex-terrorista para o banheiro do apartamento, ele precisava fazer alguma coisa, o Coringa era muito resistente a sedativos. Andy respirou fundo antes de ir em passos largos até o quarto, ele tinha uma corrente forte, teria que servir. A mente dele estava em um turbilhão, dividida entre a necessidade de conter o palhaço e a culpa por ter usado um tranquilizante. Ele não queria fazer isso, ele tinha que ligar para seu psiquiatra.
Rapidamente o ex-psiquiatra voltou para o banheiro, se agachando ao lado do outro homem, prendendo as mãos do loiro atrás das costas e as prendendo na base da pia. As mãos do ex-psiquiatra tremiam quando ele se afastou. O ex-psiquiatra escutou a voz de Sam, ele parecia ter voltado, fazia quanto tempo que ele e o Coringa estavam conversando ?
-Andy, você está aí ? - perguntou Sam adentrando no apartamento.
Andy estremeceu ao ouvir a voz de Sam, sua mente rapidamente passando por um turbilhão de pensamentos. Ele olhou para o Coringa, cuja expressão estava agora completamente relaxada, como se a intensidade do momento tivesse evaporado com o sedativo.
-Sim, estou aqui! - respondeu Andy, tentando esconder a apreensão na voz - eu... estou cuidando de uma situação.
Ele se levantou rapidamente, indo em direção à sala, onde Sam o esperava com uma expressão ilegível.
-Apenas uma... conversa difícil - explicou, desviando o olhar - O Coringa não estava em seu melhor estado, ele precisa de ajuda.
A expressão de Sam endureceu. Ele conhecia Andy o suficiente para saber que havia mais por trás da resposta simples. Ele sentia seu amigo perdido em sua obsessão, a obsessão pelo luto pela morte de Annie, em como ele moldou isso em um comportamento doentio e perigoso. Sam o conhecia a anos.
-Andy - começou Sam com um tom firme - o que você fez ?
O ex-psiquiatra engoliu em seco, ele não poderia esconder do amigo, Sam descobriria, afinal, eles dividiam a casa. No entanto, ele não sabia como dizer isso.
-Você está se metendo em algo perigoso, não está? - perguntou Sam, olhando fixamente para Andy, notando o silêncio do outro - o que você fez ?
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Já era passado do meio dia na delegacia. Chuck estava cético quanto ao curso da investigação do Contador de Histórias. Bruce estava estranho, alguma coisa na conversa visivelmente o deixou desconfortável. Todavia, o tenente ainda não sabia o que era. Ele pensou nas duas palavras, Jigawa e Nigéria, trazidas de volta ao jogo e a charada nova. Chuck queria conversar com Jim sobre isso.
“Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?”
Chuck não entendia o que queria dizer, mas sabia quem poderia lhe dar uma resposta. Edward Nashton. Não se soube muito do outro homem depois dos acontecimentos de um ano atrás. Depois que o Contador de Histórias sumiu do radar a ajuda de Edward se tornou cada vez manos necessária. Chuck não gostava do outro homem.
Não era nada pessoal, mas ele simplesmente não simpatizava com os reabilitados, e isso inclui Nashton. O tenente notou, o outro homem era uma das poucas pessoas pelas quais o Coringa parecia ter uma política de não agressão, embora eles não fossem nem de longe amigos. Mas era umas das poucas pessoas que o palhaço deixava orbitar seu espaço, fora Harley, Bruce e inegavelmente Jim.
Pensar em seu antigo superior e na forma como esse interagia com o ex-terrorista lhe dava dor de estômago. O tenente foi tirado de seus pensamentos quando Jimmy Gordon adentrou sua sala rapidamente.
-Tenente - começou o policial novato com um tom alarmado e estranho - o agente Taylor foi assassinado.
Chuck franziu o cenho, a notícia o abalou por um momento, ele estava trabalhando com Taylor por algum tempo, era uma boa pessoa. O tenente foi retirado de seu estupor em um momento, antes de entoar com uma voz grave:
-O que aconteceu ?
-Eu não sei - suspirou Jimmy - mas ele parece um pouco…a agente Essen não me deixou chegar perto.
-Sarah está bem ? - perguntou Chuck em um tom tenso indo em direção a porta para sair de sua sala.
-Eu acho que sim - disse Jimmy quando o tenente passou por ele, desaparecendo pelo corredor.
Chuck caminhava com passos rápidos e pesados, o som de suas botas ecoando nas paredes da delegacia. A notícia da morte de Taylor o atingiu como um soco no estômago, mas ele sabia que precisava manter a cabeça fria. Não era a primeira vez que perdia alguém em serviço, mas isso nunca tornava a dor mais fácil de suportar. Ele se perguntava se havia alguma ligação entre a morte de Taylor e as charadas misteriosas do Contador de Histórias. A possibilidade o incomodava.
A morte os acompanhava nesse ramo de trabalho. Era sempre difícil perder, mas não era novidade. O tenente rapidamente encontrou Sarah, sentada em uma cadeira, o rosto branco como cera, um ombro enfaixado e um olhar vazio. Chuck parou por um momento, observando a agente em silêncio. Ele não esperava encontrá-la naquele estado. Ela sempre foi uma das mais resistentes, uma presença firme mesmo nos momentos mais caóticos. Ela não era uma novata, não era fácil mexer com ela.
-Eu soube de Taylor - falou Chuck com um tom neutro, mas calmo - você está bem ?
-Era uma armadilha - disse a mulher simplesmente.
-Do que você está falando, Sarah ? - perguntou o tenente franzido o cenho.
-Ele queria mandar uma mensagem - falou a agente em um tom frio.
Com essa fala, a agente entregou para o tenente um pedaço de papel em branco.
Chuck franziu o cenho, não havia nada escrito, o que o Contador de histórias queria dizer com isso ? Ele estava cansado de não entender as coisas.
-Tem mais alguma coisa ? - suspirou Chuck - você pode tirar o resto do dia de folga.
-Não - respondeu a mulher com um tom neutro.
Chuck continuou a encarar o pedaço de papel em branco, tentando processar o que aquilo significava. O Contador de Histórias sempre tinha um propósito em cada detalhe, e esse enigma, por mais frustrante que fosse, não seria diferente. Mas ele estava cansado de não ter respostas. A morte de Taylor pesava em sua mente, e a confusão crescente sobre o que estava acontecendo só piorava a situação.
-Se você se lembrar de mais alguma coisa, me avise - Chuck disse finalmente, guardando o pedaço de papel em seu bolso. Ele olhou para Sarah novamente - Sarah, tire um tempo para se recuperar, não precisa se forçar, vá para casa.
Ela assentiu vagamente, mas Chuck sabia que ela não ia seguir o conselho. Sarah era tão teimosa quanto ele. Ela estava nisso há anos.
Deixando Sarah para trás, Chuck saiu da sala e caminhou em direção ao corredor, onde a equipe de investigação começava a se reunir. A delegacia estava tensa, a energia diferente de antes.
O atual comissário, Castro cruzou com ele no corredor antes de dizer em um tom uniforme:
-Me encontre na minha sala, temos algo para conversar.
Chuck parou por um momento, observando o comissário Castro à sua frente. Havia algo no tom dele que indicava que a conversa seria séria. Ele sabia que Castro não perdia tempo com trivialidades, e a expressão impassível do comissário só confirmava a gravidade da situação. A morte de Taylor e o papel em branco deixado como mensagem ainda pesavam em sua mente, mas agora havia algo mais a ser tratado.
-Estou indo - respondeu Chuck, mantendo o tom firme.
O comissário fez um breve aceno de cabeça antes de se virar e seguir na direção de seu escritório. Chuck não suspirou, ele sabia do que se tratava, ele tinha passado por cima de suas ordens superiores. Ele não tinha dito nada para Castro sobre a volta do contador de histórias.
Chuck sentiu o peso da responsabilidade enquanto seguia pelo corredor em direção à sala de Castro. Ele sabia que estava prestes a ser confrontado por ter mantido informações cruciais fora do alcance do comissário. A volta do Contador de Histórias era algo grande, e Chuck havia agido por conta própria, acreditando que conseguiria lidar com isso. Agora, com a morte de Taylor e a operação fracassada, o custo de suas decisões estava se tornando claro.
Chegando à porta do escritório de Castro, ele hesitou por um breve segundo antes de bater e entrar. O comissário estava sentado atrás de sua mesa, a postura rígida e o olhar cravado em Chuck assim que ele cruzou a porta.
-Feche a porta, tenente - disse Castro, o tom de voz controlado, mas firme.
Chuck obedeceu, fechando a porta atrás de si e caminhando até a frente da mesa do comissário. O silêncio se prolongou por alguns segundos, a tensão no ar era quase palpável.
-O que está acontecendo, Chuck ? - Castro perguntou, cruzando os braços sobre o peito - eu não sou cego, e definitivamente não sou burro, Taylor está morto, e você está escondendo informações importantes sobre essa investigação.
Chuck respirou fundo, sabendo que não havia como escapar dessa conversa.
-O Contador de Histórias voltou – admitiu ele, direto, sem rodeios - descobrimos algumas coisas nos últimos dias.
O comissário arqueou uma sobrancelha, mas não demonstrou surpresa. Ele provavelmente já suspeitava, mas queria que Chuck confirmasse.
-E você escolheu não me dizer nada ?
O tenente ficou em silêncio, a verdade é que ele não confiava no novo comissário. Desde que Castro assumiu como comissário depois da aposentadoria de Jim, o outro homem estava estranho. Era uma nova personalidade.
-Eu ainda estava pensando em como fazer isso - mentiu Chuck - ele demorou um ano para dar as caras novamente, podia não ser nada, só fiz o que achei que deveria fazer.
-E agora Taylor está morto - falou o atual comissário com um tom firme.
Notes:
Eu volto na semana que vem se nada acontecer. Comentem para me deixar feliz :) Até a próxima !
Chapter 15: The Gotham We Have (Parte 15)
Notes:
Atrasado como sempre ! Enfim, aqui vai o capítulo da semana. Desculpem alguns erros de digitação.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Depois de sair de Blackgate, o ex-bilionário voltou para o seu apartamento, ainda não era de noite, mas não era um bom momento para voltar para a promotoria. Isso teria que esperar.
O moreno suspirou e retirou seu kevlar, guardando novamente no quarto lacrado. Na sequência, ele foi para frente do computador, ele ainda tinha muito o que colocar no lugar antes de começar a fuga. Bruce sentia que iria se arrepender, ele sabia que não podia confiar em Bane, mas as opções estavam ficando escassas. Ele sabia que como Bruce Wayne, jogando dentro das regras ele não conseguiria resolver esse problema.
O ex-bilionário precisava dar um jeito de tirar o outro homem de Blackgate sem levantar muitas suspeitas. Obviamente, até o atual momento, a polícia já deve ter ficado sabendo da volta do morcego, Bruce sabia que Castro não seria tão leviano com ele como Gordon outrora foi em seu tempo como comissário. O atual comissário não parecia ser do tipo que colaboraria com ele, estranhamente, Chuck parecia o mais receptivo dos dois, embora não aprovasse os métodos do vigilante.
Ele não tinha muito tempo, cada movimento precisava ser calculado. A decisão de tirar Bane de Blackgate era perigosa, mas Bruce sabia que, por mais que estivesse pisando em um terreno minado, Bane era o único capaz de conseguir as informações de que ele precisava para enfrentar a ameaça crescente do Contador de Histórias. Não era uma questão de confiar, mas de usar os recursos que tinha.
Bruce sentia o peso disso em seus ombros, mas esse Batman era diferente, mais sombrio, mais disposto a fazer o que fosse necessário, embora existissem linhas que ele nunca ultrapassaria. Ele ainda tinha seu código de conduta.
Ele sabia que esse plano precisava ser traçado com muito cuidado, ninguém poderia saber que ele estava envolvido. Em pouco tempo, já começariam a circular os boatos acerca da volta do morcego, era apenas questão de horas. Ele sabia que a polícia não era confiável, nunca foi. Todavia, o moreno trabalhava com o que tinha.
Ele pensou em ligar para Lucius. O moreno sabia que não poderia contar a verdade, não completamente, mas Lucius saberia o que ele queria: um plano de contingência. Um ataque falso em uma parte distante da cidade ou uma falha temporária nos sistemas de Blackgate? Algo que criasse uma janela de oportunidade para que Bane conseguisse escapar, sem levantar suspeitas imediatas. O problema era como fazer, ele não tinha mais os recursos que costumava dispor.
Bruce ajeitou a postura em frente a tela, os dedos tamborilando na mesa enquanto sua mente trabalhava febrilmente. A ideia de liberar Bane era um jogo de xadrez, cheio de riscos, e qualquer movimento errado poderia expor sua identidade. Ele não podia contar com Lucius para tudo, especialmente quando se tratava de algo tão perigoso. Lucius já havia assumido riscos suficientes por ele.
Lucius tinha visto o ex-bilionário terminar de colocar fogo nas empresas, mesmo que de uma forma figurativa, Lucius observou calmamente vendo o moreno deixar que o império criado por seu pai fosse de encontro com o chão. O outro homem entendeu e o apoiou, inclusive, foi ele que o ajudou a provar a inocência de seu pai no caso de tráfico humano, no caso onde Roger Elliot foi preso. O ex-bilionário devia muito ao homem mais velho.
Por conta de todas as variáveis, ele sabia que o plano tinha que ser mais do que apenas uma distração. A fuga de Bane precisava parecer autêntica, como se ele tivesse escapado por seus próprios meios. O ex-bilionário começou a reunir informações sobre os turnos de segurança, as fraquezas na estrutura de Blackgate, os padrões de patrulha. Não havia muito tempo, mas ele tinha o suficiente para arquitetar algo.
Mas como liberar alguém que não merecia confiança? Como liberar um homem que já havia quebrado seu corpo e quase destruído sua alma? Bruce afundou-se ainda mais em sua cadeira, o peso do passado o envolvendo. Ele lembrava claramente da dor física que Bane havia infligido, mas a dor psicológica era ainda maior. E agora, ironicamente, ele estava prestes a libertar o homem que poderia destruí-lo de novo, tudo em nome de um bem maior. O Batman, mais sombrio e pragmático do que antes, sabia que não havia outra escolha.
Ele pegou uma folha em branco e começou a desenhar o layout de Blackgate de memória, identificando os pontos fracos da prisão. Não seria fácil, mas com o conhecimento certo e os contatos certos, ele poderia fazer isso parecer um ataque coordenado de fora, como se uma organização criminosa poderosa tivesse orquestrado a fuga de Bane.
O problema estava em fazer isso parecer real sem chamar a atenção da polícia para suas próprias ações. E se algo saísse errado? Se Bane conseguisse escapar de sua vigilância, ele seria um perigo para todos. Mas Bruce estava disposto a correr esse risco. Gotham estava caindo nas mãos de algo pior do que Bane.
Bruce ainda se lembrava da tortura que sofreu nas mãos de Thomas Moore, da desesperança daquelas quase duas semanas de cativeiro. Aqueles dias de cativeiro quase quebraram sua mente, mas foi ali que ele percebeu a extensão da ameaça, Moore era apenas uma peça, um instrumento nas mãos de alguém muito mais perigoso. O moreno respirou fundo, não era momento para cavar em autopiedade, ele estava ficando sem tempo.
O ex-bilionário estudou o layout de Blackgate com os olhos de um estrategista experiente. Conhecia a prisão por dentro e por fora, tanto pelos relatórios de segurança quanto pelas próprias incursões que já havia feito ali como Batman. Se ele conseguisse coordenar uma distração na ala leste, onde os prisioneiros de menor risco estavam confinados, poderia criar um tumulto suficiente para que os guardas redirecionassem suas forças e deixassem a ala de segurança máxima vulnerável.
Bruce anotou os horários das trocas de turnos. O melhor momento para agir seria durante a troca da noite, quando a equipe de segurança estava mais relaxada. Ele precisava garantir que a distração fosse grande o suficiente para justificar um reforço externo, mas controlada para não desencadear uma crise generalizada. O problema era a falta de recursos.
Enquanto traçava o plano, Bruce não podia deixar de sentir o desconforto moral. Estava indo longe demais? Tinha cruzado uma linha? Ele se justificava pensando que tudo isso era para o bem maior, que estava salvando Gotham de um mal ainda pior. Mas isso não apagava o fato de que estava colocando nas ruas um homem capaz de causar destruição inigualável.
-Foco - ele murmurou para si mesmo, levantando-se de sua cadeira. Ele sabia que precisava se manter frio, calculado. Qualquer erro poderia não apenas custar sua identidade, mas também jogar Gotham em uma guerra. Ele tinha que ser cuidadoso.
Bruce se afastou da mesa, seus olhos ainda fixos no layout esboçado em papel. A cada traço, cada anotações, a realidade de sua situação se tornava mais tangível. Ele se lembrava de momentos em que Bane o havia derrubado, não apenas fisicamente, mas emocionalmente. O homem que estava prestes a libertar era um símbolo de tudo que ele havia perdido, e ainda assim, sentia que não tinha escolha.
Ele caminhou até a janela, observando Gotham sob a luz do fim da tarde. Os edifícios se erguiam como sombras projetadas em um mundo que se tornava cada vez mais escuro. Os carros passavam, as pessoas se apressavam para casa, inconscientes do que se aproximava. Gotham estava em perigo, e Bruce sentia que era sua responsabilidade lutar contra isso, mesmo que isso significasse aliar-se a quem não merecia confiança.
A ideia de acionar Lucius para um plano de contingência pesava em seu coração. Seria mais uma vez um ato de desonestidade, mesmo que por um bem maior. Mas a verdade é que, mesmo sem apoio, ele ainda tinha que se arriscar. E Lucius merecia saber a verdade, mesmo que fosse dolorosa. Bruce sentia que estava pisando em um terreno complicado. As coisas eram diferentes agora.
—------
O ex-terrorista acordou com a boca seca e uma dor surda em suas costas, ele piscou lentamente, tentando se situar. A primeira coisa que seus sentidos captaram foi o som gotejante e constante de água. A boca seca e a dor nas costas eram apenas o começo, sua cabeça latejava, e ele se sentia pesado, como se tivesse sido drogado.
Ele tentou se mexer, mas logo percebeu que seus pulsos estavam presos em suas costas. Quando sua visão se ajustou, o Coringa conseguiu olhar em volta, notando que estava em um banheiro. O chão, feito de azulejos frios e rachados, fazia contato direto com sua pele exposta. O cheiro era uma mistura de mofo e água estagnada, o ar úmido e abafado.
Ele se contorceu, sentindo a corrente puxar com força, e uma dor aguda percorrer seus pulsos. Todavia, ele continuou forçando, o metal rangendo contra o cano da pia. Não havia como escapar por ali. Ele puxou com mais força, mas a pia parecia antiga e resistente. O palhaço rangeu os dentes, sua mente ainda estava um pouco confusa.
-Pare com isso - disse uma voz adentrando o banheiro com um tom calmo - você só vai se machucar se continuar.
O Coringa apertou os dentes ao notar o outro homem parado na porta, era Andy. Como um soco, tudo o que tinha acontecido horas atrás voltaram para sua mente de uma vez só. Sua mente apitava em sinal de alerta, ele não gostava desse jogo que o outro homem estava querendo jogar.
Por um momento, o palhaço pensou em dizer algo sarcástico, todavia, sua voz não saia pela garganta. Havia um peso estranho.
-Ei relaxa - disse Andy se aproximando apenas para se abaixar perto do outro homem, seu tom ainda era calmo - está tudo bem, eu só quero conversar com você.
O ex-terrorista trincou os dentes de raiva, olhando diretamente para o ex-psiquiatra com um olhar fulminante. Ele sabia que aquela calma aparente escondia algo muito mais sombrio. E, preso daquela maneira, sem controle da situação, cada palavra de Andy soava como uma provocação.
-Conversar? - o Coringa entoou antes de passar a língua no lábio inferior, sua voz carregada de mania - você sempre teve uma forma... peculiar de começar uma conversa.
Andy suspirou, passando a mão pelos cabelos como se estivesse tentando manter a paciência. Com o Coringa nada nunca foi simples.
-Você sabe que eu não queria que fosse assim - disse o ex-psiquiatra, a voz baixa, quase gentil - mas você não facilita e me obriga a usar métodos menos ortodoxos.
O Coringa soltou uma risada rouca, curta e irônica, o som reverberando pelas paredes úmidas e frias do banheiro.
-Ah, Andy... - ele começou, sua voz arrastada, carregada de sarcasmo - sempre o mesmo discurso, é engraçado como você tenta se justificar para si mesmo.
Andy fechou os olhos por um breve momento, como se estivesse tentando conter uma resposta emocional. Quando os abriu novamente, seu olhar era mais frio, controlado. A máscara de serenidade deu lugar a uma carranca fria. O ex-terrorista quase sorriu frente a isso. Era sempre engraçado quando o lobo retirava a pele do cordeiro.
-Eu não preciso me justificar - falou o ex-psiquiatra, um tom frio e controlado. O silêncio entre os dois se estendeu por alguns momentos. Era quase palpável a tensão sufocante no pequeno cômodo.
O louco quebrou a tensão com um bufo divertido antes de continuar, seu tom manchado de sarcasmo latente:
-O que você quer ? Que eu peça desculpas pela morte de Annie ?
A menção do nome da mulher fez o ex-psiquiatra endurecer seu olhar. Ele queria dizer que o outro homem não tinha o direito de tocar no nome dela, não depois de tudo, muito menos com esse tom. No entanto, Andy apenas sustentou o olhar do palhaço.
-Eu não quero as suas desculpas - entoou o ex-psiquiatra, seu tom gelado e neutro - você nem é capaz de se sentir culpado pelo que fez, eu só q-
-Você não sabe - zombou o louco cortando o outro homem - você não faz ideia de onde quer chegar com essa conversa.
Andy estreitou os olhos, sua paciência já começando a se desgastar com a constante provocação. O Coringa, como sempre, sabia como apertar os botões certos, como transformar até mesmo o mais sombrio dos assuntos em uma piada doentia, tentando obter a vantagem. Aquilo não deveria mais incomodá-lo, não depois de tudo que tinha passado, ele sabia que era o modus operandi do ex-terrorista, o Coringa tentaria sair por cima. Todavia, Andy o conhecia bem demais para simplesmente cair.
-Pode zombar o quanto quiser - falou o ex-psiquiatra, seu tom neutro - mas você não está tão calmo.
O Coringa arqueou uma sobrancelha, uma sombra de sorriso brincando em seus lábios. O comentário de Andy tinha sido um acerto inesperado, uma agulha que conseguiu perfurar, ainda que de leve, sua fachada habitual de desprezo e sarcasmo. Ele balançou a cabeça lentamente, o sorriso desaparecendo aos poucos, substituído por algo mais sombrio, mania.
O ex-psiquiatra deixou o silêncio se estender por um momento, ouvindo o som gotejante da torneira, analisando as feições do palhaço, uma mistura de desprezo e mania assassina…e talvez algo mais, medo? O Coringa sempre foi muito difícil de ler.
-Você pode tentar continuar fingindo que nada te afeta - disse Andy, sua voz ainda controlada, pousando uma das mãos no topo dos cabelos do outro homem, que endureceu o olhar cheio de mania crua - mas se isso te deixar mais confortável, eu não vou fazer nada com você.
-Você sabe... - o Coringa respondeu, passando a língua nos lábios, sua voz tingida de cinismo, embora uma faísca de algo mais estivesse lá, talvez uma sombra de verdade ou um reflexo distorcido de vulnerabilidade - é difícil acreditar em qualquer coisa que saia da sua boca.
O ex-psiquiatra manteve a mão sobre os cabelos do palhaço por um segundo a mais, acariciando-os antes de puxar a mão lentamente, como se estivesse testando os limites do outro homem, observando cada mínima reação.
-Só estou dizendo o que você já sabe - continuou Andy, sua voz firme, mas sem perder o controle - você e eu temos um laço... distorcido, mas um laço, e é por isso que estamos aqui.
O Coringa riu, um som seco e ríspido, quase como se estivesse sufocando com o próprio humor ácido.
-Um laço? - zombou o Coringa, seus olhos cravando-se nos de Andy com uma intensidade predatória - chame do que quiser, mas na minha experiência, isso parece mais uma obsessão mal resolvida.
O ex-psiquiatra franziu a testa. As palavras do palhaço eram um reflexo cruel de algo que ele já havia se forçado a reconhecer. Havia uma verdade amarga ali, uma que ele tentava esconder até de si mesmo. Mas agora, preso naquele pequeno e úmido banheiro, com o homem responsável por arruinar sua vida, ele sabia que não poderia mais fugir. Era uma obsessão.
Andy, porém, não se deixou abater pelo sarcasmo afiado do Coringa. Em vez disso, ele se inclinou um pouco mais perto, ficando quase cara a cara com o ex-terrorista. O cheiro úmido do ambiente parecia se intensificar à medida que a tensão no ar crescia.
Por um breve instante, os olhos do Coringa vacilaram, e algo mais profundo brilhou ali, um sentimento não identificado, misturado com uma apreensão bem mascarada. O loiro não queria o outro homem perto, isso fazia alguns alarmes soarem em sua cabeça. Mas admitir isso? Jamais. Isso seria ceder a uma vulnerabilidade que ele não estava disposto a aceitar.
-Você vai ficar o dia todo aqui sentado, falando sobre laços e sentimentos? - provocou o Coringa antes de passar a língua no lábio inferior, seu tom venenoso e sarcástico - que…tocante.
Andy inspirou fundo, sua paciência, que antes parecia sólida, agora se desgastando. Mas ele não poderia perder o controle, não ali, não agora.
-Estou aqui porque preciso entender - disse ele, as palavras saindo com um peso inesperado - entender por que, depois de tudo... eu ainda sinto que preciso de você por perto, porque não posso simplesmente tirar você da minha vida.
-Você me ama, Andy? Oh, que trágico - zombou o Coringa, o sorriso cruel retornando aos seus lábios, ele estava segurando uma risada - muito nojento, mas trágico, vou ter isso em mente quando te matar, depois que eu sair daqui, quando eu arrancar suas tripas lentamente com você ainda vivo.
Andy ficou em silêncio, a cabeça girando entre ideias conflitantes, não era amor, era outra coisa. O que ele realmente queria? Não era a resposta que procurava, mas sim uma forma de aliviar a dor que o consumia, um fechamento para o tormento que o Coringa havia causado em sua vida. Todavia, algo o impedia de conseguir esse fechamento, essa conclusão.
O ex-psiquiatra sentiu uma mistura de frustração e confusão enquanto analisava a situação. A raiva e o ressentimento que sempre acompanharam sua interação com o Coringa sempre se misturavam a um sentimento de necessidade que ele não conseguia entender completamente. O palhaço à sua frente era um paradoxo, Andy estava em um ciclo de dor e provocação que o atraía e repelía ao mesmo tempo, estava viciado nisso.
O Coringa quis rir observando a expressão de Andy, a combinação clara de raiva, dor e uma busca desesperada por respostas, no rosto do outro homem. Havia algo quase divertido em ver a luta interna do ex-psiquiatra, como se estivesse preso em uma teia que ele mesmo havia tecido, e o palhaço se deliciava com isso.
-Você está ficando cada vez mais esquisito - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios - de nada, se bem que acho que seu psiquiatra tem um dedo nisso, parece estar te deixando cada vez mais confuso, você se olha no espelho e vê…o monstro ? Você me disse que era a minha criatura, como no livro, e eu seu criador…bem, só um monstro pode criar outro monstro afinal.
O que se seguiu foi um silêncio espesso, papável, interrompido apenas pelo gotejar da torneira. Havia uma tensão, um entendimento cru da realidade, um ar estagnado.
-Eu não sou um monstro - falou Andy de repente no silêncio que se instalou - nem você, nós só…estamos machucados, reproduzindo aquilo que recebemos, a violência é viciante.
O palhaço estreitou os olhos em sua posição no chão. Ele mexeu as correntes em seus pulsos por um momento. O barulho ecoou no silêncio pesado entre eles. A atmosfera era sufocante.
-Eu nasci assim - falou o ex-terrorista, sua mandíbula tensa.
-Talvez você tenha nascido com predisposição - Andy deu de ombros - mas as pessoas não nascem assim, você sabe que o fator ambiental é muito determinante nesses casos, e com seu histórico, bem, podemos considerar que foi um agravante, você tem um jeito bem distorcido de pensar, é muito improvável que você tenha nascido com isso.
O palhaço ficou em silêncio, seu olhar duro apenas observava o ex-psiquiatra. Ele não gostava de se sentir estudado.
Andy não desviou o olhar, mantendo-se firme. Aquela dinâmica entre eles era uma dança antiga, um jogo de gato e rato onde os papéis se confundiam, e mesmo o Coringa preso em correntes ainda parecia ter a vantagem. Mas, havia um fio de vulnerabilidade que estava se desenrolando lentamente. O ex-psiquiatra suspirou com o silêncio do palhaço.
-Você quer…conversar sobre o container ? - perguntou Andy no silêncio.
-Nunca mais fale sobre isso - rosnou o palhaço entre os dentes.
A reação do Coringa foi imediata, visceral. Seus olhos se estreitaram em pura fúria, e suas mãos presas nas correntes se contorceram com força, o metal rangendo contra o cano da pia. Por um momento, ele parecia prestes a explodir, como uma fera encurralada que, mesmo imobilizada, ainda conseguia inspirar terror. O ar no banheiro parecia congelar, e o silêncio que se seguiu àquela ameaça foi sufocante.
Andy, por outro lado, manteve-se impassível. Seu rosto se contraiu brevemente, mas ele não recuou. Ele sabia que mencionar isso era arriscado, mas fazia parte do processo. Mesmo assim, a reação do Coringa deixou claro que haviam limites que ele não estava pronto para ultrapassar.
-Você sabe que precisamos falar sobre isso em algum momento - disse Andy, sua voz era calma, mesmo diante das ameaças do palhaço.
-Não me olhe assim - murmurou o Coringa antes de passar a língua no lábio inferior, sua voz carregada de veneno seguida de uma risada amarga que parecia cortada ao meio - não foi heroísmo da minha parte, foi uma decisão puramente egoísta.
-Talvez - falou o ex-psiquiatra dando de ombros - ou talvez você só tenha feito o que queria que alguém tivesse feito por você, quando você estava na mesma situação.
O Coringa apertou os olhos, sua risada morrendo em seus lábios. As palavras de Andy atingiram um ponto sensível que ele não estava preparado para admitir, nem mesmo para si. Ele rangeu os dentes, puxando as correntes mais uma vez, como se quisesse desviar a atenção daquele incômodo crescente que começava a tomar forma em sua mente.
-Você não sabe nada - rosnou o palhaço, sua voz baixa, cheia de ressentimento - não ouse tentar me analisar, você pode ser o mestre da auto sabotagem, mas não vai me arrastar junto.
Andy o encarou por alguns segundos, o silêncio preenchendo o espaço entre eles, até que ele finalmente quebrou com um suspiro pesado. Levando novamente uma das mãos para o topo dos cabelos loiros do ex-terrorista, que vacilou momentaneamente, antes de se recompor fuzilando o outro homem com o olhar.
-Eu realmente sinto muito - falou o ex-psiquiatra com uma voz carregada, acariciando os cabelos do outro homem, como se o outro fosse um animal de estimação - eu nunca te disse isso, mas eu realmente sinto.
-Eu não preciso da sua pena - rosnou o ex - terrorista, passando a língua no canto dos lábios, sua voz dotada de mania mal contida - e não encoste em mim.
Andy recuou sua mão lentamente, observando a reação furiosa do Coringa. O ódio que o outro carregava parecia tão profundo que quase podia ser tocado, como uma entidade própria entre eles. Contudo, havia algo mais, algo que Andy enxergava nos olhos do palhaço, mesmo que o próprio Coringa não admitisse, vulnerabilidade.
-Você não precisa da minha pena - repetiu Andy, suavizando a voz novamente - mas você precisa encarar as coisas que aconteceram.
O Coringa soltou uma risada curta, amarga, mas sem o mesmo entusiasmo habitual.
-Você e seus jogos mentais - murmurou o louco, os lábios se contorcendo em desdém - acha mesmo que pode me ajudar ? Eu não quero nada de você.
Andy, ainda com a postura firme, deu um meio sorriso triste.
-Estou aqui porque, apesar de tudo, você ainda está dentro da minha cabeça, a obsessão que sinto por você, a forma como me torturo com essas memórias... - falou o ex-psiquiatra - não pense que estou aqui por você, é por um motivo totalmente egoísta, porque eu preciso entender algumas coisas.
-Entender o quê? - o Coringa se inclinou um pouco à frente até onde suas restrições permitiam, desafiador - que você fracassou? Que se tornou exatamente aquilo que mais odeia? Que você se tornou alguém de quem Annie teria repulsa ? Parabéns, você não é especial, porque todos quebram em algum momento.
As palavras cortantes do Coringa atingiram Andy como facas, mas ele não se permitiu reagir, pelo menos não de forma imediata. Ele respirou fundo, tentando afastar a dor que as menções a Annie sempre traziam. O Coringa sabia exatamente onde acertar, quais feridas cutucar para obter a maior reação. Mas Andy não iria ceder à provocação, não dessa vez.
-Você quer que eu diga o quê? - O Coringa se mexeu nas correntes novamente, os olhos duros, mas com um brilho de confusão - que lamento ter destruído sua vida? Que lamento por tudo ? Não vou te dar isso, eu particularmente te mataria agora se eu pudesse.
-Nunca esperaria nada diferente de você - falou Andy - mas a verdade é que isso não muda o fato de que, de certa forma, você é a única coisa que me resta dela.
Aquela última frase parecia pairar no ar entre eles. O Coringa, por mais cruel e imprevisível que fosse, ficou calado. Andy sabia que estava doente, que isso não era normal, mas talvez as coisas não precisassem ser.
O ex-psiquiatra ficou em silêncio por um momento, encarando o Coringa como se estivesse tentando encontrar uma resposta para algo que o perseguia há muito tempo. Ele queria vingança? Fechamento? Paz? Ou talvez algo que ele ainda não conseguia identificar. O rosto de Annie piscou em sua mente, e com ela, todo o tormento que o havia levado até ali. O Coringa tinha tirado tudo dele, e agora ele estava preso em um ciclo de emoções contraditórias, onde a raiva se misturava com uma estranha necessidade de proximidade e afeição.
-Você vai aceitar o café agora ? - suspirou o ex-psiquiatra se levantando, tentando deixar a atmosfera mais leve.
-Seu amigo não toma café com você ? - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios em seu tique característico.
-Sam está…ocupado no momento - falou Andy,seu tom era frio.
O palhaço olhou para o outro homem por um momento, uma curiosidade perversa brilhando em suas íris. Ele bufou divertido para si mesmo antes de dizer:
-Sempre cheio de surpresas.
Andy manteve o olhar calmo, que aconteceu com Sam foi um acidente, o outro homem tinha corrido para o telefone para ligar para seu médico depois de saber que Andy tinha prendido o Coringa. Não era para ter acontecido, foi muito rápido. Em um momento Sam estava correndo e no próximo Andy tinha acertado sua cabeça com um peso de porta. Não estava morto, mas Andy deu um jeito de manter o outro homem por fora, Sam não podia contar para ninguém.
-Você vai aceitar ou não ?
-Tenho escolha ? - zombou louco passando a língua no canto dos lábios.
-Não vou te forçar - suspirou Andy indo até a porta do banheiro, antes de assumir um tom sarcástico - se você acha que ficar sozinho, amarrado no ladrilho frio e escutando essa pia gotejar é melhor do que minha companhia, quem sou eu para dizer o contrário?
-Que bom que você sabe - devolveu o Coringa antes de bufar divertido e venenoso - eu prefiro ficar surdo do que te ouvir falar.
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Bruce estava cansado, seus olhos doíam. Ele tinha ficado horas sentado tentando criar um plano de fuga discreto. Em sua mesa, além do computador, havia um mapa da penitenciária e uma infinidade de papéis. Que horas eram ?
O ex-bilionário olhou para o relógio e franziu a testa, eram onze da noite. Bruce se levantou da mesa na sequência, a casa estava muito silenciosa, porque o Coringa não o veio chamar ? Bruce sabia que era o seu dia de fazer o jantar. Isso era estranho, e o enviava para os últimos dois meses, quando o ex-terrorista estava sob depressão induzida.
-Jay ? - chamou o moreno na quietude do apartamento. O eco de sua voz parecia perdido entre as paredes, e um nó de preocupação começou a se formar em seu estômago.
Ele se lembrava de como o Coringa havia se isolado nas semanas anteriores, afastando-se gradualmente das brincadeiras e provocações que costumavam ser a essência da convivência deles.
Bruce caminhou até o quarto, hesitando ao abrir a porta. Ele tinha certeza de que encontraria o Coringa ali, mas a visão que o aguardava fez seu coração acelerar. A cama estava desfeita, e o palhaço não estava à vista. As cortinas estavam fechadas, permitindo que apenas um pouco de luz da rua entrasse. Onde ele está? A inquietação cresceu.
O moreno se bateu mentalmente, ele não percebeu que o Coringa não estava por perto, ele tinha se deixado consumir com a investigação e o plano de fuga de Bane. Como ele pode ter simplesmente não notado ? O Coringa era barulhento. O ex-bilionário rapidamente pegou seu celular, tentando ligar para o louco, mas o celular tocou no criado mudo, o palhaço não tinha saído com o celular.
Bruce na sequência discou o número de Chuck, o tenente teria que saber onde o ex-terrorista estava. Depois de alguns momentos, a voz do outro homem entoou do outro lado da linha:
-Wayne ?
-Chuck - respondeu o moreno, seu tom era apreensivo, embora ele tentasse manter um tom neutro - você sabe que horas o Coringa saiu da delegacia ?
-Coringa ? Ele não apareceu hoje - falou o tenente simplesmente.
-Não apareceu ? Como assim não apareceu ? E você não pensou em me ligar ? - rosnou o ex-bilionário, havia uma urgência em sua voz.
-Escuta, Wayne - disse o tenente, seu tom era neutro, mas havia uma irritação contida - eu tenho coisas mais importantes para fazer do que vigiar seu sociopata de estimação, se você perdeu a coleira dele o problema não é meu.
Com essa fala a linha do celular do ex-bilionário ficou muda. Chuck tinha desligado a chamada. Bruce apertou os dentes com raiva, mas tentou manter a calma. Ele precisava ter a cabeça fria. Ele iria até a delegacia, ele precisava da ajuda da polícia, porque sabia onde provavelmente o palhaço estava. Por um momento ele pensou em voltar para o quarto lacrado e usar o kevlar. No entanto, ele logo abandonou a ideia, ele queria fazer isso apenas como Bruce, afinal, o ex-terrorista era seu marido.
Bruce respirou fundo, sua mente correndo enquanto ele se preparava para sair. Ele não podia perder mais tempo. Um frio na barriga se formou à medida que ele imaginava onde o Coringa poderia estar.
Com um último olhar para o apartamento vazio, ele pegou a chave do carro e saiu, os passos ecoando no corredor. A noite estava fria, e uma leve névoa envolvia as ruas de Gotham, tornando tudo ainda mais opressivo. Enquanto dirigia, sua mente revisitou os momentos recentes: Mesmo com a investigação e toda vida tumultuada que eles tinham, o Coringa tinha se tornado aquilo que o moreno tinha mais medo de perder. A ideia de que alguma coisa podia ter acontecido com o palhaço o apavorava.
A delegacia não ficava longe, mas a viagem parecia interminável. Cada semáforo vermelho o fazia sentir como se estivesse perdendo preciosos minutos. Finalmente, ele estacionou em frente ao prédio, o coração disparado, e saiu rapidamente do carro. Ao entrar, as luzes fluorescentes eram quase ofuscantes, e o som do burburinho da polícia ao fundo apenas aumentava sua ansiedade.
O ex-bilionário adentrou com um passo firme, Chuck precisava ouvi-lo. O ex-bilionário adentrou rapidamente na sala do tenente com uma expressão séria. Chuck levantou o olhar dos papéis por um momento para observar o outro homem com um olhar ilegível.
-O que você quer, Wayne ? - perguntou o tenente, sustentando o olhar do moreno.
Bruce estreitou os olhos, contendo a raiva que ameaçava borbulhar.
-Eu quero saber onde o Coringa está, Chuck - disse o moreno em um tom baixo e frustrado - ele não voltou para casa, e você disse que ele nem sequer passou por aqui hoje, algo está errado.
Chuck inclinou-se na cadeira, sua expressão impassível. Ele tinha coisas mais urgentes para lidar, a folha em branco e a morte de Taylor era como um fantasma pairando em sua cabeça
-Wayne, eu já te disse, não sou babá dele - suspirou o tenente em um tom resignado - o Coringa não é nenhum idiota, ele sabe se cuidar sozinho, dê um tempo, se ele se meteu em problemas logo vamos saber.
-Eu não posso esperar - rosnou o moreno, seu tom era uma mistura frustrada de raiva e nervosismo.
-Eu não posso simplesmente desperdiçar meus recursos com isso, Wayne - disse o tenente colocando as folhas na mesa - eu tenho coisas mais urgentes no momento, você sabia que Taylor foi assassinado ? Que temos uma nova pista do Contador de Histórias ? As coisas estão complicadas demais para mim largar tudo agora.
-Tudo bem - falou o moreno, sua expressão era uma carranca de raiva, ele nunca pode contar com o tenente, não quando se tratava do palhaço. Seu maxilar estava tenso, a expressão do moreno estava escura. Bruce não gostava de se sentir assim, não com seu rosto de carne, não como Bruce Wayne.
Se o tenente e a polícia não iriam fazer nada ele iria. Ele não sabia onde o ex-terrorista estava, mas ele tinha um ponto de partida. Andy. O ex-psiquiatra estava próximo demais, e depois dos últimos acontecimento…Bruce começaria com ele.
-Onde Matthew está morando Chuck ? - perguntou o moreno, sua voz ainda era dura.
-Você sabe que não posso te dar essa informação - falou o tenente passando as mãos pelo rosto, frustrado - isso é sigiloso.
O ex-bilionário olhou para o tenente com uma intensidade eletrizante, a tensão entre os dois aumentando a cada segundo. Ele sabia que Chuck não cederia facilmente.
-Não estou pedindo - falou o moreno em um tom uniforme - você vai me dar essa informação, pode ser de um jeito ou de outro.
Chuck fechou os olhos, esfregando as têmporas como se estivesse tentando evitar uma enxaqueca iminente. Ele sabia que Wayne não estava blefando. Bruce nunca pedia duas vezes, não quando se tratava do Coringa. Ainda assim, entregar essa informação era arriscado. Matthew Cole, ou Andy, tinha sido uma peça problemática por tempo demais, e Chuck sabia que não podia deixar a situação escapar do controle. O tenente odiava a forma como Bruce achava que podia subverter a polícia para fazer suas vontades.
O tenente se levantou bruscamente, batendo as mãos na mesa com um som seco.
-Você acha que pode me intimidar, Wayne? - rosnou Chuck, sua voz carregada de frustração - você não tem poder nenhum aqui, não mais, eu não sou Gordon que vai acatar seus pedidos como um maldito cachorro.
Bruce se manteve firme, os olhos endurecidos, mesmo com o ataque verbal do tenente. Ele sabia que Chuck estava no limite, mas o moreno não podia recuar agora.
-Eu não estou tentando te intimidar, Chuck - Bruce falou, com uma calma calculada, sua voz baixa, mas com um tom de aço por trás das palavras - mas eu vou fazer o que for necessário, e se você não me der essa informação agora, vai estar me forçando a procurar por outros meios, você sabe o que isso significa.
Chuck sabia o que significava, Bruce não ficava exatamente dentro da lei. Ele sabia que o ex-bilionário teria meios de fazê-lo falar. Wayne, embora aposentado do manto do Batman , não era uma pessoa com quem você gostaria de brincar.
-Você acha que ainda pode agir como se tivesse a cidade aos seus pés, Wayne? - Chuck o encarou com olhos afiados - aquele tempo já passou, você é só um homem comum agora, sem recursos, sem máscara pra se esconder, sem aliados na polícia, e para ser sincero, eu não dou a mínima para onde seu marido está.
Bruce se aproximou da mesa, seu olhar feroz.
-Eu não estou aqui para discutir o que eu era ou deixei de ser - Bruce disse, sua voz carregada - eu só quero o endereço.
Chuck hesitou, a tensão na sala pairando como uma névoa pesada. Ele sabia que Bruce não estava brincando e, de alguma forma, a intensidade do olhar do ex-bilionário o deixava desconfortável. O tenente olhou para o papel à sua frente, o seu cérebro trabalhando em uma velocidade frenética, pesando as consequências de ceder ou resistir.
Ele tinha que fazer uma escolha: proteger a informação que poderia colocar Matthew Cole em perigo ou ajudar Bruce a encontrar o Coringa, se é que o palhaço estava com o ex-psiquiatra. Por mais que o tenente quisesse ignorar, o ex-terrorista sempre seria um fator de complicação em sua vida. Ele amaldiçoava Jim Gordon por isso.
-Eu não vou te dar o endereço - falou o tenente, sua voz era fria - e se você não quer ser preso por ameaçar um policial no cumprimento do dever, eu sugiro que saia da minha sala.
O ex-bilionário em um movimento rápido agarrou o tenente pelo colarinho da camisa, sua expressão era dura e eletrizante, como a do morcego, mesmo sem a máscara.
-Não me teste - rosnou o moreno - eu não dou a mínima para a sua posição.
Chuck estremeceu sob a pressão da mão de Bruce, a tensão na sala atingindo um ponto de ebulição. Ele viu os olhos de Wayne brilharem com uma intensidade que não era apenas raiva, mas o tenente não conseguiu identificar o que era.
-Me dê o endereço - disse novamente o ex-bilionário com sua voz carregada de raiva.
-Ameaçar a polícia não vai ajudar em nada - falou Chuck, tentando lidar com a pressão de Bruce em seu colarinho. A tensão era quase sufocante. O tenente estava claramente desconfortável.
-Eu não vou mandar de novo - disse o moreno intensificando o aperto no colarinho do outro homem, seus dedos brancos pela força empregada.
Chuck engoliu em seco, o medo começando a se misturar com a irritação. Ele não estava acostumado a ser pressionado dessa forma. A aura que se desprendia do moreno a sua frente era fria.
Bruce estreitou os olhos frente ao silêncio do outro homem, a determinação em seu olhar era palpável. A mente do ex-bilionário estava em um turbilhão. Ele sabia que, se Chuck não descesse, ele precisaria agir rapidamente, e isso o levaria para um território perigoso. O Coringa... bem, o Coringa não era exatamente alguém com quem se quisesse brincar, especialmente quando se sentia pessoalmente ameaçado.
-Eu não posso ajudar, Wayne - falou Chuck depois de um momento de silêncio - você nem sabe se Matthew está envolvido nisso.
-Só vou saber quando confrontá-lo - respondeu o moreno.
-Você diz ameaçá-lo e espancá-lo até não restar dúvidas de que ele não está envolvido em nada disso - bufou o tenente - eu sei que você tem uma antipatia particular por ele, mas não sei o porquê…porque Bruce ? O que aconteceu ?
O moreno não disse nada, ele apenas empurrou o tenente para trás com força, derrubando-o contra a cadeira antes de rosnar com uma raiva:
-Não importa, você vai me dar o endereço, ou eu vou fazer você falar.
Chuck hesitou, lutando com a decisão que tinha diante de si. Ele sabia que, se entregasse a informação, poderia muito bem estar contribuindo para um desastre, ele tinha visto o que o ex-bilionário era capaz de fazer. Chuck tinha medo disso, esse não era o mesmo Bruce.
-Você realmente acha que eu posso apenas te dar isso? - perguntou Chuck, sua voz um misto de raiva e frustração - o que você vai fazer, Wayne? Invadir a casa do cara e espancá-lo ? Você vai acabar na primeira página dos jornais, como um louco.
-Me dê o endereço ! - rosnou alto o moreno, sua raiva crua vazando em sua voz.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui :)
Chapter 16: The Gotham We Have (Parte 16)
Notes:
Ai gente, atrasado novamente kkkkk semana passada eu tive probelmas pessoais e a minha vida estava um caos, não consegui postar. Mas enfim, o capítulo da semana.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce estava a caminho do endereço fornecido por Chuck, sua mente estava girando. Ele se sentia mal do estômago. Até certo ponto ele sabia que estava sendo irracional, o Coringa sabia se defender sozinho. No entanto, algo dentro do moreno despertava seu instinto de proteção, mesmo que o ex-terrorista não precisasse disso.
O ex-bilionário não gostava quando as coisas saiam do seu controle, era seu modus operandi, isso o irritava. Bruce sabia que o ex-terrorista era mais do que capaz de lidar com seus próprios problemas, mas ele não gostava quando o palhaço saia de sua vista.
Ele não sabia se Matthew Cole estava envolvido nisso, mas diante dos últimos acontecimentos envolvendo as câmeras e escutas em seu apartamento, Bruce sentia que era a sua maior aposta. O moreno fez uma curva abrupta, quase perdendo o controle do carro. As luzes da cidade se tornaram um borrão à medida que ele acelerava, sua determinação empurrando-o para frente. Havia uma raiva revirando em seu âmago.
Bruce sabia que essa não era a solução, mas não podia deixar de se sentir culpado. Ele não notou a falta do Coringa, como ele pode não ter notado ? Esse conhecimento o fez trincar os dentes. Ele sentia raiva. Raiva da situação, raiva de si mesmo por não ter notado falta do Coringa, que era sempre muito barulhento. O moreno tinha se deixado consumir pela investigação, estava tão inerte nisso que não notou o silêncio ensurdecedor no apartamento deles.
O carro parou abruptamente em frente ao edifício antigo e desgastado, era o endereço indicado por Chuck. Sua fachada escura refletia o estado de espírito de Bruce. Ele respirou fundo, tentando se acalmar, mas o nervosismo pulsava em suas veias. “Se algo acontecer com ele…” A ideia era insuportável. Com um movimento decidido, saiu do carro, sentindo o frio da noite ao seu redor.
A entrada do prédio era um portal para a incerteza. Ele se movia com cautela, cada passo ecoando em sua mente. A iluminação fraca lançava sombras dançantes nas paredes, e Bruce forçou-se a se concentrar. Ele não sabia o que esperar, mas a sensação de que algo estava errado era palpável.
Enquanto subia as escadas rangentes, suas lembranças do Coringa surgiam à mente, cada risada, cada provocação, cada olhar penetrante que parecia desafiar o mundo. “Ele é capaz de se cuidar, ele sempre foi…” Mas a dúvida persistia. O ex-bilionário, mesmo sabendo que o Coringa sempre seria o Coringa, sabia que existia muito mais na cabeça do ex-terrorista do que ele demonstrava. O ex-terrorista tem dificuldade em deixar que alguém o conheça verdadeiramente, até mesmo Bruce.
Ele chegou ao andar indicado, a luz da passagem piscando levemente, como se estivesse em dúvida sobre continuar iluminando aquele espaço. A porta à sua frente parecia pesada, carregando segredos e medos. Bruce hesitou por um momento, uma onda de ansiedade atravessando seu corpo, antes de empurrar a porta.
Bruce rapidamente ligou o interruptor, vendo uma sala desarrumada que exalava um cheiro de cigarro e alguma bebida derramada. O olhar de Bruce percorreu o espaço em busca de qualquer sinal, mas o lugar parecia abandonado a muito tempo. Não havia sinal de que alguém teria ocupado o recinto nos últimos dias. O olhar do ex-bilionário endureceu, essa era sua única pista do paradeiro de Matthew.
Bruce forçou-se a não sucumbir à frustração que ameaçava dominá-lo. Ele se movia pelo espaço, cada passo cuidadoso e calculado. As paredes estavam manchadas, e as janelas sujas deixavam passar apenas um fio de luz da rua.
A frustração fervia dentro de Bruce, e ele se forçou a respirar profundamente, tentando canalizar sua raiva em foco. O ambiente era opressor, cada objeto disperso na sala parecia carregar o peso da desordem que ele tanto abominava. Ele precisava de respostas, e esse lugar vazio e negligenciado não era o que ele esperava.
Bruce se aproximou da mesa central, onde garrafas vazias estavam empilhadas como monumentos à decadência. A superfície estava coberta de papéis, e ele começou a revirá-los, procurando qualquer indício que o levasse a Matthew ou ao Coringa. Desenhos desordenados e anotações capturaram sua atenção. O estilo era inconfundível; ele conhecia aqueles desenhos. Eram fragmentos da mente do Coringa, pensamentos dispersos que revelavam a turbulência emocional que ele tentava esconder.
O moreno se concentrou nas anotações escritas, não parecia a letra caótica do ex-terrorista, era uma caligrafia limpa e desenhada. Bruce presumiu que era do ex-psiquiatra. Pareciam anotações clínicas, pelas datas, pareciam ter sido feitas na época em que o palhaço estava no Arkham. Bruce raciocinou que os desenhos deveriam ser da mesma época.
Bruce se atentou em um dos escritos, parecia uma anotação acerca de uma das sessões do Coringa no Arkham, onde ele discutia suas “interações” com os outros internos. A letra era clara e organizada, como se Matthew tivesse tentado entender a mente caótica do palhaço, decifrar o que se escondia por trás da insanidade. Bruce não gostava da forma como o ex-psiquiatra escrevia sobre o loiro.
Ele vasculhou mais anotações, cada uma revelando mais sobre a complexidade do Coringa. Matthew tentava decifrar não apenas a mente do ex-terrorista, mas também a dor que o acompanhava. Ele sabia que a luta do Coringa não era uma questão que ele poderia resolver, mas ainda assim, uma parte dele se sentia atraída por isso. O ex-bilionário sabia que era invasão de privacidade bisbilhotar, mas ele queria saber mais, ele nunca sabia o suficiente do ex-terrorista. O Coringa sempre foi muito fechado emocionalmente.
Uma anotação chamou a atenção de Bruce, por mais que ele estivesse mais inclinado a respeitar a privacidade do palhaço.
“Hoje ele me disse que às vezes você simplesmente precisa fazer o que precisa ser feito, basta se distanciar do que está acontecendo, lide com isso, depois finja que nunca aconteceu, que funciona para ele, queria que funcionasse para mim”
Enquanto continuava a examinar as anotações, outro fragmento se destacou, algo sobre uma decisão crítica que o Coringa tomara em algum momento em sua vida, a recusa em ser a vítima da história. Bruce sabia, era umas das coisas sobre o louco, ele se recusava a aceitar que tinha sido uma vítima, que havia sido machucado. Essa recusa em se ver como vítima era, ao mesmo tempo, admirável e alarmante. Mas Bruce entendia o sentimento de não querer ser visto como fraco.
As palavras de Matthew refletiam uma luta interna que Bruce conhecia bem, uma batalha entre a necessidade de se proteger e o desejo de se conectar. Era doloroso ver o Coringa em uma luz tão vulnerável, isso era muito pessoal, era algo que até o próprio Bruce tinha dificuldade de assimilar.
Ele se lembrou de cada momento em que o palhaço deixava entrever um fragmento das partes mais complexas de sua personalidade, os olhares de tristeza que ele tentava esconder, os gestos de carinho que sempre eram seguidos por uma provocação. Essa complexidade era o que Bruce amava, essa dualidade. Ele conhecia todas as facetas do ex-terrorista, desde a faceta fria do sociopata até a faceta terna de uma criança perdida.
Bruce passou os dedos pelos papéis desordenados, cada rabisco e cada anotação parecendo contar uma história que ele ainda não havia totalmente decifrado. Era como se Matthew estivesse tentando traduzir a complexidade de uma alma que se escondia sob camadas de sarcasmo e mania.
Ele se sentiu compelido a mergulhar mais fundo nas anotações, cada frase pulsando com a intensidade da luta interna do Coringa. A letra clara de Matthew parecia trazer à tona uma humanidade que o palhaço muitas vezes se esforçava para esconder. As anotações continuaram a se revelar diante dele, cada uma mais íntima que a anterior. Andy falava sobre o ex-terrorista de um jeito que fazia Bruce querer esmurrar alguma coisa. Não eram simples análises como as de um psiquiatra deveria ser. Havia um toque muito pessoal e isso irritou o moreno.
“Há algo nele que me lembra dela, não sei explicar ainda, mas há algo na maneira como ele age em seus momentos de vulnerabilidade…isso se parece com ela, depois que ele desfigurou um dos lados do seu rosto.”
Bruce não gostou disso. A menção a Annie trouxe à tona um turbilhão de emoções. O pensamento de que Matthew estivesse projetando sua falecida esposa no Coringa o deixou inquieto. Era um território perigoso, e Bruce se sentia irritado. Isso era muito…bizarro. No entanto, isso explicava muitas coisas sobre o comportamento do ex-psiquiatra. O moreno estava novamente voltando para pensamentos sombrios, porque isso explicava mais do que o ex-bilionário queria que explicasse.
O moreno não gostava de pensar no Arkham, mas seus pensamentos o arrastaram exatamente para lá. Ao mesmo tempo que ele queria mais detalhes do que aconteceu, ele também não queria. Era algo muito pessoal, algo que o palhaço não queria que o moreno soubesse. Bruce respeitava isso.
O ex-bilionário se lembra com exatidão da postura do louco em suas interações com Andy. Havia um desconforto misturado com um ódio mal contido, travestido em camadas e camadas de sarcasmo frio. No entanto havia mais, um sentimento de autopreservação diluído em sua postura, como um animal selvagem sendo encurralado em um canto. Bruce entende, ele seria o primeiro a se colocar entre o ex-psiquiatra e o Coringa, todavia, ele sabe que o louco não precisa disso. O Coringa sabe muito bem lidar com isso sozinho.
Mas, ainda assim, Bruce não conseguia evitar o desejo instintivo de protegê-lo. Havia algo profundamente perturbador na ideia de que Andy estava projetando. Isso o deixava desconfortável, como se estivesse observando uma teia de emoções distorcidas que estava prestes a desmoronar sobre todos os envolvidos.
Enquanto olhava ao redor, o som distante de passos ecoou no corredor, do lado de fora do apartamento. Bruce imediatamente ficou em alerta, sua postura se endurecendo enquanto esperava. Sua mente processou rapidamente as possibilidades, seria Matthew? Seria uma armadilha?
A porta rangeu levemente quando alguém a empurrou com cuidado, mas Bruce já estava se movendo antes que o intruso pudesse sequer entrar completamente. Ele pegou a pessoa pelo braço e a puxou para dentro com força, pressionando-a contra a parede em um movimento fluido. O rosto da pessoa iluminado pela luz fraca revelou algo que Bruce não esperava. Era Chuck.
O tenente arfava, claramente surpreso e ofegante, mas sem resistência.
-Wayne! Calma! Sou eu! - disse Chuck tentando se libertar do aperto do ex-bilionário.
Bruce o soltou, embora não afrouxasse a postura vigilante.
-O que você está fazendo aqui? - falou o moreno, sua voz carregada. Ele não tinha esquecido sua discussão anterior com o outro homem.
Chuck esfregou o ombro, recuperando o fôlego, mas ainda em silêncio.
-Desculpe - entoou o tenente com um suspiro depois de um momento - eu tenho muita coisa na cabeça no momento, eu não devia ter dito aquelas coisas, acabei de perder um membro da minha equipe novamente, e tive que dar um dia de folga para Sarah, as coisas estão realmente caóticas.
O silêncio entre eles se manteve espesso, sem ser quebrado por mais um momento antes que Chuck tornasse a falar observando o espaço ao redor.
-Esse lugar parece abandonado a semanas, parece que você estava certo, ele está aprontando, vou emitir um mandado de prisão por violar a liberdade condicional.
Bruce não respondeu imediatamente, seus olhos ainda fixos em Chuck enquanto suas palavras pairavam no ar. O ex-bilionário estava lutando contra a maré de frustração que o consumia. O ambiente ao redor parecia pulsar com a energia acumulada de sua raiva contida.
-Quer que eu emita um alerta de sequestro ? - perguntou o tenente.
-Porque você se importa agora ? - devolveu o moreno com um tom neutro.
-Não me importo - disse Chuck dando de ombros - mas você está certo, eu devia ter te avisando que ele não apareceu, o Coringa também é minha responsabilidade.
Bruce respirou fundo, reprimindo o impulso de bater em alguma coisa. Sua mente estava um turbilhão de preocupações, e cada minuto perdido era mais um em que ele não sabia onde o Coringa estava.
-Vou encontrá-lo - Bruce murmurou, mais para si do que para Chuck.
Chuck olhou de soslaio para o outro homem, o olhar do moreno era frio, mas havia outra coisa por trás, não era novo, mas parecia mais cru.
-Não faça nada que você não faria - comentou o tenente olhando em volta.
-Eu não sei mais o que eu não faria.
—--------
Jason não estava gostando nada da casa de internação. Até o momento ele não teve grandes problemas, era fácil simplesmente não ser notado nos corredores, fazer o que pediam sem reclamar. Ele havia aprendido a se misturar, a não chamar atenção para si. Mas isso não significava que ele estivesse confortável. O cheiro de desinfetante impregnado nas paredes, o barulho incessante dos outros internos, e a constante vigilância dos guardas o deixavam tenso.
Apesar de não ter grandes problemas até agora, Jason sabia que não conseguiria manter esse comportamento passivo por muito mais tempo. Já estava planejando sua saída mentalmente, observando o padrão dos guardas e procurando falhas na segurança durante o dia. Ele precisava estar um passo à frente, mesmo que isso significasse ficar mais tempo observando, calculando cada movimento antes de agir. Talvez alguns dias ?
Ele pensava nos rostos das pessoas que o haviam colocado ali, em tudo o que havia acontecido até chegar naquele ponto. Todavia, ele tentava se manter fiel ao seu objetivo, encontrar sua mãe. Ele sabia que o mundo lá fora ainda existia, e que ela estava em algum lugar. A única coisa que o mantinha focado era essa esperança.
O adolescente sabia que tinha sido descartado. O Coringa tinha razão. Eles haviam tentado se livrar dele, arrastado-o para aquilo e o descartado no momento em que não foi mais útil. A verdade era crua e dolorosa, mas não surpreendente. Ele havia sido jogado fora por pessoas que diziam se importar, pessoas que, no fundo, o viam como uma peça a ser usada e depois ignorada. Isso o corroía. A raiva crescia dentro dele, latejando sob a superfície.
-Você vai continuar me ignorando ? - perguntou o colega de quarto de Jason com um suspiro - se você não vai dormir, poderíamos pelo menos conversar, também não estou com sono.
Jason olhou de soslaio para o colega de quarto, sem dizer nada por um momento. Ele estava tão imerso em seus próprios pensamentos que sequer tinha percebido que o outro estava acordado. Conversar? Ele não tinha nenhum interesse em criar laços naquele lugar, especialmente com alguém que, assim como ele, estava preso ali. Ele desviou o olhar para o teto, tentando ignorar o incômodo crescente.
-Não estou muito no clima de conversa - Jason respondeu secamente, mantendo o tom baixo, quase indiferente. Não queria se envolver em nada, em ninguém.
O colega de quarto, no entanto, não se deu por vencido. Ele se virou na cama, encarando Jason com um olhar curioso, talvez até um pouco desafiador.
-Eu te vi hoje, observando os guardas- disse o garoto, esticando o pescoço como se tentasse captar algum tipo de reação no rosto de Jason - Está planejando algo, não ?
O tom de voz dele era insinuante, quase divertido, como se ele estivesse tentando arrancar algo de Jason, que não teve nenhuma reação.
-Eu só... sei reconhecer o tipo - disse o garoto dando de ombros - eu sou Timothy, mas o pessoal aqui me chama de Tim.
Jason bufou revirando os olhos, irritado com a insistência.
-Que seja - murmurou Jason, virando-se na cama de forma abrupta, de costas para o colega de quarto, tentando deixar claro que a conversa acabava ali. Mas, claro, Tim não parecia ser o tipo que desistia facilmente.
-Sabe, ficar sozinho nesse lugar... é perigoso, ainda mais com os guardas de olho em quem tenta algo - continuou Tim, sua voz ficando um pouco mais baixa, como se estivesse confidenciando um segredo - não precisa confiar em mim, mas eu já vi outros como você...aliás, estarei fora daqui em três dias, só estou entediado.
Jason se virou lentamente, o desprezo escrito em seu rosto. Ele não se importava com a saída de Tim; isso não mudaria sua situação. A ideia de que alguém estivesse prestando atenção nele, especialmente alguém que parecia tão despreocupado, o incomodava ainda mais.
-Não olha dessa forma - continuou Tim olhando para o outro adolescente - não estou fugindo, é que a minha estadia aqui acabou, meu pai vem me buscar, digamos que…me meti com coisas erradas enquanto ele e minha mãe estavam fora.
Jason franziu a testa, a curiosidade despertada apesar de sua resistência. Ele não queria saber a história de Tim, mas algo no tom dele fez com que não pudesse ignorar.
-Coisas erradas? - Jason repetiu, quase sem querer - como o que?
Tim deu de ombros, como se estivesse discutindo algo trivial antes de entoar:
-Nada demais, invadir o sistema de segurança da escola, hackear algumas coisas na internet, pirataria, sabe ?
Jason olhou cético para o garoto, não acreditando em suas palavras por um momento. Seu maldito colega de quarto é um daqueles idiotas metidos, filhos de gente rica que acha que é muito descolada. Jason estava farto da conversa.
-Alguns de nós tem problemas reais - falou Jason querendo encerrar a conversa.
Tim deu uma risada curta, como se Jason tivesse contado uma piada. A expressão no rosto de Jason não mudou, mas a persistência de Tim começou a incomodá-lo.
-Problemas reais? - ele repetiu, olhando com curiosidade para Jason. - E você acha que eu não tenho problemas? Ser mandado para um lugar como este não é exatamente um passeio no parque, sabe? Cada um aqui tem suas razões.
Jason se endireitou na cama, os músculos tensos. A raiva que ele tentava conter borbulhava à superfície, e a ideia de alguém invadindo seu espaço pessoal o deixava ainda mais inquieto.
-Eu não estou aqui para um debate sobre problemas - retrucou Jason, seu tom agora mais cortante - o que eu quero é sair, e se você não tem nada de útil para me dizer então eu não tenho interesse na conversa.
-Eu já gosto de você - riu Tim frente a raiva do outro garoto.
-Olha, eu não estou aqui para fazer amigos - retrucou Jason, a voz tensa, cada palavra saindo como um rosnado. Ele virou a cabeça, encarando o teto, como se ele pudesse se teletransportar dali.
-E eu não estou aqui para ser seu amigo - Tim respondeu, tentando manter o tom leve - só acho que é inteligente ter um plano.
Jason se virou de forma abrupta, o desprezo estampado em seu rosto. Ele não queria ouvir conselhos de alguém que claramente não entendia a gravidade da situação.
-Você acha que é tão esperto, né? - ele disparou, a voz aumentando - o que você sabe sobre sobrevivência? Você sabe como é o mundo real ? Deve ser fácil ter essa atitude despreocupada quando você sabe que vai sair.
Tim não se deixou intimidar pela explosão de Jason. Ele cruzou os braços e inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse estudando o garoto. Algo no garoto era curioso.
-Bem - disse Tim de repente, seu tom ainda despreocupado - você não me disse o seu nome, e nem como chegou aqui.
Jason hesitou, seu instinto o alertando para não revelar nada, mas a insistência de Tim era irritantemente persistente. Ele revirou os olhos antes de dizer:
-Jason.
-Então, Jason, o que te trouxe a este glorioso hotel cinco estrelas? – Tim perguntou, a provocação clara em sua voz.
Jason desviou o olhar, sua mente navegando rapidamente pelas lembranças dolorosas. Ele não estava lá para compartilhar sua história. Mas a vontade de não ser totalmente fechado, de pelo menos não ser o único que levava o peso do silêncio, começou a se infiltrar em sua mente.
-Eu… tive problemas com algumas pessoas – ele murmurou, quase como uma confissão, mas logo em seguida se arrependeu. O que ele estava fazendo? Ele não estava aqui para discutir nada.
-Problemas com pessoas? Isso é vago - Tim insistiu, claramente interessado.
Jason sentiu a raiva e o desconforto se misturarem. O que Tim tinha que ver com sua vida? Não queria que ninguém soubesse o que havia acontecido.
-Eu não estou aqui para uma terapia em grupo – retrucou Jason, mas suas palavras perderam a mordida. Ele se sentou na cama, a cabeça se inclinando em um gesto de frustração. O que era mais desconfortável: ser atacado pela curiosidade de Tim ou permanecer preso em seu próprio mundo, isolado e cheio de raiva?
-Entendi, o silêncio é sua defesa – Tim observou, como se tivesse finalmente descoberto uma peça do quebra-cabeça que não se encaixava.
Jason lançou um olhar fulminante para Tim, a frustração pulsando em suas veias. Ele não precisava que ninguém lhe dissesse como se sentir ou como agir. A última coisa que desejava era abrir-se para um desconhecido, ainda mais um como aquele que, em sua mente, parecia mais um mimado do que alguém que realmente entendesse as dificuldades da vida.
-Eu não sou como você - disse Jason com um tom cortante.
Tim ergueu uma sobrancelha, intrigado, mas não ofendido. O garoto se recostou na cama, olhando para Jason com um semblante contemplativo. O silêncio se manteve por um momento antes que Tim suspirasse e entoasse:
-Fiz isso para chamar atenção do meu pai, ele e minha mãe estão sempre viajando a trabalho e me deixando em internatos, só queria que eles me notassem.
Jason sentiu uma pontada de compreensão, mesmo que não quisesse. O que Tim disse reverberou em suas memórias, lembrando-o de momentos em que desejou ser visto, de quando fez coisas que o levaram a situações perigosas só para chamar a atenção dos outros. No entanto, essa empatia não fez nada para amolecer sua determinação de se afastar.
-Não é assim que você faz isso - respondeu Jason, sua voz mais baixa, mas ainda repleta de desdém - Isso só te coloca em mais problemas.
Tim sorriu, como se tivesse encontrado um aliado inesperado em meio à tempestade.
-Olha, não estou dizendo que foi a melhor decisão, mas cada um tem sua forma de lidar com as coisas, não é? - Tim responde - e você? Vai me contar o que está fazendo aqui?
Jason hesitou, a raiva ainda fervendo dentro dele, mas agora misturada com algo mais: a frustração de ter que se explicar. Ele não queria que Tim visse qualquer fraqueza. Mas algo no tom do garoto, a genuína curiosidade, fez com que Jason se sentisse um pouco mais relaxado.
-Não é da sua conta - retrucou ele, embora um pouco menos agressivamente desta vez.
Tim pareceu considerar isso por um momento, então, em vez de se ofender ele entoou:
-Bem, acho que já sei o que vou fazer pelos próximos três dias, tentar descobrir como você acabou aqui.
—---------
Sam estava tenso, sentado na sala do apartamento, ele não conseguia dormir. Andy ia arrastá-lo novamente para o olho do furacão. Ele tem tentado ficar fora de problemas. Todavia, quando seu amigo, com quem Sam não falava a muito tempo, chegou em sua porta pedindo ajuda para se esconder, ele não poderia negar. No entanto, ele sabia que tinha feito a coisa errada no momento seguinte.
Esse cara não era o seu amigo, se parecia com ele, mas não era. Sam estava cada vez mais convencido disso, a dor em sua cabeça evidenciava esse fato. O cara o tinha atacado com um peso de porta.
Um barulho na cozinha o fez pular. Ele se levantou devagar, os músculos tensos, e seguiu em direção ao som. Quando entrou, viu Andy mexendo em uma das gavetas, o rosto pálido e suado, como se estivesse em pânico.
-O que você está fazendo? - Sam perguntou, sua voz mais firme do que se sentia.
-Não estou fazendo nada, pare de me vigiar - falou o ex-psiquiatra.
O silêncio se instalou entre eles, pesado por um momento antes de Sam dizer:
-Você disse que não ia me envolver nisso.
O silêncio que se seguiu foi espesso, haviam milhares de coisas não ditas no ar.
-Você sabe que não posso voltar para Blackgate - continuou Sam - eu não quero mais problemas com a polícia.
-Não vamos ter problemas - falou o ex-psiquiatra.
-Não vamos ? - rosnou Sam irritado com a atitude do outro homem - você acha que ter a porra do Bruce Wayne na nossa cola não é um problema ? Não sei o que você pretende, mas se livre dele.
O ex-psiquiatra olhou para o outro homem por um momento antes de dizer com um tom que vazava irritação, mesmo que o outro homem tentasse disfarçar:
-Eu só quero ter uma conversa civilizada, você sempre espera o pior de mim.
-E o que você espera que eu pense ? - falou Sam, não ignorando o elefante na sala - você para de falar comigo e depois volta todo estranho e precisando de ajuda ?
-Você sabe muito bem porque parei de falar com você - o ex-psiquiatra se irritou com o outro homem - você começou a se meter em um monte de coisa sinistra, Annie era policial, o que você esperava ? Que eu ficasse do seu lado ? Que eu participasse da sua insanidade e destruisse meu casamento ?
-Não ia dar em nada - rosnou Sam - eu só queria fazer uma grana, nem todo mundo teve a oportunidade de ir para a Universidade como você, eu estava me virando.
-Com tráfico ? - entoou Andy com um tom desdenhoso.
-Não era tráfico - devolveu Sam com raiva - era só umas malditas fitas VHS e uns CD´s idiotas.
-E o que tinha na porra das fitas ? - acusou Andy com raiva - você sabe muito bem o que tinha nelas, você até começou a fazer cópias para levantar um dinheiro por fora, não foi ? Só que seu chefe não gostou disso, então eles deram um jeito de te colocar atrás das grades sem sujar o nome deles, sem envolver o negócio.
-Eu já pague por isso em Blackgate, peguei 3 anos por algo que nem sei o que foi - disse o outro homem - mas quem é você para me julgar ? Eu me meti com coisas erradas, mas você também não está limpo, na verdade você acabou mais fundo do que eu, então fica na sua.
Matthew ficou em silêncio por um momento observando o rosto raivoso de seu amigo. O rosto do ex-psiquiatra não demonstrava raiva pelas palavras do outro homem, ele apresentava uma calma clínica. Ele sabia lidar bem com suas próprias emoções na maioria dos dias.
-Eu sei que você não quer ser arrastado de novo para problemas - começou o ex-psiquiatra - eu não estou aprontando nada, eu só…quero uma conversa civilizada.
-Andy - apelou Sam com um tom ríspido - seu psiquiatra já te alertou, fique fora disso, esquece essa porcaria, isso não vai te levar a lugar nenhum.
Andy soltou um suspiro profundo, o peso das palavras de Sam parecendo se espalhar pela sala. Seus olhos, antes impassíveis, agora exibiam uma mistura de frustração e cansaço. Ele sabia que Sam estava certo em parte, mas desistir nunca foi uma opção que ele considerasse seriamente.
-Eu sei o que meu psiquiatra disse, Sam - respondeu Andy, a voz baixa, mas firme - mas eu não posso, não é tão simples assim.
Sam passou a mão pelos cabelos, irritado. Ele não queria continuar essa discussão, mas também não conseguia ignorá-la. Ver o antigo amigo mergulhar cada vez mais fundo nessa obsessão o incomodava de maneiras que ele não conseguia descrever.
-Então o que você vai fazer? Vai continuar perseguindo o fantasma de Annie e acabar morto? - Sam disparou, o tom de voz mais alto do que pretendia - é isso que você quer?
Andy não respondeu imediatamente. Ele permaneceu em silêncio, os olhos perdidos em um ponto fixo no chão, como se estivesse tentando encontrar uma resposta que fizesse sentido. Mas a verdade era simples: ele não sabia mais o que queria, exceto que precisava de algo que o fizesse sentir-se inteiro novamente, mesmo que esse algo fosse impossível de alcançar.
-Eu não sei - murmurou Andy, finalmente, sua voz mais suave agora - só sei que não consigo ficar parado, não depois de tudo que aconteceu, não depois de tudo o que perdi.
Sam ficou em silêncio por um momento, observando o homem à sua frente. O silêncio entre eles era espesso, havia uma amargura por baixo, mas também uma pitada singela de cansaço e resignação.
-Andy, escuta - disse Sam, tentando escolher suas palavras com cuidado - isso tudo, toda essa obsessão sua, está indo longe demais, e você sabe disso, Bruce Wayne vai nos caçar até o fim do mundo se alguma coisa acontecer com o Coringa, ele não vai parar, você sabe que ele é assim.
Andy encarou Sam por um momento, os olhos frios e os avaliadores. Havia uma fagulha de irritação ali, mas também algo mais sombrio, algo que Sam não conseguia entender completamente.
-Não estou te pedindo para se envolver diretamente - disse Andy, cruzando os braços, como se isso fosse a solução - eu só preciso de tempo, tempo pra pensar, pra descobrir o que fazer.
-Tempo? - Sam riu com amargura, gesticulando em direção à porta como se o perigo estivesse ali, batendo à porta a qualquer momento - cara, você acha que Wayne vai te dar tempo? Ele provavelmente já está nos rastreando, isso aqui não é uma brincadeira, estamos falando de alguém que caçava pessoas como a gente por esporte!
-Eu sei – Andy respondeu, a voz baixa, mas firme. – Mas ele não vai me matar, Sam, ele não vai, porque ele ainda é o morcego, ele tem sua filosofia, eu só preciso de uma chance de falar com ele, de mostrar que não estou tentando machucar o Coringa, que eu só…que eu preciso entender o que está acontecendo.
Sam quase não acreditou no que estava ouvindo. Ele riu de novo, mas dessa vez com incredulidade.
-Falar com ele? Você quer ter uma conversa civilizada com o Bruce Wayne? - ele balançou a cabeça - Andy, por favor, para, ele não vai ouvir o que você tem a dizer, ele só vê ameaça quando olha pra você, ele vê um letreiro em neon escrito “Mantenha longe”.
Andy hesitou por um momento, o rosto endurecido, mas a determinação ainda estava lá.
-Eu não tenho outra escolha, Sam - falou o ex-psiquiatra.
-Sempre tem outra escolha - Sam retrucou, furioso, dando um passo à frente, quase se colocando cara a cara com o amigo - a outra escolha é você desistir dessa insanidade, é sair dessa merda agora, antes que o Wayne apareça aqui e destrua sua vida de vez, antes que ele destrua a minha também.
Andy ficou em silêncio, observando Sam com aqueles olhos impassíveis, e isso fez o sangue de Sam ferver ainda mais. Ele queria ver alguma emoção, algum reconhecimento de que ele estava certo, mas o que encontrou foi a mesma calma clínica que sempre via em Andy.
-Não vou desistir, Sam - Andy finalmente disse, a voz baixa, mas carregada de uma resolução fria - eu perdi tudo por causa dele, por causa do Coringa, Annie, meu trabalho, não tenho mais o que perder, e ele foi tudo o que restou depois de acabar com a minha vida, eu não estou com medo do Bruce, eu só quero falar com o Coringa, entender.
-O Coringa não dá a mínima para o que você sente, Andy! - Sam disparou, os nervos à flor da pele - ele te odeia caralho, olha o que vocês fizeram um para o outro,e Bruce... ele não vai te dar uma chance, ele já te avisou para largar o osso.
O silêncio que se seguiu era pesado. Sam se sentiu impotente, como se estivesse assistindo um amigo escorregar por uma borda que não podia ser vista, e ele não sabia como puxá-lo de volta.
-É tudo o que eu tenho - Andy murmurou, quase para si mesmo - e se eu não tentar, vou acabar enlouquecendo, eu preciso disso, Sam.
-Então, o que você vai fazer? - perguntou Sam, finalmente, sua voz mais suave. - Você realmente acha que vai conseguir conversar com ele e que tudo vai ficar bem?
Andy olhou para o chão, como se buscasse uma resposta nas sombras que dançavam ao seu redor. Ele sabia que o que estava tentando fazer era perigoso, que havia uma chance real de que tudo acabasse mal. Mas a ideia de continuar vivendo com essa dor, essa sensação de vazio, era mais assustadora do que qualquer coisa que o Coringa pudesse fazer.
-Não sei se vai ficar tudo bem - admitiu Andy, a voz cheia de sinceridade - mas eu preciso tentar, e se eu puder entender o que se passa na mente dele, talvez eu consiga entender a minha.
-Você pode acabar se machucando muito, Andy - Sam disse, a preocupação visível em seu tom.
-Nada pode ser pior do que o vazio que eu sinto agora - falou o ex-psiquiatra.
O silêncio se estendeu por mais um momento antes de Sam suspirar entoando:
-Isso é patológico, você sabe.
-É patológico, e eu sei - respondeu Andy, olhando fixamente para o chão - mas eu não consigo parar.
-Andy, ele não vai te ouvir - suspirou Sam - cara, você…
-Eu sei o que aconteceu Sam - interrompeu o ex-psiquiatra com um tom ríspido - e não, não me arrependo disso, a questão é que ambos jogamos um jogo onde nenhum de nós venceu, mesmo que ele tente fazer parecer o contrário.
Sam fechou os olhos por um instante, tentando organizar os pensamentos em sua mente. O peso da conversa começava a se tornar insuportável, e ele sabia que havia algo profundamente errado. Andy parecia não apenas emaranhado em suas ideias, mas também preso em um ciclo que não parecia ter fim. Um ciclo de ferir e ser ferido, se continuar cavando na ferida até sangrar.
-O que você espera alcançar com isso? - Sam perguntou, abrindo os olhos novamente e encarando Andy com intensidade - você realmente acha que vai mudar algo? Você não pode trazer a Annie de volta
-Não, não é sobre trazê-la de volta - Andy respondeu, a voz mais baixa - é sobre encontrar alguma forma de entender tudo isso, de fechar essa ferida, de seguir em frente.
-Você não pode fechar uma ferida se continuar cortando! - Sam exclamou, a frustração explodindo dentro dele - o que você está fazendo é se afundar mais na dor, e não vai conseguir tirar nada de bom disso, caia na real, você estuprou e torturou ele, o Coringa te mataria se pudesse, ele te odeia, ele não quer conversar, deixa isso porra !
-E você acha que ficar aqui, me acusando e me pressionando, vai mudar alguma coisa? - Andy se aproximou, o rosto a poucos centímetros do de Sam, ele estava com raiva, deixando de lado a calma mascarada - você não entende, eu não tenho outra opção!
-A única opção que você tem é sair dessa ideia insana e deixar o Coringa em paz! - gritou Sam fervendo de raiva - você vai se machucar, Andy! Ele não se importa com você, e você ainda não percebeu isso? Ele é um sociopata !
-Eu não estou fazendo isso por ele ! Estou fazendo isso por mim ! - gritou Andy - eu preciso disso !
O silêncio que se seguiu era denso. Sam olhou para Andy, buscando algum sinal de compreensão, mas encontrou apenas um olhar que refletia o desespero de um homem à beira de um abismo. A perda de Annie havia devastado Andy, e ele não conseguia ver uma saída. Mas Sam também sabia que a decisão de seguir em frente com isso só iria levar a mais dor.
-Você precisa de ajuda, cara - falou o amigo com pesar.
Notes:
Vou tentar postar na semana que vem, mas acho que não vou conseguir, estou com muita coisa no trabalho e na Univerdade. No entanto, não estou sumindo, juro.
Chapter 17: The Gotham We Have (Parte 17)
Notes:
Atrasado como sempre kkkkk mas muita coisa aconteceu. Eu ando com muitas coisas para fazer, então esse capítulo acabou ficando mais curto do que eu queria. Desculpem algum erro de digitação, estou sem tempo de revisar. Até a próxima semana se nada acontecer :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Faz 2 dias, Bruce sabia que precisava dormir. Ele se sentia exausto, e até o momento ele não sabia nada acerca do paradeiro do Coringa. Matthew não foi visto, Bruce tinha acesso a várias câmeras de trânsito e de postos de combustível. Era como se o cara tivesse evaporado. O moreno tentava, sem sucesso, rastrear as movimentações anteriores do outro homem.
O moreno passou as mãos pelo rosto por um momento antes de voltar a olhar para o computador, ele sentia o cansaço em seus ombros, mas não conseguia parar. Já era madrugada quando o ex-bilionário saiu da frente do computador para ir em direção à cozinha. Ele precisava de um café forte para continuar. O ex-bilionário em um movimento lento começou a preparar o café. Seu apartamento parecia tão frio e sem vida sem a presença do palhaço.
-Bruce…- entoou uma voz conhecida pelo moreno e que ele pensou que talvez nunca mais ouviria, Tália.
Bruce parou imediatamente, os olhos se ajustando para enxergar a figura familiar à meia-luz da cozinha. Talia estava ali, mais próxima do que ele imaginava que estaria novamente, com o olhar firme e calculista. O silêncio entre eles pesava, repleto de tudo o que não haviam dito.
-Tália…- começou o moreno sentindo um misto de cansaço e alívio inesperado, mas seu tom se mantinha cauteloso - o que você está fazendo aqui?
Ela inclinou levemente a cabeça, observando-o de cima a baixo, como se tentasse decifrar o desgaste evidente em seu rosto.
-Eu vim…saber de você, soube que você estava procurando por mim - ela respondeu pausando, o tom controlado como sempre, mas com uma ponta de curiosidade - parece que as coisas se complicaram, você parece… perturbado.
Ele não respondeu de imediato, desviando o olhar para o café que estava preparando. Cada parte do seu corpo implorava por descanso, mas ele sabia que não encontraria paz enquanto o Coringa estivesse desaparecido. Ainda assim, ele não podia compartilhar toda a verdade com ela.
-Gotham sempre complica as coisas - ele respondeu, com a voz mais fria do que pretendia - mas, estou lidando com isso.
Talia observou Bruce em silêncio, o rosto impassível, mas os olhos expressando um brilho calculista que ele conhecia bem.
-Não estou convencida disso - disse Tália cruzando os braços - o que você realmente quer comigo, Bruce? Porque, se é só sobre o Contador de Histórias, bem… não sei se estou disposta a abrir minha rede de contatos.
Bruce apertou a mandíbula, lutando para manter a compostura. O cheiro do café fresco enchia o ambiente, mas fazia pouco para aliviar a tensão que se acumulava em seus ombros. Ele sabia que, com Talia, cada palavra carregava um custo.
-Estou atrás dele, ele quer voltar com os jogos - Bruce disse finalmente, pesando as palavras - preciso de qualquer informação que você tenha.
-Não é tão simples assim e você sabe disso - falou a mulher olhando para o ex-bilionário - eu não cobro barato, e você…já não é interessante.
Bruce sabia do que ela estava falando, ele já não era mais bilionário, e seus recursos estavam limitados. A frieza dela o lembrava que ele agora era um homem comum, um detalhe que ela não de frisar. Talia não estava ali só para provocá-lo, mas também para testar seus limites, e ele sabia disso.
-Eu sei que não sou interessante pra você, Talia - respondeu ele, num tom amargo - e também sei que você sempre teve um preço, então diga logo o que você quer.
Talia sorriu de canto, um sorriso calculado, sem qualquer sinal de afeto.
-Informação tem um preço, Bruce - ela disse, os olhos escurecendo enquanto se aproximava - mas talvez não seja algo que você possa pagar com dinheiro, eu quero algo diferente dessa vez, algo… pessoal.
Bruce franziu a testa, sabendo que qualquer coisa que ela pedisse não viria sem consequências.
-Quero saber o que houve com o Batman - continuou Talia, com a voz baixa - eu vi as fotos na sua parede, isso parece…importante para você.
Bruce hesitou, o café esquecido enquanto ele assimilava o pedido de Talia. Ele sabia que responder abriria portas que talvez jamais conseguisse fechar. As memórias do Batman estavam guardadas a sete chaves, e ele nunca compartilharia os detalhes de sua decisão com ninguém, especialmente com Talia. Ele tinha largado o morcego, ele escolheu uma vida com o Coringa…com Jay. Bruce não esperava que Talia entendesse seus motivos.
-O Batman era necessário, depois ele não foi mais - ele começou, controlando o tom, como se escolhesse cada palavra com cuidado - e agora… preciso resolver isso.
-Então você está sozinho, como sempre - disse Talia finalmente, a voz carregando uma frieza cortante - sem o Batman, sem fortuna, e, pelo visto, sem aliados.
Bruce endureceu sua expressão, mas manteve-se firme.
-Vou encontrar uma maneira - ele respondeu, sem hesitar - e, com ou sem você, Talia, vou acabar com o jogo dele, estou farto disso.
-Você parece cansado - comentou ela como quem fala do clima lá fora.
Bruce não respondeu, ele observou Talia, os olhos cansados agora focados nela, tentando encontrar algo familiar, alguma pista de que ele ainda a entendia. Mas o que ela estava dizendo agora não era nada do que ele esperava. Ela estava focada em algo que ele havia tentado ignorar.
-O que você realmente está fazendo, Bruce? - ela perguntou, o tom afiado, mas com uma pontada de curiosidade - ele ... o Coringa, eu soube que vocês estão juntos, mas não entendi como, depois de tudo o que ele fez...
Bruce não respondeu de imediato, a pergunta ressoando como um golpe doloroso. A menção do Coringa parecia ter o poder de deixá-lo em silêncio, desconfortável. Ele virou o rosto para o lado, evitando o olhar de Talia, como se desviar da questão pudesse fazer a realidade desaparecer.
Talia não estava esperando uma resposta imediata, mas o olhar que ela lançava a ele, profundo e calculista, estava esperando alguma explicação, algo que fizesse sentido para ela.
-Eu não sei se você se lembra de quem ele é, Bruce - ela continuou, com uma frieza calma - quantas pessoas ele matou.
Bruce não respondeu, ele não queria ter essa conversa agora. O moreno fechou os olhos, os punhos cerrados, sentindo o peso da verdade nas palavras dela. Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que Talia não tinha ideia do que realmente acontecia entre ele e o Coringa, não tinha ideia de como aquilo era diferente. Ele sabia que poderia tentar explicar, mas também sabia que as palavras nunca seriam suficientes para convencer alguém como Talia.
-Eu sei muito bem quem ele é - disse Bruce, seu tom não vacilava - eu sei o que ele fez, eu sei quem ele matou, eu conheci muitas daquelas pessoas e você sabe disso.
-Então porque ? - perguntou a mulher, seu tom não era acusatório, mas não deixava de ser frio.
Bruce suspirou profundamente, a tensão tomou conta de seu corpo enquanto ele procurava as palavras certas. Cada parte de sua mente gritava para não entrar nessa conversa, para não reviver o que havia acontecido entre ele e o Coringa a um ano atrás. Mas ele sabia que não havia como evitar.
-Isso é sobre o que somos agora - suspirou o moreno cansado - eu não preciso justificar minha vida para você.
Talia o observou, os olhos fixos nele, como se tentasse desenterrar algo mais profundo, algo que ela sabia que ele não queria revelar. Ela permaneceu em silêncio por um longo momento, analisando sua expressão, mas seus olhos não pareciam mais tão severos. Havia um toque de algo mais, talvez curiosidade ou até compaixão, mas Bruce não se enganava com isso. Ela sempre foi boa em esconder o que realmente pensava.
-Talvez você tenha razão - disse ela finalmente, sua voz mais suave, mas ainda implacável - não há justificativa que eu possa entender, só não esqueça que está lidando com um sociopata de humor duvidoso.
Bruce permaneceu em silêncio por um momento, absorvendo as palavras de Talia. A frieza dela ainda o tocava, mas ele sabia que ela tinha razão, de uma forma perturbadora. O Coringa não era alguém simples de lidar, nem de entender.
-Eu sei o risco - disse Bruce, sua voz mais dura - mas o que eu faço agora, e com quem eu estou, não diz respeito a você.
Talia ficou em silêncio, olhando para a cozinha ao redor por um momento. Ela parecia absorver a atmosfera do lugar. Ela nunca pensou que Bruce pudesse se estabelecer com alguém…nem mesmo com ela. Todavia, aqui estava ele, aqui estava o apartamento dele e do Coringa. Não dele e dela.
Ela se aproximou um pouco mais, o olhar agora mais penetrante, como se estivesse tentando entender uma parte de Bruce que ele mesmo se recusava a encarar. Ela ainda olhava em volta, para a vida caseira de Bruce, mas ali o que mais a incomodava era o fato de que ele havia abandonado tudo, até mesmo o manto do Batman, mas por alguém que não era ela.
Talia suspirou, e pela primeira vez, a máscara de frieza pareceu vacilar. Havia uma pontada de nostalgia, mas também uma frustração evidente em seu olhar. Bruce havia sido seu, pelo menos em sua mente, e ela nunca havia entendido o que o impedia de se entregar completamente a ela. Mas o Coringa, com toda sua loucura, sua imprevisibilidade, sua violência, conseguiu algo que ela nunca chegou perto de conseguir. O Coringa o fez largar o manto do Batman.
-Eu sempre achei que, se fosse necessário, você deixaria tudo por mim - Talia falou suavemente, mas com uma ponta de amargura em sua voz - pelo menos, essa era a minha esperança, mas, aqui estamos, e é ele, não eu, que conseguiu que você desistisse de ser quem você foi.
Bruce não respondeu de imediato. Ele sabia o que ela estava insinuando. Sabia o peso que suas palavras carregavam. Ele sempre soubera que Talia queria que ele fosse algo que ele não podia ser para ela, mas agora, olhando para ela, havia uma estranha sensação de que, mesmo em seu distanciamento, Talia ainda o via através da lente de expectativas passadas.
Ela o observou com um olhar que misturava frustração e algo mais, talvez uma resignação amarga.
-Eu te dei tudo, Bruce, e ainda assim, não fui o suficiente.
Bruce fechou os olhos por um momento, sentindo a dor não resolvida que havia entre eles. As palavras dela eram difíceis de ignorar, porque, em algum lugar, ele também sabia que ela estava certa. Ela não foi o suficiente, ela notou que nunca seria, então foi embora. Ela desistiu de algo que já estava condenado desde o começo.
-Talvez você tenha razão - Bruce disse finalmente, com um tom que misturava exaustão e um pouco de resignação também - mas o que eu sou agora, quem eu sou agora, não tem mais nada a ver com o que fomos.
Talia o observou em silêncio, como se tentasse absorver suas palavras, tentando entender o que estava diante dela. O Bruce que ela conhecera não parecia ser o mesmo, ou pelo menos, não da maneira que ela esperava. Aquele homem que sempre fora movido por um código rígido, que sacrificou tudo pelo bem de Gotham, agora parecia ter algo diferente em sua vida, algo que o fez mudar, mesmo que sutilmente. E não tinha sido ela a fazer isso.
Ela olhou para ele, sem saber o que dizer. O que mais poderia ser dito? Eles estavam em lados opostos agora, com tudo o que tinham sido entre eles sendo reduzido a lembranças distantes, irreais. Talia sabia que Bruce jamais voltaria a ser o homem que ela amava. E talvez ela também tivesse mudado. Talvez nunca tivesse realmente amado quem ele era, mas sim o que ela esperava que ele fosse. Talvez ela tivesse amado a ideia de tê-lo.
-Eu te procurei porque… - ela começou, a voz hesitante - porque acabamos de forma tão fria, mas, talvez eu tenha que aceitar que não há nada mais entre nós, nada além de… passado.
Havia uma dor nela. Talia sabia, mas não estava preparada para olhar para o moreno novamente depois de quase quatro anos. Ela sabia que não deveria ter ido até o apartamento do moreno.
-Eu nunca soube porque você foi embora - falou Bruce de repente - porque foi embora de Gotham.
-Não havia mais nada entre nós - declarou a mulher ainda olhando em volta - e você e Selina estavam juntos, não achei que fosse conveniente ficar.
Bruce sentiu uma pontada ao ouvir as palavras de Talia. O nome de Selina tinha o poder de fazer o tempo voltar, de reviver uma parte de sua vida que ele tentava deixar para trás. Ele sabia que Talia estava certa, e ao mesmo tempo, sabia que aquilo não era tudo. Talia não estava ali só por causa de Gotham ou de suas antigas relações. Ela estava ali porque ainda havia algo não resolvido, algo entre eles dois.
Ele respirou fundo, seus olhos fixos no rosto dela, tentando, de algum modo, entender a mulher que, até pouco tempo atrás, havia sido uma parte de sua vida. Ela, por sua vez, o observou com uma expressão de curiosidade, mas também com um toque de desdém. Talia sempre fora assim: observadora, perceptiva, mas ao mesmo tempo, implacável. Ela parecia estar sempre em controle, sempre com uma resposta pronta. Mas, naquele momento, parecia vacilar.
-Você não sabe o que fazer com você mesmo, Bruce - ela disse, a dureza na voz quebrando um pouco, como se a empatia, tão rara entre eles, quisesse surgir - você deixou o Batman para trás, mas não sabe quem você é sem ele.
Bruce não respondeu de imediato. Ela estava certa, em certo sentido. Ele tinha vivido a vida de Batman por tanto tempo, que quando se viu livre da máscara, ficou perdido, mas isso era diferente. E não era mais sobre isso. Era sobre o que ele havia se tornado agora, sobre o que ele escolheria fazer com o resto de sua vida. Bruce sentiu uma onda de irritação subindo dentro de si. Ele sabia o que ela estava insinuando, e odiava que ela tivesse razão em parte.
-Não se trata mais de quem eu fui - Bruce disse, com firmeza - as coisas são diferentes agora.
Talia balançou a cabeça, como se não acreditasse completamente no que ele estava dizendo. Algo nela ainda queria acreditar que encontraria o mesmo homem que deixou para trás. Mas isso não ocorreu.
-Você parece feliz - disse ela com uma calma mascarada enquanto caminhava em direção a sala, olhando tudo ao redor.
Ele a viu parar onde o restante do apartamento de Bruce e do Coringa se espalhava de maneira um tanto desordenada, mas confortável. O ambiente não era luxuoso, mas era a casa de alguém que havia se rendido ao caos de sua própria vida. De alguma forma, isso era o reflexo perfeito de quem Bruce era agora. Uma parte dele queria que ela visse isso e entendesse, mas sabia que não havia palavras para explicar.
De repente, Bud caminhou lentamente do quarto em direção a mulher. O vira-latas se manteve calmo até rosnar levemente aos pés de Bruce. Bud não gostava de visitas.
Talia parou ao ouvir o rosnado suave. Ela olhou para o cachorro com um olhar de desconforto, reconhecendo a tensão no ambiente. O cachorro parecia tão uma extensão do lugar quanto qualquer outra coisa naquele apartamento. Era uma lembrança de que Bruce agora tinha algo mais que o seu passado. Ele tinha algo novo, algo mais instável, mas ainda assim real.
Bruce observou Talia, tentando perceber o que ela pensava, mas era impossível ler seus olhos naquele momento. Talia não costumava mostrar suas emoções, mas havia algo na maneira como ela olhava para o cachorro que sugeria que ela não estava ali apenas pela saudade ou pela necessidade de confrontá-lo sobre o passado.
-Ele não gosta de visitas - Bruce disse, tentando quebrar o silêncio. Sua voz estava mais suave, mas ainda havia uma dureza ali. Ele olhou para Bud, que estava agora mais calmo, mas ainda ficava de pé, atento. O cachorro parecia entender mais do que as palavras poderiam dizer. Ele sentia falta do Coringa, Bud sempre o seguia pela casa.
Bruce observou Bud se mover novamente pela sala com um comportamento que não passava despercebido. O cachorro, apesar de calmo, não parecia tão relaxado quanto o normal. Ele se movia lentamente, farejando os cantos como se estivesse esperando alguém que não estivesse ali. Quando o cachorro se aproximou de Bruce novamente, ele parou por um momento, choramingando suavemente, uma leve frustração, como se sentisse a ausência do Coringa de uma maneira que ninguém mais poderia entender.
Talia, que tinha parado para observar a cena, franziu a testa. Era como se Bud soubesse o que estava faltando, como se estivesse esperando pelo retorno do Coringa. O animal, tão simples em sua natureza, demonstrava uma saudade inconfundível. Ele não estava apenas seguindo os passos de Bruce; ele estava procurando por alguém.
Bruce suspirou e olhou para Talia, sua voz mais suave do que antes, um toque de desolação no tom.
-Ele sente falta dele - disse o moreno, referindo-se ao cachorro, mas suas palavras pareciam carregar um significado mais profundo, mais sombrio. Ele queria dizer que ambos sentiam. Que ele sentia.
Talia se forçou a desviar o olhar, como se afastar do vínculo tácito entre Bruce e o Coringa fosse o melhor a fazer. Mas, no fundo, algo a incomodava. Como ela poderia aceitar isso? Como poderia aceitar que Bruce, que nunca mudou um centímetro por ela, agora tivesse virado a vida inteira de ponta cabeças por causa do Coringa?
O que quer que fosse, ela não podia negar a dor que ainda existia entre eles, uma dor que ela pensava que havia enterrado, mas que agora surgia, viva, pulsante, alimentada pelo tempo que passou, pelas escolhas feitas. Ela sabia que esse Bruce diante dela era, ainda que de uma forma distorcida, a imagem que sempre alimentara do homem capaz de deixá-la ser sua razão, de abandonar tudo por ela…ele fez isso, mas não por ela.
E, ainda assim, ela não podia deixar de perguntar a si mesma: se o Coringa conseguiu fazer Bruce se afastar de tudo que ele representava, o que restava de Bruce? O que havia sobrado para ela amar ?
Ela deu um passo à frente, o som de seus sapatos ecoando suavemente no piso frio, e dirigiu sua atenção novamente a Bruce. Havia algo em seu olhar, uma mistura de cansaço e uma determinação que ela não reconhecia completamente. Ela se recusava a perder Bruce dessa forma. Ou talvez, ele nunca tenha sido verdadeiramente dela.
Bruce sentiu o peso do olhar de Talia sobre ele, mas não respondeu imediatamente. A tensão entre eles era palpável, como se o tempo tivesse paralisado e os anos de separação estivessem sendo pesados em cada palavra não dita. Ela deu mais um passo à frente, mas Bruce ainda não se movia. Não sabia o que queria dela, ou se realmente ainda havia algo a ser dito entre eles.
Ele pensou nas palavras que poderia usar, mas nenhuma parecia forte o suficiente para quebrar o silêncio carregado de memórias dolorosas.
-Talia… - sua voz era baixa, mas clara - não sei o que se passa na sua cabeça agora para trabalhar com o Contador de Histórias, mas deixe isso, ele é muito perigoso, é só o que eu te peço.
Ela o olhou sem emoção, mas havia uma lacuna entre eles que Bruce podia sentir, como se ele tivesse puxado uma linha invisível que agora a impedia de se aproximar mais. Ela não falou nada de imediato, apenas manteve o olhar fixo nele, os lábios apertados, como se estivesse reunindo forças para algo que estava por vir.
As palavras ficaram retidas, mas a dor que elas carregavam estava estampada no rosto da mulher. Ela sabia que ele não a via mais da mesma forma. Ela sempre soube disso, mas o ver ali, tão distante e tão consumido por algo que ela não compreendia, a fazia duvidar das escolhas que fizera. Bruce tinha se perdido, sim. Mas, de uma forma estranha, parecia que ele também tinha encontrado algo, e esse "algo" era mais importante do que qualquer outra coisa que Talia pudesse oferecer. Ela se sentia enganada.
Talia se sentiu frustrada por um momento, ela não sabia o que esperava de Bruce ali de pé em silêncio, talvez uma prova de que ele não tinha mudado tanto assim, de que apesar de tudo ainda existisse algo. Mas não havia nada. Não havia nada para ela.
Talia sentiu o peso da ausência, o vazio de um amor que ela jamais teve de verdade. Ela queria poder falar, preencher o silêncio, mas tudo o que restava era a frustração pelo homem que, mesmo em sua presença, estava sempre em outro lugar.
-Não posso fazer isso, Bruce - Talia finalmente disse, sua voz baixa e sombria - eu não vou desistir, e o Contador de Histórias… talvez ele seja perigoso, mas isso nunca me impediu antes, eu não tenho realmente escolha agora
Ele ergueu o olhar para ela, vendo o mesmo olhar determinado que o atraíra anos atrás. Mas, agora, tudo parecia distante, como se ele estivesse observando alguém que ele não conhecia mais. Ou talvez nunca tenha conhecido.
-Se continuar com isso, vai acabar se machucando - ele disse, a voz firme - não estou dizendo isso para tentar mudar sua mente, só estou te avisando.
-Você não entende o que está em jogo para mim - disse Tália, sua voz com uma pontada de algo dolorido, como se isso fosse algo pessoal para ela.
Talia observou Bruce com um olhar hesitante, tentando manter a fachada de força, mas por dentro, uma onda de emoções a consumia. Bruce não sabia, não fazia ideia da verdade por trás de suas ações, da razão pela qual ela se envolveu com o Contador de Histórias. Ela não queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas agora tudo parecia incontrolável, uma avalanche de segredos guardados por anos.
Parte dela queria dizer a verdade, queria contar sobre Damian, seu filho, o filho que Bruce nunca soube que existia. O filho que ela estava esperando quando deixou Gotham a quase quatro anos atrás. Mas a mesma determinação que a levara a tomar essa decisão difícil também a impedia de revelar aquilo agora. Bruce jamais saberia.
-Você não entende o que está em jogo para mim, Bruce - repetiu, sua voz trêmula, carregada de algo que parecia muito maior do que ela própria.
Bruce, incapaz de interpretar o verdadeiro significado por trás das palavras dela, deu um passo à frente, a expressão dura, mas seus olhos revelando um traço de compaixão.
-Talia, eu sei que nós dois temos motivos para seguir caminhos diferentes, mas... o Contador de Histórias? Ele está manipulando você, usando o que quer que seja que ele tenha prometido, não importa o que esteja em jogo para você, isso não vale o risco - disse ele sua voz sincera, mas imersa em uma preocupação genuína que ela quase desejava que fosse por ela. Mas ela sabia que não, porque ele nunca a teve verdadeiramente em seu coração.
Ela queria responder que havia algo mais em jogo do que ele jamais poderia imaginar, que havia uma vida, uma pequena parte dele, de ambos, que dependia dela e das decisões que tomava.
-É fácil falar isso quando não é você quem está na linha de frente - ela rebateu, tentando manter a voz firme - eu estou fazendo o que precisa ser feito.
Ele respirou fundo, sabendo que insistir não a faria mudar. Talia sempre fora implacável em suas escolhas, mesmo que estas levassem ambos à ruína. Bruce, de alguma forma, compreendia isso, talvez porque também soubesse o que era se agarrar a uma missão ao custo de tudo.
-Não quero que você saia machucada disso - diz o moreno com um suspiro cansado - não importa o que tenhamos sido, eu ainda me importo com você.
Talia engoliu em seco, sentindo uma pontada ao ouvir aquelas palavras. Parte dela queria acreditar nele, queria confiar que, de alguma forma, Bruce entenderia suas escolhas se soubesse a verdade. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia que, uma vez revelado, seu segredo mudaria tudo. Mas ao mesmo tempo ela não podia voltar atrás, ela não podia ter uma família com Bruce. Ele já tinha uma família, e não era com ela.
Bruce tinha sido um sonho antigo, uma esperança que alimentara por anos, mas agora parecia que tudo o que restava era um eco distante de um amor nunca concretizado. Ela tentou esconder a fragilidade que se revelava em seus olhos, mas Bruce a conhecia o suficiente para perceber.
O silêncio entre eles cresceu, cheio de palavras que nenhum dos dois estava pronto para dizer. Bruce observava Talia com uma tristeza resignada, sabendo que qualquer caminho escolhido por ela a levaria para mais longe. Ele não queria que ela se perdesse por completo, mas também não tinha mais a força para mantê-la perto. Não agora.
-Talia, eu só... - começou ele, mas foi interrompido.
-Você nunca me deu o que eu realmente queria, Bruce - ela disse, e a sinceridade de suas palavras soou como uma acusação - você diz que se importa, mas nunca fez o suficiente para me fazer querer ficar.
Havia uma amargura nas palavras da mulher, um ressentimento. Talia suspirou antes de continuar gesticulando para o espaço a sua volta:
-Eu queria ter tido isso com você, mas você nunca quis.
Bruce pensou em tudo que aconteceu no ano passado, tudo que o mudou de forma que ele tomasse aquela decisão, a decisão de casar com Coringa. A dor, a tortura…as descobertas, a queda. Algo mudou.
-Eu sei disso - Bruce respondeu, com uma tristeza contida em cada palavra.
Talia desviou o olhar, a expressão endurecida, mas algo em seus olhos parecia quebrar. Por um momento, ela ficou ali, como se lutasse contra uma vontade reprimida de confessar tudo, de despejar as verdades que carregava sozinha.
-Parece que finalmente você entendeu - disse ela, sua voz mais fria do que pretendia, tentando manter a compostura.
Bruce apenas assentiu, aceitando a distância que se formava entre eles, como se já estivesse preparado para esse desfecho. Ele sabia que, apesar de tudo, havia partes de si que Talia nunca compreendeu e que, talvez, nunca conseguiria aceitar. Ela fora parte do passado dele, mas ele havia mudado, e a vida dele agora seguia em uma direção diferente.
-Você sabe que pode confiar em mim se estiver com problemas, não sabe ? - disse o moreno tentando quebrar o silêncio que se seguiu.
-Eu não sei se posso, Bruce - disse ela, sua voz era sincera, havia algo cru nisso.
As palavras de Talia pairavam no ar, cortantes e cheias de um peso que Bruce compreendia, mas não podia aliviar. Ele respirou fundo, observando-a com o olhar mais atento, tentando decifrar o que havia por trás daquela camada de indiferença e força que ela insistia em mostrar. Havia dor ali, uma angústia antiga que ele nunca soube como curar, ou talvez nunca estivesse realmente disposto a curar.
-Talia… eu não vou insistir para que confie em mim - ele respondeu, sua voz calma, mas carregada de algo que parecia quase resignado - mas, seja o que for que esteja enfrentando, espero que não esteja tão sozinha quanto parece.
Ela esboçou um sorriso amargo, desviando o olhar. A última coisa que Talia queria era mostrar qualquer vulnerabilidade a ele, especialmente agora. Ele estava fora do alcance, em todos os sentidos, e essa distância apenas reforçava a decisão que ela tomou anos antes de manter Damian longe de Bruce.
-Eu não estou sozinha, Bruce - respondeu, com uma firmeza quase desafiadora, mas que ocultava algo mais profundo - eu tenho minhas escolhas, minhas razões... e isso é suficiente.
Bruce assentiu, aceitando o que ela dizia, mas sentindo que, por trás das palavras, ainda havia algo que ela nunca compartilharia. Ele havia desistido de tentar compreendê-la inteiramente; os anos os haviam moldado de formas que tornavam aquela conexão, uma vez desejada, agora inalcançável.
-Eu espero que encontre o que está procurando, Talia - ele disse, sua voz em um tom quase carinhoso, mas que, ao mesmo tempo, carregava a sensação de um adeus.
Ela o encarou por um momento, como se suas palavras tivessem atingido uma parte dela que há muito estava adormecida.
-Foi bom te ver Bruce - disse ela, mas Talia não sorria, embora sua voz não fosse rancorosa. Tudo o que restava era um silêncio final entre eles, um abismo que parecia se aprofundar a cada segundo. Não havia mais nada ali para ela.
A frase pairou no ar como uma despedida velada. Ambos se encararam, e o silêncio entre eles foi se estendendo, repleto de sentimentos que nunca seriam expressos, de segredos que permaneceram enterrados. Talia ainda sustentava aquele olhar de força e determinação, mas Bruce sabia que, por trás daquela fachada, havia uma vulnerabilidade que ela sempre evitava mostrar. Talvez por orgulho, talvez por medo de que ele enxergasse o que ela escondia.
Sem mais palavras, ela deu um passo para trás, criando mais distância entre eles. Era um movimento calculado, como se se afastar dele fosse a única maneira de seguir em frente.Ela se virou, pronta para sair, mas hesitou ao dar o primeiro passo. Olhou por cima do ombro, o semblante sério, uma sombra de algo não dito em seus olhos.
-Cuide-se, Bruce - disse ela, quase em um sussurro.
Ele apenas assentiu, um aceno silencioso que carregava a compreensão de que aquele adeus não era apenas uma formalidade. Era um ponto final, o fim de um capítulo que, apesar de todas as promessas e ilusões, nunca teve um começo verdadeiro.
Talia saiu, e Bruce ficou ali, sozinho, observando a porta pela qual ela havia passado, como se estivesse se despedindo de um fantasma. Havia algo melancólico naquele momento, que foi interrompido por um choramingo de Bud.
-Eu sei Bud, eu também quero saber onde ele está - disse o moreno, como se o cachorro pudesse entendê-lo. Ele precisava voltar a sua busca pelo paradeiro do Coringa. Bruce voltou para a cozinha do seu apartamento, para a xícara já fria de café. Havia um peso. O moreno passou as mãos pelos cabelos.
Bruce queria gritar, ele apertou os punhos até que os nós dos dedos ficassem brancos e então derrubou tudo de cima do balcão com um rosnado frustrado, antes de socar a madeira. A louça quebrou contra o chão frio com um barulho calmante, mas o silêncio que se seguiu não era reconfortante. O moreno não sabia o que fazer. Havia demais em seu prato nesse momento.
Ele ficou ali, parado por um momento, ouvindo os estilhaços ainda ecoando pelo ambiente, como se a quebra da louça fosse um reflexo do que estava acontecendo dentro de si. O silêncio em seu apartamento se tornou ensurdecedor. A tensão nos músculos de Bruce se espalhou, e ele se sentiu sufocar com o peso.
O que restava de seu mundo parecia estar desmoronando em torno dele, e ele não sabia onde encontrar um ponto de apoio. A dor física de socar a bancada com a mão não se comparava ao vazio que o consumia por dentro. Ele já havia perdido tanto ao longo dos anos, pessoas, princípios, até sua própria identidade. E, no entanto, ali estava ele, sem saber para onde ir, sem saber o que fazer com toda a sua raiva, tristeza e frustração. Porque ele não sabe se suportaria outro jogo. Bruce se sentia no limite.
O ex-bilionário se sentou no chão, suas costas contra a pia da pequena cozinha. Ele descansou o rosto nas mãos por um momento, se deixando consumir por um desespero que vinha roendo seus ossos a dois dias. O Coringa estava desaparecido. Bruce não conseguia encontrá-lo. Ele não tinha os contatos de antes.
Ele olhou para o cachorro, que continuava a girar em círculos, incomodado com a ausência de uma resposta. O animal olhou para ele com seus olhos castanhos e tristes, como se, de alguma forma, entendesse o que se passava na mente de seu dono. Bruce suspirou, a mão que ainda doía de ter socado a bancada se movia inconscientemente para chamar o cachorro.
Uma parte dele queria correr atrás de respostas, agir, procurar pelo Coringa, mas outra parte, a que estava cansada, se sentia tentada a ficar ali, no escuro, até que o mundo ao seu redor se resolvesse de alguma forma. A raiva, a dor, a angústia... tudo isso parecia tão esmagador. Ele só sentia que queria chorar um pouco.
Bruce quase podia ouvir o ex-terrorista dizendo que Bruce estava sendo sentimental, que estava estressando Bud. O ex-bilionário quase podia rir disso. O louco com certeza faria algum comentário sobre o desperdício da porcelana.
O moreno suspirou começando a se levantar para limpar a bagunça. Ele não podia deixar que sua mente fosse consumida por isso. Começando a recolher a porcelana quebrada Bruce se preparava para voltar para a investigação.
Notes:
Obrigado por ter lido até aqui. Comente para me deixar feliz.
Chapter 18: The Gotham We Have (Parte 18)
Notes:
Atrasado como sempre kkkkkk. Muita coisa aconteceu, e estou com dificuldade para postar, muitas provas na Universidade e tal. Mas vamos levando :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Já se passaram dois dias e na escuridão do quarto, Tim observava Jason em silêncio, como se estivesse formulando algo em sua mente. O garoto deitado na cama parecia feito de aço e espinhos, resistente e cheio de defesas. Mas Tim, por alguma razão, sentia uma curiosidade genuína por trás de toda aquela casca dura. Não era apenas um jogo para ele; algo em Jason o intrigava.
Depois de alguns minutos de silêncio, Tim se mexeu na cama, sentando-se com as pernas cruzadas. Ele sabia que, se quisesse que Jason confiasse nele, teria que dar um passo à frente.
-Tá bom, vou te contar algo - começou Tim, sua voz agora mais baixa, quase um sussurro, como se o quarto tivesse se tornado um espaço seguro para confidências - você quer sair daqui, certo? Eu sei que quer, e eu acho que sei como você pode fazer isso.
Jason o encarou, os olhos estreitados. Ele não confiava no outro garoto, mas suas palavras despertaram algo que ele tentava controlar: esperança. Fugir daquele lugar era sua prioridade, e qualquer pista poderia ser útil.
-E por que eu acreditaria em você? - Jason perguntou, cético.
Tim deu de ombros, sorrindo de canto antes de entoar:
-Porque, ao contrário dos outros aqui, eu não preciso mentir para sobreviver, eu já tô de saída, o que eu ganharia mentindo pra você?
Jason continuou encarando Tim, tentando avaliar a verdade em suas palavras. Finalmente, ele cruzou os braços, como se desafiasse o outro garoto a continuar.
-Tá, fala logo - rosnou Jason sem paciência - o que você tem pra dizer?
-Os guardas - Tim se inclinou um pouco mais, antes de continuar - eles trocam de turno às sete da manhã, vi que você também estava prestando atenção, então deve ter notado que entre 6h55 e 7h10 é o momento mais confuso, eles se reúnem no corredor principal pra fazer aquela reunião inútil, sabe? Ninguém vigia a entrada da ala oeste nesse intervalo.
Jason franziu o cenho. Ele já tinha notado algo semelhante, mas não sabia que a brecha era tão específica. Jason estreitou os olhos antes de entoar:
-E daí? A porta ainda tá trancada.
Tim sorriu, animado por finalmente ter a atenção de Jason.
-Sim, mas tem um detalhe - continuou o garoto - o controle de acesso da porta oeste é eletrônico, e... bem, digamos que eu dei uma mexida nele outro dia, nada sério, só o suficiente pra testar uma coisa, se você tentar usar a saída de emergência ao lado dela, pode causar uma sobrecarga no sistema e isso desativa o controle da porta por alguns segundos
Jason ficou em silêncio, processando a informação. A ideia parecia arriscada, mas não impossível. Ele estava avaliando o que o outro garoto tinha dito, Tim não tinha motivos para mentir, mas isso não quer dizer que o outro era confiável.
-E por que você não usou isso pra sair? - perguntou Jason desconfiado.
-Porque eu sabia que não precisava - disse Tim dando de ombros - meu pai tá vindo me buscar, lembra? Mas você… você precisa disso, não é?
Jason olhou para Tim, ainda incerto. A raiva e a frustração lutavam contra a necessidade de agir, de tomar qualquer oportunidade que pudesse levá-lo até sua mãe.
-E o que você ganha com isso? - Jason perguntou, estreitando os olhos.
Tim deu de ombros novamente, agora com um sorriso:
-Acho que só tô entediado mesmo, não tem mais nada pra fazer, quem sabe você me conte o que tá planejando enquanto eu ainda tô aqui, só pra passar o tempo.
Jason revirou os olhos, irritado com o tom despreocupado do garoto, mas uma coisa era clara: a ideia fazia sentido. Ele ficou imóvel na cama, encarando o teto como se este pudesse lhe oferecer as respostas que precisava. A dica de Tim mexia com ele. Não só porque parecia uma saída viável, mas porque o garoto, com toda sua despreocupação irritante, havia percebido mais sobre ele do que ele estava confortável em admitir.
Do outro lado do quarto, Tim continuava relaxado, o corpo jogado na cama, mas os olhos ainda fixos em Jason. O silêncio entre eles se estendeu, pesado, até que Tim resolveu rompê-lo novamente.
-Você sabe que só pensar não vai te levar a lugar nenhum, né? - disse ele, com um tom quase provocativo - Se quer sair, vai ter que agir, e logo.
Jason apertou os lábios, controlando a irritação crescente. Ele sabia que Tim estava certo, mas odiava admitir.
-Você fala demais - murmurou Jason, virando a cabeça para o lado. Tim riu, claramente se divertindo com a hostilidade. Ele estranhamente gostava de Jason.
Jason respirou fundo, sentindo o sangue ferver, mas conteve a explosão. Ele não podia se dar ao luxo de perder o foco agora. Se Tim estava certo sobre a troca de turnos e o sistema da porta, aquela era uma chance. Talvez sua única chance.
Finalmente, Jason se levantou da cama. O chão frio sob seus pés o ajudava a manter a cabeça fria. Tim observava com curiosidade, como se tentasse prever seus próximos passos.
O silêncio voltou a dominar o quarto por alguns minutos. Jason estava inquieto, as informações de Tim girando em sua mente como engrenagens enferrujadas, cada detalhe se encaixando no início de um plano. A menção à porta da ala oeste era o primeiro passo concreto que ele tinha para escapar. Ele sabia que precisava avaliar melhor a ideia antes de fazer qualquer movimento, mas, ao mesmo tempo, a urgência de sair daquele lugar o corroía por dentro.
Depois de alguns minutos, Jason suspirou, virando a cabeça na direção de Tim.
-Como exatamente você desativou o controle? - perguntou ele, a voz mais baixa e cautelosa.
Tim sorriu, satisfeito por ter prendido a atenção de Jason.
-É mais fácil do que parece - continuou ele - as portas têm um sistema eletrônico que pode ser sobrecarregado com energia estática, eu usei um fio de cobre que arranquei de uma tomada velha na área de manutenção, só encostei na placa lateral, e o sistema travou por alguns segundos, dá pra abrir manualmente nesse intervalo.
Jason franziu o cenho. Não era exatamente um plano brilhante, mas poderia funcionar se ele conseguisse executar no momento certo. Ele ficou em silêncio, processando cada palavra enquanto sua mente trabalhava a todo vapor. Não era um plano perfeito, mas parecia melhor do que qualquer outra coisa que ele tivesse. Mais importante, parecia executável, se ele fosse cuidadoso.
-E como eu entro na área de manutenção? - perguntou Jason, estreitando os olhos. Ele já havia percebido que Tim não fazia nada sem um motivo, e queria ter certeza de que não estava sendo manipulado.
Tim se mexeu na cama, ficando de lado para encarar Jason diretamente, antes de dizer simplesmente:
-A porta da área de manutenção no corredor oeste está quebrada faz semanas, só fecha se você empurrar com força, e ninguém se importa o suficiente para consertar, mas tem que ser de noite, quando os guardas tão fazendo as rondas mais distantes, porque se você tentar durante o dia, alguém vai ver.
Jason assentiu lentamente, já calculando os passos na sua cabeça. O plano não era perfeito, mas ele podia fazer funcionar. Precisava fazer funcionar, corrigiu-se mentalmente.
Tim continuou, como se soubesse exatamente o que Jason estava pensando.
-Se você entrar lá, procure por fios soltos ou ferramentas pequenas, a maioria dos fios de cobre estão perto dos geradores portáteis que eles deixam no canto, só não faz muito barulho, ou alguém vai notar.
Jason cruzou os braços, ainda desconfiado, mas ciente de que precisava de todas as informações que pudesse obter.
-E como você sabe tanto sobre essa área de manutenção? - perguntou ele, o tom ácido.
Tim deu um sorriso maroto. Não era sua primeira vez ali, ele já era de casa.
-Digamos que eu já dei umas voltas por lá quando tava entediado - disse ele - é um lugar útil para... escapadas.
Jason ficou em silêncio por mais alguns instantes. A ideia de confiar em Tim ainda o deixava desconfortável, mas ele não tinha muitas opções. Aquela podia ser sua única chance, e ele não podia deixá-la escapar.
Finalmente, Jason se aproximou de Tim, a expressão séria. Ele estava cedendo, só esperava não se decepcionar.
-Tá, me diz mais - continuou Jason - Preciso saber o que esperar quando entrar lá, tem câmeras? Alarmes?
-As câmeras da ala oeste são antigas, e uma delas nem funciona direito - disse Tim categoricamente - se você ficar no canto direito da sala, o ângulo é cego, quanto aos alarmes, só tem na porta principal, e eles tão ligados ao controle central, desde que você não mexa nela, tá seguro.
Jason assentiu novamente, absorvendo as informações. Ele precisava de precisão, e cada detalhe contava.
-Certo - disse ele, finalmente - amanhã à noite, você vai me ajudar com isso.
Tim ergueu uma sobrancelha, surpreso antes de dizer com um tom de deboche:
-Ajudar? Cara, eu tô aqui te dando a ideia, o plano, tudo de bandeja, o que mais você quer?
Jason se inclinou ligeiramente para frente, com um olhar fixo e intenso.
-Você disse que já esteve lá antes, eu preciso que garanta que ninguém me veja entrando, eu quero cobertura, se você tá tão entediado assim, vai fazer valer o seu tempo.
Por um momento, Tim parecia prestes a argumentar, mas depois apenas riu antes de entoar em um tom zombeteiro:
-Tá bom, Jason, você tem um ponto, mas se der errado, a culpa é toda sua, eu digo que fui coagido e ameaçado.
Jason ignorou o tom zombeteiro de Tim. Ele sabia que aquele plano era arriscado, mas arriscar era a única coisa que o mantinha em movimento. Amanhã, ele daria o primeiro passo para sair dali.
—---------
O ambiente do banheiro estava insuportável. A umidade impregnava o ar, enquanto o som constante das gotas d'água ecoava como um metrônomo enlouquecedor. O Coringa, ainda acorrentado, estava visivelmente desgastado, mas não menos perigoso. Seu cabelo loiro estava desgrenhado, a pele pálida brilhando de suor. Apesar de sua aparência, o brilho maníaco em seus olhos permanecia vivo, como uma faísca que recusava apagar.
Ele havia passado os dois últimos dias alternando entre silêncio calculado e monólogos corrosivos, testando Andy com provocações cortantes. Entretanto, o ex-psiquiatra mostrava uma calma quase inabalável, como se estivesse acostumado a caminhar sobre o fio de uma navalha. Andy estava jogando com ele, era a sua própria versão doentia de terapia.
Andy entrou novamente no banheiro com um embrulho de papel e se sentando na frente do ex-terrorista, mas mantendo uma distância segura. Por um momento ele não disse nada, ele apenas olhava para o outro homem com uma expressão ilegível.
-Você prefere presunto ou frango ? - perguntou o ex-psiquiatra com um tom neutro retirando dois sanduíches do saco.
O palhaço não respondeu ao questionamento. Ele estava farto do outro homem. O ex-terrorista odiava que Andy, apesar de ser um filho da puta declarado, ainda era estranhamente manipulador em seus gestos. O ex-psiquiatra notando que o louco não responderia, apenas suspirou antes de dizer:
-Você sabe que te torturar não é o meu objetivo, e mesmo que fosse, eu não gosto desse tipo de jogo.
O palhaço não respondeu, então o outro homem viu isso como uma deixa para continuar:
-Você sabe que poderíamos conversar na sala, sentados como pessoas civilizadas se você não tentasse arrancar minha cabeça do pescoço, não gosto de fazer isso, esse lugar fede pra caralho e me sinto a porra de um maníaco.
O ambiente do banheiro pulsava com uma tensão corrosiva. O Coringa, lançou um olhar frio e afiado para Andy, que permanecia sentado à sua frente, com uma calma quase insultante. O ex-psiquiatra segurava o sanduíche de frango em uma das mãos, começando a mastigar devagar, como se estivessem em um piquenique tranquilo.
O silêncio era pesado, carregado de tensão e uma corrente subjacente de algo mais obscuro. O Coringa puxou as correntes presas a seus pulsos levemente, fazendo o metal ranger contra o cano da pia, mas não disse nada. Andy continuou o observando, com a mesma expressão ilegível, como se estivesse aguardando algo. Finalmente, o ex-psiquiatra pegou o sanduíche de presunto e colocou no chão, a poucos centímetros de distância do Coringa.
-Eu sei que você está com fome - disse ele, com uma neutralidade calculada - não pretendo te torturar, isso não faz meu estilo, e você sabe disso.
O palhaço olhou para o ex-psiquiatra com uma carranca, ele não daria nada a Andy. Nem mesmo uma palavra. Ele não cairia na manipulação. Andy tinha seu próprio formato de tortura, e o ex-terrorista estava bem familiarizado com ele. Mesmo depois de tudo, a postura de Andy o irritava profundamente, não era a calma calculada, era o carinho distorcido e esquisito. Era nojento depois de tudo que ambos fizeram um para o outro. Porque isso era tudo que o palhaço sentia olhando para o outro homem, nojo e desprezo.
O louco, fixou o olhar no sanduíche à sua frente como se fosse uma isca venenosa. Ele não daria o gostinho da fraqueza a Andy. Preferiria desmaiar de fome do que morder a isca, literal ou metaforicamente.
Andy, por sua vez, parecia perfeitamente confortável no ambiente carregado. Ele limpou os dedos no papel que envolvia seu próprio sanduíche e apoiou os cotovelos nos joelhos, inclinando-se levemente para frente.
-Você está mais quieto do que o normal hoje - comentou Andy, sua voz sem emoção aparente, mas com um tom que parecia quase convidativo - diria que é uma mudança bem-vinda, mas conheço você o suficiente para saber que isso só significa que está tramando algo.
O Coringa bufou uma risada curta e seca, sem tirar os olhos de Andy antes de responder passando a língua no canto dos lábios:
-Talvez eu só tenha cansado de ouvir sua voz de merda
Andy sorriu, mas não era um sorriso genuíno. Era o tipo de sorriso que revelava o quão profundamente ele estava enterrado em seus próprios conflitos internos.
Andy manteve o sorriso por um momento, como se saboreasse o peso da provocação do Coringa. Ele limpou as mãos no papel do sanduíche e inclinou a cabeça para o lado, seus olhos analisando cada traço do outro homem, cada movimento involuntário.
-Cansado da minha voz? Pensei que você adorasse um bom jogo e monólogos extensos - Andy rebateu, com um tom calmo, mas afiado.
O Coringa não respondeu imediatamente. Ele inclinou a cabeça para trás, deixando um som curto e rouco escapar de sua garganta, algo entre uma risada e um gemido de exasperação. A tensão em seus ombros, entretanto, era visível, mesmo que ele tentasse mascarar.
-Você tem um talento irritante, sabia? - murmurou o Coringa, sua voz carregada de cinismo - um talento pra fazer até os mortos levantarem só pra calarem sua boca.
Andy ergueu uma sobrancelha, mas permaneceu imóvel, apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto encarava o ex-terrorista com uma expressão quase carinhosa. Ele sabia que a irritação do Coringa era uma fachada, um mecanismo de defesa mais antigo do que suas cicatrizes.
-Talvez seja porque eu sei onde cutucar - respondeu Andy, sem desviar o olhar.
-Cala boca, você nem sabe o que está fazendo - disse o palhaço, sua voz carregada de desprezo - vamos ficar aqui até o natal e dividir uma ceia natalina neste banheiro de merda ? Cantar músicas e enfeitar a privada ?
-Você só brinca e se esconde atrás dessas bobagens que você fala - disse Andy de repente, ainda olhando para o louco, antes de levar uma das mãos até sua face - mas na verdade, está com medo do que eu vou fazer com você.
O toque de Andy era suave, quase carinhoso, mas isso só tornava a situação ainda mais macabra. O Coringa fechou os olhos por um momento, seu corpo tremendo de raiva e... algo mais. Algo que ele se recusava a nomear. Quando o loiro abriu os olhos novamente, havia um tom sombrio em seu olhar. Algo maníaco.
-Tira a mão de mim - rosnou baixo o ex-terrorista, antes de passar a língua no lábio inferior.
O silêncio no banheiro parecia pesar toneladas. O som das gotas d’água martelava na mente do Coringa, cada respingo ecoando como um lembrete constante da humilhação e da dor. Ele olhava fixamente para o chão, a mandíbula cerrada, o ódio fervilhando sob a superfície como lava prestes a explodir.
Andy não parecia se importar com o que o ex-terrorista falou, ele parecia à vontade acariciando o rosto do outro homem, uma paródia bizarra de carinho. Como quem acaricia um animal selvagem acorrentado em um zoológico. Aquilo era um show de horrores.
-Diga, Andy - começou o louco querendo ganhar alguma vantagem mesmo com sua posição atual - me conte sobre a dor de perder a mulher que amava, me diga como você fica acordado à noite, ouvindo a risada dela nos corredores vazios.
O golpe foi certeiro. Andy ficou imóvel por um momento, os olhos fixos no Coringa. Mas ele não explodiu, Andy já sabia o modus operandi do outro homem. Em vez disso, ele respirou fundo e inclinou-se para frente, ficando a poucos centímetros do rosto do Coringa, ainda acariciando sua bochecha.
-Você acha que pode me atingir, mas não pode - disse Andy, sua voz baixa, carregada de um tom frio e perigoso - porque, no fundo, eu já perdi tudo, A única coisa que sobrou... é você.
O Coringa riu, uma risada curta e sem humor antes de passar a língua pelo canto dos lábios:
-Ah, que lindo, você se ouve quando fala? Annie ia vomitar se visse sua transformação, primeiro torturador, sequestrador e estuprador, depois Stalker maluco e agora o que ?
-Você dormiu bem ? - perguntou o ex-psiquiatra, afastando a mão, não mordendo a isca do palhaço e mudando de assunto rapidamente.
O Coringa ergueu a cabeça lentamente, seus olhos cheios de desprezo.
-Ah, claro, foi uma delícia dormir com essas correntes e o cheiro de mofo - zombou o louco - obrigado por perguntar.
O rosto de Andy permaneceu impassível, mas a tensão era palpável, visível no apertar quase imperceptível de sua mandíbula. Ele não recuou, não desviou o olhar. Em vez disso, aproximou-se mais, tão perto que o Coringa pôde sentir a respiração dele, quente e lenta, contra sua pele.
-Pode dizer o que quiser sobre mim - disse Andy, sua voz baixa, controlada, mas cheia de uma intensidade que fazia o ar entre eles parecer mais pesado - porque é isso que você faz, não é? Atira para todos os lados, esperando acertar algo, mas não vai acertar.
O Coringa ficou em silêncio por um momento, mas havia algo em sua postura, algo no brilho de seus olhos, que indicava que Andy tinha atingido um nervo. Ele lambeu os lábios novamente, um gesto nervoso e instintivo, antes de abrir um sorriso que não chegava a seus olhos. Ele não deixaria o ex-psiquiatra entrar em sua cabeça.
-Porque não conversamos como duas pessoas normais ? A oferta do café ainda está de pé - falou o ex-psiquiatra levando novamente uma das mãos para acariciar o rosto do ex-terrorista.
O palhaço rangeu os dentes, a raiva crua transbordando em suas feições. Ele não suportava aquilo. Andy notava o desconforto do ex-terrorista, e parecia saborear isso como uma iguaria.
-Você está muito tenso, não vou fazer nada demais - falou Andy com um tom calmo.
O Coringa puxou as correntes com força, o som do metal ecoando pelo banheiro como um rugido de fúria contida. Ele desviou o rosto da mão de Andy, sua expressão transformada em um misto de desprezo e ódio fervente.
-Tira a mão de mim caralho - rosnou o louco, sua voz gotejando em mania mal contida - vou morder seus dedos na primeira oportunidade, de preferência arrancá-los.
-Não me obrigue a pegar a focinheira, você sabe muito bem que não gosto quando tenta me morder - falou Andy sem demonstrar nenhuma emoção - não me obrigue a ter que machucar você, eu só quero conversar.
O Coringa, com os olhos fixos em Andy, podia sentir a presença dele como uma sombra insuportável. Cada palavra de Andy, cada movimento suave que ele fazia, parecia tocar uma corda sensível, uma que o palhaço não queria admitir estar lá. A raiva pulsava em suas veias, mas havia algo mais, algo que ele se recusava a reconhecer. Ele odiava aquele toque, aquela calma excessiva, mas havia algo em Andy que o fazia vacilar. O medo, ele sabia, estava lá, mas se negava a aceitá-lo.
Quando o ex-psiquiatra tocou novamente sua face, o Coringa não conseguiu se controlar. A raiva se misturou com algo mais sombrio. Ele puxou as correntes mais uma vez, agora com mais força, fazendo o metal ranger violentamente contra o cano da pia. Andy, no entanto, parecia completamente imune a isso. Ele não se afastou. Ao invés disso, ele sorriu com uma leveza quase desconcertante, como se estivesse lidando com uma criança travessa.
-Você só vai se machucar puxando os pulsos assim - falou Andy como se estivesse apontando um fato.
O palhaço apertou os dentes com força, mas não disse nada, sua expressão era uma mistura de desprezo e mania crua. No entanto, ele não disse nada.
-Eu vou buscar um café - declarou Andy se levantando por um momento - você quer?
O loiro não disse nada, apenas sustentou o olhar ameaçador, o ex-psiquiatra no entanto apenas disse antes de sair do banheiro:
-Vou interpretar o silêncio como um sim.
Quando Andy saiu do recinto, o ex-terrorista bateu a nuca contra a pia com força apertando os olhos com força. O louco estava cansado dessa brincadeira. Em um movimento calculado o ex-terrorista começou a deslocar os polegares da mão, era uma tática simples, ele já havia usado muitas vezes para se soltar de amarras, no entanto, as correntes eram amarradas de forma que fosse impossível soltar, independente de quantos dedos ele deslocasse.
O Coringa grunhiu de frustração, os músculos de seus braços tremendo enquanto ele forçava as correntes. O metal fez um som seco, como se zombasse de sua tentativa. O metal contra a pele parecia cada vez mais apertado. Ele resmungou, uma risada curta e ácida escapando de seus lábios enquanto tentava, em vão, se soltar, mas ele sabia que aquilo era inútil. Andy havia pensado em tudo. Não havia nenhum truque que ele pudesse usar para escapar. E isso o aterrorizava mais do que qualquer coisa. Porque Andy o conhecia tão bem que até mesmo suas próprias estratégias de sobrevivência não funcionavam mais.
O ex-psiquiatra entrou no banheiro novamente depois de um momento, com dois copos de café quente nas mãos. A porta se fechou suavemente atrás dele, e a sensação de isolamento se fez presente uma vez mais. O Coringa, ainda acorrentado e imóvel, olhou para ele, os olhos brilhando com uma mistura de raiva e algo mais, uma fragilidade que Andy soubera ver. A tensão estava palpável, como se a qualquer momento uma explosão pudesse acontecer.
Andy se aproximou com calma, como sempre. Seus passos eram medidos, os dedos segurando dois copos com uma firmeza que quase parecia uma metáfora para o controle que ele exercia sobre a situação. Ele colocou os copos no chão enquanto sentava na frente do ex-terrorista. Ele não disse nada imediatamente, apenas observou.
O Coringa, por sua vez, ainda mantinha aquele olhar afiado, tentando, de alguma forma, manter sua fachada de imperturbabilidade. Ele ainda tentava deslocar outros dedos, uma tentativa não só de escapar, mas de se manter no controle de alguma coisa.
Andy não disse nada imediatamente, ele apenas bebeu um gole de um dos copos antes de entoar:
-Pare de se torturar, eu posso notar que você está se machucando, quantos dedos você deslocou ?
-Três, ou dois, acho que um deles está quebrado - falou o ex-terrorista, seu tom era sem humor, mas desdenhoso, como se não fosse um fato relevante
-Você vai aceitar o café ? - perguntou Andy como quem fala sobre o tempo - está esfriando.
-Eu vou passar - zombou o ex-terrorista passando a língua no lábio inferior - não estou afim de ser dopado por alguma porcaria que você colocou aí.
Andy não se deixou afetar pela resposta do palhaço. Ele pegou um gole do café, aproveitando o calor que subia para a garganta. O Coringa, por sua vez, não tirava os olhos do ex-psiquiatra, seus dedos ainda mexendo com as correntes, tentando achar alguma maneira de se livrar delas. Mas, mais uma vez, estava claro que ele não conseguiria.
-Você sabe - disse Andy no silêncio, sua voz suave - não precisa ficar assim, todo tenso como se eu fosse uma ameaça, eu não estou aqui para machucar você... não mais pelo menos, eu só preciso entender algumas coisas.
-Me poupe das suas jornadas de autodescoberta - zombou o palhaço lambendo o canto dos lábios - você podia escrever um livro com toda essa merda, fazer uma grana.
-Não tente tirar o foco, não vai funcionar - entoou Andy tomando outro gole do café - vamos conversar, temos tempos.
-Vamos falar de Annie ? - perguntou o loiro, seu sorriso era maldoso, mas Andy não mordeu a isca jogada. Andy limpou o canto da boca com as costas da mão, o café ainda quente em sua garganta enquanto olhava para o Coringa. Ele percebeu as tensões no corpo do homem acorrentado, os dedos ainda mexendo inquietos nas correntes, mas algo nos olhos dele o intrigava. Um cansaço profundo, misturado com aquela chama instável que nunca se apagava completamente.
-Você sabe o que acho curioso? - começou Andy, com uma suavidade quase desarmante, como se estivesse falando sobre o clima, ele inclinou a cabeça para o lado, observando cada movimento, cada expressão no rosto do Coringa - você sempre tenta ser o monstro, não é? Será que é mesmo quem você é?
O Coringa ergueu as sobrancelhas, a expressão se fechando rapidamente em desconfiança. Ele soltou um riso curto e ácido, sacudindo levemente as correntes como se quisesse lembrá-lo da posição em que estava.
-Ah, lá vem você com suas análises de merda - retrucou, a voz gotejando desprezo. - vai me dizer que eu sou "mal compreendido"? Por favor, você me conhece melhor que isso.
-Conheço mesmo - rebateu Andy, sua voz firme, mas sem perder o tom calmo, ele pousou o café no chão e se inclinou para frente - foi por isso que lembrei de uma história, sobre o container... Você sabe qual.
A mudança foi imediata. O sorriso do Coringa congelou, mas não desapareceu completamente. Seus olhos brilharam com algo perigoso, como um animal encurralado. Ele piscou devagar, como se estivesse calculando sua próxima jogada, antes de soltar uma risada baixa e seca.
-Ah, essa é boa - disse ele, a voz carregada de ironia antes de lamber o canto dos lábios - vai me dizer que tem um final moralista nessa? "Crianças são sagradas", blá-blá-blá... Andy, você sabe quem eu sou, então não finja surpresa.
O ex-psiquiatra não se deixou abalar. Ele sabia que o palhaço estava tentando desviar, tentando retomar o controle da conversa. Mas ele também sabia como desarmá-lo.
-Não acho que seja sobre as crianças - continuou Andy, como se o Coringa não tivesse dito nada, seus olhos estavam fixos nos do outro homem, buscando algo mais profundo - acho que foi sobre você.
O riso do Coringa parou, mas o sorriso permaneceu, ainda que mais forçado. Ele lambeu os lábios, um hábito que Andy reconhecia.
-Continue - disse o Coringa, o tom desafiador, mas havia algo na rigidez de seus ombros que traía a tensão que ele tentava esconder.
-Você voltou de um inferno atrás de outro inferno - começou Andy, sua voz baixa, mas incisiva - e em algum momento depois do Iraque, você decidiu resolver as coisas, procurou os caras do tráfico, não foi ? Mas não os encontrou, só achou um container cheio de crianças, vítimas como você foi.
O Coringa riu, mas a risada não tinha humor. Ele desviou o olhar, como se estivesse entediado, mas Andy sabia que era outra tentativa de escapar.
-Que bonito, Andy, um verdadeiro conto de redenção, pena que você errou o final, eu matei todas elas, lembra? - ele inclinou a cabeça, o sorriso agora mais amplo, quase grotesco - foi divertido, até.
-Exceto o rapaz - continuou Andy, ignorando a provocação, ele não piscava, não desviava o olhar - o mais velho, o que correu.
O Coringa ficou em silêncio por um momento, o sorriso vacilando ligeiramente antes de voltar com força total.
-Ah, sim, o fujão - disse ele, em um tom quase jovial, como se estivesse se lembrando de uma piada - não foi longe, eu o alcancei, mas você sabe disso.
O outro homem não se moveu. Ele deixou as palavras do louco pairarem no ar por um momento antes de continuar, sua voz agora mais baixa, quase um sussurro.
-Algo estranho aconteceu, não foi? - Andy se inclinou ainda mais, até seus rostos estarem perigosamente próximos - você viu algo nele…alguém.
O silêncio que se seguiu foi como uma corda prestes a estourar. O Coringa o encarou, os olhos agora brilhando com uma mistura de raiva e algo mais profundo, algo que ele não queria admitir. Ele lambeu os lábios novamente, um gesto automático, antes de dar de ombros.
-Que dramático, Andy - murmurou ele, mas sua voz não tinha a mesma força de antes - talvez eu tenha visto, e daí? Matei ele mesmo assim, fim da história.
-Mas ele foi o único que você enterrou não foi ? Não era mais fácil somente levá-lo de volta para o contêiner ? Afinal, você jogou o container no rio de Gotham, onde está até hoje, porque enterrar o rapaz ? Porque você achou que ele era diferente ? - perguntou o ex-psiquiatra, seus olhos não deixavam a expressão do palhaço.
-Ele não era diferente - falou o louco, seu tom era espinhoso.
-Não seja mentiroso, eu sei o quão difícil e patológica é a mentira para você - continuou Andy com um tom calmo - mas a verdade é que ele era diferente sim, ele já era um adolescente, sobreviveu tempo demais naquilo, deu um jeito de não ser descartado…como você.
Andy percebeu a tensão no silêncio do Coringa, os pequenos sinais de desconforto que ele tentava esconder. Ele sabia que havia algo a mais naquela história, algo que o palhaço não admitiria facilmente. Andy não recuou; ele continuou pressionando, com a calma de quem sabia onde exatamente estava mexendo.
-Você sabe o que eu acho mais interessante? - começou Andy, com a voz quase desinteressada, como se estivesse apenas comentando algo trivial - você fez exatamente o que ele fez, você sobreviveu, deu um jeito, conseguiu escapar.
O Coringa riu, mas era um riso curto, forçado. Ele inclinou a cabeça para o lado, o olhar zombeteiro, mas algo na rigidez de sua postura traía o que ele realmente sentia.
-Claro, Andy, eu sou um exemplo de superação, não é? Devia até ganhar uma medalha - zombou, lambendo o canto dos lábios - não me venha com esse papo de sobrevivência, ele não escapou, eu o alcancei, e o matei.
Andy observava o Coringa com atenção, os olhos estreitos, analisando cada movimento involuntário, cada tensão nos ombros. O silêncio entre eles era uma corda esticada, prestes a arrebentar. Ele sabia que havia algo ali, algo que o palhaço estava se esforçando para manter enterrado.
-Você sabe por que o matou, não sabe? - começou o ex-psiquiatra, com a voz baixa, quase gentil - ele te fez lembrar do que você fez... do que você precisou fazer para sobreviver.
O Coringa soltou uma risada curta e forçada, havia uma dor muito bem oculta por trás dela, mas o ex-terrorista estava decidido a não mostrar um pingo de desconforto.
-Ah, aqui vamos nós de novo - retrucou o louco, o sarcasmo pingando de sua voz - você e suas teorias de merda, me diga, você realmente acredita nessa baboseira? Quer que eu chore?
Andy ignorou a provocação, mantendo o olhar firme, penetrante.
O Coringa manteve o olhar fixo no ex-psiquiatra, seus olhos ardendo com uma mistura de raiva e desprezo. Ele não disse nada de imediato, mas o silêncio falava mais do que qualquer resposta poderia. Era como se o ar entre eles estivesse prestes a explodir.
Andy esperou, sem pressa, apenas observando. Ele sabia que o Coringa não admitiria nada, não em voz alta, mas também sabia que tinha tocado em algo que o outro homem preferia deixar enterrado. Finalmente, o palhaço riu, uma risada baixa e seca, carregada de sarcasmo.
Andy bebeu um gole de café, o olhar ainda fixo no Coringa, como se o estivesse desmontando peça por peça.
-Não preciso que você chore, ou que diga alguma coisa - respondeu Andy, sua voz era baixa, quase monótona, mas havia algo afiado nela, algo que fazia o Coringa se mexer desconfortavelmente em suas correntes - você já disse o suficiente, mesmo quando está calado.
O ex-terrorista bufou, mas não conseguiu esconder a tensão nos ombros, nos punhos que puxavam as correntes de forma quase involuntária.
-Você acha que sabe de alguma coisa, mas não sabe de nada - rosnou o palhaço, sua voz mais áspera - eu matei o garoto porque quis, foi o que eu fiz com todos, porque podia, é isso.
Andy se inclinou para frente novamente, sua voz agora mais baixa, mas carregada de intensidade:
-Você pode repetir isso o quanto quiser, mas sabe que não é verdade, você o matou porque ele era um reflexo de você, porque olhar para ele era como olhar para um espelho, e o que você viu naquele espelho... foi insuportável.
O sorriso do Coringa vacilou por um instante, mas ele o forçou de volta, torcendo os lábios em algo que parecia mais uma careta.
-Corta essa, Andy - respondeu ele passando a língua no lábio inferior, a voz carregada de desprezo - não tem espelho, não tem reflexão, não tem porra nenhuma, foi só sangue e um buraco na terra, e sabe de uma coisa? Eu gostei.
Andy não recuou, nem piscou. Ele sabia que o Coringa estava jogando sua cartada final, tentando retomar o controle da conversa. Mas Andy não estava disposto a deixar isso acontecer.
-Você pode continuar dizendo isso para mim, para si mesmo, para quem quiser ouvir - disse Andy, sua voz agora quase um sussurro - mas a verdade é que, naquele momento, você estava tentando matar algo dentro de você, algo que você odeia tanto que não consegue nem nomear.
O Coringa ficou em silêncio, mas seus olhos brilhavam com uma mistura de raiva e algo mais profundo, algo que ele se recusava a deixar vir à tona. Ele puxou as correntes com força, o som do metal ecoando pelo banheiro como um grito abafado.
-Cala a boca - rosnou ele, sua voz carregada de raiva contida - você não sabe nada sobre isso.
Andy deu um pequeno sorriso, mas era um sorriso vazio, desprovido de qualquer humor.
-Talvez você esteja certo - disse Andy calmamente - talvez eu não saiba de tudo que você sente, mas sei o suficiente, e mais importante, você sabe que eu sei.
O Coringa desviou o olhar, fixando-o em um ponto qualquer da parede, a mandíbula apertada. Ele não diria mais nada. Não porque não tivesse nada a dizer, mas porque, no fundo, ele sabia que qualquer palavra poderia ser uma confirmação do que Andy acabara de dizer.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quase sufocante. O ex-psiquitra se recostou, pegando o café novamente, mas não tirou os olhos do homem acorrentado à sua frente. Ele sabia que havia vencido essa rodada, mesmo que o Coringa nunca admitisse. Porque, no fim, a batalha não era sobre palavras. Era sobre o silêncio. E o silêncio do Coringa era ensurdecedor.
-Ele fez o que você fez - continuou Andy, sua voz cortando o ar como uma lâmina - ele fugiu, encontrou uma maneira de escapar de um destino que deveria tê-lo destruído, assim como você.
O Coringa congelou por um instante, antes de sorrir novamente, aquele sorriso largo e grotesco que Andy sabia ser uma máscara.
-Sim, e olha onde isso me levou - zombou ele, sacudindo as correntes - escapar é só um bilhete para o próximo círculo do inferno.
Andy inclinou-se para frente, sua voz agora um pouco mais incisiva, mas ainda controlada. Ele acertou um nervo e conseguiu uma confirmação do que suspeitava.
-Você o matou porque, naquele momento, ele era você, o garoto que fugiu, mas no fundo... - Andy fez uma pausa, escolhendo cuidadosamente suas próximas palavras - você o matou porque era o que queria que tivessem feito por você.
O Coringa estreitou os olhos, ele lambeu os lábios, um gesto automático, antes de inclinar a cabeça para o lado bufando:
-Isso é engraçado, realmente engraçado, me poupe dessa merda.
-Você não matou ele porque era divertido - disse o ex-psiquiatra, finalmente - você o matou porque era insuportável, porque você acha que ter sobrevivido foi a pior coisa que aconteceu com você.
O silêncio que se seguiu era denso, carregado de algo que Andy sabia que jamais seria totalmente verbalizado. Ele olhou para o Coringa, e por um breve momento, sentiu algo que quase poderia ser descrito como pena.
-Você queria que ele tivesse morrido lá, como você deveria ter morrido - disse Andy, sua voz agora baixa, quase um sussurro - mas ele não morreu…você não morreu, isso é o que mais dói, não é?
O Coringa desviou o olhar, mas Andy pôde ver a tensão em seu rosto, nos músculos de seu pescoço, nos punhos cerrados. O silêncio que se seguiu foi sua única resposta, mas Andy sabia que era o suficiente. Ele havia atingido o núcleo daquela dor, mesmo que o Coringa jamais admitisse isso em voz alta.
-Eu sei que você odeia isso - disse ele, inclinando-se para frente - odeia o fato de que, apesar de tudo, aquela criança... a criança que você era... ainda está aí dentro, assustada, tentando desesperadamente encontrar um lugar para se esconder.
O Coringa virou a cabeça lentamente, seus olhos fixando-se nos de Andy com uma raiva que mal conseguia conter. Ele puxou as correntes, o som do metal contra o metal ecoando no ambiente abafado, mas não disse nada. Sua expressão era pura mania mal contida.
Andy continuou, sua voz ganhando um tom estranho, quase carinhoso, mas profundamente perturbador :
-Essa criança, que nunca teve um lugar seguro, que foi jogada em um inferno atrás de outro, sempre estará aí, sempre procurando um ombro para chorar, e por mais que você me odeie, por mais que tente fugir disso... - ele fez uma pausa, inclinando-se ainda mais perto - esse ombro vai estar aqui para você, sempre.
O Coringa cerrou os dentes, sua respiração mais pesada, mas ele não respondeu. Ele sabia que qualquer palavra seria uma confirmação do que Andy acabara de dizer, e isso era algo que ele jamais permitiria. Mas, no silêncio, no jeito como ele desviava os olhos e apertava as correntes, Andy soube que havia acertado algo.. Uma verdade que o Coringa tentaria negar até o fim.
O silêncio continuou a preencher o espaço, mas dessa vez não era apenas tensão. Era algo mais denso, mais profundo. Andy pegou seu café novamente, tomando um gole enquanto observava o homem à sua frente, um pequeno sorriso ainda pairando em seus lábios.
-Você é nojento - rosnou o Coringa, sua voz gotejando desprezo no silêncio - você realmente acha que pode dizer isso depois de tudo? Depois do que fez comigo?
Andy não respondeu imediatamente. Ele tomou mais um gole de café, saboreando o momento, como se estivesse esperando que as palavras do Coringa amadurecessem no ar. Quando finalmente falou, sua voz era calma, quase gentil, mas com um peso que fazia cada palavra ressoar:
-Eu sei que não sou uma boa pessoa, e não espero que você me veja como algo diferente.
O Coringa riu, mas era um som vazio, sem qualquer humor genuíno.
-Que modesto da sua parte - zombou o loiro passando a língua no lábio inferior, antes de virar a cabeça para finalmente encarar Andy, seus olhos ardendo com uma raiva contida - mas me poupe do discurso do homem arrependido, é muito clichê, você não sente culpa pelo que fez, nem um pouco.
Andy deu de ombros, ele colocou o copo de café no chão, seu olhar fixo no Coringa.
-Você tem razão, eu não me arrependo de nada disso - falou o ex-psiquiatra como se constatasse o óbvio - mas isso não quer dizer que eu não me importo com você, ou com seus sentimentos.
-Você... se importa? - repetiu o palhaço zombando, sua voz escorrendo sarcasmo - Ah, Andy, que performance tocante! Diga, você ensaiou isso no espelho? Desculpe, mas até para mim é meio absurdo dizer isso depois de torturar e estuprar uma pessoa.
O ex-psiquiatra deu de ombros, seu rosto impassível, como se estivesse lidando com uma criança fazendo birra.
-Você pode não acreditar, mas é verdade - disse ele com um tom neutro - eu me importo com você, mais do que deveria depois de tudo, e estou aqui para conversar quando você quiser fazer isso, nós temos tempo.
O ex-terrorista o encarou, os olhos brilhando com raiva e algo mais, algo que ele não conseguia nomear. Ele puxou as correntes com força, o som do metal ecoando pelo banheiro, mas não disse nada. Andy se levantou devagar, pegou o copo de café vazio e olhou para o Coringa mais uma vez antes de sair.
-Pense nisso - disse o ex-psiquiatra calmamente, antes de fechar a porta com um clique seco.
Novamente o ambiente foi preenchido apenas pelo gotejar tortuoso da pia, o silêncio contrastando com a tempestade raivosa dentro do ex-terrorista. Sua expressão era assassina olhando para a porta fechada. Mas por mais que o louco não admitisse, havia algo defensivo em sua postura.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui :) Comente para me deixar feliz.
Chapter 19: The Gotham We Have (Parte 19)
Notes:
Demorei gente, eu sei. Muita coisa acontecendo. Eu estou em época de provas na Universidade, mas me recusei a deixar vocês mais uma semana sem um capítulo. Então aproveitem :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A noite caiu pesada sobre o reformatório. O silêncio absoluto era quebrado apenas pelo eco distante das botas dos guardas nos corredores e pelos rangidos ocasionais da estrutura velha. Jason estava deitado, imóvel, os olhos fixos no teto enquanto sua mente trabalhava como uma máquina a vapor, calculando cada detalhe do plano. No canto do quarto, Tim permanecia inquieto, tamborilando os dedos na cama.
-Certo, é agora ou nunca - murmurou Jason, sentando-se abruptamente e pegando a atenção de Tim.
-Finalmente! Achei que você ia ficar remoendo isso até de manhã - disse Tim, levantando-se também.
Jason o ignorou, deslizando pela cama e puxando os tênis gastos para os pés. Ele se movia com precisão, já decidido. Não havia mais espaço para dúvidas.
-Você lembra o que eu disse, né? - perguntou Tim, ajustando o capuz de sua blusa, o tom despreocupado habitual.
-Não me faz repetir - respondeu Jason com um olhar sério.
Tim riu baixinho antes de entoar:
-Relaxa, você está muito sério, eu só espero que seu cérebro esteja tão afiado quanto parece.
Os dois se esgueiraram pelo corredor estreito da ala dos dormitórios. A troca de turnos estava prestes a começar, e os guardas se reuniriam no corredor principal em menos de cinco minutos. Jason andava como uma sombra, cada passo calculado para evitar os pontos de maior exposição. Atrás dele, Tim seguia com a mesma leveza.
Ao se aproximarem da porta da área de manutenção, Jason parou, avaliando o entorno. A câmera na extremidade oposta os observava, mas Tim tinha razão: seu ângulo deixava uma boa parte do corredor cega. Jason respirou fundo antes de empurrar a porta entreaberta com cuidado, o ranger das dobradiças soando alto em seus ouvidos.
-Tá tranquilo - sussurrou Tim, observando os arredores enquanto Jason desaparecia para dentro da sala.
Dentro da sala, o cheiro de ferrugem e óleo invadiu as narinas de Jason assim que ele entrou. A sala era pequena, cheia de estantes com ferramentas, caixas velhas e equipamentos empoeirados. Ele se agachou, os olhos percorrendo rapidamente o ambiente até localizar um emaranhado de fios ao lado de um pequeno gerador portátil. Jason estendeu a mão, puxando um pedaço de fio de cobre. Era curto, mas o suficiente para o que precisava.
-Achou? - a voz de Tim veio da porta, baixa, mas ansiosa.
Jason se levantou, segurando o fio dando um olhar afirmativo na direção de seu cúmplice antes de dizer:
-Sim, agora cala a boca e me ajuda a sair daqui.
Tim deu um sorriso aprovador.
-Você é mais eficiente do que eu esperava.
Jason revirou os olhos, passando por Tim e fechando a porta atrás de si. Agora vinham os minutos mais tensos: atravessar o corredor oeste e chegar à saída de emergência.
Eles avançaram, com Tim à frente desta vez, guiando Jason por um caminho que evitava as rondas dos guardas. Quando chegaram à porta da ala oeste, Jason sacou o fio de cobre. Ele se abaixou rapidamente, analisando a placa de controle ao lado da porta. Era como Tim havia descrito: antiga e desgastada.
Com um último olhar para Tim, Jason encostou o fio na placa. Uma faísca saltou, fazendo o coração dos dois dispararem. Jason segurou a respiração, contando mentalmente. Um clique baixo ecoou, indicando que o sistema havia sido desativado.
-Vamos! - sussurrou Jason, empurrando a porta que agora abria com facilidade.
Os dois saíram para o ar frio da noite. Jason inspirou profundamente, sentindo o sabor da liberdade, mas sua adrenalina estava longe de diminuir. Ainda havia câmeras no perímetro externo, e os guardas logo notariam a ausência deles.
-Vamos por aqui - sussurrou Tim, puxando Jason para o lado oposto do portão principal.
Eles correram em silêncio, atravessando o campo aberto ao redor do reformatório. Quando chegaram à cerca que delimitava a propriedade, Jason percebeu que havia uma brecha entre os arames.
-Você pensou em tudo, hein? - Jason comentou, passando pela abertura enquanto Tim fazia o mesmo.
-É o que eu faço - respondeu Tim, ofegante.
Finalmente, os dois atravessaram a cerca e desapareceram na escuridão da noite.
A noite parecia envolver Jason e Tim em um manto de tensão. Do lado de fora do reformatório, o ar estava gelado, e o som distante de sirenes na cidade contrastava com o silêncio inquietante dos arredores. A fuga estava longe de ser um sucesso completo, os dois sabiam que o verdadeiro teste ainda estava por vir.
Jason ajustou o capuz do moletom enquanto os dois seguiam pelo terreno irregular além da cerca. Era um campo aberto, com vegetação baixa e alguns arbustos esparsos que ofereciam pouca cobertura. Cada passo parecia mais alto do que deveria ser, como se o próprio chão quisesse denunciá-los.
-Segue reto até aquele muro ali - sussurrou Tim, apontando para uma estrutura baixa mais à frente - depois disso, a gente entra em Gotham pela zona industrial.
Jason não respondeu, apenas continuou. Sua respiração era pesada, mas controlada. Ele não podia se permitir hesitar. Quando finalmente alcançaram o muro, Tim parou, observando rapidamente ao redor.
-Tá limpo, vamos.
Eles se abaixaram e pularam o muro, caindo do outro lado em um terreno de asfalto rachado e coberto de poeira. Era uma área esquecida da cidade, repleta de galpões abandonados e postes de luz piscando. Gotham se erguia à distância, com seus prédios altos e as luzes das ruas projetando sombras inquietantes.
Jason olhou ao redor, seus olhos analisando o ambiente como um animal em fuga.
-O que agora? - perguntou ele, tentando esconder a exaustão em sua voz.
Tim enfiou as mãos nos bolsos, claramente menos tenso do que Jason.
-Agora a gente some, precisamos achar um lugar para passar a noite antes que percebam que fugimos.
Depois de caminharem por quase uma hora, evitando ruas principais e qualquer som de veículos, os dois finalmente encontraram um galpão abandonado. O prédio estava em ruínas, com janelas quebradas e paredes cobertas de grafites. O lugar tinha um cheiro forte de mofo e óleo velho, mas era um abrigo.
-Não é nenhum hotel, mas serve - disse Tim, jogando-se no chão sujo com um suspiro.
Jason olhou ao redor, inquieto. Ele sabia que a fuga era apenas o começo. Estar nas ruas de Gotham novamente trazia uma nova camada de perigo. Era a mesma sensação de ter pisado na cidade pela primeira vez.
-Você parece confortável demais pra quem acabou de escapar de um reformatório - comentou Jason, cruzando os braços e encostando-se a uma parede.
-Isso se chama experiência, eu já estive em situações assim antes - comentou Tim.
Jason estreitou os olhos, claramente desconfiado.
-E como você sabe tanto sobre isso? Não parece o tipo que cresceu na rua - falou ele com um tom que não mascarava sua desconfiança.
Tim deu de ombros antes de entoar:
-Eu cresci em internatos e entrei em encrencas mais vezes do que posso contar, fugir de lugares é meio que um hobby.
Jason bufou, mas não respondeu. Ele sentia a tensão em seu corpo começar a diminuir, mas a pressão mental de seu objetivo logo ocupou o espaço vazio. Ele tinha que encontrar sua mãe.
O adolescente olhou para a cidade à distância, o coração pesado com o peso de sua missão. Ele finalmente estava fora do reformatório, mas sua jornada estava apenas começando. Encontrar sua mãe era mais do que um objetivo. Era a única coisa que ainda dava sentido à sua vida. Ele a encontraria.
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Chuck estava sentado em sua escrivaninha, encarando o papel em branco sob a luz de uma luminária. Havia tentado expor o papel ao calor, usar luz negra, até mesmo verificar marcas d’água. Nada funcionava. Ele suspirou, esfregando as mãos pelo rosto.
Foi então que se lembrou de Edward Nashton. A ideia de procurá-lo o incomodava profundamente, mas Nashton tinha um histórico de decifrar mensagens complexas. Ele não sabia se o outro homem estaria disposto a ajudar novamente na investigação.
Faz três dias que eles encontraram o papel, três dias da morte de Taylor. A ausência de respostas parecia pesar cada vez mais. Além disso, a charada continuava rondando sua mente, como uma melodia dissonante que ele não conseguia afastar.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?"
Ele fechou os olhos, repetindo as palavras em sua cabeça, tentando encontrar um padrão ou uma pista oculta. As imagens que a charada evocava…fluxo, pedras, lama, silêncio…desenhavam algo familiar, mas ainda fora de alcance. Ele não sabia mais o que pensar.
O ambiente estava mais carregado do que o habitual. Desde a morte do agente Taylor, o clima entre os policiais era de tensão e vigilância. Chuck podia sentir os olhares furtivos de seus colegas enquanto passava pelos corredores.
Bruce estava estranhamente distante, o tenente não teve notícias dele. Ele fez uma anotação mental para conversar com Bruce mais tarde, mas naquele momento, havia outros problemas em sua mente.
Chuck recostou-se na cadeira, os olhos fixos no papel em branco sobre a mesa. A mente do tenente era um redemoinho de pensamentos conflitantes. A charada, o papel misterioso, o número de série de um container desaparecido há mais de 3 anos, sem destinatário e nem remetente, e…a morte de Taylor. Era como se todas essas peças fizessem parte de um mesmo quebra-cabeça, mas ele não conseguia enxergar a imagem completa.
Ele relembrou o número de série do container, anotado em um caderno desgastado que guardava na gaveta inferior de sua mesa. Três anos. Três anos desde que aquele container desapareceu misteriosamente do porto de Gotham, sem deixar rastros. O destinatário? Um nome que parecia fictício: A. Crale Imports. Nenhum proprietário registrado, nenhuma conexão clara com empresas ativas. Chuck investigou isso à exaustão na época, mas o caso morreu em meio a outras prioridades. Ele só tinha o número de série, nada mais.
Esse número de série foi uma das últimas coisas antes do Contador de Histórias desaparecer por completo. Ele puxou o relatório antigo, comparando as datas e os detalhes. O container havia desaparecido no porto, mas a documentação indicava que o destinatário nunca foi identificado. O mais estranho? O container fora registrado com uma carga genérica, "bens diversos", mas nenhum manifesto detalhado jamais fora encontrado.
Antes que pudesse mergulhar mais fundo nessa linha de pensamento, Sarah entrou em sua sala, com a expressão carregada. Ela segurava uma pasta de arquivo na mão. A mulher parecia recuperada da morte de Taylor, mas havia uma sombra em seus olhos, uma sombra que o tenente conhecia muito bem.
-Alguma coisa, Sarah? - perguntou Chuck, massageando as têmporas.
-Sim, e é... estranho - disse ela, fechando a porta atrás de si - eu finalizei a papelada do caso do Jason, mas tem algo que não faz sentido.
Chuck ergueu a sobrancelha. Ele sabia que Sarah era meticulosa; se algo parecia errado para ela, geralmente havia uma boa razão.
-O que você encontrou? Esse caso está encerrado - falou o tenente.
Sarah colocou a pasta sobre a mesa dele e abriu na página de um documento de adoção.
-Esse é o registro da adoção de Jason - começou a agente Essen - legalmente, ele foi adotado por uma mulher chamada Margaret Todd quando tinha três anos, no entanto, notei algumas irregularidades na documentação.
-Tipo o que ? - perguntou Chuck franzindo a testa levemente.
-O papel parecia ter algumas irregularidades, não sei, era estranho, então eu conferi com o cartório original onde a adoção deveria ter sido registrada - continuou a mulher - e eles nunca viram esse arquivo, além disso, a assinatura de um dos juízes que deveria ter validado o documento não bate com o banco de dados oficial que temos.
Chuck pegou o documento, analisando os detalhes.
-Eu decidi olhar mais de perto, se o documento de adoção tinham problema nada impediria que os outros documentos tivessem - continuou a agente com um tom neutro antes de mexer na pasta - procurei pelo juiz nos bancos de dados da polícia e descobri um monte de crianças com registro de adoção parecido, com a mesma assinatura, todos parecem ter o mesmo problema
Chuck parou por um momento, absorvendo as informações dadas pela agente. Ele encarou a pasta aberta à sua frente, sentindo o peso do que Sarah acabara de dizer. Achar um documento falso já era preocupante, mas descobrir um padrão envolvendo várias crianças era algo que tornava a situação ainda mais alarmante.
-De quantas crianças estamos falando? - perguntou Chuck, tentando processar o alcance do problema.
-Pelo menos uma dúzia - respondeu Sarah - todas com documentos de adoção com a mesma assinatura e as mesmas irregularidades, e você não vai acreditar quem tem a mesma assinatura no documento de adoção, Walker.
-Walker…você diz o terceiro cara ? Um dos nomes que estava junto com os uniformes de soldado, junto com o soldado sem nome e o Jack Napier ? - perguntou o tenente.
-Sim.
-Você está pensando no mesmo que eu - concluiu o tenente depois de um momento de silêncio - como não vimos isso antes ?
-Não sei - falou Sarah com um suspiro - eu espero que não seja isso, mas todas as coisas nos apontam para o tráfico de pessoas, de novo.
-Foi por isso que nos deram Jason quase que de bandeja, o contador de Histórias queria que a gente soubesse disso, ele está mesmo de volta no jogo, terminando o que começou - falou o tenente com um tom neutro - mas porque ? Thomas Elliot está preso, a organização foi desmontada, além disso, nós falamos com a família do Walker.
Chuck ficou em silêncio por um momento, absorvendo o que acabara de dizer. Ele sentiu uma inquietação crescer dentro de si. O Contador de Histórias sempre operava com um propósito. Se ele estava apontando para o tráfico de pessoas novamente, havia algo mais enterrado ali, algo que eles ainda não tinham descoberto.
-Você acha que estamos lidando com uma nova célula? - perguntou Sarah, quebrando o silêncio.
-Ou com alguém que nunca foi descoberto - respondeu Chuck, pensativo - Thomas Elliot pode estar preso, mas isso não significa que toda a rede foi desmantelada, essas organizações são como um hydra, corte uma cabeça, duas novas aparecem.
Ele olhou novamente para o documento falso, seus dedos tamborilando na mesa.
-A assinatura... o juiz - começou o tenente reflexivamente - você disse que encontrou esse padrão em outras crianças, temos que investigar se alguma dessas famílias ainda estão em Gotham, e também precisamos contatar novamente a família do Walker.
Sarah assentiu antes de dar meia volta para sair da sala, antes que ela passasse a soleira no entanto, o tenente entoou fazendo-a parar:
-Sarah…eu sei que não falamos muito sobre o que aconteceu na operação com o agente Taylor, mas você sabe que pode contar comigo, não só como tenente, mas como amigo.
A mulher não disse mais nada sobre o assunto, apenas continuou o caminho para fora da sala antes de entoar:
-Vou tentar levantar tudo que conseguir sobre Margaret Todd também.
-Tenha cuidado - falou Chuck simplesmente antes que a mulher fechasse a porta.
—--------
O som incessante das gotas d’água ecoava pelo pequeno banheiro como um relógio sombrio, marcando o passar do tempo com precisão angustiante. O Coringa estava exausto. Não pela dor física, deslocar três dedos e permanecer acorrentado era apenas mais um dia comum na sua vida de inferno. O que o desgastava era o silêncio, o jogo mental interminável, o peso sufocante da espera. No terceiro dia, ele decidiu que precisava virar o jogo.
-Andy! - o Coringa gritou, a voz rouca cortando o ar abafado - ou você me mata ou me dá cinco minutos para usar o banheiro como uma pessoa civilizada, seu filho da puta!
A princípio, nada. Apenas o som das gotas e o ranger ocasional de suas correntes. O ex-terrorista bufou, impaciente, a mente já calculando o que dizer quando Andy finalmente entrasse.
Mas a porta se abriu, e não era Andy. Sam apareceu no lugar dele, a expressão carregada de relutância e exaustão. O Coringa inclinou a cabeça, analisando o homem à sua frente como um predador que avalia uma presa em potencial.
-Você não é o Andy - comentou o Coringa, um sorriso maníaco se formando em seus lábios antes que esse passasse a língua pelo canto destes - que pena, eu estava esperando o idiota principal do show, e só consegui o assistente.
-Ele está ocupado - respondeu Sam, a voz tensa - o que você quer?
Sam parecia desconfortável, o olhar fugindo do rosto do Coringa, repousando nas correntes, no chão, em qualquer lugar, menos naqueles olhos penetrantes e perigosos.
-Ah, nada de mais, só pensei que talvez fosse hora de aliviar, sabe? - respondeu o Coringa com um tom despreocupado, lambendo o canto dos lábios em seu gesto característico - urinar em si mesmo perde a graça depois de um tempo.
Sam hesitou. Ele parecia não saber como lidar com a situação, e o Coringa percebeu isso imediatamente. Isso fez uma centelha de mania fria brilhar em seus olhos. Sam não sabia como lidar com ele, isso seria interessante. O palhaço sorriu mais largo, os dentes à mostra como se fosse um animal mostrando as presas.
-Você parece tenso - comentou o Coringa, sua voz suave, quase afetuosa de forma distorcida - problemas na terra da amizade ?
-Cala a boca - rosnou Sam, sua voz era baixa, mas carregada de frustração. O palhaço percebeu a rigidez nas mãos do outro homem. Isso era bom. Muito bom.
O Coringa lambeu os lábios lentamente, o gesto tão característico quanto perturbador marcando o espaço.
-Diga a Andy que eu quero ir ao banheiro - disse ele, mudando abruptamente o tom, como se a conversa anterior não tivesse acontecido - e, Sammy…
Sam olhou para ele, esperando, mas sem saber se queria realmente saber que palavras deixariam a boca do ex-terrorista.
-Quando você for, traga algo para mim, mas não conte para Andy, vai ser o nosso segredo - completou o Coringa, sorrindo de forma ameaçadora - eu estou com fome.
Sam congelou por um momento, os olhos fixos no Coringa como se tentasse decifrar o que, exatamente, aquele monstro de um homem estava tramando. Ele sabia que aquilo era uma armadilha. Tudo no tom, no sorriso, na expressão do palhaço gritava manipulação. Ainda assim, havia algo perturbador na maneira como o Coringa conseguia se infiltrar em seus pensamentos, mesmo amarrado e indefeso.
-Eu não sou estúpido - Sam disse, sua voz firme, mas carregada de cansaço.
O Coringa inclinou a cabeça para o lado, como uma criança curiosa.
-Ah, não? - respondeu ele com um tom que transbordava sarcasmo - então, por que parece tão nervoso, Sammy? Suas mãos estão tremendo.
Sam apertou os punhos ao lado do corpo, tentando esconder o tremor que o outro homem havia notado tão facilmente.
-Não me chame assim - rosnou ele, os dentes cerrados.
O Coringa sorriu ainda mais, os olhos brilhando com aquela intensidade insana que fazia até mesmo o ar do banheiro parecer mais pesado.
-Samuel, então? - provocou o palhaço, arrastando as palavras como se saboreasse cada sílaba - bem, não importa, você pode usar o nome que quiser, mas, no final, você ainda está aqui... e eu também.
-Escute aqui - ele começou Sam, tentando parecer ameaçador, mas sua voz tremia ligeiramente - você não tem poder nenhum, está acorrentado, e eu não caio nas suas merdas.
O Coringa soltou uma risada baixa, um som quase gutural que reverberou pelo espaço pequeno.
-Talvez não, Sam - ele disse, a voz agora mais baixa, mas ainda cheia de malícia enquanto passava a língua pelo canto dos lábios - mas veja, você já está aqui, falando comigo, perdendo o controle, deixando que eu entre na sua cabeça, bem, isso é um começo, não acha?
Sam deu um passo para trás, percebendo que estava começando a entrar no ritmo do jogo do Coringa. Ele fechou os olhos por um momento, tentando reunir a compostura que sentia escorrer pelas frestas da porta fechada atrás dele.
-Você quer ir ao banheiro? - perguntou ele, finalmente, a voz mais dura do que antes.
-Isso seria adorável - respondeu o Coringa, piscando exageradamente como se fosse um ator, claramente zombando do outro homem.
Sam hesitou novamente. Ele olhou para as correntes e depois para o rosto do Coringa, tentando decidir se deveria ou não confiar que poderia lidar com aquilo sozinho. Algo dentro de si gritava que isso era um erro.
-Eu vou pegar a chave - disse ele finalmente, girando nos calcanhares para sair do banheiro.
-Ah, e Sammy? - chamou o Coringa, sua voz assumindo um tom quase brincalhão.
Sam parou, mas não olhou para trás.
-Traga uma faca se você não se sentir seguro - o Coringa sussurrou, e a sugestão sibilante ficou no ar como uma fumaça venenosa.
Sam saiu do banheiro sem responder, fechando a porta atrás de si com mais força do que o necessário. O Coringa inclinou a cabeça para trás e riu suavemente, um som que encheu o espaço vazio com algo muito mais pesado do que o som das gotas d'água.
Do lado de fora, Sam esfregou o rosto com as mãos, os pensamentos girando em sua cabeça.
"Traga uma faca se não se sentir seguro."
Era uma provocação, claro. Mas o tom insinuante do Coringa fazia com que cada palavra soasse como uma promessa velada, um jogo que Sam não queria jogar. Ele caminhou até a sala, onde a luz fraca da lâmpada criava sombras que dançavam nas paredes, lembrando-o de que tudo aquilo já tinha saído do controle antes mesmo de começar.
Andy estava sentado no sofá, uma xícara de café entre as mãos. Ele não olhou para Sam imediatamente, mas o amigo sabia que ele estava ciente de cada movimento. Sam parou na entrada da sala, cruzando os braços e esperando, como se esperasse que Andy quebrasse o silêncio primeiro.
-Foi rápido - comentou Andy, sem desviar os olhos do café.
-Ele quer ir ao banheiro - respondeu Sam, sem rodeios, sua voz tinha um tom de frustração mal disfarçada - e, honestamente, quem pode culpá-lo? Ele está preso lá há dias.
Andy levantou os olhos, finalmente, seu olhar clínico e frio, medindo Sam como sempre fazia.Andy deu um pequeno sorriso, mas era um sorriso vazio, sem calor. Ele pousou a xícara de café na mesa à sua frente e levantou-se, esticando-se como se aquela conversa fosse uma mera formalidade.
-Você realmente acha que ele precisa das mãos livres para causar problemas? - disse o ex-psiquiatra, com um tom que fazia parecer que Sam era o ingênuo ali - ele está procurando uma brecha.
Sam revirou os olhos, exasperado. Andy inclinou a cabeça ligeiramente, como se considerasse o gesto de Sam, mas seus olhos não mostravam nenhum traço de mudança de ideia, ele conhecia o Coringa bem demais para não ver por trás dos atos do outro homem. No entanto, contra todo o seu julgamento, ele pegou uma chave do bolso e a estendeu para Sam. Uma parte do ex-psiquiatra queria saber o que o palhaço iria fazer, ou melhor, de que forma ele mataria Sam.
-Você quer que ele vá ao banheiro? Então faça isso - disse Andy, a calma em sua voz era quase ameaçadora - mas lembre-se, ele é perigoso, e ele sabe como usar as pessoas.
Sam olhou para a chave estendida por Andy como se fosse um objeto radioativo. Ele hesitou antes de pegá-la, os dedos ligeiramente trêmulos, mas ainda firmes o suficiente para demonstrar que não queria parecer fraco. Ele olhou para Andy, tentando decifrar o que estava por trás daquele olhar impassível.
-Eu não confio nisso - disse ele, suas palavras firmes, mas não isentas de uma pitada de medo.
-Nem eu - respondeu Andy, com uma franqueza perturbadora, recostando-se novamente no sofá e cruzando os braços - mas você parece estar decidido a atender os caprichos dele, então vá em frente.
Sam bufou, frustrado, mas não tinha mais vontade de discutir. Ele girou nos calcanhares e voltou pelo corredor até a porta do banheiro. O som das gotas d’água, antes apenas um ruído de fundo, parecia agora ensurdecedor, amplificando a tensão que envolvia a casa.
Quando abriu a porta, o Coringa ainda estava lá, a cabeça inclinada para trás e um sorriso preguiçoso nos lábios, como se já soubesse que Sam voltaria.
-Ah, Sammy, você trouxe a chave, que doce da sua parte - provocou ele, os olhos brilhando com algo que Sam só podia descrever como puro deleite maligno.
-Faz isso rápido, entendeu? - disse Sam apertando os dentes, tentando soar firme - sem truques, sem jogos.
O ex-terrorista soltou uma risada baixa e arrastada, o som reverberando no espaço pequeno.
-Sem truques? Sammy, tudo que eu faço é um truque, eu sou um palhaço.
-Você é um filho da puta - disse Sam, finalmente.
O louco deu de ombros, como se já estivesse acostumado a ouvir aquilo. Sam respirou fundo, segurando a chave com mais força do que o necessário. Ele sabia que o ex-terrorista estava brincando com sua cabeça. As palavras de Andy ecoavam em sua cabeça.
"Ele sabe como usar as pessoas."
O clique das correntes ecoaram pelo banheiro como um tiro. O Coringa mexeu os pulsos, flexionando os dedos deslocados com uma careta de dor que se transformou rapidamente em um sorriso satisfeito. Sam observou o Coringa, preso com as mãos ao redor da base enferrujada da pia velha. Sam guardou as chaves, ele não podia soltá-lo, nem pensar.
-Então, Sammy - disse o Coringa quebrando o silêncio, sua voz transbordando de falsa doçura - você vai me ajudar a aliviar minha dignidade ?
Sam respirou fundo, tentando manter a compostura. Ele sabia que qualquer sinal de hesitação ou fraqueza seria explorado pelo Coringa como um tubarão farejando sangue na água.
-Você sabe que não vai a lugar nenhum, eu não vou te soltar - respondeu Sam com um tom neutro - então pare de tentar fazer parecer que está no controle.
O Coringa inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse analisando Sam, seus olhos ardendo com aquela intensidade que fazia o ar ao redor parecer mais pesado.Sam apertou os punhos, o rosto endurecendo enquanto dava um passo à frente, tentando não demonstrar como a presença do louco o atinge.
-Sabe, Sammy, eu realmente gosto de você - disse o palhaço, com um tom quase afetuoso, mas carregado de sarcasmo - você tem essa energia de "homem comum puxado para o caos", tentando desesperadamente fazer alguma coisa ter sentido, é adorável.
Sam não respondeu imediatamente, mas os músculos de sua mandíbula se contraíram, um sinal claro de que ele estava tentando se controlar.
-Você precisa ir ao banheiro ou não? - perguntou ele, finalmente, cortando a provocação do Coringa.
O palhaço sorriu ainda mais, os dentes manchados aparecendo enquanto ele inclinava a cabeça para trás, como se saboreasse o momento.
-Claro que preciso - respondeu ele, arrastando as palavras - mas como você pretende fazer isso? Vai segurar o balde para mim? Não é por nada não, mas sou casado e monogâmico, apesar do seu amigo não entender, eu sei que você entende.
Sam fechou os olhos por um momento, respirando fundo para reunir a paciência que sabia que estava esgotando rapidamente. Ele olhou para o ex-terrorista, o corpo rígido com a tensão acumulada. Ele sabia que estava em um jogo perigoso, mas agora se via preso em um dilema desconfortável. O palhaço, com as mãos acorrentadas à base da pia velha, claramente não tinha como alcançar o balde. Sam sabia disso, e, pior, o Coringa sabia que ele sabia. O louco estava brincando com ele.
-Se você quiser ajuda, cale a boca - rosnou Sam, a frustração visível em sua voz.
O Coringa arqueou uma sobrancelha, um sorriso desafiador se formando em seus lábios. Ele parecia divertido.
-Ah, mas Sammy, se eu calar a boca, você vai perder toda a diversão - respondeu o louco passando a língua no lábio inferior, a voz gotejando sarcasmo enquanto se inclinava levemente para frente, o máximo que as correntes permitiam.
Sam respirou fundo, tentando ignorar as provocações. Ele sabia que qualquer interação prolongada com o Coringa era como alimentar uma chama: o palhaço se alimentava do desconforto alheio, transformando-o em combustível para seus jogos mentais.
-Vamos resolver isso logo - murmurou Sam, pegando o balde e o colocando no chão, na frente do Coringa, começando a desabotoar a frente se suas calças. A tensão era palpável.
-Sammy, você tem mãos suaves? - perguntou o palhaço enquanto o sorriso crescia ainda mais - porque, honestamente, esse tipo de serviço exige um toque delicado, não sou muito fã de machucados nessa área...
Sam parou, as mãos apertando o balde com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
-Você quer ajuda ou quer que eu te deixe aí? - disse ele, sua voz baixa e controlada, mas com uma raiva latente que não conseguiu esconder.
O Coringa inclinou a cabeça para trás e riu, um som que ecoou pelas paredes estreitas do banheiro, fazendo o ar parecer ainda mais sufocante.
-Calma, calma! - ele disse, balançando as correntes para enfatizar sua situação - só estou brincando, Sammy.
Sam ignorou o comentário, puxando o balde para que o louco pudesse se aliviar. Ele sabia que era um erro, mas não tinha escolha. O Coringa sorriu de forma quase gentil, mas os olhos eram outra história: eles gritavam perigo, ele sabia que Sam estava desconfortável.
-Agora, seja um cavalheiro, sim ? - disse o palhaço, sua voz carregada de sarcasmo - você pode virar o rosto para o outro lado, Sammy ? Eu sou muito tímido.
Sam revirou os olhos, irritado com a provocação constante do Coringa, mas se virou parcialmente, ficando de costas para ele enquanto mantinha um olhar de canto de olho, ainda de guarda alta. Ele não confiava no ex-terrorista nem por um segundo, e cada palavra que o palhaço dizia parecia uma armadilha meticulosamente planejada.
-Sabe Sammy, você devia ensinar boas maneiras ao seu amigo - zombou o louco terminando - bem, isso foi... libertador.
Sam não respondeu, apenas retirou o balde e fechou a calça do palhaço rapidamente. O palhaço apenas sorriu, inclinando a cabeça de lado antes de dizer com um tom que gotejava sarcasmo:
-Você sabe como tratar uma garota com gentileza, obrigado, você pode pegar alguma coisa para mim sem que Andy saiba ? Eu estou com fome, mas eu não quero ser dopado, sabe ?
Sam sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir o pedido do Coringa. Era claro que o palhaço estava brincando com ele, testando seus limites, e Sam estava começando a perceber que estava se tornando parte de um jogo muito maior do que imaginava. Ele se virou para o Coringa, os olhos fixos no sorriso ameaçador do outro homem.
"Sem que Andy saiba"
A frase ecoava em sua mente. O Coringa não estava apenas manipulando ele, estava tentando puxá-lo para um território perigoso, onde as lealdades e as regras de conduta se tornavam nebulosas. Sam tentou manter o foco, respirando fundo e ignorando a crescente sensação de desconforto que o tomava.
-Você não reconhece mais seu amigo, não é Sammy ? Ele está diferente - falou o palhaço, seu tom perigosamente sério.
Sam ficou em silêncio por um momento, o sorriso do Coringa se tornando uma pressão incômoda sobre seus ombros. A provocação era nítida, mas as palavras, carregadas de um significado mais profundo, cortaram mais do que qualquer piada suja que o Coringa pudesse ter dito. O tom sério, quase melancólico, parecia um veneno sendo administrado devagar, feito para infiltrar-se em sua mente.
Sam balançou a cabeça, tentando se distanciar de tudo o que o Coringa estava insinuando. Ele não queria cair nesse jogo. Mas o rosto do Coringa, com aquele sorriso torto e olhar penetrante, fazia com que até as palavras de Sam soassem vazias. Ele olhou para o balde, depois para o Coringa, e sentiu a tensão aumentar. A raiva de ser manipulado de novo misturava-se com uma dúvida que ele não queria admitir: o que tinha acontecido com Andy?
Ele franziu o cenho, lembrando-se dos últimos meses quando Andy veio o procurar. Como tudo tinha mudado, como a distância entre eles se ampliara. A morte de Annie, o sofrimento de Andy, tudo aquilo parecia ter criado uma lacuna tão grande que Sam não sabia mais o que restava da amizade que uma vez tiveram. E, mais importante, ele não queria se envolver com o que quer que fosse a luta de Andy contra o Coringa. A vingança, a dor… não importava mais.
Ainda assim, a sugestão do Coringa começou a martelar em sua cabeça. Ele se lembrava de como Andy era antes, o homem dedicado, leal. Agora, tudo o que restava era uma sombra de quem ele foi, e essa sombra estava sendo puxada cada vez mais para o abismo, por causa do que o Coringa havia feito, e pelas decisões que Andy tomou depois.
-Ele ficou bem esquisito, de nada - falou o palhaço antes de passar a língua no canrto dos lábios - sabe, as pessoas tem mentes muito frágeis, é muito fácil mexer com elas.
-O que você quer dizer com isso? - Sam perguntou, a voz mais baixa do que o desejava. Ele estava começando a ceder, e ele sabia disso.
O Coringa sorriu mais uma vez, suas correntes tilintando quando ele se movia levemente, ajustando-se na posição. Ele sabia que havia acertado. Não precisava mais fazer nada, pois a dúvida já estava ali, se formando na mente de Sam como um câncer.
-O que eu quero dizer, Sammy, é que você conhece Andy, não conhece? - o palhaço parou, os olhos estreitos observando Sam com um prazer visível - mas, e se o Andy não for mais o mesmo nem por baixo de tudo isso ? Quero dizer, ele ficou meio perturbador, e isso vindo de um cara como eu é muita coisa.
Sam fechou os olhos por um momento, tentando afastar as palavras do Coringa que martelavam sua mente. Sabia que o jogo era arriscado, que cada frase tinha o poder de fazer a confiança entre eles escorregar ainda mais para o abismo.
-Não venha com essa merda - rosnou Sam, finalmente, erguendo os olhos para o Coringa com um olhar penetrante - eu sei o que Andy fez, eu sei o que ele está fazendo agora, eu não preciso de você para me lembrar disso.
O Coringa riu baixinho, suas correntes tilintando suavemente enquanto ele se ajeitava. O som parecia a única coisa que ele conseguia controlar neste pequeno espaço.
-Claro que sabe, Sammy, eu nunca disse que você era estúpido, só um pouco… ingênuo às vezes - ele sorriu ainda mais, se inclinando ligeiramente, como se tivesse acabado de fazer uma grande descoberta.
Sam engoliu em seco, sentindo uma pressão crescente nos ombros. Aquelas palavras, aquelas provocações estavam começando a ficar insuportáveis, mas ele não poderia deixar que o Coringa percebesse qualquer sinal de fraqueza.
O Coringa riu baixo, um som rouco e profundo que parecia vibrar no pequeno espaço. Ele inclinou a cabeça, os olhos brilhando com algo que Sam só podia descrever como triunfo.
-Ah, Sammy, Sammy… - o palhaço disse, arrastando as palavras como se saboreasse cada sílaba - não estou tentando te convencer de nada, eu só estou plantando uma sementinha, o que você faz com ela… bem, isso é coisa sua.
Sam apertou os punhos ao lado do corpo, lutando contra a vontade de reagir fisicamente. Ele sabia que era exatamente isso que o Coringa queria: uma explosão, um momento de fraqueza que ele pudesse explorar. Mas a raiva estava ali, fervendo sob a superfície, e ele podia sentir o calor subindo em sua garganta.
-Você não sabe nada sobre Andy - disse Sam, sua voz baixa, mas carregada de intensidade - e eu não vou deixar você enfiar suas merdas na cabeça dele, ou na minha.
O ex-terrorista ergueu uma sobrancelha, claramente divertido. Ele se inclinou o máximo que as correntes permitiam, aproximando-se o suficiente para intimidar Sam.
-Não sei? - ele sussurrou, a voz tão baixa que parecia um sussurro sombrio - Sammy, eu conheço o Andy melhor do que você jamais vai conhecer, eu vi o que ele é capaz de fazer quando ninguém está olhando, eu estive lá... quando ele se perdeu.
Sam recuou um passo involuntário, mas se forçou a ficar firme. Ele não podia permitir que o Coringa o desestabilizasse. Não agora.
-Você está mentindo - afirmou Sam, embora a hesitação em sua voz o traísse.
O palhaço soltou uma risada estridente, inclinando a cabeça para trás como se a situação fosse a coisa mais divertida do mundo.
-Ah, Sammy... eu poderia mentir, claro - disse o louco antes de passar a língua no lábio inferior, sorrindo de forma maníaca - mas você sabe, lá no fundo, que eu não estou.
Sam respirou fundo, tentando afastar as palavras que o palhaço lançava como facas afiadas. Ele precisava manter o foco, precisava se lembrar de quem estava diante dele: um sociopata, um manipulador mestre que vivia para destruir tudo ao seu redor.
Mas, apesar de tudo, a dúvida já estava ali, se enraizando em sua mente como uma erva daninha.
-Andy ainda é meu amigo - ele disse, mais para si mesmo do que para o Coringa - e eu vou tirá-lo disso, não importa o que você diga.
O sorriso do Coringa se alargou ainda mais, e ele inclinou a cabeça como se estivesse admirando algo fascinante.
-Boa sorte com isso, Sammy - respondeu o palhaço, sua voz carregada de sarcasmo - mas lembre-se que às vezes, salvar alguém significa destruí-lo primeiro.
As palavras pairaram no ar como uma sentença, e Sam não pôde evitar o frio que percorreu sua espinha. Ele olhou para o Coringa mais uma vez, tentando encontrar algum sinal de humanidade nos olhos do palhaço, mas tudo o que viu foi o vazio. Um vazio perigoso, sem limites, pronto para consumir qualquer um que ousasse chegar perto demais.
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O sol já estava se pondo em Gotham, pintando o céu com tons alaranjados, mas a cidade continuava mergulhada em sua habitual melancolia. Bruce Wayne, sentado em sua pequena mesa de madeira no canto da cozinha. O vigilante do passado agora era apenas um homem tentando desvendar segredos em silêncio.
A imagem diante dele mostrava registros bancários de Samuel Rise, o elo mais próximo de Andy que Bruce havia encontrado em suas buscas no passado do ex-psiquiatra. Bruce conseguiu acessar transações financeiras de Samuel. Sem os recursos da Wayne Enterprises, isso levou horas de tentativa e erro, mas ele finalmente encontrou um padrão.
A análise revelou uma concentração de compras em uma área específica de Gotham. Era o tipo de descuido que Andy nunca teria cometido, mas que, com sorte, seria a pista necessária para chegar a ele, isso se Samuel estivesse envolvido de alguma forma.
Bruce mapeou o perímetro em um raio de cinco quilômetros. Restaurantes baratos, uma loja de conveniência e um posto de gasolina. A frequência das compras era alta demais para ser coincidência. Samuel, ao contrário de Andy, deixava rastros.
O ex-bilionário se recostou na cadeira, os olhos cansados, mas ainda cheios de determinação. Ele abriu um mapa digital da área no laptop e marcou os locais. Andy não podia fugir dele. Mesmo com todas as limitações atuais, Bruce ainda tinha uma mente investigativa afiada.
Bruce não conseguiu averiguar muito sobre Samuel Rise, não havia muito, parece que se envolveu com contrabando ou alguma coisa assim, cumpriu sua pena e no momento estava solto. Ele e Andy pareciam ter mantido alguma amizade, pelo menos até algum tempo atrás. Era uma pista fria, mas Bruce não tinha muitas opções. O ex-vigilante sabia que o palhaço era completamente capaz de lidar com as coisas sozinho.
O sol desapareceu por completo, deixando Gotham imersa em sombras, exceto pelas luzes da cidade que piscavam à distância. Bruce ficou na cadeira por um longo momento, os dedos deslizando pela borda áspera do bloco de notas. O mapa na tela ainda piscava com os pontos de transações de Samuel Rise. Ele sabia que uma investida precipitada era um erro, não podia arriscar tudo sem informações sólidas. Ainda assim, cada segundo parecia um peso.
Decidido a não agir sem um plano claro, ele começou a traçar um perfil mais detalhado da área que mapeou. Cinco quilômetros quadrados era muita coisa para cobrir sozinho, especialmente sem os recursos do passado. Ele precisava afunilar ainda mais o campo. Bruce abriu mais uma vez os registros bancários, observando os horários das compras e a frequência. Alguns padrões saltaram à vista. A maioria das transações acontecia entre 18h e 22h, principalmente em estabelecimentos próximos a um conjunto habitacional decadente. Isso poderia indicar que Samuel estava ativo por ali à noite, ou morava naquela área. Ele pegou uma caneta e desenhou um círculo menor no mapa, mas ainda não era o suficiente, ele ainda tinha uma área de mais de dois quilômetros, podia ser qualquer casa nessa área, se é que ele estava na pista certa.
Sem o acesso que tinha antes, o ex-bilionário sabia que essa parte seria mais complicada. Ele conectou-se a um antigo servidor que havia montado anos atrás, um sistema improvisado que lhe permitia consultar bancos de dados públicos e, ocasionalmente, privados. Não era rápido nem eficiente, mas era o que ele tinha agora.
Enquanto o sistema vasculhava registros, Bruce voltou sua atenção para o perfil de Andy. Ele não sabia muito sobre a conexão entre Andy e Samuel. O que os mantinha ligados? Samuel não parecia ter a mesma sofisticação de Andy, então por que Matthew Cole confiava nele? Talvez fosse um recurso descartável, alguém que Andy pudesse usar sem se preocupar com perdas. Ou talvez houvesse algo mais, algo no passado. A conexão ainda parecia tênue.
Bruce esfregou os olhos enquanto tomava um gole de café, tentando afastar o cansaço. A luz do laptop iluminava seu rosto com um brilho pálido enquanto ele acessava registros públicos da área. Sem os recursos da Wayne Enterprises, ele precisava ser criativo.
O tempo passou enquanto Bruce vasculhava registros públicos, tentando encontrar algo que conectasse mais diretamente Samuel Rise a Andy. Mas tudo o que ele tinha eram fragmentos, como peças de um quebra-cabeça que se recusavam a se juntar. Cada transação de Samuel parecia esconder mais perguntas do que respostas. Mas, enquanto o computador processava suas consultas, a mente de Bruce se focava no que ele já sabia: Samuel não era tão cauteloso quanto Andy. Isso poderia ser a chave para encontrar algo útil.
Chuck havia ligado para ele mais cedo, ele parecia ter novidades do caso do Contador de Histórias, no entanto, Bruce não conseguiu dar muita atenção para isso no momento. Não com o Coringa desaparecido. Chuck também relatou uma fuga do reformatório, parece que Jason estava novamente nas ruas.
O ex-vigilante sabia que deveria dar mais importância para isso, mas não conseguia. Não com o Coringa desaparecido. Ele tinha diversas ligações não atendidas de Harvey dos últimos 4 dias, provavelmente querendo saber porque ele não foi trabalhar na promotoria. Haviam mais de Rachel. Ele sabia que era só uma questão de tempo para que a mulher aparecesse na sua porta, mas pela primeira vez, ele não queria vê-la.
Era uma luta constante. Cada fragmento de informação parecia indicar que Andy, estava mais perto de onde Bruce o imaginava, mas ainda fora do alcance. A tensão no ar era palpável, mas o ex-vigilante se esforçou para continuar. Ele se recusava a ser imprudente. Impulsividade não seria mais uma opção.
Ele observou, mais uma vez, o círculo que desenhara no mapa. O ponto onde as compras de Samuel convergiam. Ainda faltava algo. Uma casa. Onde Samuel estava. Onde Andy poderia estar escondido. Mas a dúvida persistia. Será que Samuel ainda tinha alguma ligação com Andy? A conexão parecia um fio solto, sem uma prova sólida para amarrar.
Bruce suspirou, encostando-se na cadeira. As luzes da cidade piscavam lá fora, iluminando Gotham em um reflexo de cinza e azul. Ele olhou para o relógio, já havia perdido muitas horas. Todavia, a noite parecia longe de acabar.
Notes:
Obrigado a quem está acompanhando :) Comente para me deixar feliz.
Chapter 20: The Gotham We Have (Parte 20)
Notes:
Bem, mais um capítulo aqui. Desculpem a demora, mas final de ano é uma loucura. Esse capítulo está mais curto do que eu gostaria, e ele não é tão interessante, mas eu precisava dele para dar continuidade na história. Bem, eu sou um cara que escreve história super lentas e arrastadas, vocês já notaram isso a algum tempo, mas eu juro que estou tentando correr mais, mas tenho que ter cuidado ára não jogar as coisas no ar. Enfim, obrigado a quem está acompanhando até aqui, desculpem os atrasos, eu realmente adoro escrever isso, mas final de ano é meio complexo.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O som de um barulho metálico vindo do banheiro interrompeu o silêncio tenso do apartamento. Sam, que estava sozinho na sala, franziu o cenho. Andy havia saído momentos antes para buscar suprimentos, eles estavam ficando sem muita coisa, deixando-o como único vigia. Ele se levantou, hesitante, tentando identificar o som. Outro ruído, desta vez mais alto, ecoou pela casa, e Sam decidiu verificar.
Ele caminhou pelo corredor com passos firmes, parando em frente à porta do banheiro. Girou a maçaneta devagar, abrindo-a com cuidado. O Coringa estava ali, acorrentado à pia, mas havia algo diferente. Uma expressão de falsa inocência se formava em seu rosto, enquanto ele se balançava para frente e para trás levemente. Suas mãos ainda estavam firmemente presas, mas Sam podia notar, mesmo de longe, que seus dedos pareciam esquisitos, um pouco tortos.
-O que você estava fazendo? - perguntou Sam, sua voz carregada de suspeita, mas com uma fagulha de cansaço.
O ex-terrorista inclinou a cabeça, um sorriso travesso e venenoso se formando, antes que esse passasse a língua no canto dos lábios.
-Eu? Nada, apenas refletindo sobre a vida, sabe, essas correntes não são tão confortáveis quanto parecem - o louco balançou os pulsos enquanto falava, produzindo um som metálico - mas o que posso dizer? A vida é cheia de pequenos desconfortos.
Sam deu um passo à frente, seus olhos fixos no Coringa.
-Você tem cinco minutos para explicar por que eu não deveria apertar essas correntes ainda mais - falou Sam, ele estava cansado do palhaço, cansado de Andy também.
O Coringa riu, um som baixo e rouco que parecia preencher o pequeno espaço, antes de dizer em um tom sarcástico:
-Você deveria relaxar um pouco, Sammy.
Sam estreitou os olhos, mas permaneceu em silêncio. Ele sabia que o Coringa estava jogando, como sempre, tentando provocá-lo para obter alguma vantagem. Andy havia o alertado para não entrar nos jogos do ex-terrorista. Sam hesitou por um instante. A relação entre ele e Andy tinha sido um turbilhão, especialmente depois da tragédia com Annie. Mas ali estava ele, novamente, tentando consertar o que restava daquela amizade. Se é que ainda havia algo para consertar.
-Sabe Sammy - começou o ex-terrorista com um tom despreocupado - você sabia que o silêncio pode deixar as pessoas loucas ? Me desculpe por reparar, mas você é mais antissocial que o meu morcego, e olha que Brucie não tem muitos amigos, falando nele, alguma notícia do meu querido ?
Sam cruzou os braços, inclinando a cabeça levemente para o lado, mas não respondeu.
-Não? Ah, que pena - entoou o palhaço com um tom divertido - mas ele vai aparecer, você sabe disso.
Sam apertou a mandíbula. Ele sabia que o Wayne estava rastreando o Coringa. Era apenas uma questão de tempo até que ele aparecesse, e Sam não tinha intenção de voltar para a cadeia. O silêncio de Sam fez o Coringa sorrir ainda mais.
-Oh, Sammy, Sammy - entoou o palhaço - você não quer voltar para aquele lugar, quer? Posso imaginar, a comida horrível, as companhias desagradáveis… E pensar que você está aqui, preso em uma situação que, bem, é culpa de quem mesmo?
O Coringa balançou as correntes novamente, como se quisesse enfatizar algo. Sam sabia que o palhaço estava tentando fazer, ele queria plantar dúvidas na mente dele. O Coringa estava tentando mostrar suas garras.
-Isso não vai funcionar - disse Sam, seu tom seco.
-Não ? - zombou o louco passando a língua no lábio inferior - pelo que vejo já funcionou, e não foi difícil, a verdade é que você o odeia também.
-Eu não o odeio - falou Sam, seu tom era duro.
-Odeia, mas você não acha que tem o direito de odiá-lo - refletiu o louco - porque ? Porque Sammy ? Porque você o odeia ?
O olhar de Samuel vacilou por um momento. Ele não sabia porque estava escutando o que o ex-terrorista tinha para dizer, mas ao mesmo tempo, ele sentia que não conseguia simplesmente dar meia volta e sair do banheiro.
O Coringa percebeu a hesitação de Sam, o sorriso malicioso se alargou em seu rosto. Ele tinha uma maneira única de mexer com as pessoas, de fazer com que suas emoções se embaralhassem. Ele sabia exatamente como jogar com as inseguranças.
Sam apertou os dentes, sua paciência se esgotando. Ele odiava ser manipulado, mas o Coringa tinha uma maneira de tirar as palavras da sua boca, como se soubesse tudo sobre ele, suas fraquezas, seus pontos de ruptura. A sensação de vulnerabilidade estava crescendo dentro de Sam, e ele tentava, com todas as forças, não ceder a isso.
-Eu não preciso de você me dizendo o que sinto - respondeu Sam, a voz meio trêmula, mas tentando soar firme.
-Claro que não Sammy - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios - você sabe exatamente o que está sentindo, mas porque tenta negar isso ? Sabe, o ódio é um sentimento tão genuíno quanto…o amor.
Sam deu um passo à frente, as palavras do Coringa ressoando em sua mente, e uma sensação incômoda se espalhou por seu corpo. Ele respirou fundo, os músculos tensos. Ele sabia onde isso estava indo. O ex-terrorista estava tentando manipular sua psique, tentando puxar os fios certos para fazer Sam se revelar, para fazer ele se perder em seus próprios conflitos internos. Mas ele não iria ceder. Não agora.
-Ah, Sammy... você está com medo, com medo do que pode acontecer se eu te fizer ver quem você realmente é - o louco fez uma pausa dramática, estreitando os olhos enquanto inclinava a cabeça para o lado, com o sorriso mais sádico - e eu adoro quando as pessoas ficam com medo, mas você não precisa ter medo de mim... só de você mesmo, e talvez do seu amigo.
Sam sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao ouvir a menção de Andy. O Coringa estava tocando no ponto mais delicado, e Sam não podia negar que a ideia de perder o controle sobre si mesmo e sobre a situação o aterrorizava.
O ex-terrorista observava cada movimento de Sam com um interesse quase obsessivo, seus olhos se apertando ligeiramente enquanto ele percebia a tensão crescente no corpo do homem diante dele. Ele estava cavando, cavando profundamente, tentando descobrir algo que pudesse usar, algo que fizesse Sam vacilar.
-Você também não sabe porque eu estou aqui, sabe ? - perguntou o louco zombando divagando - não sei se isso é uma nova vingança 2.0, ou ainda se estamos brincando de um novo jogo, bem…Andy e eu temos história, quem diria que se não fosse Annie, nós nunca teríamos tido momentos tão…memoráveis, eu devia agradecê-la, sem ela talvez eu e Brucie não estaríamos onde estamos agora.
-Você não tem o direito de falar dela - entoou Sam, seu tom era duro, um pouco irritado - isso tudo é culpa sua.
O louco arqueou uma sobrancelha, ele parecia ter acertado em algo interessante. Seu sorriso predatório se alargou lentamente, quase de forma venenosa.
-Você me odeia, Sammy ? - perguntou louco zombeteiramente antes de passar a língua pelo lábio inferior - porque me odeia ? É só por causa de Andy ou…tem algo mais ? Talvez..alguém.
Sam sentiu a tensão aumentar dentro de si, uma sensação de peso tomando conta de seu peito. Ele não queria ceder ao jogo do Coringa, mas o palhaço parecia saber exatamente onde cutucar, onde era mais fácil mexer. A menção de Annie fez as veias dele pulsarem com raiva, mas ele se manteve firme.
-Não fale dela, maldito - Sam rosnou, seus punhos apertados, algo nele estava escapando.
O Coringa não recuou. Pelo contrário, ele se deliciava com a reação do outro homem. O sorriso em seu rosto se alargou ainda mais, como se estivesse se alimentando daquela raiva crua.
-Ah, Sammy...Você me odeia, não só por causa de Andy, mas porque, no fundo, você sabe que essa tragédia... bem, ela é sua também, não é? - entoou o louco venenosamente antes de lamber o canto dos lábios - você…quer saber se ela chorou quando eu cortei o rosto dela ?
Sam sentiu um nó apertado na garganta. Ele sabia que o Coringa estava tentando provocá-lo, fazendo-o questionar a si mesmo, mas havia algo nele que estava começando a quebrar. A culpa, o arrependimento, tudo se misturava de uma forma que ele não queria mais encarar. O que o Coringa dizia fazia sentido, e isso o aterrorizava. Ele odiava a ideia de ser manipulado, mas o ex-terrorista tinha um poder sobre ele que não conseguia ignorar.
-Isso é tudo um jogo para você, não é? - Sam grunhiu, tentando manter o controle - você se diverte com a dor dos outros.
-O que posso dizer ? É um bom hobby - zombou o louco.
Sam fechou os olhos por um segundo, tomando um ar profundo. As palavras do Coringa eram venenosas, mas ele não poderia ceder. Ele tinha que se manter firme. Não poderia permitir que o palhaço visse que havia algum tipo de dúvida em sua mente, que o louco visse alguma fraqueza para explorar. Ele sabia que o palhaço estava tentando manipular sua mente, forçando-o a reviver aquela dor, aquela perda.
-Você a amava - disse o palhaço de repente, suas palavras ecoando no banheiro frio. Não eram palavras venenosas, era apenas uma constatação.
-Por isso você está aqui, você também a amava - continuou o palhaço com um tom de cumplicidade - Andy sabe disso ?
Sam estremeceu com a pergunta. Ele não queria pensar nisso. A última coisa que ele queria era confrontar a verdade nua e crua que o Coringa estava sugerindo. Mas, de alguma forma, a dor daquela perda ainda estava ali, pulsando dentro dele, como uma ferida aberta que nunca cicatrizou completamente.
-Não fale dela - Sam rosnou, a voz rouca e quase se quebrando. Ele sentiu o ódio borbulhar dentro dele, uma força bruta que o impulsionava a se aproximar ainda mais do Coringa. O louco sabia como tocar nas feridas mais profundas, e isso o irritava mais do que qualquer outra coisa.
O ex-terrorista sorriu, um sorriso torto que não tinha nada de gentil. Ele estava jogando com as emoções de Sam, como sempre fazia com todos.
-Oh, Sammy... - o louco se balançou levemente, suas correntes fazendo um som metálico agudo, como se ele estivesse se divertindo com a tensão no ar - todos nós temos nossos segredos, nossos medos, nossos desejos não ditos.
Ele olhou para Sam com uma expressão quase estudiosa, como se estivesse tentando decifrar alguma coisa. Sam respirou fundo, tentando não se deixar levar por aquilo. O Coringa sabia das coisas. Sabia mais do que qualquer um sobre a maneira como a mente humana funcionava. Mas Sam não era qualquer um. Ele não ia cair nas armadilhas do louco, não dessa vez.
-Não tenho nada a ver com isso - Sam disse, a voz tensa, tentando firmar sua posição.
-Você acha que Andy não percebeu? Ele sabe, Sammy, ele sempre soube - o louco soltou uma risada baixa, como se estivesse se divertindo com a angústia que estava provocando - é engraçado como as coisas se desenrolam, não é? A dor... A raiva... A culpa... No final, todos nós somos apenas escravos das nossas próprias emoções.
Sam sentiu uma onda de frustração crescente. Ele sabia que o Coringa estava tentando abrir uma ferida que ele não queria tocar, algo que nem ele mesmo estava disposto a enfrentar. Mas o palhaço estava certo sobre uma coisa, tudo aquilo que Sam fazia, tudo o que ele era, estava preso a esse ciclo de dor e perda. Ele olhou para o Coringa, tentando manter a calma, tentando manter sua raiva sob controle.
-Você não sabe nada sobre mim e Annie - disse Sam, sua voz sob controle.
-Então, porque você não me conta ? - desafiou o louco, sua voz embebida em veneno.
Sam respirou fundo, sentindo a pressão aumentando dentro de seu peito. Ele sabia o que o Coringa estava tentando fazer, mas não podia deixar que o palhaço o levasse a esse ponto. Sua mente estava turva, mas ele se manteve firme, não queria ceder. Não agora.
O Coringa, por sua vez, se deliciava com o desconforto de Sam, seus olhos brilham com uma satisfação quase predatória. Ele se balançou mais uma vez, fazendo o som das correntes ecoar pelo banheiro, como uma música macabra. O sorriso em seu rosto era de puro prazer.
-Vamos lá, Sammy, seja honesto comigo…- disse o ex-terrorista com um tom meloso, quase zombando da luta interna que Sam estava travando - você sente falta dela, não sente?
O outro homem sentiu um nó apertado em sua garganta. A menção de Annie, a lembrança daquela dor, foi como um golpe direto em seu estômago. Mas ele se forçou a não mostrar nada, se recusar a dar ao Coringa o prazer de vê-lo vacilar.
-Você não sabe nada sobre o que aconteceu - Sam respondeu, sua voz soando mais firme, mas o ódio crescente se espalhava dentro dele.
-Então vamos, conte para mim, nós temos tempo - falou o louco balançando as correntes para mostrar seu ponto.
As palavras do Coringa começaram a se infiltrar em sua mente, tocando nas partes que Sam ainda não queria enfrentar. Cada palavra era como uma lâmina afiada, cortando lentamente através de sua resistência. Sam sabia que, se cedessem mais um pouco, as mentiras e o medo que ele guardava no fundo de sua alma poderiam vir à tona.
-Não… - Sam murmurou, forçando a voz a se manter firme - eu não vou falar sobre isso com você.
O Coringa deu uma risada baixa, cínica. Ele estava se divertindo, completamente em controle, e Sam sabia que esse jogo não tinha fim. O ex-terrorista tinha a habilidade de fazer as pessoas se desestruturarem, de provocar emoções que nem elas mesmas compreendiam.
-Está certo, Sammy... não precisa falar agora - arrulhou o palhaço em um falso tom de compreensão - eu também sei o que é perder um grande amor, a gente perde…alguns parafusos junto.
Sam apertou os punhos. O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Ele sabia que, se permanecesse ali, o palhaço continuaria a escavar, a arranhar as paredes que ele havia construído para manter suas emoções sob controle. Sam deu um passo para trás, respirando fundo antes de entoar:
-Você acha que sabe tudo sobre mim, mas não sabe.
O Coringa inclinou a cabeça para o lado, seus olhos brilhando com algo que parecia uma mistura de curiosidade e desprezo.
-Talvez não, Sammy, mas sabe o que é engraçado? Eu nem preciso saber de tudo - respondeu ele passando a língua no canto dos lábios, o tom casual, mas com uma intensidade que perfurava o ar pesado.
Sam tentou conter a tensão em seus ombros, mas cada palavra do Coringa parecia pesar mais em sua mente. Ele sabia que o palhaço era um mestre em torcer as emoções das pessoas contra elas mesmas. E, de alguma forma, ele parecia estar chegando perto demais.
-Você acha que isso é um jogo - Sam disse, sua voz firme, mas seus olhos revelavam um cansaço profundo - mas a verdade é que você está preso aqui, não importa o quanto tente mexer com a cabeça de todo mundo.
O Coringa riu, aquele som rouco e perturbador que parecia reverberar pelas paredes. Sam deu um passo à frente, a raiva em sua voz crescendo.
-Você destruiu vidas suficientes, causou dor suficiente - rosnou Sam - você não vai mais fazer isso, não comigo, não com Andy, e não com mais ninguém.
O Coringa ergueu uma sobrancelha, como se estivesse intrigado. Ele abriu um sorriso largo, e a luz fraca do banheiro refletiu sua expressão desdenhosa. Sam sentiu o golpe, mesmo que não quisesse admitir. Ele balançou a cabeça, tentando afastar as palavras do ex-terrorista. Ele sabia que não podia confiar em nada do que o palhaço dizia. Mas, ao mesmo tempo, parte de si sabia que havia um grão de verdade escondido ali. As sementes da dúvida já estavam plantadas.
-Você não sabe de nada - disse Sam, a voz carregada de frustração - então cale a boca.
Sam respirou fundo, observando o Coringa do outro lado da sala. As correntes que prendiam o palhaço balançavam suavemente, emitindo um som metálico que reverberava no espaço apertado. Ele não queria estar ali. Não fazia parte do plano, nunca quis estar. Mas Andy o arrastou para aquilo, como sempre fazia.
Sam apertou os punhos, mas não avançou. Ele sabia que o Coringa estava tentando provocá-lo, puxar alguma reação para o seu próprio entretenimento.
-Não sei por que ele te trouxe para isso - continuou o palhaço, inclinando-se para frente o máximo que as correntes permitiam - você não parece o tipo de cara que gosta de se sujar.
-Talvez porque eu saiba o que fazer com gente como você - respondeu Sam, tentando soar confiante.
O Coringa gargalhou dessa vez, jogando a cabeça para trás., batendo na pia.
-Gente como eu? Oh, Sammy... Se soubesse o que eu sou, você já teria corrido, mas aí está você, preso nesse joguinho que o Andy criou - falou o louco antes de passar a língua no lábio inferior - aposto que ele nem perguntou o que você queria, não é? Só te puxou para o lado dele e disse: "Confie em mim"...aposto que você está pensando nisso agora... em como tudo isso é culpa dele.
Sam avançou um passo, mas parou antes de chegar perto demais.
-A culpa é sua - disse Sam.
-Eu não estava lá quando Annie morreu Sammy - disse o palhaço arqueando as sobrancelhas - não foi nada pessoal, eu apenas estava fazendo o meu trabalho, foi Andy que não conseguiu salvá-la, e você sabe disso, você o odeia por isso.
Sam sentiu a garganta apertar. Cada palavra do Coringa parecia perfurar suas defesas, atingindo lugares que ele havia enterrado profundamente. Ele queria negar, gritar que o palhaço estava errado, mas as memórias começaram a ressurgir como ondas, engolindo-o.
-Você não sabe de nada - Sam disse novamente, mas desta vez sua voz falhou levemente, traindo a luta interna.
O ex-terrorista sorriu mais amplamente, percebendo o impacto de suas palavras.
-Eu sei o suficiente, Sammy - entoou o louco, quase cantando - essa culpa, essa raiva... não é sobre mim, é sobre ele, porque no fundo, você sabe que, se fosse você no lugar dele... ela estaria viva.
Sam deu um passo para trás, como se tivesse levado um golpe físico. Ele balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos. Mas o veneno do Coringa já havia se espalhado.
-Cale a boca! - rosnou, sua voz carregada de uma raiva que ele não conseguia mais conter - você é um verme !
Sam apertou os punhos com tanta força que as articulações ficaram brancas. Ele respirou fundo, tentando controlar a raiva que borbulhava dentro dele. Ele não podia permitir que o Coringa o controlasse. Não podia deixar que o louco visse a dor que ainda o consumia. Ele se virou as costas abruptamente, saindo do banheiro com passos rápidos e firmes. Ele precisava de ar, precisava escapar daquela pressão esmagadora que parecia sufocá-lo. Mas, mesmo enquanto ele se afastava, o som da risada do Coringa o seguiu, ecoando em sua mente como uma lembrança que ele sabia que nunca conseguiria apagar completamente.
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A noite avançava sobre Gotham como um predador silencioso. Bruce Wayne estava cansado, mas o cansaço físico não era nada comparado ao peso psicológico que carregava. Sentado à mesa, ele encarava o mapa no laptop, o cursor piscando, como se zombasse de sua estagnação. Ele sabia que continuar daquele jeito era inútil. Bruce Wayne fechou os olhos por um instante, os dedos tocando a borda do teclado enquanto sua mente girava em círculos. Gotham, lá fora, pulsava como sempre, uma cidade que nunca dormia, mas que parecia sempre à beira do colapso.
Ele sabia que havia chegado a um ponto de inflexão. Por mais que ele tentasse, por mais metódico que fosse, havia limites para o que Bruce Wayne poderia alcançar agora. Ele não tinha mais os recursos de antes, nem a influência, e essa realidade o atingia como uma faca. Ele precisava fazer o que sabia fazer melhor. Ele precisava ser algo mais. Ele precisava ser o Batman novamente.
Lentamente, ele fechou o laptop e se levantou. A decisão que vinha adiando estava clara. Gotham não precisava de Bruce Wayne. Ele mesmo não precisava de Bruce Wayne. E o mais importante agora…Jay não precisava do Bruce Wayne.
Na mesma rua, Dick Grayson estava sentado em seu carro estacionado. Ele tinha uma câmera no banco do passageiro e um caderno de anotações no colo. As páginas estavam cheias de rabiscos, de horários, descrições, nomes. O aspirante a jornalista investigativo tinha monitorado os passos de Wayne mais de perto nos últimos dias. Ele não saia de casa. Havia alguma coisa errada.
Ele estava decidido. Se Bruce Wayne fosse mesmo o Batman, como ele suspeitava há anos, ele seria a primeira pessoa a provar isso. Dick ajustou o foco de sua câmera, apontando-a para o prédio onde sabia que Bruce estava morando. A janela do apartamento dele estava apagada, mas o jornalista sabia que isso não significava que ele não estivesse lá dentro. Bruce era um homem difícil de prever.
De repente, algo chamou sua atenção no final da rua. Um movimento rápido na escuridão. Dick estreitou os olhos, apontando a câmera com o zoom naquela direção, tentando entender o que havia visto. Era uma sombra, alta, , mas com uma presença que era impossível ignorar.
Ele ajustou o foco na câmera por um momento. E foi quando ele o viu.Uma figura encapuzada, envolta em um manto negro, movendo-se com uma agilidade sobrenatural A silhueta do morcego estava de volta. O coração de Dick disparou. Ele sabia que isso só podia significar uma coisa: o Batman havia retornado.
Dick estava ofegante, sua câmera presa firmemente nas mãos enquanto ele tentava seguir o rastro do Batman. Ele não podia acreditar no que havia visto, a lenda de Gotham, o homem que ele suspeitava ser Bruce Wayne, estava ativo novamente. E agora, ele estava ali, bem na frente dele.
O morcego caminhou lentamente pela rua, sua presença pesada e fantasmagórica era como uma mal presságio na noite escura. O aspirante a jornalista investigativo nunca havia ficado cara a cara com o morcego.
Batman parou na entrada de um restaurante decadente, o neon apagado em algumas letras da placa que piscava "Joe's". Esse era um dos locais frequentes de Samuel Rise, de acordo com as transações que Bruce havia analisado. Ele se escondeu nas sombras por um momento, observando o movimento lá dentro. Apenas um funcionário atrás do balcão e dois clientes em mesas afastadas. Um ambiente ideal para se mover sem chamar atenção.
Dick, por sua vez, se posicionou na esquina oposta, tentando manter a silhueta do morcego à vista. Ele ajustou a câmera, tentando capturar algo, mas a figura do Batman desapareceu como fumaça.
-Maldição - Dick murmurou para si mesmo. Ele sabia que o morcego era bom em sumir, mas isso era diferente. Dick o viu sair do restaurante, os movimentos do morcego tão sutis que ele quase perdeu de vista a figura encapuzada. Ele seguiu o Batman, mantendo uma distância segura, mas a dúvida começava a se instalar. Ele sabia que estava se metendo em algo perigoso, que não era prudente simplesmente começar a seguir o morcego por aí.
Ele viu o Batman caminhar até um beco ao lado do restaurante. Dick se aproximou devagar, tentando não fazer barulho. A câmera estava pronta, mas quando ele olhou para o beco, tudo o que viu foi escuridão.De repente, um som suave atrás dele.
-Você é persistente - a voz baixa e grave do Batman fez Dick congelar no lugar.
Ele se virou lentamente, a respiração acelerada. Lá estava ele, o morcego, em toda sua presença imponente, a capa escura envolvendo seu corpo como um manto de sombras. Dick engoliu em seco, suas mãos tremendo segurando a câmera.
-Você não deveria estar aqui - continuou o morcego, sua voz controlada, mas ameaçadora.
-Eu…- disse Dick, a voz tremendo levemente, ele não conseguiu completar a frase, o olhar do morcego foi o suficiente para fazer Dick recuar instintivamente.
O silêncio que se seguiu foi quase sufocante. Batman inclinou ligeiramente a cabeça, como se analisasse o jovem à sua frente. Dick sentiu que estava sendo avaliado, cada movimento, cada respiração.
-Se sabe o que é bom para você, vai esquecer isso, independente do que esteja fazendo aqui - disse o Batman, finalmente, a voz baixa, mas carregada de intensidade - eu não tenho tempo para isso.
-Você está procurando o Coringa - arriscou Dick, tentando puxar a conversa para seu lado - eu sei que está, eu…eu venho observando você.
Batman não respondeu, mas isso foi o suficiente para Dick. Ele percebeu que havia tocado em algo. O morcego estreitou os olhos por um momento.
Dick não conseguia ler a expressão por trás da máscara, mas a tensão no ar era palpável. Ele sentia como se estivesse em um campo minado, cada palavra sua uma possível ameaça. Mas o aspirante a jornalista investigativo não se deixou intimidar. Ele apertou a câmera com mais força, os dedos rígidos em torno do equipamento, como se isso fosse sua âncora, sua conexão com a realidade.
-Eu posso ser mais útil do que pensa - entoou Dick, tentando manter a voz firme.
Batman cruzou os braços, a postura firme e imponente, mas sem desviar o olhar de Dick. Era como se cada segundo de silêncio fosse calculado para aumentar o peso daquela conversa.
-Você não sabe com o que está lidando - disse o vigilante finalmente, a voz grave soando como um trovão controlado.
Dick respirou fundo, reunindo coragem para manter o contato visual.
-Estou lidando com uma cidade que precisa de ajuda - respondeu ele, com firmeza na voz - se você é quem eu acho que é, então sabe mais do que ninguém que Gotham não precisa de mais sombras, precisa de respostas.
-Respostas nem sempre são o que as pessoas querem ouvir - rebateu Batman com um rosnado - e você está se metendo em algo que não é para amadores.
Dick avançou um passo, ignorando o medo que ainda apertava seu peito. A hesitação de Dick era sutil, mas suficiente para que Batman percebesse.
-Considere isso um aviso - foram suas últimas palavras do morcego antes de desaparecer completamente nas sombras.
Dick ficou parado ali, o coração ainda acelerado, enquanto tentava processar o que acabara de acontecer. As perguntas que antes o motivavam agora pareciam uma armadilha. O que ele estava realmente procurando? E por que a presença do Batman fazia parecer que o peso de Gotham era maior do que ele imaginava?
Determinando-se a não desistir, Dick ajustou a câmera novamente. Se ele queria chegar ao fundo da história, precisaria de mais do que coragem. Precisaria ser inteligente, e talvez, mais parecido com o próprio Batman do que estava pronto para admitir.
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O tempo passava lentamente na delegacia. Uma semana havia se passado desde o assassinato brutal do agente Taylor, e o ar pesado continuava impregnado em cada canto do edifício. Sarah retornou ao trabalho, embora ainda ostentasse um olhar distante, carregando o peso da culpa e da frustração. Chuck, por sua vez, estava mais tenso do que nunca. Ele havia enfrentado Castro, mas sabia que o comissário não iria deixar o assunto morrer tão facilmente. A morte de Taylor era uma mancha no histórico da equipe, e a presença do Contador de Histórias tornava tudo ainda mais sombrio.
Naquela manhã, Chuck estava em sua sala, os olhos fixos no pedaço de papel em branco que o Contador de Histórias havia deixado. Ele o segurava entre os dedos, como se tentasse extrair algum significado oculto. A mensagem parecia uma provocação, um desafio silencioso que o deixava irritado e frustrado. Ele sabia que aquilo tinha um significado, mas qual?
Ele havia recebido um envelope naquele dia mais cedo, sem remetente, apenas foi deixado em sua mesa. Dentro dele, outra charada.
“Sigo caminhos que os olhos não podem ver, Uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?”
Chuck segurava o envelope aberto na mão direita, enquanto a charada recém-recebida pairava em sua mente como uma nuvem de mistério. Ele leu as palavras repetidamente, cada frase pulsando em sua cabeça com uma urgência irritante.
“Rede que conecta o que não pode ser…”
Seu instinto dizia que aquilo não era apenas mais uma provocação. O Contador de Histórias tinha o hábito de entrelaçar suas mensagens com significados duplos e conexões aos eventos em andamento. Chuck sabia que aquilo, de algum modo, estava ligado ao caso de Talia, ao DNA da mulher misteriosa, ao assassinato de Taylor, e a tudo que o Contador de Histórias tinha contado até agora.
-Uma rede... laço entre vazio e existência…- Chuck murmurava, antes de pegar um quadro branco e escrever as palavras ali.
O tenente rabiscou outras conexões possíveis: "informação digital", "fluxo de comunicação", "interligação". Então seu pensamento voltou à outra charada, que mencionava "o silêncio encontra o fluxo constante".
Ele bateu levemente a caneta no quadro, franzindo o cenho. Era possível que ambas estivessem relacionadas? Talvez o Contador de Histórias estivesse apontando para algo mais estrutural, como redes subterrâneas, sistemas de dados... ou algo ainda mais abstrato.
Antes que ele pudesse ir mais longe, Sarah bateu na porta, entrando antes que ele respondesse. Ela carregava uma pilha de papéis e um olhar ligeiramente menos abatido do que nos últimos dias.
-Chuck - começou ela, colocando os papéis na mesa - encontrei algo sobre Margareth Todd.
Chuck virou-se imediatamente, focando na agente.
-O que conseguiu?
-É uma história complicada - Sarah começou, sentando-se em uma cadeira próxima - Margareth Todd não é um nome que aparece facilmente, eu levei dias para encontrar algo útil, porque ela usava um pseudônimo em muitos registros, até agora, ninguém nunca investigou direito, ao que parece, formalmente, a ficha dela está limpa, mas ela tem conexões indiretas com pessoas que já foram indiciadas por contrabando e outras atividades ilegais, uma dessas pessoas é um tal de Samuel Rise, que foi preso por contrabando há alguns anos.
O tenente ficou em silêncio por alguns instantes, absorvendo as informações. Margareth Todd agora parecia muito mais do que uma mãe adotiva protetora. A ligação dela com obscuro contrabandista criavam uma rede de suspeitas que Chuck não podia ignorar.
Ele voltou os olhos para o quadro branco e a charada. "Rede que conecta o que não pode ser." De repente, as palavras pareciam ainda mais carregadas de significado
-Samuel Rise? Nunca ouvi falar - comentou Chuck, franzindo o cenho.
-Nem eu, até agora, mas há registros de que ele se aproximou de Margareth em um período específico, pouco antes dela adotar Jason, achei muita coincidência, coisa de cerca de dois meses antes.
Chuck estreitou os olhos, os pensamentos correndo como engrenagens em uma máquina antiga. Ele andou até o quadro branco, anotando o nome "Samuel Rise" ao lado de "Margareth Todd". Fez uma seta conectando os dois, depois uma nova linha apontando para "Jason Todd".
-Dois meses antes da adoção... - murmurou o tenente - isso é muito próximo para ser só coincidência.
Sarah concordou com um aceno de cabeça, mas parecia hesitante. Chuck franziu o cenho, seu instinto de policial se ativando. Ele voltou os olhos para a charada no quadro, como se estivesse buscando uma resposta no vazio.
-“Uma rede que conecta o que não pode ser” - Chuck repetiu, dessa vez em voz alta - Isso tudo é parte de algo maior, essa conexão entre Margareth, Samuel Rise e…alguma outra coisa, o Contador de Histórias está nos mostrando isso.
Sarah inclinou a cabeça, intrigada. Ela olhou para Chuck com determinação. Ele observou Chuck, sentindo que ele estava à beira de uma descoberta importante, mas ao mesmo tempo, não conseguia deixar de sentir um peso no ar. A tensão que sempre pairava em torno do caso estava mais forte agora, como se todas as peças do quebra-cabeça começassem a se alinhar de forma desconfortável.
-O que "não pode ser", Chuck? - ela perguntou, ainda tentando entender o que o tenente estava pensando - você acha que isso tem a ver com algo fora do alcance, algo que não podemos ver claramente?
O tenente olhou para o quadro novamente, como se estivesse procurando por um sinal, uma chave para desvendar o significado da charada. Ele respirou fundo, passando a mão pela testa antes de responder.
-Talvez, "O que não pode ser"... - ele repetiu, mais pensativo do que nunca, olhando para o quadro novamente - pode ser a "rede" que conecta tudo isso, o Contador está falando de algo invisível, algo que conecta todas essas figuras de maneira que não podemos ver imediatamente, que liga inclusive nós, ele está brincando, contando uma história.
Sarah sentiu um calafrio percorrer sua espinha. A ideia de uma rede invisível conectando todos aqueles envolvidos, incluindo o próprio Contador de Histórias, era aterradora. Mas algo dentro dela sabia que Chuck estava certo. Eles estavam, de alguma forma, mergulhando em uma teia de manipulação e engano que se estendia muito além do que podiam compreender. E eles sabiam disso, não era uma novidade.
Chuck sentiu o peso daquelas palavras ressoando dentro de si, como um eco distante que se aproximava rapidamente. A ideia de que o Contador de Histórias estava, de fato, manipulando cada movimento deles o deixava inquieto.
-Ele está criando um caminho, Sarah, e nós estamos seguindo, sem saber para onde vai dar - Chuck parou, como se estivesse tentando reunir todos os pensamentos que estavam se atropelando em sua mente.
Sarah olhou fixamente para o quadro, como se as palavras escritas ali tivessem vida própria, observando-a, desafiando-a a entender a verdade oculta. Ela se endireitou na cadeira, tentando afastar o frio que começava a se espalhar pela sala. A sensação de que estavam sendo observados, controlados, já era palpável.
-O que você sugere que façamos agora? - ela perguntou, a voz mais firme, mas ainda marcada pela tensão que pairava entre eles - isso não é uma novidade, já lidamos com ele antes, com suas histórias.
-Nós nunca fomos de fato quem ele queria que desvendasse isso - falou o tenente de forma pensativa - nós somos apenas outros personagens dessa história que ele segue escrevendo, tricotando como um cachecol de inverno.
Chuck suspirou, olhando novamente para as anotações no quadro, os nomes conectados por linhas e setas. Cada peça fazia sentido de uma maneira estranha e desconcertante, mas ao mesmo tempo, parecia haver algo que escapava ao seu entendimento imediato.
-Precisamos entender o que aconteceu dois meses antes da adoção - disse o tenente organizando seus pensamentos por um momento - o que estava acontecendo naquele período? E, principalmente, quem mais estava envolvido?
-Vou continuar cavando mais sobre o Rise, talvez consigamos rastrear com quem ele trabalhou e onde esteve antes de ser preso - entoou Sarah.
Chuck assentiu, grato pela dedicação da agente.
Enquanto Sarah saía para dar continuidade às suas pesquisas, Chuck permaneceu na sala, olhando para o quadro branco. A charada ainda pairava como um enigma sem solução, mas agora ele sentia que estava mais próximo de entender o quebra-cabeça. O Contador de Histórias podia estar sempre um passo à frente, mas Chuck não pretendia desistir tão facilmente.
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Jason ficou parado por um momento O brilho da cidade contrastava com a escuridão dentro de si, como um convite irresistível e perigoso. Ele respirou fundo, tentando acalmar os pensamentos que borbulhavam em sua mente. A liberdade que acabara de conquistar era frágil, e ele sabia que um único erro poderia custar tudo. Ele precisava ser cuidadoso, não podia chamar atenção da polícia.
Tim, jogado despreocupadamente no chão do galpão, quebrou o silêncio com uma risada curta.
-Então, qual é o plano, gênio? Vai ficar olhando pra cidade ou tem alguma ideia de onde começar?
-Eu já tenho um lugar pra começar - disse Jason, com a voz firme - eu só preciso descobrir onde ela está agora.
Tim ergueu as sobrancelhas, curioso.
-“Ela”? Quem é ela?
Jason o ignorou no início, mas a persistência no olhar de Tim o fez suspirar.
-Minha mãe - disse ele, sem olhar diretamente para o outro garoto - eu estou nesta cidade de merda para encontrá-la.
-Sua mãe? Então é por isso que você foi parar naquele buraco de reformatório? - riu Tim - achei que fosse algo mais... sei lá, ilegal.
Jason estreitou os olhos, não querendo continuar na conversa antes de entoar, seco:
-Não é da sua conta.
Tim ergueu as mãos em rendição, mas o sorriso em seu rosto não desapareceu.
-Certo, cara - falou Tim com um tom despreocupado - mas vou te dizer uma coisa, Gotham não é gentil com quem procura coisas.
Jason bufou, ele já havia notado. Ele já tinha se metido em muitas encrencas desde que veio para a cidade, mas isso não era realmente importante.
-Eu vou encontrá-la - disse ele com um tom determinado - eu não sei como ainda, mas eu vou encontrá-la.
-O que você tem ? - pergunta o outro adolescente - como vai encontrá-la ? Você tem um nome ?
-Não - disse Jason, sua voz tremendo em uma fúria controlada - mas eu sei quem pode me ajudar a encontrar ela.
-Quem ? - perguntou Tim arqueando uma sobrancelha.
-A mesma pessoa que me trouxe para Gotham - respondeu Jason se virando para encarar o outro adolescente - Miranda Tate.
Notes:
Até semana que vem se nada acontecer. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 21: The Gotham We Have (Parte 21)
Notes:
Último capítulo do ano. Desculpem a inconstância em atualizar isso. Eu realmente fiquei bem ocopado nesse final de ano. Mas enfim, aqui vai um capítulo de mais de 8 mil palavras. :) Até a próxima e Feliz ano novo
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Na manhã seguinte, o trabalho árduo de Sarah finalmente rendeu frutos. Ela voltou ao escritório de Chuck com um olhar determinado, carregando um novo arquivo que parecia tão pesado quanto a atmosfera no departamento.
O som constante do relógio da delegacia ecoava enquanto Chuck examinava mais uma vez o quadro branco, agora carregado de novas conexões. Cada linha e seta parecia uma tentativa desesperada de encontrar sentido em um quebra-cabeça que ficava mais complexo a cada passo.
-Descobri algo que vai te interessar - anunciou Sarah, jogando o arquivo sobre a mesa do tenente.
Ele ergueu o olhar do quadro branco, onde passou a noite reorganizando as conexões. As linhas traçadas entre os nomes estavam mais caóticas, mas, de algum modo, contavam uma história.
-O que tem? - perguntou ele, pegando o arquivo.
Sarah se sentou à frente dele, cruzando os braços enquanto esperava ele abrir o documento. Quando o fez, seus olhos imediatamente se fixaram em um nome familiar.
-Samuel Rise era amigo de Matthew - falou a agente sem rodeios.
Chuck congelou. O nome caiu sobre ele como uma pedra. Ele largou a caneta que segurava e encarou Sarah, o peso daquela revelação crescendo rapidamente.
-Andy? - ele perguntou, a voz tingida de uma mistura de surpresa e desconforto. Sarah assentiu lentamente.
-Não sei exatamente que tipo de conexão eles tinham - continuou a mulher - não consegui averiguar muita coisa, eles se afastaram em algum momento.
Sarah percebeu o desconforto do tenente e se inclinou para frente, olhando-o de perto.
-Chuck, você sabia que Andy estava envolvido com pessoas como Rise?
-Não - falou o tenente, sua voz era tensa - isso é um novo nível, Rise é um contrabandista, se Andy estava ligado a ele, então talvez houvesse algo muito mais sombrio acontecendo antes mesmo da morte de Annie.
Sarah inclinou a cabeça, curiosa e preocupada. Ela ficou em silêncio por um momento antes de entoar, fazendo uma constatação que permeava o ar da sala:
-Você acha que Andy tinha um lado… oculto? Alguma coisa que ele escondia?
Chuck balançou a cabeça, os olhos fixos no quadro.
-Não sei.
Houve um momento de silêncio enquanto os dois refletiam. Para Chuck, as memórias de Annie eram um lembrete doloroso do que ele não conseguiu evitar. Ela era uma colega brilhante, cheia de vida, que sucumbiu à escuridão que o Coringa trouxe às suas vidas. Ver Andy se destruir depois disso era como assistir uma segunda tragédia, e Chuck sabia que, de certa forma, ele não conseguiu ajudar nenhum dos dois.
Chuck apertou os punhos. Isso o deixava desconfortável. Andy não era um herói, mas também não era o grande vilão dessa história. Ele era algo no meio, uma figura tragicamente complexa que Chuck se esforçava para compreender…por Annie.
-Você acha que avisamos o Batman ? - entoou a mulher cuidadosamente - você sabe que ele está procurando por Matthew, não tenho o visto por aqui desde que…
-Eu não sei se podemos colocar essa informação nas mãos dele - disse Chuck depois de uma pausa - isso ficou muito pessoal para ele.
Sarah ficou em silêncio por um momento olhando para o seu colega de trabalho. Chuck se levantou da cadeira, sentindo a tensão crescer no ambiente. Ele olhou para o quadro branco mais uma vez, seus pensamentos nublados pela dor das lembranças e pelas complicações atuais. O que realmente aconteceu com Andy? pensou ele. As peças ainda não se encaixavam, mas uma coisa era certa: a situação estava saindo do controle.
- O Batman... - Sarah começou, a hesitação na voz, mas Chuck a interrompeu.
-Não, não podemos confiar nele agora, não sei o que se passa na cabeça dele, mas uma coisa é clara, ele não está mais agindo com lógica, está pessoalmente envolvido.
-Você sabe que ele ainda é o nosso maior trunfo para resolver isso - suspirou a agente - o que vamos fazer então ?
Chuck passou uma mão pelo rosto, sentindo o peso da responsabilidade apertar em seus ombros. O que fazer? Ele sabia que a situação estava prestes a sair de controle, e a última coisa que ele queria era fazer mais um movimento errado. Batman ou não, eles estavam lidando com forças muito além do que eles podiam controlar.
-Eu sei, que ele ainda é nosso trunfo, mas você viu o que aconteceu quando ele ficou pessoalmente envolvido com o Coringa? - Chuck disse, sua voz carregada de frustração - ele já perdeu tudo.
-Então o que vamos fazer? Ficar de braços cruzados ? - perguntou a agente Essen - eu sei que você não simpatiza com o Coringa, eu também não gosto dele, mas se o Batman chegar até Matthew…eu…eu temo que ele vai matar todo mundo.
-Batman não é um assassino - falou o tenente, seu tom era firme, mais para si mesmo do que para a agente.
Ele sabia o que Sarah queria dizer, mas não queria admitir que suas palavras faziam sentido. Bruce já havia ultrapassado muitos limites. Mas esse era um passo muito grande.
-Talvez não seja ainda ... - Sarah murmurou, mais para si mesma do que para Chuck. Ela sabia que o Batman tinha princípios, que ele nunca se permitira ir tão longe, mas com tudo o que estava acontecendo, ela não estava tão certa disso. Chuck olhou fixamente para o quadro branco, as conexões entre os nomes e os eventos começando a se embaralhar de maneira ameaçadora.
-Se o Batman chegar até Matthew... - Sarah continuou, ainda tentando encontrar uma solução, antes de fazer uma pequena pausa - ...não podemos deixar que isso se torne uma guerra pessoal, Batman precisa de ajuda, e por mais que não gostemos do Coringa, ele também precisa de ajuda.
-Você não precisa me lembrar disso - falou o tenente com um tom de desgosto, refletindo sobre as palavras de Sarah. Ele estava cansado da guerra interna entre o que era certo e o que precisava ser feito.
-Não vou questionar suas ordens, Chuck - falou Sarah depois de um tempo em silêncio - mas não sei se deixar o Batman no escuro é sábio nessa altura do campeonato.
Chuck suspirou, a tensão nos ombros visível. Ele sabia que Sarah estava certa, mas a situação estava muito além de qualquer controle racional. Ele sentia que estava navegando por um campo minado, e cada decisão poderia ser a última.
-Eu sei o que você quer dizer - Chuck começou, mais cansado do que gostaria de admitir - eu não gosto de admitir que as coisas seriam bem mais fáceis se Jim ainda estivesse aqui.
Sarah o observava, seu olhar sincero, mas também preocupado. As peças se moviam rapidamente, e o relógio estava correndo. Ela ficou em silêncio por um momento, processando as palavras de Chuck. A polícia não tinha os recursos necessários, e ela sabia que uma ação drástica precisava ser tomada, mas qual seria? Ela também sentia o peso da falta do ex-comissário. Gordon já teria encontrado uma forma de contornar isso.
Chuck permaneceu diante do quadro branco, suas mãos apertadas nas bordas da mesa, enquanto seu olhar fixava-se nas linhas e setas que agora pareciam mais ameaçadoras do que nunca. Ele não sabia como, mas precisava encontrar uma maneira de resolver esse caso.
Sarah observou o tenente por mais um momento antes de quebrar o silêncio.
-Você acha que Jim teria encontrado uma maneira de lidar com isso? – a pergunta pairou no ar, quase como um eco da dor que ambos sentiam pela perda do ex-comissário. Chuck não respondeu de imediato, sua mente revivendo as conversas e decisões que Jim tomou ao longo dos anos. Gordon sempre soube como lidar com a sombra de Gotham, entender o que estava em jogo e fazer as escolhas difíceis. Mas, com ele fora de cena, Chuck sentia-se perdido.
-Jim sabia como agir quando ninguém mais sabia o que fazer - Chuck falou lentamente, a voz carregada de frustração - ele não teria hesitado em tomar a decisão difícil, ele sabia o que era necessário para proteger a cidade, eu não tenho essa certeza agora.
Sarah deu um passo à frente, seu tom mais firme, determinado.
-Então, o que você vai fazer? - perguntou ela, os olhos fixos nele, desafiando-o a encontrar uma solução.
-Eu vou dar um jeito - entoou o tenente - mas preciso te pedir uma coisa.
-O que ? - perguntou a agente.
Chuck respirou fundo, seu olhar ainda fixo nas conexões no quadro branco, como se elas guardassem a resposta para o que precisava ser feito. Ele sabia que o momento exigia ação, e que a linha entre o certo e o errado estava se tornando cada vez mais tênue.
-Eu preciso que você mantenha os olhos em Rise - disse ele, sua voz mais grave agora -e u preciso entender tudo sobre ele, como ele se conectou com Matthew, o que ele sabe sobre o passado dele... tudo, a partir daí, poderemos determinar o que fazer a seguir.
Sarah assentiu rapidamente, o senso de urgência claro em seu rosto.
-E quanto ao Batman? - ela perguntou, sem hesitar, sabendo que a pergunta estava prestes a colocar tudo em risco.
Chuck ficou em silêncio por um momento, refletindo. Ele não queria envolver Batman diretamente, mas sabia que não podia deixar de considerar as possíveis consequências de não agir. Ele virou-se para Sarah, o semblante determinado, mas com um toque de cansaço nos olhos.
-Vamos continuar monitorando ele de longe - falou o tenente - eu não posso deixar Gotham se afundar mais nessa guerra pessoal entre eles, isso pode acabar em um desastre, e eu não vou ser responsável por mais vidas perdidas.
Sarah observou-o com uma expressão mais séria, seus olhos analisando cada palavra de Chuck. Ela sabia que ele estava tomando uma decisão arriscada, mas também compreendia que ele sentia a pressão de estar no comando.
-E Castro ? - perguntou a agente depois de um momento em silêncio.
-Ainda não vamos dizer nada a ele - falou o tenente - ainda tenho que pensar no que fazer.
Chuck sabia que não podia esconder por muito tempo do atual comissário, mas alguma coisa em Castro o deixava com um pé atrás. Sarah não disse nada de imediato, mas o desconforto estava evidente em sua expressão. Ela sabia que Castro não era uma pessoa totalmente confiável, algo em sua postura sempre parecia estar fora de lugar, como se tivesse algo a esconder. E, no meio dessa confusão toda, Chuck não queria que ele fosse mais um risco.
-Eu entendo - Sarah respondeu, finalmente, a tensão em sua voz dissipando-se um pouco - mas, Chuck, você tem certeza de que pode manter tudo isso sob controle? Os riscos estão aumentando, e a pressão só vai crescer.
Chuck a olhou, a preocupação refletida em seus olhos. Ele sabia o que estava em jogo, e a incerteza estava começando a consumir cada decisão que tomava. A cidade, mais uma vez, estava à beira de um abismo, e ele não sabia se conseguia impedir a queda.
-Não tenho certeza de nada mais, Sarah - respondeu Chuck.
Depois de um momento de reflexão, Chuck se sentou novamente à mesa, seus dedos tocando levemente as conexões no quadro. As peças ainda estavam soltas, mas ele sentia que algo estava prestes a se encaixar. Mas o quê? E, mais importante, será que ele ainda poderia salvar Gotham do abismo?
A porta se fechou suavemente atrás de Sarah quando ela saiu da sala, e Chuck ficou sozinho, mais uma vez, confrontado com as escolhas que teria que fazer. A linha entre o certo e o errado estava se estreitando, e, no fundo, ele sabia que nenhum deles sairia ileso.
—----------
A atmosfera no apartamento estava tensa. Quando Andy voltou, a tensão no apartamento era ainda mais palpável. Ele carregava uma sacola de suprimentos nas mãos, mas parou ao ver Sam sentado no sofá, a cabeça baixa e os ombros tensos. Andy franziu o cenho, colocando a sacola na mesa e se aproximando.
-O que aconteceu? - perguntou ele, a voz firme, mas com um toque de preocupação.
-Nada - respondeu Sam, seco, sem levantar os olhos.
Sam odiava a sensação de impotência que sentia sempre que ficava sozinho com o Coringa. O louco não precisava de liberdade física para exercer controle. Ele sabia exatamente como mexer com a cabeça das pessoas, como virar seus pensamentos contra elas. E, pior, havia um grão de verdade em tudo o que ele disse. Um grão que Sam preferia nunca ter reconhecido.
Andy não era estúpido. Ele percebeu imediatamente que algo estava errado. Ele se sentou na poltrona à frente de Sam, inclinando-se para frente, os olhos fixos no amigo. O ex-psiquiatra estreitou os olhos, mas manteve o tom calmo.
-Eu te avisei para não entrar no jogo dele - entoou Andy, seu tom calmo - ele vai tentar te manipular.
-Mais do que você já está ? - pergunta o outro homem levantando os olhos com uma intensidade velada.
Andy inclinou-se ligeiramente para trás, os olhos fixos nos de Sam, avaliando cada nuance da pergunta. A acusação implícita pairava no ar, carregada de peso. O ex-psiquiatra cruzou os braços, mantendo a compostura, mas sua expressão endureceu.
-Isso é o que você acha? - perguntou Andy, a voz ainda calma, mas com um tom cortante - que estou te manipulando?
Sam deu uma risada curta, amarga. Ele se levantou do sofá, passando as mãos pelo cabelo em um gesto que denunciava sua frustração.
-Talvez você não esteja fazendo de propósito - começou ele, caminhando de um lado para o outro - mas tudo o que você faz, toda essa obsessão com o Coringa, com Annie…você já parou para pensar no que isso está fazendo comigo, Andy? Ou você só vê o que importa para você?
O ex-psiquiatra permaneceu sentado, observando o amigo como se estivesse analisando cada palavra, cada movimento. Ele esperou até que Sam parasse de andar e finalmente o encarasse antes de falar:
-Você não está sendo justo comigo.
-Annie está morta - falou Sam fazendo uma pausa, deixando as palavras amadurecerem no ar antes de continuar - não importa o que você faça, ela não vai voltar, isso que você está fazendo agora…iss-
Sam foi interrompido pelo ex-psiquiatra que entoou em um tom cortante e sério:
-Isso é sobre Annie? É disso que se trata?
O outro homem o encarou, a raiva fervendo sob a superfície. Sam não queria admitir, mas era exatamente sobre isso. O Coringa tinha cavado fundo, e agora tudo estava vindo à tona.
-Eu não falhei com ela! - gritou Sam de repente, sua voz ecoando pelo apartamento.
Andy parou, as palavras de Sam reverberando no silêncio que se seguiu. Sam estava ofegante, seus punhos cerrados ao lado do corpo enquanto encarava o amigo. A dor em sua voz era inconfundível, mas Andy não recuou.
O silêncio que se estendeu era denso, pesado como uma bigorna. Ele foi interrompido por um som metálico vindo do banheiro.
-Eu odeio interromper - gritou o palhaço do banheiro, sua voz pingando sarcasmo - mas vocês dois são melhores que qualquer novela que já vi!
Sam olhou para Andy, sua raiva começando a dar lugar a algo mais profundo. Ele sentiu as paredes que havia construído ao redor de suas emoções começarem a rachar, e isso o aterrorizava. Ele a amava, era um amor que ele nunca se permitiu sentir. Ele escolheu deixar oculto.
Sam desviou o olhar, tentando esconder a onda de emoção que ameaçava transbordar. Ele não queria admitir o que sentia, nem para Andy, nem para si mesmo. Mas as palavras do Coringa, o peso das acusações veladas, e a presença sufocante de Andy estavam se acumulando dentro dele como uma tempestade prestes a explodir.
O ex-psiquiatra não tirava os olhos de Sam. Ele viu algo mudar na expressão do amigo, algo que ele não podia ignorar. Sam estava se segurando, mas Andy sabia como era quando a culpa e a dor começavam a corroer alguém por dentro. Ele mesmo já havia passado por isso.
-Você amava ela - disse Andy, sua voz baixa, mas afiada como uma faca.
As palavras pairaram no ar, cortando o silêncio como vidro estilhaçado. Os ombros de Sam estavam tensos, os punhos cerrados ao lado do corpo. Ele sentiu como se o chão tivesse sumido debaixo de seus pés.
-Não comece com isso, Andy - respondeu Sam, a voz tremendo levemente, mas com um tom de aviso.
-É por isso que você está tão preso nisso - continuou Andy, ignorando o aviso - porque você sente que falhou com ela, porque acha que, se fosse você no meu lugar, ela ainda estaria viva.
-Você não sabe de nada - retrucou Sam, virando-se abruptamente para encarar o ex-psiquiatra. Sua expressão era uma mistura de raiva e dor - não ouse colocar palavras na minha boca.
-Você acha que eu a roubei de você - constatou o Andy com um tom neutro.
Sam congelou. As palavras de Andy atingiram-no como um soco. Ele abriu a boca para responder, mas nada saiu. O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável, preenchido apenas pelo som distante do trânsito de Gotham e o barulho ocasional de correntes vindo do banheiro.
Andy permaneceu imóvel, os olhos fixos em Sam, estudando cada pequena mudança em sua expressão. Não havia raiva em sua voz, apenas uma clareza fria, como se ele estivesse colocando as peças de um quebra-cabeça no lugar.
-Você nunca disse isso em voz alta, mas está escrito em você - continuou Andy, sua voz ainda controlada - você acha que, se eu não tivesse entrado na vida dela, você teria sido o escolhido.
Sam deu um passo para trás, balançando a cabeça em negação, mas suas mãos trêmulas traíam sua resistência. Ele não queria ouvir isso, não queria sequer considerar a ideia. Mas Andy havia dito em voz alta o que ele temia confrontar.
-Não é assim tão simples - murmurou Sam, sua voz um sussurro rouco - não foi isso que aconteceu.
-Não foi? - perguntou Andy, inclinando-se para frente, os olhos estreitados - então por que você está tão irritado comigo? Acha que a morte dela foi minha culpa?
Sam apertou os punhos, sua frustração fervendo sob a superfície. Ele sentiu como se fosse explodir. Ele sabia que o ex-psiquiatra estava certo, mas isso não tornava as coisas mais fáceis de engolir. Ele desviou o olhar, incapaz de encarar o amigo. Ele culpava Andy, o culpava por não ter sido capaz de salvá-la, de impedir que ela tirasse a própria vida depois do que aconteceu com o Coringa.
O silêncio no apartamento parecia ganhar peso, crescendo em intensidade com cada respiração tensa de Sam. Andy observava, o olhar penetrante, enquanto as palavras não ditas pairavam entre eles como uma barreira invisível.
-Você acha que, se fosse você ao lado dela, tudo teria sido diferente, mas você não sabe disso - continuou Andy, suas palavras cortando como uma lâmina afiada - você acha que eu não carrego isso comigo todos os dias? Acha que eu não penso em todas as maneiras como eu poderia ter feito diferente?
As palavras de Andy atingiram Sam com força, mas ele não recuou. Em vez disso, a raiva em seus olhos apenas aumentou.
-Você a amava tanto que a deixou morrer - falou Sam em um tom frio - ela precisou do seu apoio, mas você não foi o suficiente para salvá-la, você não a amava tanto quanto eu.
Sam queria continuar a discussão, mas sentia que não havia mais o que dizer. A dor em seu peito era sufocante, e ele sabia que não era apenas culpa de Andy. Parte disso era dele também. Ele nunca havia tido a coragem de dizer a Annie como se sentia, e agora era tarde demais.
Andy permaneceu imóvel, as palavras de Sam ricocheteando dentro dele como estilhaços. Ele segurou o impulso de reagir imediatamente, sua mente girando enquanto tentava processar a acusação. O silêncio que se seguiu foi quase insuportável, carregado de tensão e emoções à beira de transbordar.
Quando ele finalmente falou, sua voz era baixa, mas carregada de intensidade:
-Você não tem ideia do que está dizendo - Andy murmurou, os olhos fixos em Sam - eu estava lá, eu vi o que ela passou, eu enfrentei aquilo com ela.
Sam congelou, mas a raiva em seu olhar não diminuiu. Ele abriu a boca para responder, mas Andy continuou, sua voz subindo levemente de tom:
-Você a amava? Claro, mas você nunca esteve lá, nunca foi quem ela chamou quando tudo desabou, e sabe por quê? Porque você nem mesmo a deixou saber como se sentia, você se escondeu, Sam.
As palavras eram como golpes, cada uma desferida com precisão. Sam deu um passo para trás, mas a raiva em seus olhos foi substituída por algo mais profundo, dor.
-Eu a teria salvado - ele disse, sua voz quase um sussurro - se fosse eu no seu lugar, eu a teria salvado.
Do banheiro, a voz arrastada e debochada do Coringa interrompeu novamente o momento.
-Ah, essa discussão é tão linda... quase me faz acreditar no amor verdadeiro - ele gritou, gargalhando em seguida - continuem, por favor, estou quase chorando aqui, eu adoro uma história trágica de amor.
Andy fechou os olhos por um momento, respirando fundo para controlar a raiva que borbulhava dentro dele. Ele se levantou, encarando o banheiro com os olhos frios.
-Cala a boca, ou eu calo você - disse ele, sua voz baixa, mas carregada de ameaça.
-Acho que nós precisamos de terapia rapazes - zombou o palhaço do banheiro - todos nós tivemos nossos pobres coraçõezinhos despedaçados.
-Você não tem um coração - retrucou Andy.
O ex-terrorista soltou uma gargalhada maníaca do banheiro, sua risada ecoando pelo apartamento de uma maneira desconcertante, como se estivesse aproveitando a tensão da situação
Andy se manteve firme, os olhos fixos em Sam, mas dentro dele, a batalha estava apenas começando. Ele sabia o quanto as palavras do Coringa podiam se infiltrar na mente de alguém, distorcendo a realidade, criando confusão. Mas também sabia que Sam tinha razão em desconfiar dele. Havia uma conexão entre ele e o Coringa que ele não podia negar, algo que parecia cada vez mais difícil de explicar.
-Sabe, Sammy - começou o louco, sua voz mais suave - eu sei como você se sente, eu também perdi um grande amor, uma tragédia shakespeariana, com tudo que tem direito, talvez a gente não seja tão diferente.
Sam congelou, os olhos se estreitando em uma mistura de confusão e repulsa ao ouvir as palavras do Coringa. O tom dele, suavizado e carregado de uma familiaridade mórbida. O Coringa estava tentando manipular.
-Cala a boca, Coringa - interveio Andy, sua voz carregada de raiva velada.
Sam sentiu o estômago revirar ao ouvir as palavras do Coringa. A maneira como ele falava, como se compartilhando uma dor similar, só fazia a situação ainda mais insuportável. O tom de familiaridade mórbida que o Coringa usava para falar sobre o que ele mesmo chamava de "amor" era um veneno disfarçado, e Sam não queria cair na armadilha emocional do palhaço.
-O que você sabe sobre amor, Coringa? - Sam perguntou, a voz dura e cínica - o que você sabe sobre dor, sobre perder alguém de verdade? Não tente me manipular com esse sentimentalismo barato, seu maldito sociopata.
-Eu sei como se sente vazio - continuou o ex-terrorista por trás da porta, ainda acorrentado no banheiro, como se Sam não tivesse o chamado de sociopata - também tenho meus calos, e Jack…não sei se o odeio mais por me ter me machucado, ou se, em algum nível bizarro, ainda sinto falta dele, o amor às vezes não termina com a morte
O silêncio que se seguiu foi opressor, como se as palavras do Coringa tivessem tirado o ar do ambiente. Sam olhou para Andy, mas o ex-psiquiatra desviou o olhar, seus olhos carregados de algo que Sam não conseguia identificar. Havia uma mistura de raiva, vergonha e talvez... reconhecimento.
Andy finalmente quebrou o silêncio, sua voz baixa, mas afiada:
-Você está vendo o que ele está tentando fazer? Ele está tentando entrar na sua cabeça, jogar você contra mim, nos dividir.
-Mas ele está certo sobre uma coisa - começou Sam, lentamente, como se medisse cada palavra - você não está sendo completamente honesto comigo.
Andy ficou em silêncio, os olhos fixos em Sam. Ele podia sentir a fratura crescente na confiança entre eles, uma rachadura que o Coringa estava forçando a abrir. Andy respirou fundo antes de falar, sua voz mais controlada:
-Você está deixando ele usar o que você sente para te controlar.
Sam apertou os punhos, mas antes que pudesse responder, o Coringa voltou a falar, sua voz carregada de zombaria:
-Meu Deus, vocês dois... isso está ficando muito intenso para mim - disse ele, gargalhando - quem diria que eu acabaria sendo o terapeuta do grupo?
Andy fechou os olhos, respirando fundo para manter a compostura. Ele sabia que o Coringa estava observando, esperando por uma oportunidade de jogar mais lenha na fogueira.
-Quem é Jack? - perguntou Sam.
-Jack era... especial - começou o palhaço, sua voz assumindo um tom quase nostálgico - um soldado, um mentiroso, um traidor, e por um breve momento, o amor da minha vida, enfim…o que eu quero dizer Sammy, é que sei como se sente, sei que está com raiva.
-Você é o maior culpado em tudo isso - comentou Sam, rosnando, seu tom coberto de raiva contida.
-Não foi nada pessoal, eu já te disse - falou o palhaço - eu não a joguei no abismo, apenas…a levei para a borda e disse para ela encará-lo, não foi minha culpa que o vazio do abismo a olhou de volta e, nosso querido Andy aqui, não foi forte o bastante para impedi-la de pular.
O silêncio que se seguiu às palavras do Coringa foi quase ensurdecedor. A tensão no apartamento tornou-se sufocante, como se cada respiração precisasse ser arrancada à força do ar pesado. Sam cerrou os punhos com tanta força que as articulações ficaram brancas, seus olhos queimando de raiva enquanto encarava Andy.
Andy ficou parado, sua expressão sombria. As palavras do Coringa ecoavam em sua mente, cada uma cortando como uma lâmina afiada. Ele sabia que Sam estava se alimentando da raiva, que o Coringa estava manipulando a situação para maximizar o caos. Mas, naquele momento, nada que ele pudesse dizer pareceria suficiente.
-Eu fiz o que pude - respondeu Andy, sua voz controlada, mas com uma dor latente - você acha que não tentei? Você acha que não lutei por ela todos os dias?
-Tentou, mas falhou - disparou Sam, sua voz se quebrando com a intensidade da emoção - ela precisava de alguém que não a deixasse cair, e você não foi esse alguém.
O apartamento parecia prestes a explodir. A tensão que pairava no ar era quase palpável, e a voz do Coringa, mesmo quando silenciosa, parecia preencher os espaços entre as palavras de Sam e Andy, como uma presença invisível mas inegável. Andy fechou os olhos por um momento, respirando fundo, tentando encontrar algo que pudesse dizer para quebrar a espiral de acusações e manipulações.
-Sam... - começou ele, sua voz mais baixa, mais contida, mas antes que pudesse continuar, Sam avançou um passo, interrompendo-o.
-Não me diga que isso não é culpa sua - disparou Sam, sua voz carregada de frustração e dor - você estava lá, você deveria ter sido mais forte, mais rápido, mais... mais qualquer coisa!
Andy apertou as mãos em punhos ao lado do corpo, lutando para não entrar na armadilha. Ele sabia que o Coringa estava usando cada palavra para jogar Sam contra ele, para corroer o que restava de confiança entre eles. Mas Sam, movido pela raiva e pela dor, estava prestes a explodir.
-Ele está mentindo - disse Andy, sua voz firme enquanto encarava Sam - você sabe disso, ele é um manipulador.
O ex-psiquiatra tentou avançar, tentou alcançar o amigo com palavras, mas o palhaço interrompeu novamente, sua risada ecoando pelo apartamento.
-Olhem só para vocês dois, brigando como cães famintos por um osso que já virou pó - disse ele, zombando - Annie não está mais aqui, e sabem por quê? Porque vocês dois nunca a entenderam de verdade, nem Andy, o amante fracassado, nem Sam, o apaixonado silencioso…bem, talvez eu entendesse mais a pobre Annie do que vocês, sabe, dizem que os suicidas se entendem bem.
As palavras do Coringa caíram como pedras no apartamento. Sam congelou, sua respiração tornando-se irregular enquanto seus punhos cerrados tremiam ao lado do corpo. Andy ficou rígido, os olhos estreitados e a mandíbula tensa, tentando controlar a onda de raiva que ameaçava transbordar.
-Você não sabe nada sobre ela ! Cala a boca seu verme ! - rosnou Sam, virando-se abruptamente e avançou em direção à porta do banheiro, suas mãos tremendo enquanto lutava para controlar a fúria que ameaçava consumi-lo. Andy se moveu rapidamente, agarrando o braço de Sam antes que ele pudesse fazer algo impulsivo.
-Sam, não - disse Andy, sua voz firme - não faça nada.
Sam olhou para o ex-psiquiatra, seus olhos cheios de uma mistura de raiva e confusão. Ele queria gritar, queria socar algo, queria que a dor e a culpa que o consumiam desaparecessem.
-Eu vou quebrar as pernas desse maluco - rosnou Sam, tentando controlar a raiva.
-Ele gosta de apanhar, você só vai dar a ele o que ele quer - falou Andy.
Sam respirava com dificuldade, seu corpo rígido enquanto lutava contra os impulsos que o incitavam a agir. Ele olhou para a porta do banheiro, onde o som da respiração ruidosa do Coringa podia ser ouvido, misturado com a risada suave e zombeteira que ecoava como um desafio.
-Você acha que eu vou simplesmente ficar aqui enquanto ele continua dizendo essas coisas? - perguntou Sam, sua voz baixa, mas cheia de veneno.
-Você vai - falou o ex-psiquiatra, seu tom frio - porque se você fizer isso eu vou ter que te amarrar também.
Andy segurava o braço de Sam com força suficiente para transmitir sua determinação, mas sem a brutalidade que poderia desencadear uma reação ainda pior. Ele sabia que o controle da situação estava pendurado por um fio, e aquele momento poderia determinar se eles continuariam como aliados ou se tudo desmoronaria.
-Você está me dizendo que vai proteger ele? - Sam perguntou, sua voz baixa e carregada de algo perigoso.
Andy permaneceu firme, mas havia algo quase imperceptível em sua expressão, uma sombra que Sam reconheceu como dúvida, ou talvez algo ainda mais perturbador. Ele não respondeu imediatamente, o que só aumentou a tensão.
O ex-psiquiatra respirou fundo, tentando manter a calma, mas a acusação de Sam havia atingido um nervo exposto. Ele olhou para o amigo, seus olhos agora carregados de uma intensidade que quase beirava o desespero.
-Você acha que eu não odeio ele? - perguntou Andy, sua voz tremendo levemente. - Você acha que eu não acordo todos os dias com o peso do que ele fez? Com o peso do que eu não consegui evitar ?
-Sim, você odeia - disse Sam, sua voz agora mais controlada, mas ainda carregada de veneno - mas você também... precisa dele, e isso é o que me assusta, essa sua obsessão em continuar jogando esse jogo mórbido com ele.
-Não estou jogando - retrucou Andy - o jogo acabou, não houve vencedor.
A tensão entre os dois estava insuportável. Sam sentiu o nó na garganta apertar enquanto ouvia as palavras de Andy. Ele sabia que o ex-psiquiatra estava falando a verdade, e isso o fez se sentir ainda mais impotente. O que havia entre Andy e o Coringa, essa ligação tortuosa, era algo que ele não poderia compreender. Não importava o quanto ele tentasse. Não era mais uma questão de vingança.
A risada do Coringa reverberou pelo apartamento, mais cruel do que nunca, como um veneno, se espalhando no ar.
-Vamos parar com a choradeira - zombou o louco do banheiro, seu tom ácido - estou ficando deprimido.
O palhaço estava ali, presente de forma irônica e perturbadora, como uma sombra que se esticava, envolvendo cada palavra trocada entre Andy e Sam. O apartamento parecia ter diminuído, como se os espaços estivessem se contraindo ao redor deles.
Sam olhou para a porta do banheiro, os músculos tensos e os punhos novamente cerrados, sentindo uma raiva pura e bruta correndo em suas veias. O Coringa, com sua zombaria, era como um combustível para sua fúria, mas ele sabia, no fundo, que esse jogo não levaria a nada além de mais dor. Ainda assim, algo dentro dele gritava para destruir aquele ser.
-Você está me dizendo que ele é mais importante que nossa amizade? - Sam perguntou, sua voz baixa, mas com uma clareza perigosa. Ele deu um passo à frente, desafiando Andy com o olhar - estamos quase nos matando aqui, esse maluco se diverte com isso, e eu não posso nem quebrar a cara dele ?
Sam estava à beira de um colapso, seu olhar cheio de fúria e frustração. Andy, por outro lado, sentia a tensão esmagadora do momento, tentando desesperadamente controlar não apenas a situação, mas seus próprios sentimentos conflitantes. Ele odiava o Coringa, mas ao mesmo tempo, uma parte de si não conseguia negar que estava preso nesse jogo psicológico, como um rato na armadilha que o palhaço havia armado.
Sam deu outro passo em direção à porta do banheiro, sua raiva agora transbordando.
-Eu não aguento mais isso, Andy - disse ele, sua voz quebrando, mas a determinação ainda lá - se você não vai fazer nada, eu vou acabar com ele, ele está jogando com a gente, e você ainda está aqui, tentando proteger esse monstro.
Andy respirou fundo, tentando manter o controle. Cada palavra de Sam o atingia como uma faca. Ele sabia que, no fundo, Sam tinha razão. Eles estavam se matando psicologicamente enquanto o Coringa ria de tudo aquilo. Mas Andy sabia, de alguma forma, que permitir que Sam caísse na violência só aumentaria o controle que o Coringa tinha sobre eles.
O ex-terrorista, do outro lado da porta, riu ainda mais alto, sua voz sarcástica reverberando no ambiente.
-Olhem só, pessoal, um pouco de drama, isso é exatamente o que eu estava esperando - zombou o louco, suas palavras embebidas em veneno - vamos lá, Sam, faça o que precisa fazer, acho que Annie merece que você a vingue, Andy deixe o garoto brincar, não seja hipócrita, você mesmo já descontou suas frustrações, mesmo que de forma…menos ortodoxa.
-Cala a boca - rosnou Andy em direção a porta - juro por deus, se você não parar eu vou costurar a sua boca.
O louco riu desdenhoso e mexeu as correntes, o som metálico se alastrando pelo apartamento, antes de dizer:
-Isso não faz o seu tipo, meu querido, mas é realmente cômico, Sammy quer me bater e você quer me beijar, o que vai ser ?
Andy fechou os olhos com força, sentindo o peso da manipulação do Coringa em cada palavra. A provocação estava clara, mas não podia deixar que isso os afastasse ainda mais. Sam, por outro lado, não parecia mais ouvir nada além da voz do Coringa. A raiva estava tão profunda que ele não conseguia ver o que estava em jogo. Ele deu mais um passo em direção à porta do banheiro, sua raiva borbulhando sem controle. No entanto, o ex-psiquiatra o segurou com força pelos braços o empurrando para trás.
-Sam, eu disse não - falou Andy, seu tom autoritário - não vamos jogar esse jogo com ele.
O outro homem, tomado pela fúria, se virou de novo para Andy, seus olhos ardendo com uma raiva cega.
-Você vai deixar ele continuar assim? - gritou Sam, a voz quase rouca de tanta raiva reprimida - você acha que pode proteger ele de mim? Porque eu vou estourar a cabeça desse cara, e não vai ser no tiro.
Andy sentiu o peso daquelas palavras, ele olhou para o amigo, tentando encontrar uma forma de acalmá-lo, de impedir que tudo fosse ainda mais longe. Mas sabia que não podia fazer isso de uma maneira simples. A tensão estava demais, o Coringa estava minando tudo ao seu redor. Ele respirou fundo, as palavras de Sam e as provocações do palhaço se chocando em sua mente.
O ex-psiquiatra sabia o que o louco estava querendo fazer. O Coringa tentou colocar Sam contra Andy, fazendo-o sair como culpado com todo o negócio de Annie, mas não conseguiu como queria, e agora, o palhaço estava incitando a raiva em Sam, raiva contra o próprio Coringa. Uma tentativa de se aproveitar dos sentimentos distorcidos que Andy tem por ele. O ex-terrorista quer colocar um contra o outro. Andy sentiu o peso da manipulação do Coringa penetrando cada vez mais fundo.
Sam, com os punhos cerrados, quase rosnando, continuava a olhar para Andy, sua respiração irregular, o ódio queimando em seu peito. Ele sentia o gosto da raiva em sua boca, o desejo de ver aquele maldito sofrer, ser reduzido a nada, e Andy estava ali, impedindo-o de alcançar isso. O ex-psiquiatra, por sua vez, sabia que ceder à violência era exatamente o que o Coringa queria. Cada provocação, cada risada que ecoava através das paredes, era um fio puxando-os para uma espiral de destruição mútua.
-Eu não conheço mais você - disse Sam por fim, sua voz era neutra, tentando mascarar tudo que ele estava sentindo.
Com essas palavras, Sam pegou seu casaco no sofá e saiu do apartamento, batendo a porta ao sair.
-Que belo teatrinho, hein? - disse o Coringa com sarcasmo, a voz estalando com uma risada maliciosa no silêncio do apartamento.
Andy ficou em silêncio por um momento, olhando para a porta onde o amigo saiu. Ele não sabia se Sam voltaria. O ex-psiquiatra lentamente foi até a porta do banheiro, abrindo-a para encarar o ex-terrorista com um suspiro.
-Você quer um café ?
-Você vai me drogar ? - riu o louco antes de passar a língua no lábio inferior.
-Não - falou Andy em um tom monótono - não que acredite em mim, nem sei porque pergunto.
-Você está começando a aprender Andy - zombou o palhaço com um bufo - aliás, você acabou de falar que iria costurar minha boca, não espere que eu te veja do mesmo jeito depois disso.
-Você quer café ou não ? - suspirou o ex-psiquiatra - você podia facilitar e comer alguma coisa também, eu não quero ter que te alimentar a força ou de forma intravenosa.
-Como você é fofo - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios - eu até cairia nesse papo de bom moço se não te conhecesse tão bem.
-Eu não sou o seu brinquedo, Coringa - respondeu Andy com uma voz tensa, mas controlada - não tente me manipular de novo, você me conhece... mas eu também conheço você.
O Coringa riu, aquele som ácido que parecia atravessar a espinha de qualquer um que o ouvisse. Andy sentiu um frio percorrer sua espinha, a provocação do Coringa ainda ecoando em sua mente. O palhaço sabia exatamente como mexer com ele, como virar a chave para que ele se sentisse desconfortável, e isso o deixava mais tenso do que gostaria de admitir.
-Então…você quer brincar? - desafiou o louco lambendo o lábio inferior - meio tarde para uma segunda rodada, mas quem sou eu para negar, humm ? Temos algum tempo para tentar destruir a cabeça um do outro, até que…bem, até que o meu morcego apareça, porque você sabe que ele virá.
-Eu não tenho medo do Batman - falou o ex-psiquiatra, seu tom neutro - e não fale comigo como seu eu fosse um amador nesse jogo… por baixo de toda essa bravata que você cuspe, você tem medo do que eu posso fazer com você.
O ex-terrorista ficou em silêncio por um instante, como se ponderasse sobre as palavras de Andy. O sorriso malicioso não desapareceu, mas algo sutil mudou em seu olhar, como se ele estivesse tentando entender até onde poderia ir. Ele sabia que Andy não era um amador. O Coringa sabia de sua atual desvantagem.
-Eu vou aceitar o café - bufou o louco no silêncio denso - considere uma trégua temporária.
O palhaço observava o ex-psiquiatra, o sorriso cruel não deixando seus lábios, os olhos brilhando com uma diversão mórbida. Ele sempre estava no controle, ou pelo menos queria Andy acreditando que ele estava. Com esse pensamento, Andy saiu do banheiro para preparar o café.
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O relógio da delegacia marcava 21h45 da noite, e o som constante de papéis sendo virados e teclas sendo pressionadas preenchia o ambiente. Chuck estava debruçado sobre o quadro branco, ajustando as conexões entre os nomes com um marcador vermelho, tentando encontrar um padrão claro.
Na penumbra do escritório de Chuck, o silêncio era interrompido apenas pelo tic-tac do relógio, marcando a passagem de mais um dia de tensão na delegacia. O tenente estava sentado, os olhos fixos no quadro branco diante dele, as conexões traçadas no papel começando a formar uma narrativa perturbadora. O som de passos no corredor o tirou de seus pensamentos. Ele se levantou quando a porta se abriu.
Os olhos de Chuck se levantaram lentamente, encontrando a figura sombria parada na entrada da sala. Batman.
-Precisamos conversar, Chuck - disse o Cavaleiro das Trevas, sua voz baixa e carregada de autoridade.
O tenente colocou o marcador sobre a mesa e cruzou os braços, tentando esconder a tensão crescente.
-O que você quer? - perguntou ele, sua voz mais firme do que se sentia.
Batman deu um passo à frente, jogando um arquivo fino, mas bem organizado, sobre a mesa de Chuck.
-Samuel Rise - começou Batman, direto ao ponto - descobri esse nome associado ao passado de Matthew dias atrás, esse nome te diz alguma coisa ?
Chuck pegou o arquivo e o abriu. Dentro, havia mapas detalhados de uma região residencial da cidade. Havia marcações destacadas em vermelho, indicando locais específicos onde compras haviam sido feitas recentemente. Chuck olhou mais alguns momentos para o arquivo sobre a mesa. Ele sabia que a pergunta de Batman não era casual, e o peso em sua voz tornava claro que o vigilante já tinha algumas respostas, talvez mais do que estava deixando transparecer.
Chuck folheou as páginas lentamente, lendo o suficiente para confirmar o que já sabia da conexão de Samuel com Andy, mas não havia nada sobre Margareth.
-O nome apareceu na nossa investigação recentemente - respondeu o tenente, tentando manter a voz neutra - mas ainda estamos tentando entender a profundidade dessa conexão, é provável que não seja nada.
Batman inclinou a cabeça ligeiramente, o brilho de seus olhos sob a máscara parecendo perfurar o disfarce de neutralidade de Chuck.
-Você está mentindo - disse o morcego, sua voz grave e implacável - o que você descobriu ?
O tenente respirou fundo, tentando manter a compostura. Ele sabia que não poderia enganar o Batman, mas isso não significava que precisava entregar tudo de uma vez. Chuck se inclinou contra a mesa, cruzando os braços. Ele sabia que Batman tinha razão em parte, mas também sabia que o vigilante estava lidando com suas próprias motivações obscuras. Chuck respirou fundo, o peso do confronto pairando no ar. O Cavaleiro das Trevas não era conhecido por sua paciência, e o tenente sabia que estava pisando em terreno perigoso.
-Batman, nem tudo é tão simples quanto parece - começou Chuck, seu tom firme, mas levemente defensivo - sim, sabemos de Samuel Rise e sua conexão com Matthew, mas não sabemos muito mais do que isso.
O morcego permaneceu imóvel, a figura sombria e intimidante parecia um predador pronto para atacar. Sua voz cortou o silêncio como uma lâmina afiada:
-Sei que você está escondendo algo, Chuck.
O tenente apertou os lábios, lutando para manter o controle. Ele queria manter a delegacia fora dessa confusão o máximo possível, mas também sabia que o Bruce tinha o hábito infame de descobrir a verdade, independentemente das barreiras.
-Você quer saber o que sabemos? - Chuck disparou, sua voz mais forte agora - sabemos que Samuel Rise é um contrabandista com conexões obscuras, sabemos que ele esteve ligado a Andy antes de tudo isso começar, que estava ligado com Margareth Todd, a mãe adotiva do Capuz Vermelho, um mês antes da adoção do garoto.
-Tráfico Humano - constatou o morcego, como quem prevê sobre o que o tenente está falando.
-É o que achamos, pelo menos até agora.
O silêncio que se seguiu às palavras de Chuck foi quase ensurdecedor. Ambos sabiam o que isso significava, isso ligava tudo, ligava a nova investigação com o caso de Elliot no ano passado. O Contador de Histórias estava brincando. O silêncio que se seguiu foi carregado.
-Você precisa me deixar lidar com isso do meu jeito - disse Chuck, finalmente quebrando o silêncio, sua voz baixa - se você intervir agora, pode arruinar qualquer chance que temos de descobrir o que realmente está acontecendo.
-As atividade de Rise são entre 18h e 22h, em uma área de pouco mais de dois quilômetros - disse Batman, apontando para o mapa no arquivo, seu tom era duro - Rise têm padrões de movimentação que indicam que ele está se escondendo em algum lugar dentro desse perímetro, eu não vou esperar por você.
-Você não pode resolver tudo sozinho, Bruce - disse Chuck, finalmente - sem seus recursos, sem sua rede, você está sozinho, se arriscando mais do que nunca embarcando nessa investigação, você sabe com quem estamos lidando, o Contador de Histórias nos deu Jason porque sabia que íamos fazer essa conexão.
-Ele que não sabe com quem está lidando - rosnou o moreno sombriamente - o Contador de Histórias é com vocês, no momento eu só quero o paradeiro do Matthew Cole.
-Bruce... você está pessoalmente envolvido nisso - disse Chuck, tentando manter o tom firme, mas sem soar acusador - eu não sei se consigo confiar que você vai agir com clareza, não com... “ele” no meio disso.
A sombra do Coringa pairou sobre a conversa, mesmo sem ser mencionado diretamente. O silêncio que se seguiu foi denso. Batman não respondeu de imediato, mas quando o fez, sua voz era baixa, quase um sussurro.
Chuck sabia que Bruce estava se aproximando do limite, e que cada passo dado nessa investigação podia ser o último antes de tudo desabar. Mas, no fundo, Chuck também sabia que eles não tinham outra escolha. O tenente voltou sua atenção para o quadro branco, mas, desta vez, a escrita do nome “Matthew Cole” parecia encará-lo de volta, desafiando-o a encontrar uma saída para o quebra-cabeça.
Chuck olhou para o mapa, sentindo o peso da decisão que precisava tomar. Ele sabia que, se colaborasse com Bruce, isso poderia colocar em risco sua posição na delegacia. Mas também sabia que ignorar as informações do vigilante seria tolice.
-Está bem - disse o tenente, relutante - vamos focar nessa área que você demarcou, nós vamos destacar uma equipe para monitorar os arredores enquanto você faz o seu trabalho, se algo sair do controle, nós intervimos.
-Confio em mim mais do que em seus homens - retrucou Batman, seco.
-E eu confio em você menos do que confio neles - respondeu Chuck no mesmo tom.
-Vou manter contato - disse o morcego finalmente, antes de se virar e caminhar em direção à porta.
Quando ele estava prestes a sair, Chuck o chamou.
-Bruce - disse o tenente, sua voz mais baixa agora, quase hesitante.
Batman parou, mas não se virou. Havia muita tensão no ar, muitas desconfianças e coisas não ditas.
-Se você encontrar Rise antes de nós, traga-o vivo - disse o tenente - não importa o que ele tenha feito ou como isso te afete, ele precisa estar vivo para responder por tudo, o mesmo vale para Andy.
Bruce ficou em silêncio por um momento, antes de sair sem dizer mais nada. A porta se fechou suavemente atrás dele, deixando Chuck sozinho novamente no escritório, com o peso de mais um dia nas costas.
Notes:
Comentem para me deixar feliz, isso faz o meu dia :)
Chapter 22: The Gotham We Have (Parte 22)
Notes:
Voltei meu povo kkkkk. Não reperem os erros de português se encontrarem algum, é que eu realmente não tenho tempo de revisar. Enfim, primeiro capítulo do ano, com quase 9 mil palavras. E que seja um ano maravilhosoooo :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O vento frio de Gotham soprou pelas janelas quebradas do galpão, cortando o silêncio tenso entre Jason e Tim. A determinação nos olhos de Jason era inconfundível, mas Tim podia perceber que a raiva estava à espreita, pronta para explodir a qualquer momento. Ele sabia que Jason não era do tipo que confiava facilmente.
-Miranda Tate? - repetiu Tim, franzindo o cenho - e como você acha que vai encontrá-la? Gotham é uma cidade grande, e pelo que me disse, ela não parece ser o tipo que deixa rastros fáceis de seguir.
Jason apertou os punhos, claramente impaciente tentando controlar a onda de emoções que crescia em seu peito. Ele se virou para Tim, a expressão endurecida, mas a determinação brilhando nos olhos.
-Ela trouxe-me para cá - entoou o outro - Miranda é minha melhor chance, e eu não vou perder tempo discutindo sobre isso.
Tim suspirou, erguendo-se lentamente do chão. Ele tinha um olhar pensativo, como se ponderasse a melhor forma de abordar a situação.
-Tudo bem, mas…- continuou Tim - você sabe alguma coisa sobre ela?
Jason bufou, cruzando os braços olhando para o outro no galpão antes de entoar:
-Uma empresária, aparentemente, mas quando cheguei em Gotham, ela estava envolvida com gente perigosa, ela não me deu respostas antes, mas agora eu vou obrigá-la a falar, eu vou encontrá-la, não importa o que custe, eu só preciso de um lugar para começar.
Tim ficou em silêncio por alguns segundos, claramente processando a informação. Ele parecia prestes a fazer mais perguntas, mas resolveu mudar o tom.
-Bom, talvez eu conheça alguém que possa ajudar...o cara é meio estranho, mas acho que deve servir.
Jason arqueou uma sobrancelha, desconfiado.Ele novamente, não sabia muito bem onde estava pisando. O terreno parecia estar sempre instável.
-Alguém que podemos confiar? - perguntou Jason.
Tim deu de ombros, claramente se divertindo com a reação de Jason.
-O cara é meio sinistro - falou Tim ponderando suas palavras - tem hobbies bem peculiares, obcecado por padrões, quebra-cabeças, mistérios…esse tipo de coisa de maluco.
-E como você conhece alguém assim ? - questionou Jason.
-Eu te disse - ofereceu Tim com um sorriso presunçoso - o cara trabalha para o meu pai.
-Isso não quer dizer nada.
-Ok, gosto de sistemas de segurança e digamos que…bem, eu estava entediado - Tim começou a explicar - e resolvi mexer em um deles, mas era extremamente difícil de invadir, foi então que eu conheci esse cara, ele não está sempre na empresa, mas foi ele que programou o negócio, não foi difícil descobrir quando se é filho do dono.
-E daí ? - falou Jason - quem garante que ele vai nos ajudar ?
-Eu te falei, ele é o tipo de cara que adora um quebra-cabeça, ele não vai deixar isso passar, gente como Miranda Tate provavelmente seria um desafio irresistível.
-Parece mais um lunático do que alguém que pode me ajudar - bufou o outro adolescente revirando os olhos - não encontro uma pessoa normal nessa cidade…e onde podemos encontrar esse cara ?
-Eu não sei exatamente - falou Tim parando por um momento - ele deve ter uma identificação nos registros da empresa, não será difícil checar isso, mas preciso de acesso a rede de computadores da empresa do meu pai para isso.
Jason encarou Tim, os olhos estreitados, tentando decidir se o plano improvisado do outro garoto fazia sentido ou se era apenas mais uma desculpa para complicar as coisas. A menção de acessar os computadores da empresa soava como um problema à parte, mas o que ele realmente tinha a perder? A cada segundo que passava, parecia que Miranda Tate estava mais longe de seu alcance.
-Certo, mas como você planeja fazer isso? - perguntou Jason, cruzando os braços.
Tim deu um sorriso presunçoso, como se já tivesse a resposta preparada.
-Fácil - disse ele - a gente invade o escritório do meu pai.
Jason arqueou uma sobrancelha, cético, antes de dizer:
-Invadir o escritório do seu próprio pai? Isso não parece "fácil".
Tim deu de ombros despreocupado
-Para você, talvez - falou ele com um tom levemente monótono - para mim, é só uma terça-feira, e ele não está na cidade.
Jason fixava Tim com um olhar intenso, tentando medir a sinceridade por trás de suas palavras. Ele sabia que Gotham era um campo minado, e confiar em alguém errado poderia acabar com tudo antes mesmo de começar.
-Ok - falou Jason com um tom decidido.
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A madrugada caía sobre Gotham como um véu pesado. A chuva começava a bater contra as janelas enquanto o tenente folheava arquivos antigos, as páginas já amareladas de tantas mãos que as manusearam. A figura de Batman já havia desaparecido há horas, mas a presença dele ainda parecia pairar no ambiente.
Chuck estava na delegacia, uma constante em sua rotina. Ele sabia que precisava de ajuda, mas o peso de quem procurar para essa tarefa parecia esmagá-lo. Ele se inclinou contra a mesa, sentindo o peso da noite que ainda não havia terminado. A pressão crescia, e ele sabia que precisava de ajuda. Mas não de alguém dentro da delegacia. O tenente precisava de uma perspectiva externa. Ele não sabia mais o que fazer. Mas ele sabia alguém que saberia.
Pegando o telefone, ele hesitou por um momento antes de discar um número que não usava há meses. O toque soou algumas vezes antes de uma voz familiar atender, um pouco rouca, mas ainda firme.
-Chuck? - perguntou Jim Gordon do outro lado da linha, com um toque de surpresa e cansaço.
-É, sou eu - respondeu o tenente, tentando parecer mais calmo do que se sentia - Preciso falar com você, é sobre o caso do Contador de Histórias... e algumas outras coisas.
Houve uma pausa do outro lado. Quando Jim falou novamente, sua voz estava mais firme:
-Encontre-me na minha casa.
Minutos depois, o tenente estacionou em frente a uma casa modesta nos subúrbios de Gotham. A pintura da fachada estava desgastada, mas a luz na janela mostrava que alguém ainda habitava ali. Ele subiu os degraus com passos firmes, hesitando apenas por um momento antes de bater na porta.
A porta abriu lentamente, revelando Jim Gordon. O ex-comissário parecia mais velho do que Chuck se lembrava, a meses atrás, os olhos carregando o peso de uma vida inteira de batalhas travadas e perdidas.
-Entre, Chuck - disse Jim, abrindo espaço para ele passar.
A sala de estar era modesta, com móveis antigos e uma pilha de jornais em uma mesa ao lado de uma poltrona gasta. Mas algo se destacava: uma caneca de café colocada ao lado de um baralho de cartas embaralhado. Jim parecia estar no meio de um jogo solitário. Algo que o tenente sabia que vinha do ex-terrorista.
-Estou perdido, Jim - começou Chuck, sem rodeios - esse caso... o Contador de Histórias... tudo está interligado, mas não consigo juntar as peças, é muita coisa acontecendo, o Contador de Histórias está brincando com todos nós, ele quer que façamos as conexões, quer que cada passo que damos nos leve a uma nova encruzilhada.
Os olhos de Jim ficaram mais atentos, mas ele não pareceu surpreso. Em vez disso, ele pegou a caneca de café e deu um gole antes de perguntar:
-O que você tem de novo na investigação desde que saí ?
O tenente suspirou antes de olhar para o ex-comissário e entoar:
-Muita coisa aconteceu, como você bem lembra, a nossa última pista era um número de série de um container desaparecido a mais de 3 anos, sem destinatário, apenas endereçado a “A. Crale Imports”, nome fictício, registrado com uma carga genérica, "bens diversos", nenhuma conexão clara com empresas ativas, você lembra que investiguei isso à exaustão na época, mas o caso morreu em meio a outras prioridades.
Jim assentiu lentamente fazendo sinal para que o tenente continuasse.
-Bem, tivemos o caso do “Capuz Vermelho” - continuou Chuck - não parecia nada demais, um delinquente juvenil, mas..bem, descobrimos algumas coisa, há algumas irregularidades na documentação de adoção dele, a assinatura de um dos juízes que deveria ter validado o documento não bate com o banco de dados oficial, depois descobrimos ligações da mãe adotiva dele, Margaret Todd, com um contrabandista chamado Samuel Rise, ligado em algum momento com Andy, Matthew Cole.
Jim ficou em silêncio por um momento, tentando processar a enxurrada de informações, antes de finalmente dizer:
-Então é isso que você tem ?
-Essa é a primeira linha, na outra, temos uma amostra do DNA de Tália, e o material genético de outra mulher sem identificação, no entanto, o material genético bate com o de uma cena de crime de mais de 3 anos atrás, um caso de violência doméstica, um homem foi preso, Gerald Mullks, mas…uma mulher e o filho de um mês de idade nunca foram encontrados - continuou o tenente com uma voz carregada - a mulher que realizou o boletim de ocorrência contra ele era sua esposa, Amélia Mullks, no entanto, a mulher desaparecida não era Amélia, havia outra mulher.
Houve um momento de pausa antes que Chuck retornasse o monólogo:
-Mandei o agente Taylor e Sarah para a casa onde encontramos o material genético pela primeira vez, a 3 anos atrás, mas no final era uma armadilha, o Contador de Histórias queria que fossemos lá.
-Ele…ele sabia ? - falou Jim com a voz pesada, um filete de angústia velada - Sarah está bem ?
Chuck se apressou em dizer para o amigo que sim, Sarah estava bem, ele sabia da história que os dois tiveram mesmo que por um curto período.
-Sarah está bem, mas o agente Taylor foi morto, Sarah encontrou uma pista no entanto, uma folha completamente em branco…bem, ainda não sabemos o que isso significa - continuou o tenente - mas, fora isso, temos duas charadas, que não se conectam em nada, a primeira é "Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?" e a outra, “Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?”
Jim ficou em silêncio por um momento, absorvendo todas as informações com cuidado. Era muita coisa para ser processada. O ex-comissário massageou as têmporas com os dedos. A chuva lá fora parecia ganhar intensidade, suas gotas tamborilando no telhado como se marcassem o ritmo de sua própria tensão. Ele finalmente ergueu o olhar, os olhos cansados, mas aguçados.
-Eu não sei como juntar esses pontos, não sei como conectar tudo isso - admitiu o tenente com pesar, eu precisava de uma segunda visão.
-E o Batman ? - perguntou Gordon pegando o baralho de cartas e começando a embaralhá-lo novamente, um movimento automático, como se ajudasse a organizar os pensamentos.
-Batman tem outras coisas na cabeça - falou Chuck depois e um momento - o Coringa está desaparecido, achamos que Matthew pode estar com ele, Bruce está…particularmente envolvido.
Jim parou o movimento das cartas por um momento, seu olhar endurecendo ao ouvir as palavras de Chuck. Ele soltou um suspiro profundo, o peso da situação recaindo sobre seus ombros como uma velha lembrança.
-Bruce tem seus motivos para estar assim - comentou Gordon, voltando a embaralhar as cartas, seu tom era sério, mas carregava uma melancolia subjacente - mas você não deve subestimá-lo.
-Eu não estou - rebateu o tenente - eu só não confio no julgamento dele.
-Você sempre foi cético quanto a ele - falou o ex-comissário colocando as cartas na mesa mas sem espalha-las, seu tom era neutro - eu não acho que vai conseguir resolver esse caso jogando dentro da lei.
Chuck ficou em silêncio, absorvendo as palavras de Gordon. Ele sabia que o ex-comissário tinha razão, mas essa nova perspectiva só tornava as coisas mais complicadas. O ex-comissário estava certo, a lógica fria das investigações e o código que ele seguia como oficial não eram suficientes para lidar com o caos que o Contador de Histórias havia imposto. Mas como lidar com isso? Ele não podia cruzar as linhas, não sem perder tudo o que acreditava.
A chuva do lado de fora parecia intensificar a tensão. A batida constante da água contra o vidro era como um martelo que não parava de martelar na cabeça de Chuck, martelando a consciência de que ele estava sem respostas, preso em um labirinto de pistas sem sentido.
Gordon olhou fixamente para o tenente. Seu olhar, embora cansado, parecia medir a situação com precisão. Não havia mais palavras vazias, apenas a frieza da realidade.
-Se você acha que está em um caminho sem saída, talvez esteja exatamente onde ele quer que você esteja - disse Jim depois de um momento de reflexão.
O tenente suspirou, ele não aguentava mais o jogo que estava jogando.
-Você ficou bom no poker ? - perguntou Chuck distraidamente, desviando o olhar dos olhos intensos do ex-comissário.
-Não tanto quanto o garoto, mas dá para o gasto - falou o ex-comissário, uma tensão velada em sua voz - bem…acho que ele não vem jogar cartas essa semana.
Chuck levantou o olhar para Jim, o peso de sua pergunta pairando no ar. Chuck já havia testemunhado essa estranha dinâmica entre o ex-comissário e o ex-terrorista, o tenente viu cada um dos estágios disso. Sinceramente, ele odiava. Jim desenvolveu uma espécie de afeto, uma conexão, apesar do banho de sangue, dos colegas assassinados e das cenas brutais que ele mesmo presenciou. Talvez fosse culpa, culpa por saber a verdade sobre o projeto de reabilitação, por saber da tortura aos que não se submeteram passaram.
O tenente no entanto, não nutria qualquer simpatia pelo maldito sociopata, ele estava preso na verdade de que o Coringa era um monstro. A chuva agora batia com força contra a janela, criando um pano de fundo para o silêncio que se instalou na sala. Cada gota parecia um reflexo daquilo que todos estavam enfrentando, um obstáculo insuperável, uma corrente que os aprisionava enquanto a noite se aprofundava. O futuro de Gotham estava em jogo, e ninguém sabia ao certo quem sairia vitorioso dessa guerra psicológica.
-Tem algo mais, Chuck? - Jim perguntou finalmente, seus olhos estudando o tenente com mais intensidade. O cansaço estava evidente, mas também a necessidade de clareza.
-Não - falou o tenente - era somente isso, eu queria saber a sua visão dos fatos.
-Você não vai conseguir sair desse labirinto sozinho, Chuck, e você sabe disso - disse Jim, com uma sinceridade que cortou a sala com sua frieza. Ele parecia mais cansado do que deveria, mas sua voz tinha uma clareza penetrante - e não importa o quanto você odeie a ideia, você vai precisar do Batman.
O silêncio se instalou novamente, mais pesado que antes. Chuck ficou parado, refletindo sobre as palavras que ainda ecoavam em sua mente. Ele sabia o que precisava fazer, mas não sabia se estava pronto para as consequências.
-Batman tem outras prioridades - disse o tenente simplesmente - ele está atrás do Matthew.
-Mas Matthew, Andy…- o ex-comissário fez uma pausa pegando novamente a caneca e levando aos lábios - ele faz parte desse emaranhado de pistas, você mesmo o encontrou envolvido com um tal de Rise, contrabandista, que estava ligado a mãe do Capuz Vermelho, talvez não seja uma absurdo considerar colaborar com o Batman para pegar Matthew e Rise.
-Eu sei disso - falou Chuck frustrado - mas não sei se consigo confiar no julgamento dele, não com o sociopata de estimação dele no fogo cruzado.
-Eu entendo, Chuck - disse Jim com um tom suave, mas firme. - Bruce tem suas próprias razões, e ele é, como sempre, complicado, mas você tem que entender que, por mais que você não goste disso, às vezes precisamos usar o que temos à disposição.
O tenente suspirou, a frustração tomando conta dele, ele sabia que Gordon estava certo. Não importava o quanto ele tentasse evitar a verdade.
-Você não confia no julgamento de Bruce... e eu não posso culpar você por isso - continuou Gordon - mas eu vi o quanto Bruce sofreu com todas essas escolhas... a história dele com o Coringa não é simples, e você sabe disso.
Chuck permaneceu em silêncio, seu olhar perdido no vazio enquanto ponderava suas opções. O peso da cidade, do caso, da batalha interna contra seu próprio código de ética, tudo isso pesava sobre ele. Mas uma coisa estava clara, ele não poderia continuar assim. A verdade estava lá fora, nas sombras, e ele teria que enfrentar isso de frente, não importava quem ou o que fosse necessário enfrentar para isso.
-Não sei como você conseguiu perdoar ele - suspirou o tenente, não olhando nos olhos do ex-comissário. Chuck não entendia como o ex-comissário conseguia olhar para o Coringa.
-Não perdoei - disse Gordon simplesmente - apenas tentei seguir em frente.
Chuck encarou o chão por um momento, absorvendo as palavras de Jim. Era uma resposta direta, mas carregada de uma complexidade que o tenente não conseguia entender completamente. Era uma zona cinzenta que Chuck não estava disposto a explorar.
-Acho que seguir em frente é algo que nunca aprendi - respondeu Chuck finalmente, a voz baixa.
Jim deu um pequeno sorriso, mas não havia alegria nele. Apenas o reconhecimento de uma verdade que ambos compartilhavam.
-Ninguém realmente aprende, a gente só... empurra para longe o suficiente para continuar, faça o que precisar, Chuck - disse o ex-comissário, sua voz carregada de uma gravidade tranquila - mas lembre-se, isso não é apenas sobre você, ou sobre o que você acredita..
Chuck respirou fundo, tentando processar as palavras de Gordon. Ele sabia que o ex-comissário tinha uma visão do mundo diferente, forjada por anos de lutas e decepções, mas ainda assim, não conseguia entender completamente. Como alguém poderia seguir em frente depois de tudo o que o Coringa causou? O mal, a tortura, a destruição... tudo o que ele representava. Para Chuck, ele era uma figura monstruosa, sádica. A ideia de qualquer coisa semelhante a perdão parecia uma ponte distante, uma ilusão que ele não conseguia sequer começar a atravessar.
Jim observou o tenente com uma expressão que misturava empatia e cansaço. Ele sabia como era difícil tomar as decisões necessárias, mas, por mais que Chuck se recusasse a aceitá-lo, a verdade era que ele precisaria aceitar a ajuda de Bruce. Não havia outra maneira de resolver o que estava acontecendo. Eles estavam todos jogando no mesmo campo agora, contra um inimigo que conhecia o jogo melhor do que ninguém.
O tenente olhou para a chuva lá fora, a visão embaçada pela cortina de gotas que desciam do céu. Sua mente parecia longe de clarear. Ele olhou para o ex-comissário por um momento antes de acenar com a cabeça e se dirigir à porta. Ele sabia que Jim tinha razão, mas isso não tornava as coisas mais fáceis.
Ao abrir a porta e sentir o ar frio da madrugada, Chuck parou por um momento e olhou para trás.
-Obrigado, Jim - disse ele, com sinceridade.
-Tome cuidado, Chuck - disse o ex-comissário, com um tom que parecia carregar mais do que preocupação.
Com essas palavras pairando no ar, Chuck saiu para a noite chuvosa, o som da porta se fechando atrás dele parecendo ecoar em sua mente. O tenente respirou fundo, tentando reunir a determinação necessária para o que sabia que precisava fazer.
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Na manhã seguinte, o apartamento estava mergulhado em uma atmosfera de tensão quase palpável. A luz cinzenta do amanhecer entrava pelas cortinas mal fechadas, revelando o caos de uma noite repleta de confrontos emocionais. A xícara de café intocada de Andy descansava na mesa, enquanto ele se movia pela cozinha com gestos automáticos, tentando organizar seus pensamentos. Sam ainda não tinha voltado.
O silêncio foi interrompido por um som metálico vindo do banheiro. O Coringa, ainda acorrentado, começou a cantarolar uma melodia irritantemente alegre. Era como se ele não tivesse perdido a oportunidade de transformar a calma matinal em mais um teatro de provocação.
-Você sabe, Andy, adorei o espetáculo de ontem à noite - gritou o Coringa, sua voz carregada de sarcasmo - mas você devia dar mais crédito a mim, eu sou um mestre em criar dramas familiares!
Andy ignorou, focando em encher a cafeteira com mais água. Ele sabia que o Coringa estava começando a mudar de estratégia. Se antes ele era irritantemente caldo, agora estava tentando deixá-lo maluco.
-Você está muito quieto hoje, docinho - zombou o Coringa, sua voz mais baixa, mas com um tom que parecia quase íntimo - nosso querido amigo Sammy ainda não voltou ? Como vamos fazer uma nova sessão de terapia sem ele ?
Andy soltou um suspiro pesado, pegando a xícara de café fumegante e indo em direção à porta do banheiro. Ele a abriu devagar, revelando o Coringa sentado no chão, suas mãos firmemente amarradas atrás das costas na pia velha, seu sorriso sinistro habitual estava lá ampliado grotescamente pelas salientes cicatrizes.
-Você quer alguma coisa ou só está tentando me irritar? - perguntou Andy, sua voz calma, mas com um toque de cansaço antes de soprar a fumaça da xícara - você parece de bom humor.
-Sabe, meu bem - zombou o louco passando a língua no canto dos lábios distraidamente - eu estou radiante, dormi como uma princesa.
-Bom para você - falou o ex-psiquiatra, com um tom irônico - alguém precisa dormir bem nessa casa.
O Coringa riu, um som que reverberou pelas paredes estreitas do banheiro, uma mistura desconcertante de alegria genuína e escárnio.
-Ah, Andy, você deveria tentar - zombou ele, inclinando a cabeça para o lado com aquele sorriso que parecia saber demais - relaxar, sabe? Toda essa tensão não é saudável, eu estou começando a pensar que você pode acabar quebrando antes mesmo de mim, e sou eu que estou preso nesse banheiro sujo.
Andy permaneceu imóvel, seus olhos fixos no louco à sua frente. Ele sentia o peso das palavras do Coringa, mesmo sabendo que eram parte de um jogo cuidadosamente calculado. Ele deu um gole no café, tentando ignorar o calor crescente em sua mente.
-Você quer ? - disse o ex-psiquiatra apontando para a sua xícara - estou tomando dela, acho que é uma prova clara que não tem drogas aqui.
-Você é um fofo, sabia ? - zombou o louco com uma risadinha - poderíamos ser melhores amigos se você não fosse…você sabe, um estuprador.
-Não achei que você fizesse juízo de moral - disse Andy inexpressivo.
-Não me entenda errado, eu não faço, mas quando é comigo, é um pouco diferente, nem mesmo eu sou tão desapegado e mente aberta assim - respondeu o ex-terrorista com um sorriso de escárnio.
Andy respirou fundo, o vapor do café subindo entre ele e o Coringa como uma cortina translúcida. Ele manteve os olhos fixos no ex-terrorista, apenas estudado sua feição. O palhaço estava jogando. O ex-psiquiatra deu outro gole no café, enquanto se abaixava para pegar um pequeno banquinho no canto do banheiro. Ele o posicionou na frente do Coringa e se sentou, encarando-o diretamente.
-Pode jogar o quanto quiser - falou Andy com um tom neutro - eu já conheço todas as suas jogadas, você não pode me manipular, você só está vivo falando essas besteiras porque eu quero.
-Eu sabia que você era louco, agora burro ? - zombou o louco passando a língua no lábio inferior enquanto fazia uma pausa - bem, isso é novo e um novo nível até para os seres mais insignificantes e limitados como você.
Andy não respondeu de imediato. Ele apenas tomou outro gole de café, seu olhar fixo no Coringa, estudando-o como se fosse um espécime em um laboratório. O silêncio que se seguiu era denso, pesado, mas ele sabia que isso fazia parte do jogo.
-Terminou o seu showzinho ? - falou Andy enquanto soprava a fumaça que saía da xícara em suas mãos - você sabe que se alimenta da dor dos outros porque é tudo o que você conhece, eu não vou entrar no seu jogo de provocações, mas se é isso que você precisa fazer para sobreviver, fique à vontade.
O Coringa inclinou a cabeça ligeiramente, o sorriso permanecendo em seu rosto, mas algo em seus olhos mudou por um instante. Havia uma mistura indecifrável de emoções, não eram boas.
Andy apoiou a xícara de café no chão ao lado do banquinho e cruzou os braços, seu olhar permanecendo firme no Coringa.
-Eu sei que você quer me tirar do sério - respondeu ele, o tom calmo, mas afiado - má notícia para você, eu não acordei de bom humor.
-Você vai fazer o que ? Me matar ? - riu o louco sem humor - caí na real, você nunca vai fazer isso, e você sabe porque ? Porque você é um fraco, um frouxo.
-Eu não preciso matar você - falou o ex-psiquiatra, mantendo o tom sem emoção - porque é isso que você quer que eu faça, é isso que você sempre quer que alguém faça, sabe Jay, eu vejo em você uma…uma dor tão grande em existir.
O Coringa piscou, o sorriso congelado em seu rosto por um instante antes de inclinar a cabeça levemente para o lado. O apelido "Jay" ressoou no banheiro como uma faca cortando o ar, um som inesperado que provocou uma mudança quase imperceptível em sua postura. Ele tentou disfarçar, mas o brilho zombeteiro em seus olhos pareceu vacilar brevemente.
-Dor em existir? - o louco repetiu, sua voz carregada de escárnio, mas algo mais profundo estava escondido por trás do sarcasmo - Andy, você realmente perdeu seu talento de analista, agora está tentando projetar seus próprios problemas em mim?
Andy permaneceu impassível, sua expressão firme. Ele sabia que estava pisando em território perigoso, mas decidiu avançar mesmo assim.
-Não estou projetando nada - respondeu ele, sua voz baixa, mas firme - estou apenas apontando o óbvio, eu conheço você, você não precisa que eu te mate, Jay.
O Coringa abriu um sorriso largo, mas não havia humor em seus olhos. Ele inclinou-se o máximo que as correntes permitiam, aproximando o rosto do ex-psiquiatra, seu olhar fixo e penetrante.
-Você acha que me conhece? - falou o louco com um tom de escárnio antes de fazer uma pausa para lamber o canto dos lábios - sabe meia dúzia de porcarias sobre mim e acha que entende como eu penso ?
Andy segurou o olhar do Coringa, inabalável. Ele sabia que o palhaço estava tentando recuperar o controle da situação, mas decidiu não recuar. Ele sabia que, por mais que o Coringa tentasse virar o jogo, a batalha real acontecia nas entrelinhas, nas pausas, nos momentos em que o silêncio dizia mais do que as palavras.
-Talvez não - admitiu o ex-psiquiatra, seu olhar era frio - acho que nem você entende como pensa na maior parte do tempo, afinal, você é só um louco que acredita nas próprias bobagens.
O Coringa parou por um momento, o sorriso congelado em seu rosto, a tensão aumentando. O olhar de Andy era firme, mas algo se passava por dentro do palhaço, uma sensação que ele não sabia como lidar.
-Você não faz ideia de quem é - continuou Andy, seu tom ainda se mantendo neutro enquanto olhava para o outro homem - sua existência é um emaranhado de lembranças confusas, raiva reprimida, desespero e-
O louco rosnou estreitando os olhos, interrompendo as divagações do ex-psiquiatra. Suas mãos puxando as correntes que o prendiam com força:
-Não se atreva, você acha que eu me importo com o que você sabe? Seu maldito filho da puta, eu vou te estrangular com as próprias viceras se você não calar essa boca.
A última palavra saiu entre os dentes do Coringa como se fosse uma maldição. Ele olhou para Andy, mas havia algo de mais profundo, mais sombrio nos seus olhos agora. Era o reflexo de uma ferida antiga que nunca havia cicatrizado.
O ex-psiquiatra não se moveu, seu olhar permanecendo fixo, sem um pingo de medo ou hesitação. O Coringa estava agitado, mas isso só servia para confirmar o que ele já sabia sobre o outro homem.
-Você não pode me intimidar, Jay - disse ele, a frieza em sua voz contrastando com a fúria que emanava do Coringa - mas se você quer um ombro para chorar suas tragédias, você sabe que estou aqui.
O Coringa rosnou, suas correntes tilintando enquanto ele puxava com mais força, como se tentasse escapar de algo que não sabia como controlar.
-Eu vou te matar - falou o louco, seu tom perdendo os contornos divertidos - e eu vou gostar de cada segundo.
Andy olhou-o com uma calma perturbadora:
-Boa sorte com isso, esse é definitivamente o assassinato mais longo da história, mas antes, eu gostaria de perguntar, o que você realmente teme, Jay, por que você não é o tipo de pessoa que teme coisas mundanas como a morte.
-Você me deixa entediado, Andy - disse o Coringa, passando a língua no canto dos lábios distraidamente, mudando de tom e voltando ao seu sarcasmo habitual.
O ex-psiquiatra, sem mudar a expressão, tomou mais um gole do café, sem se importar com as provocações. Ele sabia que o louco estava tentando se proteger. Eles estavam em um impasse, uma dança verbal que se arrastava como uma corda tensa prestes a se romper.
O silêncio que se seguiu era como o olho de um furacão, carregado de tensão, mas inquietantemente calmo. Andy observava o Coringa, o olhar fixo em cada pequeno movimento, cada oscilação em seu sorriso, como se pudesse prever seu próximo passo. O louco continuava preso às correntes, mas sua presença dominava o ambiente, como se ele estivesse no controle, mesmo estando fisicamente subjugado. Ele torcia os dedos já tortos dolorosamente nas amarras, soltando uma risada esquisita, que ecoou pelo espaço como o som de vidro quebrando e mal presságio. Era uma risada que parecia carregar um milhão de significados, nenhum deles totalmente claro.
-Eu já disse que se machucar não ajuda - falou o ex-psiquiatra com um tom calmo apesar do frio que subiu sua espinha.
-Você acha que isso vai durar para sempre, não é? - falou o Coringa, fazendo uma pausa para lamber o lábio inferior, inclinando levemente a cabeça e ignorando o comentário de Andy, o sorriso quase preguiçoso - esse joguinho entre nós, como se fosse algum tipo de terapia reversa.
Algo no olhar do louco parecia se perguntar se o ex-psiquiatra teria coragem de ir além das palavras. Andy tomou outro gole de café, os olhos fixos no fundo da xícara, mas claramente consciente do que estava acontecendo à sua frente.
-Você não respondeu minha pergunta - Andy finalmente quebrou o silêncio, sua voz tranquila, mas cortante - o que você teme de verdade, Jay?
O Coringa arqueou uma sobrancelha, um sorriso torto se formando em seus lábios. Ele inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse ponderando a pergunta, mas o brilho em seus olhos denunciava que ele já estava preparando outra provocação.
-Não sei, talvez eu tenha medo de…bem, hospitais ? Dentista ? Esse último é bem provável, nunca estive em um - zombou o louco com uma risadinha divertida lambendo o canto dos lábios.
-Eu acho que você tem medo abrir essa porta na sua cabeça, onde você guarda todas essas porcarias que você não entende, todas as suas frustrações e traumas bizarros, emoções soltas e sem direção…coisas das quais você foge, que você não quer entender.
O sorriso do Coringa diminuiu, transformando-se em uma linha fina, seus olhos fixos no ex-psiquiatra como se estivesse avaliando cada palavra, cada nuance de sua expressão.
-Bem, mesmo que fosse, me diga, por que você se importa? - falou o louco sem quebrar o quanto visual intenso - acho que já passamos dessa fase, não aja como se fossemos a nossa própria versão de melhores amigos.
Andy respirou fundo, o som ecoando baixo na quietude desconfortável do banheiro. Ele levantou a xícara novamente, tomando um gole lento enquanto pensava na pergunta do Coringa. "Por que se importar?" Era uma questão legítima, e o louco sabia disso. Mas Andy também sabia como responder sem se perder no jogo.
-Não somos amigos, Jay - disse ele, colocando a xícara de lado, sua voz baixa, mas firme, uma nota fria - mas eu me importo porque, no fundo, por mais que você se esforce para ser esse "monstro", você não consegue apagar uma parte sua ainda sente…medo, medo não como eu, ou como a maior parte das pessoas, é um medo diferente, porque você tem medo de que, se parar por um segundo e olhar para dentro, vai ver o abismo, o mesmo abismo que você fez Annie encarar naquele dia.
O Coringa estreitou os olhos, seu silêncio era ameaçador. Ele inclinou-se o máximo que as correntes permitiam, aproximando-se de Andy, como se tentasse perfurá-lo com o olhar. Não havia nenhum traço de diversão no rosto do palhaço, somente a mania fria.
-Eu já encarei esse abismo muitas vezes na minha vida - rosnou o louco, uma pontada de mania mal contida - e quando o vazio te encara de volta você tem que fazer uma escolha.
-E qual foi a sua escolha ?
-Minha escolha? - repetiu o ex-terrorista, como se a palavra fosse uma piada - eu ri, ri até o vazio rir de volta comigo, sabe, o vazio tem um senso de humor incrível, um ótimo companheiro de piadas.
Andy manteve o olhar firme, sem se deixar levar pela aparente ironia. Ele sabia que o Coringa usava o humor como uma máscara, uma maneira de desviar a atenção de qualquer vulnerabilidade. Mas naquele momento, entre as palavras cuidadosamente escolhidas e o brilho inquietante nos olhos do palhaço, havia algo mais profundo.
-Eu vejo alguém que está fugindo, alguém que não quer encarar o que realmente é - entoou o ex-psiquiatra como se saboreasse cada sìlaba - porque eu vejo que isso dói mais do que qualquer coisa que o mundo já fez com você, no fundo, você ainda está procurando algo... algo que te faça olhar para o abismo sem ter medo de pular nele….você está procurando desesperadamente por algo, mesmo que não saiba o que é ainda.
-Poético - zombou o palhaço tentando mascarar o desconforto em seus olhos, que estavam fixos em Andy com uma intensidade desconcertante, o sorriso torto ainda pairava em seus lábios, uma fachada mal sustentada. - meio exagerado, mas poético, você devia mudar de profissão, você tem uma forma bem adorável de pensar, quase me faz querer... rir, acho que vou te contar uma piada.
Andy não respondeu imediatamente, apenas observou o Coringa com um olhar calmo e atento. Ele podia ver o esforço do ex-terrorista para manter a compostura, para transformar o desconforto em mais um de seus jogos de palavras.
-Eu não acho que seja um bom momento para piadas, o que você realmente precisa, é de alguém que escute o silêncio entre essas porcarias que você fala, você sabe o que acontece quando o vazio ri de volta, não é? - continuou o ex-psiquiatra, suas palavras carregadas de uma precisão cirúrgica.
A expressão do Coringa endureceu. Ele inclinou-se o máximo que as correntes permitiam, seus olhos fixos nos de Andy com uma intensidade quase violenta.
-Você está jogando um jogo perigoso, Andy - rosnou ele passando a língua no lábio inferior, sua voz carregada de ameaça, mas com uma nota de algo mais profundo.
-Talvez eu esteja - respondeu Andy com um leve encolher de ombros, mantendo o olhar firme - mas não sou eu quem vive fugindo, não sou eu quem olha para o abismo e ri porque não sabe mais o que fazer.
-Sabe, você tem um talento incrível para transformar qualquer coisa em uma sessão de terapia barata - tentou rir o louco - talvez eu devesse começar a te pagar por hora.
-Eu já te cobrei o suficiente - rebateu Andy, sua voz carregada de uma frieza calculada - e você já me pagou, de maneiras que nenhum de nós gostaria de falar em voz alta, estamos empatados.
-É verdade, mas não vou pedir desculpas por ter cortado suas bolas - falou o palhaço batendo a cabeça levemente na pia atrás de si com um tom esquisito - ou por quase ter arrancado metade do seu rosto…por ter te mandado para Blackgate por quase um ano, você sabe que mereceu.
O silêncio que se seguiu à troca foi denso, quase palpável. Andy respirou fundo, mantendo o controle, enquanto o Coringa inclinava a cabeça para trás, encostando-a na pia. Um sorriso preguiçoso surgiu em seu rosto, mas seus olhos ainda estavam fixos no ex-psiquiatra, avaliando cada reação, cada respiração.
-Você quer uma piada, Andy? - murmurou o Coringa, sua voz escorrendo como veneno, ele lambeu os lábios lentamente, criando uma pausa calculada, antes de continuar - eu vou te contar a que o vazio adorou.
Andy encarou o Coringa, a expressão neutra, mas seu silêncio falou mais alto do que qualquer palavra.
-Um homem cai de um prédio de vinte andares, e enquanto despenca, ele vai pensando: “Até aqui, tudo bem... até aqui, tudo bem...” - o louco deixou as palavras pairarem no ar, seu sorriso alargando-se de forma perturbadora - mas aí, quando chega no chão... bem, você sabe o que acontece, o engraçado é que ele nunca se perguntou por que estava caindo em primeiro lugar, ele não se lembra como é não estar caindo.
O silêncio no banheiro se tornou mais espesso do que nunca, um peso quase tangível que pairava entre os dois. Andy não respondeu de imediato, seus olhos fixos nos de Coringa, como se tentasse decifrar cada camada da provocação cuidadosamente embutida na "piada". Andy sabia que aquela não era apenas uma piada, era um reflexo cruel e cínico do que o palhaço acreditava ser a existência. Ele sabia o que o louco estava tentando fazer. Não era só uma metáfora, era uma declaração sobre como ele via o mundo, como via a si mesmo. O homem que caiu, que nunca soube por que estava caindo, não era apenas uma figura fictícia em uma história. Era o próprio Coringa.
Andy permaneceu em silêncio por um momento, processando as palavras do Coringa. Ele conhecia bem aquela sensação que o palhaço estava tentando descrever. O vazio, a queda, a aceitação cínica da própria destruição. Ele sabia que, no fundo, o Coringa não contava aquela "piada" para provocar, pelo menos, não apenas para isso. Era um vislumbre raro de sua perspectiva, de sua mente distorcida.
-Você realmente acredita nisso, não é? - disse Andy, quebrando o silêncio, sua voz baixa, mas afiada. Ele inclinou-se levemente para frente, descansando os cotovelos nos joelhos, como se estivesse analisando o palhaço de perto - que cair é inevitável, que o impacto é o único desfecho que importa.
-Não, para um cara que se diz inteligente você é bem limitado - zombou o palhaço passando a língua no lábio inferior - não é o desfecho que importa, o desfecho é inevitável, no final, o vazio sabe que todo mundo está caindo... só que alguns de nós decidimos aproveitar a vista, diferente de mim, vocês idiotas tem medo do fundo do abismo.
O ex-psiquiatra inclinou-se para trás no banquinho, deixando um suspiro escapar, não de exaustão, mas de algo mais complicado. Ele segurou o olhar do Coringa, analisando não apenas as palavras, mas os gestos, os pequenos movimentos que denunciavam muito mais do que o louco estava disposto a admitir.
-Aproveitar a vista, é? - ele repetiu, quase num murmúrio, com um toque de sarcasmo - é isso que você acha que é a vida ? Um eterno despencar sem controle, sem propósito, rindo enquanto o vento arranca pedaços de você?
O Coringa riu, uma risada baixa e áspera, que parecia arranhar o ar. Ele balançou a cabeça como se Andy fosse uma criança tentando entender uma piada muito acima de sua compreensão.
-Ah, você é adorável quando tenta, mas deixa eu te contar um segredo - o louco se inclinou o máximo que as correntes permitiam, a tensão nos músculos visível - não existe controle, não existe propósito, só existe a queda, e o resto... é ilusão que os tolos se prendem para dar sentido a suas existências patéticas, eu tenho todo o tempo do mundo para aproveitar a vista, e você... bem, você poderia assistir comigo, se eu não tivesse nojo de cada grama do seu ser, afinal, você também está em queda livre.
Andy não reagiu de imediato, apenas observou o Coringa, seus olhos avaliando cada movimento, cada microexpressão. Ele sabia que o palhaço estava tentando desviar a atenção, mudar o foco da conversa para ele, como sempre fazia quando se sentia exposto. Mas Andy não ia ceder.
-Eu caí, sim - admitiu ele, sua voz calma, mas com uma nota de algo mais profundo - mas ao contrário de você, eu sei porque caí, eu sei exatamente o que me trouxe até aqui, e isso que te assusta, não saber como, ou quando caiu.
O palhaço estreitou os olhos, o sorriso em seus lábios se tornando algo entre diversão e desafio, antes de inclinar a cabeça para trás e olhar para o teto do banheiro. ex-psiquiatra sabia que aquele momento era mais do que uma troca de provocações, era um vislumbre da mente fragmentada que o Coringa carregava.
O Coringa estreitou os olhos, a fúria se misturando com uma curiosidade distorcida. Ele se inclinou ainda mais para frente, quase como se fosse se soltar das correntes, como se o desejo de chegar mais perto de Andy fosse maior que qualquer restrição física.
-Você acha que sabe por que caiu? - o palhaço disse enquanto lambia o quanto dos lábios, sua voz baixa e carregada de desdém - como é que você consegue se olhar no espelho e acreditar nisso, hein? Que tem algum propósito, algum controle sobre a queda? A única coisa que você tem controle é o que sente enquanto desce, porque no final das contas, somos apenas idiotas olhando para o mesmo abismo, esperando que ele olhe para nós de volta.
Andy permaneceu em silêncio por um longo momento, absorvendo cada palavra do Coringa, como se tentasse pesar o significado de cada uma delas. O palhaço estava tentando quebrá-lo, tirar-lhe a certeza que ele havia construído ao longo do tempo. Tentava convencer Andy de que a queda era inevitável, que ele, como todos os outros, não passava de um idiota acreditando em uma mentira confortante. Mas o ex-psiquiatra sabia que aquilo não era verdade.
-Eu sei o que me trouxe até aqui, Jay - Andy disse calmamente, sem se deixar abalar, os olhos fixos no Coringa - e ao contrário de você, não tenho medo do que vejo quando olho para o abismo, porque eu enfrentei a dor, a perda, a culpa... e eu escolhi viver com isso, já você, você só vê um garoto que nunca teve uma chance, você vê todas as mentiras que contou para sobreviver, todos os pedaços de você que deixou para trás porque achou que eram fracos.
Andy ficou em silêncio, observando o Coringa com uma expressão que era uma mistura de cansaço e tensão. Ele sabia que o ex-terrorista queria arrastá-lo para o mesmo abismo de Annie, fazê-lo acreditar que nada importava, que a queda era o destino inevitável. O Coringa o encarava com intensidade, como se as palavras de Andy o desafiassem de uma forma que ele não conseguia compreender completamente. Havia uma faísca de algo em seus olhos, algo mórbido e sádico.
-Deve ser triste ser alguém que vive procurando por respostas, que precisa de um propósito para continuar existindo - falou o louco no silêncio depois de um momento - sabe qual a grande piada ? Saber que todo mundo está caindo, exatamente como eu, só que eles só não sabem disso ainda.
-Você é só um doido - disse o ex-psiquiatra calmamente enquanto fitava o palhaço - por baixo dessas porcarias que você cuspe como se fossem verdades, você é só um doente.
O sorriso do ex-terrorista vacilou por um momento, seus olhos brilhando com uma mistura de raiva e diversão. Ele não gostava de ser rotulado e o ex-psiquiatra tinha a estranha capacidade de acertar no ponto exato onde o Coringa se escondia, fazendo-o sentir uma frustração que ele só conseguia esconder parcialmente.
-Você me chama de doente, como se você fosse algum tipo de exemplo de sanidade - o palhaço disse passando a língua no canto dos lábios, sua voz escorregando para uma risada sinistra, mas seus olhos queimavam com algo mais sombrio - não sou eu que estou mantendo uma pessoa em cárcere privado, acorrentado em seu banheiro de merda a dias.
Andy não cedeu, não se moveu, mas uma parte dele sentiu o golpe. Ele sabia que o Coringa tinha razão sobre uma coisa: sua sanidade estava comprometida. Era impossível negar que ele havia se perdido em um jogo distorcido com o palhaço. Aquilo o havia mudado, manchado-o de alguma forma que ele não queria reconhecer.
Andy respirou fundo, uma tentativa de acalmar a tensão crescente dentro de si. Ele sabia que o Coringa queria provocá-lo, queria que ele se sentisse vulnerável, fraco. E, no fundo, uma parte de Andy estava sentindo isso. Mas não era o suficiente para fazer com que ele cedesse.
-Talvez você tenha razão, Jay - disse Andy, a voz ainda calma, mas com um tom mais grave. Ele se levantou lentamente, caminhando em direção a porta, mas parou por um momento - só que não sou seu inimigo, pelo menos, não mais.
-Pois eu sou seu inimigo - riu o louco por um momento, sua expressão venenosa - eu odeio você, odeio cada grama do seu ser desprezível, eu vou arrancar sua cabeça e pendurar na minha sala quando sair daqui.
-Bem, não acho que o Wayne vá gostar de uma cabeça na sala de estar - retrucou o ex-psiquiatra com um tom neutro, como se já estivesse acostumado com as ameaças de morte do louco.
-Brucie não entende nada de decoração - ofereceu o palhaço com um sorriso desdenhoso.
-Você sempre foi bom com palavras - observou Andy por um momento, como se sentisse o gosto literal dessa afirmação - enfim, eu vou pegar alguma coisa para você comer.
O ex-psiquiatra iria se deixar abalar. Ele sabia que o Coringa estava tentando retomar o controle, virar o jogo a seu favor. Mas Andy já havia aprendido que, com o Coringa, a verdadeira vitória estava em manter a calma, em não ceder. Em ler suas rachaduras. Em oferecer aquilo que o louco não sabia aceitar das pessoas, algo que não fosse violência.
O Coringa observou Andy sair do banheiro, seus olhos acompanhando cada movimento, como um predador estudando sua presa. Ele não disse mais nada, mas a tensão em seus ombros denunciava que ele ainda estava em alerta, ainda calculando suas próximas palavras, suas próximas ações. O silêncio que se seguiu era quase opressor, preenchendo o espaço entre eles como uma entidade viva.
Andy, do lado de fora, parou por um momento, apoiando-se na parede do corredor. Ele fechou os olhos e respirou fundo, tentando reorganizar seus pensamentos. Aquela troca, como todas as outras com o Coringa, era um campo minado emocional. Cada palavra tinha o potencial de explodir algo dentro dele, de reacender a dor, a raiva, o ódio que ele tentava controlar. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de terrivelmente familiar e quase... reconfortante. Ele odiava admitir, mas aquilo o atraía de uma forma doentia, quase viciante. Andy não achava que poderia viver sem isso.
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O ar na redação do Gotham Times estava pesado naquela manhã. As conversas eram abafadas, o som das teclas ecoava pelo espaço enquanto Dick Grayson se inclinava sobre o teclado do computador em sua pequena mesa no canto. Ele tinha trabalho a fazer, mas não conseguia tirar da cabeça sua conversa com o Batman a dois dias.
Sua câmera estava ao lado do teclado, e ao lado dela, uma pilha de anotações rabiscadas, entre elas as informações que ele havia colhido ao longo dos meses. Nomes, locais, horários, conexões tênues que precisavam ser reforçadas. Ele sabia que precisava de acesso a algo mais concreto, algo que os registros públicos não ofereciam.
Se Dick queria provar a identidade do Batman, talvez ele precisasse se aproximar de alguma forma. Ele tinha, sem querer, se envolvido em um caso complexo demais, onde a verdadeira identidade do vigilante era o menor de seus problemas.
O aspirante a jornalista investigativo hesitou, mas apenas por um momento. Ele sabia que sua decisão poderia ter consequências, mas era um risco calculado. Ele abriu o laptop e se conectou ao sistema VPN da polícia de Gotham. Ele não era um hacker profissional, mas tinha experiência suficiente com sistemas para saber onde procurar.
Um na universidade vendeu para ele as credenciais de acesso de um investigador aposentado que pareciam ainda estar ativas. Não foi muito difícil depois disso. Ele só precisava dos arquivos da polícia, saber o que eles sabiam sobre o Batman.
Como esperado, não havia muito, a polícia não sabia muito mais do que ele próprio. No entanto, algumas coisas chamaram atenção de Grayson. O Batman ajudou com o caso do Contador de Histórias, esse foi seu último caso. Pelo menos é o que foi citado nos arquivos policiais.
Dick rapidamente deu uma olhada nas últimas folhas do caso do Contador de Histórias. Da parte encerrada dele, que foi concluída no ano anterior. Era uma sequência de duas palavras, Jigawa e Nigéria , que foram descartadas como “não importantes”. Parecia que recentemente, elas tinham voltado a surgir nos arquivos da polícia.
O aspirante a jornalista investigativo olhou para as palavras por um momento, como se ponderasse seu significado. Ele abriu outra aba no navegador e começou a buscar informações sobre Jigawa.
-Estado no norte da Nigéria - ele murmurou para si mesmo, lendo os primeiros resultados.
Ele não encontrou muito mais do que isso, parecia uma pista fria, sem direção. Ele não sabia o que fazer com isso. No entanto, depois de algumas horas olhando para os dados reunidos, Dick tentou atribuir valores numéricos às letras, usando o sistema onde A representa 1, a letra B representa 2 e assim por diante.
Nigéria: N (14), I (9), G (7), E (5), R (18), I (9), A (1)
Jigawa: J (10), I (9), G (7), A (1), W (23), A (1)
Isso não parecia significar nada exatamente, e o aspirante a jornalista investigativo estava um pouco frustrado. Ele não sabia o que isso podia significar. Grayson continuou olhando os arquivos até adentrar nos acontecimentos atuais do caso. Não havia muito além do que a polícia já havia averiguado. Seus olhos se fixaram por um momento no arquivo de um container, desaparecido a três anos, destinatário desconhecido, listado apenas como “A. Crale Imports”, um nome que, depois de algumas pesquisas, o aspirante a jornalista investigativo logo viu que era uma fachada muito evidente. O número de série do contêiner segue o padrão ISO 6346 utilizado para identificar containers em todo o mundo. Até aí, nada de anormal.
AIGU - 635106 4
Ao olhar com bastante atenção para o número de série por algum tempo, o aspirante a jornalista investigativo se deu conta de uma ligação. Ambas as palavras, tanto Nigéria, quanto Jigawa, compartilhavam a segunda e terceira letra, formando “IG”, que também é o segundo e terceiro dígito do número de série do contêiner. No sistema de identificação de contêineres ISO, os três primeiros caracteres muitas vezes indicam o proprietário ou operador, e a primeira letra “A” poderia muito bem estar associada a “A. Crale Imports”. Já o último, “U”, apenas representa carga, que é padrão para esse tipo de coisa. O número em série, isto é, a sequência de números que vem depois das 4 letras era
Dick olhava para o restante com um olhar cético, o restante não dizia muito, o número de série sequência 635106 com um dígito de controle 4. O aspirante a jornalista investigativo pensou por um momento. Ele sabia que algo ali deveria fazer sentido, mas o quê? A combinação de letras e números parecia um enigma que ele precisava decifrar. Ele rabiscou em seu caderno, conectando palavras, números e ideias, tentando encontrar padrões. Não havia.
6, 3, 5, 1, 0, 6.
Ele tentou somá-los. O resultado foi 21, mas não parecia certo. Isso não se conectava com nada. Dick abriu um mapa dos portos de Gotham. Ele sabia que qualquer coisa com "A. Crale Imports" deveria ter um registro de entrega em um dos portos menores. Depois de pesquisar nos arquivos de movimentação de carga, ele finalmente conseguiu alguma coisa. As atividades da empresa de fachada são de algum momento entre 1998 e 2007 quando suas atividades parecem ter sido suspensas. Não havia dono, não havia nada, apenas outra empresa. Dick deu uma olhada mais de perto, se a A. Crale Imports era de outra empresa de fachada, talvez essa outra empresa tenha registros com outras empresas. Ele precisava averiguar isso com mais calma.
Dick Grayson digitava furiosamente no teclado, seus olhos fixos na tela enquanto explorava o labirinto de informações sobre a A. Crale Imports. Ele sabia que cada camada revelava mais perguntas do que respostas, mas estava determinado a descobrir, o padrão era claro, uma fachada levando a outra, ocultando operações em Gotham que iam além do que a maioria das pessoas poderia imaginar.
Aparentemente, a A. Crale Imports estava vinculada a uma corporação chamada Dynast Global Logistics , que operava internacionalmente até ser dissolvida em 2008. Um nome chamou sua atenção: Awanig Ltd . O aspirante a jornalista parou por um momento, sentindo o sangue correr mais rápido. O nome parecia um amálgama do início da palavra Nigéria e o final de Jigawa. Dick rapidamente abriu outra aba e começou a buscar registros dessa corporação. Os resultados eram vagos, quase inexistentes. Também não havia dono. Eram várias empresas donas de outras empresas. O que elas exportavam e importavam ?
Dick olhou para o relógio. O tempo havia passado em um borrão, e a redação estava quase vazia. Ele guardou a câmera e as anotações na mochila, pronto para sair. Enquanto caminhava para a saída, a mente ainda fervilhava com perguntas. Ele iria descobrir isso.
Notes:
Obrigado a quem acompanhou até aqui. Muito obrigado de coração gente, vocês não sabem o quanto eu adoro escrever isso para vocês :)
Chapter 23: The Gotham We Have (Parte 23)
Notes:
Olá gente, finalmente postando de maneira semanal kkkkkk, desculpem os transtornos. Inclusive, esse capítulo ficou um pouco mais curto do que o anterior, mas isso é porque eu não queria ficar sem postar. Obrigado a todos que acompanham até aqui, vocês são demais :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O relógio na parede da delegacia marcava 8h45 quando Chuck adentrou seu escritório. O ambiente estava abarrotado de papéis acumulados nos últimos dias. O tenente suspirou profundamente, sentindo o peso da negligência em questões administrativas que agora o encaravam de volta. Nos últimos tempos, ele se concentrou demais no caso do Contador de Histórias, e isso deixou outras partes da delegacia funcionando no piloto automático.
Enquanto ele organizava os relatórios acumulados, ele notou um recado do instituto para menores infratores de Gotham. Jason Todd tinha fugido juntamente de outro interno, Timothy Drake. O tenente se recostou na cadeira, esfregando a têmpora com a ponta dos dedos. Jason Todd já era uma peça do quebra-cabeça que ele estava tentando montar, mesmo que ainda não soubesse como encaixá-lo. Ele era mais do que apenas um delinquente juvenil; sua história estava entrelaçada com coisas muito maiores do que simples roubos, algo lhe dizia que isso é mais do que apenas dois adolescentes querendo escapar.
Chuck sabia que isso podia ser um problema, ele não sabia quem tinha trazido Jason para Gotham, mas ele tinha a sensação ruim de que de alguma forma, Jason estava tentando se reconectar com quem quer que seja. O tenente olhou para o recado novamente, o papel amassado entre seus dedos enquanto processava as implicações. Jason Todd não era um garoto comum. Ele era uma peça perdida em um quebra-cabeça que parecia crescer cada vez mais. Tudo apontava para um envolvimento profundo com a criminalidade organizada, mas os detalhes sempre escapavam como areia entre os dedos.
O tenente resolveu procurar um pouco sobre o outro garoto. Não havia nada demais sobre ele, era um prodígio, com pais muito ocupados para ele. Aparentemente se meteu em problemas para chamar atenção dos adultos ao seu redor. Teve várias internações em instituições parecidas para menores infratores, não apenas em Gotham. A sua curta ficha mencionava habilidades excepcionais em programação. Isso não passou despercebido por Chuck. Ele teria que conversar com os pais do adolescente. Se Jason e Timothy fugiram do lugar juntos, é provável que, de alguma forma, eles não tenham se separado, pelo menos não por enquanto, então encontrar Timothy era encontrar Jason.
Chuck pegou o telefone fixo sobre sua mesa e digitou o número de Sarah, ele precisava que ela conversasse com os pais de Timothy, ele não tinha tempo para fazer isso de forma direta, ele tinha muitas coisas para resolver na delegacia ainda.
-Sarah - falou o tenente assim que a agente atendeu - eu preciso que você venha na minha sala, é importante.
Dentro de alguns minutos a gente adentrou a porta da sala de Chuck. Sarah entrou na sala com passos rápidos, fechando a porta atrás de si. O semblante dela era sério, mas havia um traço de curiosidade em seu olhar.
-O que foi Chuck ? - começou a agente - alguma atualização do caso do Contador de Histórias ?
-Não exatamente, Jason Todd fugiu do reformatório, eu não vi isso chegando no meio de tantas coisas, mas enfim - entoou o tenente fazendo uma pausa - ele não fugiu sozinho, saiu com outro interno, Timothy Drake, que era seu colega de quarto.
-Drake ? - perguntou Sarah um com uma expressão um pouco confusa - a família Drake não é uma grande acionista de empresas no exterior ?
-Sim - confirmou o tenente - parece que o garoto me mete em confusões com alguma regularidade, nada muito sério, invasões de sistemas e coisas desse tipo, ele fugiu um dia antes do dia que seu pai iria buscá-lo.
-E porque ele fugiria com Jason ? Ou melhor, porque ele fugiria se iria sair no dia seguinte ? Os pais deles não relataram o desaparecimento ?
Para a agente, isso não fazia muito sentido. Chuck inclinou-se ligeiramente na cadeira, os dedos tamborilando sobre a superfície de madeira de sua mesa enquanto pensava na pergunta de Sarah. Ela estava certa. A fuga de Timothy Drake não fazia sentido à primeira vista. Se ele realmente estava para ser liberado, por que arriscar tudo fugindo ?
-Eu não faço ideia - admitiu o tenente com um suspiro - adolescentes não fazem muito sentido de qualquer forma, mas eu preciso que você converse com os pais do Timothy, não sei se eles relataram o desaparecimento, ainda vai fechar 48 horas do ocorrido.
-Certo - falou a gente depois de um momento de silêncio - eu vou chamar os pais de Timothy para um depoimento, você acha que podemos encontrar Jason através do outro garoto ?
-É uma possibilidade - confirmou o tenente.
Sarah ficou em silêncio por um momento. Chuck parecia exausto.
-Você andou dormindo ? - perguntou a agente.
-Não muito - admitiu Chuck - ontem a noite eu fui falar com Jim, eu precisava da visão de alguém que não está mais envolvido com o caso do Contador de Histórias, mas alguém que eu possa confiar.
Sarah ergueu as sobrancelhas, mas não comentou sobre a escolha de Chuck. Ela sabia que o ex-comissário ainda era uma referência para muitos, mesmo fora da força policial. Fazia tempo que ela não falava com o outro homem. A história deles ainda pesava sobre ela. No entanto, com o recente divrcio com Bárbara, ela não queria pressionar Gordon.
-E o que Jim acha ? - perguntou ela, com um semblante controlado.
-Que devemos dar mais crédito ao Batman do que estamos no momento - suspirou o tenente - eu sei que Jim já está aposentado, e que não posso envolvê-lo nisso de forma oficial, mas não sei mais em quem posso confiar.
-E Timothy? - perguntou Sarah, retornando ligeiramente ao assunto anterior - você acha que ele está ajudando Jason... ou sendo manipulado?
Chuck inclinou-se na cadeira, com os olhos fixos em um ponto na mesa.
-Considerando o histórico de Jason, ele sabe como sobreviver por aí - entoou o tenente - Timothy pode ser brilhante, mas não parece ser o tipo que saberia se cuidar sozinho nas ruas, não sei se ele está sendo manipulado, mas se eles estão juntos mesmo após a fuga, Jason é quem está liderando.
Sarah observou Chuck por um momento, avaliando a situação. Havia tantas peças soltas nesse quebra-cabeça que parecia impossível organizá-las.
-Tudo bem, eu vou falar com os Drake´s - falou ele dando meia-volta para sair da sala, mas parando na porta - e, Chuck... tente dormir um pouco, você não vai resolver nada se estiver acabado.
Assim que a porta se fechou, Chuck voltou a olhar para os relatórios em sua mesa. Ele sabia que não podia perder mais tempo. O desaparecimento de Jason e Timothy tinha implicações maiores do que ele gostaria de admitir. O tenente estava pensando em como otimizar seu tempo, ele precisava de ajuda, nesse ritmo ele ia perder de vista as coisas que estão acontecendo.
Chuck suspirou por um momento. Pelo menos, Castro estava tão ocupado com o caso das gangues que não parecia se importar, ou ainda, não parecia notar a movimentação da do tenente ao redor do caso do Contador de Histórias. Ele sabia que eventualmente, os olhos do atual comissário se desviaram para as atividades do tenente, mas até lá, Chuck ainda tinha um tempo para ver o que iria fazer. Ele não queria envolver Jim nisso, mas com os problemas atuais, ele não sabia mais o que fazer.
Chuck inclinou-se para trás na cadeira, os olhos fixos no teto da sala enquanto sua mente vagava. O caso do Contador de Histórias continuava sendo uma sombra persistente, envolvendo tudo ao seu redor. Ele sabia que a fuga de Jason Todd e Timothy Drake não era apenas uma coincidência. Nada em Gotham era apenas coincidência.
Ele olhou para a pilha de relatórios do caso que estavam no canto da mesa. As charadas do Contador de Histórias ainda ecoavam em sua mente.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?"
"Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?"
Essas palavras pareciam zombar dele a cada momento. Chuck já havia analisado essas charadas até a exaustão, tentando encontrar uma conexão lógica, mas até agora, nada. Cada pista que surgia parecia apenas adicionar mais camadas a um quebra-cabeça que ninguém conseguia resolver. Chuck já tinha lidado com isso antes, mas dessa vez, era ele quem estava conduzindo a investigação. O peso da responsabilidade pairava sobre sua cabeça. Ele não era novo no jogo, mas pela primeira vez, ele era o principal jogador.
Cada movimento parecia meticulosamente planejado, cada pista uma peça de um jogo maior. Mas qual era o objetivo final? Chuck sentia que, se conseguisse entender isso, poderia começar a desvendar o resto.
E agora, com a fuga de Jason Todd, tudo parecia ainda mais intricado. Jason tinha conexões indiretas com Samuel Rise, através de sua mãe adotiva, Margareth Todd. E isso estava, de alguma forma, ligado ao emaranhado de charadas e peças de quebra cabeça articuladas pelo Contador de Histórias. Mas como exatamente? Jason era apenas uma vítima sendo usada como um peão, ou havia algo mais? Quem o trouxe novamente para Gotham ?
Jason estava atrás da sua mãe biológica, então, com certeza prometeram ajuda para ele. Mas porque Jason não falou com a polícia mesmo depois de ter sido entregue pelo quem quer que o tenha trazido ? Jason estava sendo chantageado ? Ele achava que ainda poderia ganhar ajuda se não dissesse nada ?
Ele se levantou da cadeira e foi até a janela, olhando para a rua movimentada lá fora. Gotham parecia tranquila naquela manhã, mas ele sabia que era apenas uma fachada. A cidade estava sempre à beira do caos, e casos como o do Contador de Histórias eram um lembrete constante disso.
Chuck se lembrou da conversa com Gordon. O ex-comissário tinha razão, o Batman ainda era um aliado crucial nesse caso. Mas confiar no vigilante não era algo fácil para Chuck. Ele respeitava o que o Batman fez pela cidade nos últimos anos, mas a ideia de depender de alguém tão fora do sistema lhe incomodava profundamente, principalmente agora. Ainda assim, ele sabia que precisava de todas as ajudas possíveis.
O telefone tocou, interrompendo seus pensamentos. Ele atendeu automaticamente.
-Tenente, é Sarah - disse a voz do outro lado - acabei de ligar para os Drake´s, a governanta da casa, disse que eles concordaram em vir à delegacia para uma conversa, eu estou organizando isso agora.
-Ótimo, me mantenha informado se alguma coisa no quadro mudar - respondeu o tenente antes de desligar.
Ele olhou novamente para o rabisco que havia feito no papel anteriormente em algum momento ao longe de seus pensamentos. As palavras das charadas ao lado das conexões que tentava montar. Tudo parecia estar levando a algum lugar, mas Chuck ainda não conseguia enxergar o quadro completo. Era como se estivesse olhando para um quebra-cabeça com peças faltando, e ele não sabia onde encontrá-las.
O Contador de Histórias não era apenas um criminoso qualquer, ele era um estrategista. Cada movimento dele parecia destinado a fazer as pessoas se perderem em suas próprias dúvidas, em seus próprios erros. E, de alguma forma, ele estava conseguindo.
Ele pegou o telefone novamente, desta vez discando o número de Jim. Talvez fosse hora de trazer o ex-comissário para a mesa, oficialmente ou não.
—--------
A batida na porta era firme, decidida, ecoando pelo pequeno apartamento com uma insistência que Bruce não podia ignorar. Ele olhou para o monitor à sua frente, os olhos cansados, o rosto marcado pela exaustão. Câmeras de segurança piscavam na tela, arquivos abertos em desordem. O apartamento estava mergulhado na penumbra, a única luz vindo do brilho frio do computador. Ainda era de manhã, Bruce sabia de alguma forma, mas não exatamente que horas eram. Tinha amanhecido algumas horas atrás e ele fechou as cortinas.
O ex-bilionário passou a mão pelo cabelo desgrenhado, respirando fundo. A garrafa de uísque na mesa ao lado estava quase vazia, um lembrete silencioso do quanto ele vinha negligenciando a si mesmo. Ele tinha passado a madrugada inteira tentando de alguma forma delimitar ainda mais os 2 km de perímetro. Ele não podia pedir ajuda de Chuck sem um perímetro mais preciso.
Há algo errado com as atividades de Samuel Rise. As compras, os registros… eles mudaram de padrão de repente. Antes, os registros eram consistentes. Produtos básicos. Mas, no dia anterior, tudo ficou irregular, extrapolando os 2 km. Pequenas compras de itens aleatórios, fora do perímetro. Ou eles perceberam que alguém está os seguindo, ou há um conflito interno. Isso era ruim.
A batida soou novamente, mais forte desta vez. Bruce se levantou com relutância, tropeçando ligeiramente ao cruzar o espaço apertado do apartamento. Ele abriu a porta com um puxão rápido.
-Harvey - disse Bruce, a voz rouca olhando para o loiro em frente a sua porta.
Ele não queria falar com Harvey, embora ele soubesse que em algum momento isso aconteceria, afinal, Bruce não estava indo trabalhar. Era apenas uma questão de tempo até que Harvey batesse em sua porta. No entanto, o Wayne não estava com tempo para isso no momento, mas Dent estava parado ali e não ia sumir magicamente, sua expressão uma mistura de preocupação e irritação. Ele estava impecavelmente vestido, como sempre, mas seus olhos estavam fixos em Bruce, avaliando-o com um olhar clínico.
-Eu deveria perguntar o que aconteceu com você, mas acho que já sei - disse o promotor público cruzando os braços - Rachel me pediu para vir aqui, você não aparece na promotoria há quase uma semana, e ela está preocupada, e agora que estou vendo você... bem, talvez com razão.
Bruce balançou a cabeça, um gesto que parecia mais de cansaço do que de negação.
-Eu estou ocupado agora - respondeu ele, a voz baixa mas espinhosa, tentando finalizar a conversa.
-Ocupado ? - indagou Harvey com uma expressão azeda - talvez você não saiba como é viver no mundo real Wayne, mas as pessoas normais têm empregos e precisam comparecer neles para não serem demitidas, não é um hobby que você pode abandonar porque sua vida pessoal está caótica.
Bruce apertou a mandíbula, tentando conter a irritação crescente. Ele sabia que Harvey estava certo, mas isso não tornava suas palavras menos insuportáveis. O ex-bilionário se encostou na porta, cruzando os braços enquanto encarava o promotor público com olhos pesados.
-Eu não preciso de uma lição de moral, Harvey - respondeu Bruce, o tom seco - se já disse o que precisava, só vai embora e me deixa trabalhar, minha vida pessoal não é da sua conta.
Harvey bufou, passando a mão pelo cabelo loiro, claramente frustrado.
-Rachel está preocupada com você.
-Fale para Rachel que eu estou bem, que vou visitar ela em breve quando as coisas se ajeitarem - falou o moreno simplesmente.
-Não funciona assim, Wayne - suspirou o promotor público fazendo uma pausa - eu posso entrar ?
Por um momento, o silêncio pairou entre eles, pesado e cheio de coisas não ditas. Bruce desviou o olhar, os ombros caindo levemente como se o peso do mundo estivesse nele. Harvey ficou parado ali, claramente hesitante, mas por fim, suspirou e deu um passo para trás.
-Olha Bruce - falou Harvey quebrando em silêncio, ele dificilmente chamava o moreno pelo primeiro nome - Rachel está preocupada com você, eu sei que a gente nunca se deu realmente bem, mas estou aqui porque a amo, e você é o melhor amigo dela.
Bruce ficou em silêncio, as palavras de Harvey ecoando em sua mente enquanto seus olhos caíam no chão entre eles. Ele sabia que Rachel estava preocupada, e, em algum nível, ele também sabia que Harvey tinha razão. Mas o fardo que ele carregava era algo que ele não podia compartilhar, nem com Rachel, nem com Harvey, nem com ninguém.
-Eu agradeço a preocupação, Harvey - disse Bruce finalmente, sua voz mais controlada - mas, honestamente, eu não preciso disso agora.
Harvey suspirou, cruzando os braços enquanto inclinava levemente a cabeça para o lado, o olhar avaliador voltando para o rosto de Bruce.
-Sabe, Wayne, você diz isso, mas olha para você - Harvey apontou para o interior do apartamento - passando noites em claro, bebendo, trancado nesse buraco, fazendo sei lá o que.
Bruce sentiu uma faísca de raiva subir por seu peito, mas ele a conteve. Ele sabia que Harvey não estava ali para atacá-lo, mas as palavras eram difíceis de engolir, mesmo assim.
-Você não entende, Harvey - a resposta de Bruce foi firme, mas carregada de algo mais profundo, algo que ele não conseguia esconder completamente.
-Eu entendo, eu sei que o Coringa desapareceu - falou o promotor calmamente - você se esquece que eu ainda tenho minhas conexões com a delegacia, mesmo depois da aposentadoria do comissário Gordon.
O silêncio que se seguiu foi tenso. Harvey observava Bruce com olhos estreitos, como se tentasse ver além da fachada de raiva.
-O que eu quero dizer, Wayne - continuou Harvey depois do momento de silêncio - é que você deixe isso para a polícia, não sei o que você está fazendo, mas não vai ajudar, apenas…cuide de si mesmo, você sabe que o Coringa sabe se cuidar sozinho.
Bruce apertou os punhos ao ouvir as palavras de Harvey. Elas o atingiram como um golpe direto, mas ele não deixou transparecer. Em vez disso, manteve sua postura rígida, olhando para o promotor público com um olhar frio, quase desafiador.
O silêncio que se seguiu foi denso. Bruce respirou fundo, tentando controlar a raiva que ameaçava dominá-lo. Ele sabia que Harvey estava tentando ajudar, mesmo que da pior maneira possível.
-Eu não preciso da sua ajuda, Harvey - disse Bruce finalmente, sua voz mais controlada, mas ainda cheia de uma frieza cortante - e, francamente, não preciso da sua opinião.
Harvey estreitou os olhos para o tom usado pelo moreno, ele não gostava quando o ex-bilionário falava assim com ele. Quem Wayne pensava que era ? Ele não tinha tempo para os momentos de estrelismo do ex-playboy. Harvey só estava ali fazendo seu papel como marido de Rachel. Ele deu um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Bruce como se para sublinhar sua irritação.
-Olha, Wayne, você pode enganar muita gente com esse seu teatrinho de mártir, mas não comigo - disse ele, sua voz mais firme agora, carregada de frustração - você está aí, trancado nesse apartamento, bebendo como se o mundo estivesse acabando, e eu sei que está sofrendo, mas só está deixando as pessoas que se preocupam com você preocupadas.
Bruce cerrou os dentes, a mandíbula rígida enquanto tentava manter o controle.
-Eu já disse, Harvey, eu estou ocupado.
-Sim, você disse - repreendeu o promotor - você por acaso pensou em ligar para Alfred nos últimos dias ? Para Rachel ?
O Wayne se virou, andando alguns passos para longe da porta, como se precisasse de distância para conter a raiva. Ele adentrou no apartamento, acendendo as luzes da sala, Dent entrou atrás dele. Bruce se aproximou da mesa, pegando a garrafa de uísque e despejando o resto do conteúdo em um copo. O silêncio entre os dois era denso.
Bruce levou o copo aos lábios e bebeu o conteúdo ardente em dois goles rápidos antes de voltar a encarar o promotor.
-Sabe o que eu acho, Wayne? - começou Harvey quebrando novamente o silêncio, o tom endurecendo - eu acho que pela primeira vez na vida, você não tem dinheiro ou poder para mascarar seus problemas.
Bruce apertou o copo na mão, sua paciência se esgotando rapidamente. Ele sabia o que parecia para alguém que conhecia apenas o “Playboy Bruce Wayne”, mas ele não estava com paciência para isso.
-Se veio aqui para me insultar, Harvey, a porta está logo ali - disse o moreno simplesmente.
-Eu vim aqui porque Rachel me pediu, porque ela se importa com você, mesmo que você não mereça - Harvey deu um passo para trás, sua voz ainda ríspida - talvez você não queira ajuda, talvez você prefira continuar se afogando nessa sua autopiedade.
Bruce desviou o olhar, seus olhos fixos no copo vazio em sua mão. Ele sabia que Harvey não estava errado sobre Rachel, mas isso não tornava a conversa mais fácil. Ele soltou um suspiro pesado, como se carregasse o peso do mundo nas costas.
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Harvey olhou para Bruce por mais alguns segundos, como se esperasse alguma reação, algum sinal de que suas palavras haviam surtido efeito. Mas tudo o que recebeu foi o olhar frio e impenetrável de Wayne.
-Você conseguiria dormir a noite se alguma coisa acontecesse com Rachel ?- falou o moreno depois de um momento - não venha me julgar se você não sabe o que estou passando agora.
Harvey respirou fundo, tentando controlar sua própria irritação. Ele percebeu que estava batendo de frente com um muro. Bruce, com toda sua teimosia, não estava disposto a ceder. Ainda assim, as palavras do moreno o atingiram de maneira inesperada. Ele franziu o cenho, ponderando antes de responder.
-Não me diga que isso é o mesmo, Bruce - retrucou o promotor - o Coringa é um assassino sanguinário, mesmo que ele não tenha feito nada nos últimos tempos, isso não muda tudo que ele já fez nessa cidade, sem ofensa, mas o cara não é nenhuma pessoa indefesa.
Bruce apertou os punhos ao ouvir a resposta de Harvey, os músculos de sua mandíbula se contraindo enquanto ele segurava a raiva que fervia sob a superfície. Ele sabia que essa conversa não iria a lugar nenhum, não com Harvey preso à sua visão de mundo, mas as palavras do promotor ainda o perfuravam como facas.
-Você acha que eu não sei disso? - a voz de Bruce era baixa, mas carregada de intensidade contida, como se ele estivesse lutando para não explodir. Ele colocou o copo vazio na mesa com mais força do que pretendia, o som ecoando pelo apartamento - você acha que eu não sei exatamente quem é a pessoa com quem me casei ?
Bruce parou, respirando fundo, tentando recuperar o controle. A verdade estava presa em sua garganta, dolorosa demais para ser dita. Ele sabia que Harvey não entenderia, que ninguém entenderia. Não era que ele não confiasse no Coringa para se defender sozinho, ele sabia que o palhaço sabia se virar. A questão é que ele não podia evitar se preocupar.
Harvey deu um passo à frente, aproximando-se o suficiente para que o cheiro de álcool fosse inegável.
-Bruce, eu não entendo você - começou o promotor - eu não entendo como você, o homem que todos achavam que tinha tudo, está aqui agora, desse jeito, enfurnado em um apartamento sujo, se jogando no fogo por alguém que não vale a pena.
Bruce olhou para o outro homem por um momento, um olhar quase cortante. Ele balançou a cabeça, passando a mão pelo rosto antes de dizer:
-Você não sabe nada sobre ele, não sabe nada sobre mim - Bruce se aproximou, sua voz ficando mais grave, mais intensa - você vê o que quer ver, o que todo mundo sempre viu de mim, o bilionário mimado que teve tudo na vida entregue de bandeja.
Harvey respirou fundo. Ele deu um passo para trás, em direção à porta.
-Olha, eu vim aqui porque Rachel se preocupa com você, só isso.
Com essas palavras, Harvey abriu a porta e saiu, deixando Bruce sozinho no silêncio sufocante do apartamento. Bruce permaneceu parado por um momento, olhando para a porta fechada. As palavras de Harvey ecoavam em sua mente, misturando-se com seus próprios pensamentos turbulentos.
Ele voltou para a cadeira, sentando-se pesadamente. Seus olhos se voltaram para o monitor, as imagens das câmeras de segurança ainda piscando diante dele. Bruce passou as mãos pelo rosto, tentando limpar a mente, mas a sensação de desespero persistia. Ele fechou os olhos por um momento, respirando fundo. Quando os abriu novamente, sua expressão era de aço. Ele tinha um trabalho a fazer.
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Timothy Drake ajustou a posição no banco desconfortável do computador público na pequena biblioteca comunitária de Gotham. As teclas estavam desgastadas, e o monitor exibia uma resolução baixa, mas isso não importava. O garoto era um prodígio, e sua mente afiada compensava qualquer limitação tecnológica. Ele sabia que estava fazendo algo perigoso, mas o risco era um combustível que ele não podia ignorar.
Na tela, o logo da empresa de seu pai, Drake Consolidated, piscava. Tim havia conseguido acessar o sistema interno através de uma série de brechas que conhecia desde que aprendera, por curiosidade, a programar aos nove anos. Ele nunca havia imaginado que um dia utilizaria essas habilidades para algo assim.
"Usuário: Administrador | Senha: ... Acesso concedido."
Tim sorriu levemente. Ele era bom no que fazia, mas mesmo assim, cada pequeno sucesso era uma vitória. Ele acessou a lista de funcionários, buscando informações sobre Edward Nashton, O nome apareceu rapidamente, junto com um endereço residencial. Tim inclinou-se para frente, memorizando cada detalhe. Ele ainda não sabia porque estava ajudando Jason, talvez fosse o tédio, ou apenas para ver até onde o outro adolescente iria.
Ele imprimiu os dados em uma pequena folha e no mesmo instante, apagou qualquer vestígio de sua pesquisa, excluindo o histórico de acessos. Ele não queria arriscar chamar atenção desnecessária.
Tim desligou o computador com um suspiro aliviado. A biblioteca estava quase vazia, e a única companhia que tinha era o som baixo de páginas sendo viradas e o zumbido dos computadores antigos. Ele deslizou a folha impressa para dentro do bolso interno do casaco e saiu, mantendo o capuz puxado para cobrir o rosto.
Jason havia sido claro, ou pelo menos tão claro quanto Jason conseguia ser. Miranda Tate era a única pista que ele tinha sobre sua mãe biológica. Tim sabia que o outro adolescente não era exatamente um planejador, e talvez fosse esse o motivo para ele estar ajudando.
Jason já estava esperando no local combinado, um beco apertado e mal iluminado que fedia a lixo e abandono. Ele estava encostado na parede com os braços cruzados, uma expressão de irritação impaciente no rosto. Ao ver Tim se aproximar, Jason ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada.
Tim parou em frente a ele, tirando a folha do bolso e segurando-a na frente do outro garoto.
-Aqui está - disse Tim, com um tom casual - Edward Nashton, contador da Drake Consolidated, esse é o endereço residencial dele.
Jason pegou a folha, os olhos rapidamente escaneando as informações. Ele franziu o cenho enquanto lia. O adolescente olhou para Tim, avaliando-o. Ele sabia que o garoto era esperto, mas às vezes, parecia que Tim estava mais interessado no desafio do que em realmente ajudá-lo.
-Você realmente acha que ele pode ajudar ? - indagou Jason.
-Eu te disse, talvez ele possa - falou Tim sem rodeios - mas não tenho outra ideia no momento, você não sabe nada sobre sua mãe, não tem nada além dessa mulher que te trouxe para Gotham, então estamos jogando com as probabilidades.
—---------
A campainha soou como um eco distante no apartamento escuro, era algum momento da tarde. Bruce, com os olhos fixos no monitor, mal registrou o som à princípio. As imagens das câmeras de segurança e os mapas piscando na tela capturavam sua atenção enquanto ele fazia anotações rápidas sobre os padrões de movimento e compras relacionadas a Samuel Rise.
A campainha soou novamente, desta vez acompanhada de batidas decididas na porta. Bruce suspirou, irritado, e se levantou, caminhando até a entrada. Ele abriu a porta com um puxão seco, pronto para dispensar qualquer interrupção. Mas em vez de um rosto conhecido ou esperado, encontrou o rapaz que o estava seguindo. O jovem parecia ter um talento especial para se meter onde não era chamado.
-Eu preciso falar com você - começou o rapaz, olhando diretamente para Bruce.
Bruce estreitou os olhos, apoiando uma das mãos na moldura da porta como se já estivesse prestes a fechá-la novamente.
-E o que seria ? Eu não me lembro de conhecer você - falou o moreno com um tom neutro. Ele não estava com paciência, ele queria voltar para o que estava fazendo.
Grayson respirou fundo, ignorando o tom ríspido de Bruce e a postura claramente defensiva. Ele sabia que não seria fácil, mas não tinha vindo até ali para recuar.
-Meu nome é Richard Grayson, e acho que descobri algo importante sobre o caso do Contador de Histórias - disse ele, com a voz firme, embora fosse evidente que estava nervoso - eu sei que você está envolvido… de alguma forma.
Bruce arqueou uma das sobrancelhas, o olhar frio e avaliador na direção do aspirante a jornalista investigativo.
-Não sei do que está falando - respondeu o moreno, inclinando a cabeça levemente, o tom seco - e mesmo que eu soubesse, não vejo por que isso seria da sua conta.
Dick deu um passo à frente, empurrando a porta levemente antes que Bruce pudesse fechá-la completamente. Havia determinação em seu olhar.
-Escute, eu não sou estúpido - disparou o jovem, a frustração transparecendo em sua voz - eu sei quem você é, ou pelo menos quem eu acho que você é, eu…eu vi o Batman outra noite, estava investigando o caso também, não estava?
Bruce manteve-se imóvel por um momento, o rosto impassível. Ele não deu nenhum indicativo de responder o jovem. O silêncio entre eles era palpável.
-Se viu alguma coisa, deveria pensar duas vezes antes de se envolver - disse Bruce, finalmente, sua voz baixa, mas carregada de autoridade - não sei quem você pensa que eu sou, mas você está enganado
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de tensão. Bruce segurou a maçaneta da porta com mais força, mas não a fechou. Algo na determinação de Dick o impedia de dispensá-lo tão facilmente.
-Eu passei as duas últimas noites debruçado sobre algumas pistas que reuni nos arquivos da polícia,“A. Crale Imports”, que está registrada como uma empresa de fachada nos arquivos da polícia está conectada a uma cadeia de outras empresas, todas desaparecendo ou sendo dissolvidas ao longo dos anos - falou Dick - eu encontrei uma ligação com uma corporação chamada “Awanig Ltd.”...bem, o nome chamou minha atenção porque parece uma fusão de Nigéria e Jigawa, aquelas duas palavras que continuam aparecendo nos arquivos da polícia.
Bruce inclinou levemente a cabeça, os olhos estreitados enquanto processava as informações.
-Continue - disse ele.
-Não há quase nada sobre a “Awanig Ltd”., mas pelo pouco que consegui encontrar, ela parecia operar internacionalmente, especialmente em portos menores, eles moviam contêineres de “bens diversos” de maneira completamente irregular, e depois…bem, a empresa desapareceu como as outras - o aspirante a jornalista investigativo fez uma pausa, avaliando a reação de Bruce - você acha que isso é uma coincidência?
Bruce ficou em silêncio, seus olhos fixos em Dick, mas sem revelar nada. Por dentro, sua mente estava trabalhando rápido, conectando as informações com o que ele já sabia. Ele sabia que Dick estava certo sobre uma coisa: coincidências eram raras em Gotham.
-Você devia encaminhar isso para a delegacia da cidade - falou o moreno depois de um momento.
-Eu não tenho tempo para isso - disse o outro homem, seu tom era determinado - eu sei que você está procurando o Coringa, sei que você precisa de ajuda, precisa da minha ajuda, talvez eu esteja errado sobre você ser o Batman, mas você ainda precisa da minha ajudam, morcego ou não.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Bruce fechou os olhos por um momento, a mandíbula apertada enquanto decidia o que fazer. Ele odiava ser colocado contra a parede, mas algo sobre a determinação de Dick o impediu de simplesmente dispensá-lo.
-Entra - disse Bruce, abrindo mais a porta.
Dick piscou, surpreso, mas não hesitou. Ele entrou no apartamento, observando o espaço desordenado e sombrio. Havia mapas espalhados pela mesa, e o brilho do monitor destacava as feições cansadas de Bruce.
-Me mostre o que você tem - disse Bruce, sentando-se novamente diante do computador.
Dick tirou a mochila das costas, tirando rapidamente suas anotações e um pen drive.
-Tudo está aqui - disse ele, entregando o dispositivo para Bruce.
Bruce conectou o pen drive ao computador, os olhos fixos na tela enquanto os dados de Dick se carregavam. Ele sabia que estava correndo riscos ao confiar em um garoto que mal conhecia, mas, ao mesmo tempo, sabia que Dick tinha feito um trabalho sólido. E, acima de tudo, sabia que não podia ignorar uma pista que podia ser a chave para encontrar o Coringa.
Enquanto os dados carregavam a fazer sentido, Bruce olhou de relance para Dick. O garoto era teimoso, ousado e imprudente. Mas, naquele momento, Bruce viu algo mais, uma centelha de algo que ele não via há muito tempo. Determinação genuína. Talvez, só talvez, Dick pudesse ser mais útil do que ele imaginava.
-Esse lugar está sinistro - falou Dick quebrando o gelo.
-Não tenho tido muito tempo para arrumar - falou o moreno sem desviar o olhar do computador - senta aí e não toca em nada.
Bruce analisava os dados no computador com olhos treinados, absorvendo as informações que Dick havia trazido. A conexão entre as empresas de fachada e os portos menores era intrigante, mas ainda havia lacunas. Era de se esperar obviamente, afinal, Dick não era experiente nesse tipo de coisa. No entanto, o trabalho era estranhamente coeso, ele tinha potencial.
Dick observava Bruce em silêncio por um momento, sentando-se em uma cadeira próxima. Ele estava tentando entender o que passava pela cabeça do ex-bilionário, mas o rosto de Bruce era um muro intransponível.
-Então… - começou Dick, inclinando-se para frente - você vai me dizer o que está realmente acontecendo ou vai continuar fingindo que não sabe nada?
Bruce parou por um momento, os dedos pairando sobre o teclado. Ele olhou para Dick com um olhar frio e direto.
-Eu não sou o Batman - respondeu ele, sua voz firme, mas sem levantar o tom.
Dick não recuou. Ele cruzou os braços, inclinando-se levemente na cadeira, a expressão desafiadora.
-Certo, você não é o Batman - disse ele com um tom desafiador - então porque me deixou entrar ?
Bruce apertou os lábios, mas manteve a compostura. Ele sabia que Dick era perspicaz, mas não podia confirmar nada. Ainda assim, o garoto havia trazido informações úteis, e talvez ele pudesse ser mais um recurso do que um problema.
-Porque isso pode acabar me ajudando a encontrar o Coringa, a polícia está sobrecarregada, lenta demais e nem sequer está se dando ao trabalho - falou o moreno em um tom neutro, era verdade de alguma forma. Chuck não estava mexendo um único palito para encontrar o Coringa.
Bruce voltou sua atenção para a tela do computador em silêncio, analisando as informações do pen drive de Dick com uma intensidade que parecia absorvê-lo completamente. Ele sabia que não podia ignorar o que o garoto havia trazido, mas também sabia que precisava manter uma barreira. Qualquer aproximação excessiva poderia expor coisas que ele não estava disposto a compartilhar.
Dick, por outro lado, sentia que estava fazendo algum progresso, mesmo que mínimo. Ele estudava Bruce atentamente, tentando decifrar algo além do muro emocional que o ex-bilionário havia erguido.
-Então, qual é o plano? - perguntou Dick, quebrando o silêncio novamente.
-O plano é eu analisar isso e ver o que tem aqui — respondeu Bruce sem desviar os olhos da tela, seu tom seco - e você fica longe de tudo que possa colocar sua vida em risco.
Dick bufou, cruzando os braços. Ele não estava satisfeito com isso.
-Não sou exatamente o tipo de pessoa que fica longe, passei duas noites sem dormir para juntar essas informações, então vou simplesmente dar as costas agora.
Bruce parou por um momento, os dedos pairando sobre o teclado. Ele sabia que Dick não ia recuar, e, apesar de irritante, essa teimosia poderia ser útil. Ainda assim, ele não podia permitir que o garoto mergulhasse ainda mais fundo nesse caso.
-E o que exatamente você pretende fazer? - perguntou Bruce, finalmente voltando-se para Dick - seguir as pessoas pelas ruas como tem feito até agora ? Fazer perguntas e esperar que ninguém perceba? Você tem ideia do que está enfrentando?
O aspirante a jornalista investigativo manteve a postura firme, mas algo em seu olhar revelou que ele sabia, ao menos parcialmente, os riscos que corria.
-Não, eu não sei exatamente - admitiu ele, sua voz calma - mas tropecei em uma coisa, e não vou me afastar.
Bruce segurou um suspiro, voltando os olhos para a tela. O garoto era corajoso, mas também claramente inexperiente.
-Certo - disse Bruce finalmente, sem desviar o olhar do monitor - mas você segue as minhas regras, e a primeira delas é simples, se eu disser para você sair, você sai, entendeu?
Dick assentiu rapidamente, um brilho de determinação em seus olhos.
-Entendido.
Bruce inclinou-se para a frente, os olhos percorrendo as informações na tela enquanto começava a conectar os pontos deixados pelas empresas de fachada e os registros portuários. Ele percebeu que havia mais perguntas do que respostas, mas, pelo menos, agora tinha uma direção.
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O banheiro estava mergulhado em um silêncio inquietante, quebrado apenas pelo som gotejante de uma torneira que insistia em pingar, cada gota caindo como um marcador de tempo. O Coringa, sentado no chão, os braços puxados para trás pelas correntes presas à mesma pia velha que estava atrás de si, estava inquieto. Seu sorriso usual estava ausente, substituído por uma expressão de concentração.
Ele inclinou a cabeça para trás descansando na porcelana fria da pia, observando o teto encardido como se fosse o céu, um sorriso torto se formando em seus lábios cheio de cicatrizes. Ele sabia que Andy estava fora, provavelmente lidando com alguma "atividade moralmente ambígua". E sabia que o homem voltaria. Andy sempre voltava.
Para sair, o louco sabia que não precisava de força, seria meio inútil no momento, considerando sua situação Ele precisava de controle, e Andy, apesar de toda a sua violência não-física friamente calculada, era humano. Humanos eram manipuláveis. Estava na hora de dobrar as apostas. Se ele não pudesse jogar Andy e Sam um contra o outro, ele tentaria táticas um pouco menos ortodoxas. O Coringa sabia que Andy nutria por ele um sentimento torto e confuso, um misto de ódio frio, culpa hesitante e... algo que quase parecia um carinho esquisito. Ele iria explorar isso. Era hora de usar as cartas certas nesse jogo. Era hora de mudar de abordagem.
Com um movimento rápido, ele se lançou para frente e, em seguida, jogou sua cabeça para trás com força, batendo violentamente a nuca contra a pia. O palhaço sentiu a onda de dor subir por sua nuca e irradiar pela cabeça. O som ecoou pelo banheiro, um estrondo oco e perturbador que ressoou na porcelana e nas paredes estreitas. Sua visão turvou por um momento, sem foco. Ele fez uma pausa, sentindo a dor latejante se espalhar ainda em ondas, mas não parou.
Cerrando os dentes, ele bateu a cabeça novamente, desta vez com mais força. A porcelana estremeceu levemente com o impacto, mas manteve sua integridade. O som seco ecoou ainda de forma doentia, e ele sentiu algo quente escorrer pela nuca. Sangue.
O branco da pia começou a se tingir de vermelho enquanto ele batia a cabeça uma terceira e quarta vez. Fragmentos minúsculos de esmalte da pia saltaram com o impacto, espalhando-se pelo chão imundo. O Coringa parou, descansando a cabeça na porcelana ensanguentada, o peito subindo e descendo em respirações rápidas e controladas, um zumbido constante preenchendo seus ouvidos.
O Coringa flexionou os dedos já deslocados em suas amarras, pressionando o anelar com força contra o chão. Seus olhos quase se reviraram no crânio quando o dedo soltou um estalo doentio e cedeu contra a força empregada. O Coringa sorriu, um sorriso maníaco e quase infantil.
No momento seguinte, o ex-terrorista esfregou a cabeça úmida de sangue pegajoso na porcelana atrás de si com um sorriso zombeteiro, antes de morder a língua com força suficiente para sangrar. Ele distraidamente passou a língua ensanguentada pelos lábios com um sorriso sangrento e cruel, enquanto o sangue escorria lentamente pela mandíbula. Seus olhos brilhavam com uma mistura de dor, adrenalina e uma satisfação doentia.
Ele observou o padrão das gotas, a mente trabalhando em um frenesi calculado. O palhaço deixou escapar uma risada baixa e rouca, enquanto sentia a adrenalina misturada à dor pulsando por seu corpo. Ele daria ao ex-psiquiatra algo para brincar. Se Andy achava que podia mantê-lo acorrentado em uma banheiro sujo como um maldito cachorro, ele iria mostrar ao outro homem que estava errado. Estava na hora de jogar com as cartas que tinha nas mãos.
Notes:
Se você leu até aqui comente para me deixar feliz :) Faz o meu dia kkkk
Chapter 24: The Gotham We Have (Parte 24)
Notes:
Oi gente, mais um capítulo lançado no dia certo. Finalmente estou conseguindo manter isso de forma semanal. Qualquer erro de digitação, me desculpem, mas é que as coisas estão corridas e eu não tenho tempo de ler tudo antes de postar.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O apartamento estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pela luz amarelada de uma lâmpada que vinha de um poste de luz na rua. O cheiro de cigarro barato e álcool pairava no ar, misturando-se com um perfume enjoativo de baunilha. Andy jogou as chaves sobre a mesa de qualquer jeito, um barulho seco ecoando pelo espaço apertado.
Atrás dele, uma mulher loira entrou, seus saltos finos batendo ritmicamente contra o chão de madeira desgastado. Ela era bonita de um jeito fabricado os cabelos loiros caindo em ondas meticulosamente planejadas. Andy observou-a com um olhar clínico enquanto pegava uma lata de cerveja na geladeira na pequena cozinha.
-Pode se sentir em casa - murmurou ele, sem muita emoção, abrindo a lata enquanto caminhava de volta para a sala.
A mulher, que ele não se preocupou em saber o nome, passou os olhos pelo apartamento de maneira avaliadora. O local era pequeno, quase claustrofóbico, com móveis básicos e sem decoração. Para ela, não importava. Já havia estado em lugares muito piores.
-Você sempre é tão... acolhedor? - ela perguntou com um meio sorriso, jogando a bolsa sobre o sofá e deslizando os dedos pelo braço dele.
Andy sorriu de lado, um sorriso sem verdadeiro calor.
-Só nos dias bons.
Ela soltou um riso suave, mas percebeu que havia algo diferente no homem à sua frente. Havia um peso em seus ombros, algo que ele tentava esconder atrás do álcool e da conversa superficial. Mas, novamente, não era da conta dela.
O apartamento era um espaço pequeno, sem identidade, e a mobília parecia ter sido disposta sem nenhuma consideração estética. A mulher loira tirou os saltos, suspirando enquanto massageava discretamente os próprios pés doloridos. Ela estava acostumada a lugares como aquele, com homens que se perdiam em copos de álcool e noites vazias, apartamentos sem história, sem fotos, sem passado.
Andy se largou na poltrona gasta, a lata de cerveja ainda em sua mão, o olhar pesado e distante. Ele não tentou conversar com ela, não tentou impressioná-la. A mulher loira cruzou as pernas lentamente, sentindo o tecido fino da meia-calça esticar sobre sua pele enquanto se acomodava no sofá gasto. Seus dedos deslizaram sobre a superfície desgastada, sentindo os vincos deixados pelo tempo e pelo descaso. O apartamento era frio, mas não no sentido térmico, era um espaço sem alma, sem qualquer vestígio de que alguém realmente vivia ali. Ela já tinha estado em lugares assim antes. Homens que não queriam ser encontrados, que viviam como sombras dentro de suas próprias casas. Andy não era diferente.
O ex-psiquiatra permaneceu sentado na poltrona, bebendo sua cerveja em silêncio. O líquido desceu por sua garganta com um amargor familiar, mas não trouxe nenhum alívio. Seu olhar vagou pela mulher, analisando-a como se ela fosse um quadro em uma galeria de arte que ele já tivesse visto antes. Ela se parecia com Annie, pelo menos ele tentava se convencer disso. Ela seria Annie, sua Annie por essa noite.
O silêncio se estendeu entre eles, confortável de uma forma estranha. Andy não era um falador. Ele gostava do silêncio, do espaço entre as palavras, da falta de necessidade de preencher o vazio com trivialidades. Mas a mulher, acostumada a ler os clientes como um livro aberto, percebeu algo diferente nele. Andy estava ali, mas não estava realmente ali.
-Você tem alguma coisa presa na cabeça? - disse ela quebrando o silêncio - quer falar sobre isso?
-Eu pareço o tipo que quer falar sobre isso? - falou Andy depois de outro gole na cerveja que esquentava lentamente em sua mão.
-Não - disse a mulher loira dando de ombros - mas, às vezes, ajuda.
Andy soltou um riso seco, sem humor. Girou a lata de cerveja entre os dedos, sentindo o metal úmido contra a pele.
-Se falar ajudasse, eu já teria resolvido muita coisa - falou ele.
Andy inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, observando-a novamente. Os traços dela eram delicados, os olhos claros, mas sem aquele brilho que Annie tinha. Ainda assim, por um momento, ele fingiu que era ela. Fechou os olhos por um instante, imaginando o cheiro de Annie, seu toque, sua risada, por um segundo, o apartamento vazio pareceu um pouco mais cheio.
-Como você se chama? - perguntou o ex-psiquiatra, sua voz mais baixa.
A mulher sorriu, mas era um sorriso ensaiado. Não havia nada ali.
-Você quer o nome verdadeiro ou o que eu dou para os clientes?
-Qualquer um que eu possa usar esta noite - murmurou Andy.
Ela inclinou a cabeça, observando-o como se tentasse entender alguma coisa, antes de dizer simplesmente:
-Alex.
Andy assentiu lentamente. Alex. Não era um nome ruim. Mas não era Annie. Andy desviou o olhar, tomando outro gole de cerveja. Não era, mas teria que servir por essa noite.
-Você sempre pergunta sobre os problemas dos clientes? - entoou Andy depois de um momento de silêncio.
-Só quando eles bebem do jeito que você bebe - disse ela se levantando do sofá e caminhando devagar até ele. Seus dedos deslizaram para a gola da camisa de Andy, puxando-a levemente para baixo, os olhos analisando cada detalhe de seu rosto, como se procurasse algo escondido nas sombras que ele tentava esconder. Ela queria perguntar sobre a pele cicatrizada no rosto do homem, mas não cabia a ela perguntar esse tipo de coisa. Não eram cicatrizes profundas, apenas parecia que a pele havia crescido meio enrugada e irregular em alguns pontos. Alex se perguntava o que poderia ter causado isso.
Andy observou os dedos de Alex deslizarem pela gola de sua camisa. O toque era leve, cuidadoso demais, como se ela estivesse tentando decifrá-lo com a ponta dos dedos. Ele se permitiu fechar os olhos por um momento, absorvendo o silêncio. Ele inspirou devagar, sentindo o cheiro de baunilha misturado com nicotina, um cheiro que em qualquer outro momento o faria enjoar, mas que, naquela noite, ele fingiu ser outra coisa.
Annie costumava usar um perfume floral, algo leve e discreto. Mas havia noites em que ela voltava do trabalho cheirando a cigarro, a café velho, a noites sem dormir na delegacia. Havia noites em que ela o puxava para a cama e dizia que só queria esquecer o dia. Ele abriu os olhos e encontrou Alex encarando-o, esperando.
Ela não era Annie. Mas talvez pudesse ser. Por apenas uma noite. Só uma noite.
Andy se inclinou para frente, os dedos deslizando pela cintura da loira, puxando-a para mais perto. Ela se acomodou sobre ele, as mãos apoiadas em seus ombros, as unhas curtas roçando o tecido da camisa.
-Você está tentando ler minha mente? - murmurou o ex-psiquiatra, um sorriso cínico dançando no canto dos lábios.
-Algo assim - respondeu ela, sem desviar o olhar.
Andy não afastou a mão dela. Ele apenas a deixou ali, sentindo a leve pressão contra sua pele. O toque não o incomodava, mas também não o reconfortava. Era apenas… algo que estava acontecendo.
-Bem, espero que esteja gostando do que vê - disse ele, a voz carregada de sarcasmo.
-Não é o que eu vejo que importa - ela respondeu, inclinando a cabeça levemente - você quer fingir que eu sou outra pessoa, não é?
Andy parou por um momento, sua expressão endurecendo.
-O que te faz pensar isso?
-A forma como me olha - ela deu um meio sorriso, sentando-se no braço da poltrona, ainda perto dele - não é um olhar de desejo, nem de interesse, mas um olhar de alguém tentando encaixar um fantasma em uma pele diferente, não se preocupe, já vi de tudo nesse ramo de trabalho e isso não é nem de longe a coisa mais absurda que já vi.
Andy soltou um riso curto e sem humor. Ele olhou para a cerveja em sua mão, girando a lata entre os dedos antes de dar um último gole e amassar o alumínio com uma facilidade mecânica.
-Está funcionando? - ela perguntou depois de um tempo em silêncio.
-O quê?
-Fingir que eu sou ela - deu de ombros a mulher.
Andy olhou para Alex por um longo momento. Ele olhou os cabelos loiros, do mesmo tom queimado e escuro de Annie, levemente cacheado…e por um instante, ele quase acreditou. Quase.
-Se quiser eu posso tentar agir como ela - falou a mulher, sua voz aveludada e ensaiada - podemos tentar tornar isso o mais real possível.
-Tire a roupa - ele disse simplesmente, seu tom era seco.
Ela piscou, surpresa por um segundo. Mas então, apenas sorriu de lado e começou a desabotoar a blusa devagar. Andy a observava com um olhar distante, o peso de uma obsessão que ele não conseguia nomear prendendo-se em sua garganta. Ele passou uma das mãos pelo rosto, sentindo a aspereza da barba por fazer arranhar contra seus dedos.
O álcool fazia seu corpo parecer mais pesado do que realmente era. O ex-psiquiatra respirou fundo, fechando os olhos por um momento antes de finalmente se levantar da poltrona.
Alex inclinou a cabeça para o lado, observando-o. Ela não perguntou o que se passava na mente dele, não precisava. Estava acostumada a clientes que queriam mais do que apenas um corpo para aquecer suas noites vazias. Alguns queriam ilusão, outros queriam poder, e alguns como Andy, queriam se agarrar ao passado, recriar algo que já não existia mais.
O ex-psiquiatra caminhou até o quarto por um momento, retirando de dentro de uma das gavetas um vestido. Um vestido de Annie. Ele o levou ao rosto por um momento antes de voltar para sala. Ele já havia colocado aquele vestido no Coringa, em Arkham, quando o palhaço estava drogado até os ossos, os olhos turvos e sem foco. Naquele momento, Annie tinha voltado para ele. Ele pode fingir que era ela.
Andy virou-se para Alex, o vestido pendendo frouxo de seus dedos.
-Vista isso.
Ela piscou, a expressão mudando sutilmente antes de entoar:
-O quê?
-O vestido - disse ele, a voz baixa e firme.
Alex hesitou por um momento, avaliando a situação. Não era a primeira vez que um cliente pedia algo assim. Algumas fantasias eram mais estranhas, algumas mais perturbadoras, mas o olhar de Andy não era lascivo, não era de desejo. Era algo mais profundo. Algo quebrado. Ela pegou o vestido das mãos dele, sentindo o tecido leve entre os dedos.. O homem diante dela não olhava para ela. Ele olhava através dela. Seus olhos estavam focados em algo que só ele podia ver, uma lembrança, uma sombra do passado. Andy não queria apenas um corpo. Ele queria algo que nem ele conseguia definir.
Ela hesitou, o vestido ainda pendendo de seus dedos.
-Quem era ela? - perguntou Alex olhando para o vestido em suas mãos.
Andy não respondeu imediatamente. Seu olhar caiu sobre o tecido, e por um instante sua expressão se suavizou, mas apenas por um momento fugaz. Ele apertou a mandíbula, desviando o olhar e pegando uma nova lata de cerveja. O barulho metálico da abertura do lacre preencheu o silêncio.
Alex suspirou baixinho e começou a se despir, seus movimentos meticulosos, cuidadosos. Ela vestiu o tecido delicado sobre a pele exposta, sentindo a forma como ele caía solto sobre seu corpo. O vestido era levemente folgado nela, feito para uma mulher de proporções ligeiramente diferentes. Quando finalmente se acomodou em seu corpo, ela passou as mãos pelo tecido, sentindo como ele se ajustava a ela de uma forma imperfeita
Andy prendeu a respiração. Por um instante, apenas um instante, Annie estava ali. mundo ao redor pareceu se desfazer, o apartamento pequeno e sufocante desapareceu. O cheiro de cigarro e álcool foi substituído pela lembrança de café recém-passado e perfume floral barato.
Ele piscou e viu um fantasma diante de si. Annie estava ali. Porém, a ilusão se desfez no instante seguinte.Os olhos estavam errados. Havia a ausência do pequeno vinco entre as sobrancelhas quando ela ficava frustrada. Não era Annie. Nunca seria Annie. Andy apertou a mandíbula, o nó em sua garganta tornando-se quase insuportável. Ele olhava para Alex, mas tudo o que via era a falha em sua própria ilusão.
Alex permaneceu parada, esperando. Ela não sabia qual seria o próximo passo dele. Alguns clientes queriam palavras doces, outros queriam violência. Mas Andy apenas caminhou até ela e levantou uma das alças do vestido, ajustando-a levemente sobre seu ombro, como se precisasse que tudo estivesse exatamente no lugar certo.
A mulher loira olhava para o ex-psiquiatra com uma mistura de desconforto e profissionalismo, acostumada a satisfazer desejos estranhos, mas ainda assim sentindo a tensão no ar.
-E agora? - ela perguntou, sua voz suave, mas sem emoção.
Andy permaneceu em silêncio por um longo momento, apenas observando. Ele queria que aquilo funcionasse. Queria olhar para ela e ver Annie. Queria parar de associar aquele maldito sociopata a tudo que restava de sua esposa. Mas algo dentro dele não cedia.
-Vira - ele murmurou.
Alex hesitou, mas obedeceu, girando devagar, como se estivesse sendo analisada de um jeito diferente. Andy ergueu a mão, tocando levemente o ombro dela, sentindo o tecido do vestido entre seus dedos. Por um instante, ele fechou os olhos e fingiu. Mas não funcionaria.
A mulher permaneceu parada, os braços cruzados sobre o próprio corpo, o olhar observador. Ela já tinha visto clientes perderem o interesse no meio do ato, mas aquilo era diferente. Andy não parecia frustrado, nem impaciente. Parecia… perdido.
Andy deu meia-volta, caminhando até a cozinha pequena e pegando outra cerveja. Ele abriu a lata com um estalo metálico e bebeu um gole longo, sentindo o líquido amargo descer pela garganta, mas não aliviar nada. A raiva crescia dentro dele, uma raiva que não fazia sentido, que não tinha um alvo definido. Ele queria socar alguma coisa. Queria quebrar alguma coisa.
-Eu não sei o que você quer que eu faça - disse Alex, seu tom firme, mas sem desafio. Ela não tinha medo dele, mas também não era ingênua.
Andy riu baixinho, um riso vazio.
-Nem eu - murmurou, esfregando os olhos.
O ex-psiquiatra fechou os olhos por um instante, e quando os abriu novamente, era como se estivesse em Arkham outra vez. O Coringa, dopado, os olhos vidrados, as pálpebras pesadas. O tecido do vestido caindo frouxo em seu corpo magro sentado na borda da cama. O cabelo loiro desgrenhado pendendo para frente em seu rosto inexpressivo.
Ele afastou a lembrança, respirando fundo. Alex ainda estava ali, esperando. Ele encarou a mulher, sua expressão indecifrável. Sua mente lutava entre mandá-la embora e tentar mais uma vez. Mas ele já sabia. Não importava quantas vezes tentasse. Não importava quantas mulheres loiras levasse para casa, quantos vestidos fizesse com que vestissem. Nunca funcionaria. Porque a única que o fazia lembrar de Annie… era aquele maldito maluco acorrentado no banheiro.
Andy sentiu a raiva ferver dentro dele, os músculos de sua mandíbula tensionando. Ele passou a mão pelos cabelos, exausto.Os últimos dias de Annie estavam gravados em sua mente como um pesadelo repetitivo. O modo como ela olhava para ele, como se estivesse se afogando em algo que ele não podia ver. Como se estivesse esperando que ele fizesse alguma coisa. Ela nunca pediu ajuda, mas ele via nos olhos dela, nos olhos torturados, vazios e consumidos pelo peso de algo que ela não conseguia carregar sozinha.
Era o mesmo olhar que via no Coringa quando sua máscara de palhaço se rachava, sem o riso ensandecido e a expressão de zombaria… ele via Annie. Via aquela mesma expressão desesperada, a mesma forma de quebrar sem fazer barulho, o mesmo brilho de alguém que já estava morto antes mesmo do corpo cair. Ele precisava parar de ver Annie nele.E para isso, ele precisava recriar Annie em outra pessoa.
O ex-psiquiatra levantou-se devagar, circulando Alex como um predador silencioso. A mulher não se mexeu, mas seus ombros ficaram tensos, perceptíveis mesmo sob o tecido fino do vestido. Ela sabia que algo tinha mudado, que a energia no ambiente havia se tornado algo diferente.
-Por que você está me olhando assim? - perguntou ela, a voz baixa, controlada.
Andy não respondeu de imediato. Ele parou atrás dela, próximo o suficiente para que sua respiração quente tocasse a nuca da mulher.
-Você já pensou em se matar, Alex?
Ela congelou. Seus olhos se arregalaram e ela parou atônita por alguns segundos.
-O quê?
-Annie pensava nisso - Andy ignorou a confusão dela - mas ela não falava, eu via nos olhos dela…você sabia que dá para ver quando alguém já está morto por dentro?
Alex respirou fundo, virando-se para encará-lo, sua expressão cautelosa ants de entoar:
-Olha, eu não sei que tipo de coisa você está tentando aqui, mas-
Andy ergueu a mão, passando os dedos suavemente pelo rosto dela.
-Shhh - ele a interrompeu. Seu toque foi leve, quase reverente. Seus dedos deslizaram para a lateral do rosto de Alex, segurando-a com firmeza, mas sem brutalidade. Ele precisava ver. Precisava ver os olhos certos.
-Chore para mim - a voz do ex-psiquiatra foi um sussurro grave.
Alex sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
-O quê? - a palavra saiu hesitante, quase um sussurro.
Andy manteve os dedos em seu rosto, pressionando levemente sua mandíbula, forçando-a a encará-lo. Seus olhos eram insondáveis, sombrios e frios como o fundo de um poço.
-Chore para mim - repetiu o ex-psiquiatra, sua voz era baixa, calma demais, como se estivesse fazendo um pedido simples. A tensão no ar ficou sufocante. Alex tentou rir, um riso seco e sem humor, um reflexo automático para quebrar o desconforto.
-Olha, cara, isso não faz parte do serviço, eu n-
-Você já pensou em se matar, Alex? - Andy repetiu interrompendo a mulher, ignorando completamente sua tentativa de mudar o rumo da conversa.
O coração de Alex disparou. Ela tentou dar um passo para trás, mas a mão de Andy deslizou da sua mandíbula para sua nuca, segurando-a com um toque quase gentil, mas firmemente o suficiente para que ela soubesse que não adiantava tentar se afastar.
-Eu perguntei - continuou ele, o olhar fixo, intenso demais, quase estudando cada pequeno movimento de sua expressão - se você já pensou em se matar.
O pânico se instalou no peito de Alex como uma pressão crescente. Isso não era normal. Ela já estivera com homens estranhos antes, homens violentos, mas Andy lhe deixava muito nervosa, algo nele a fazia querer se encolher. Havia algo nele que ia além da violência ou da luxúria.
-Eu acho que…- Alex tentou manter a voz firme, mas sentiu o próprio tom vacilar.
Andy inclinou a cabeça, os olhos escuros avaliando cada mínimo detalhe de sua reação.
-Você quer ir embora?
-Sim - ela engoliu em seco - eu acho que…é melhor eu ir.
-Então chore - falou Andy se aproximando da orelha da mulher - se você chorar, eu deixo você ir.
O pânico agora era um nó apertado em seu estômago. Alex sentiu sua respiração acelerar, e um instinto primal de autopreservação tomou conta de seu corpo. Ela sabia que precisava sair dali. Agora.
Com um movimento brusco, ela tentou se desvencilhar dele, girando nos calcanhares para correr até a porta. Mas Andy já esperava por isso. Antes que ela pudesse sequer dar dois passos, ele agarrou seu pulso, puxando-a de volta com força suficiente para fazê-la perder o equilíbrio. Alex tropeçou, batendo de costas contra o sofá.
-Por favor… - ela começou, a voz tremendo - me deixa ir embora.
-Não precisa implorar - Andy abaixou-se na frente dela, seus olhos analisando cada detalhe de seu rosto com uma fixação perturbadora - só chore para mim, e eu te deixo ir embora.
Ela soltou um grito sufocado e chutou para frente instintivamente, seu joelho acertando o lado da costela de Andy. O golpe o pegou desprevenido, não tanto pela força, mas pelo fato de que ele não esperava que ela reagisse. Ele recuou por um segundo, e foi tudo que Alex precisou. Ela se lançou para frente, desviando dele e correndo pelo apartamento. Seus olhos percorreram o ambiente freneticamente, procurando uma saída, qualquer saída.
A porta principal estava longe demais, e Andy já estava atrás dela, movendo-se com uma calma que a aterrorizava ainda mais. Sem pensar, ela girou para a primeira porta que encontrou e se jogou para dentro, batendo-a atrás de si e girando o trinco da maçaneta com mãos trêmulas. Era o banheiro.
Seu peito subia e descia em respirações frenéticas enquanto ela se apoiava contra a porta com os olhos firmemente fechados. O coração martelava tão forte que ela podia ouvi-lo no silêncio absoluto do pequeno espaço. No momento seguinte, Alex abriu os olhos e a luz fraca do banheiro revelou lentamente o interior do cômodo. O cheiro de ferrugem e algo mais denso, metálico, tomou suas narinas antes mesmo de seus olhos processarem a cena à sua frente. O que ela viu fez seu coração disparar.
A figura sentada no chão, encostada contra a pia, era um homem. Mas ele não parecia bem, ele estava acorrentado. Os pulsos estavam presos por grossas correntes de metal presas à base da pia. Seus cabelos loiros desgrenhados caíam em mechas coladas contra a testa, endurecidas pelo sangue seco. A porcelana atrás dele estava manchada de vermelho, pequenos respingos formando padrões irregulares na superfície pálida. Seu rosto estava sujo de sangue, um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca, onde cicatrizes antigas e horríveis se projetavam retorcidas em ambos os lados. A visão era grotesca.
Os olhos dela se arregalaram, e a respiração engasgou na garganta. Um choque percorreu seu corpo, e seu primeiro instinto foi gritar. Ela abriu a boca, mas antes que o som saísse, os olhos do homem preso se abriram lentamente. Ele inclinou levemente a cabeça para o lado, os lábios sujos de sangue se curvando em um sorriso torto antes de entoar:
-Se eu fosse você… não gritaria.
A frase se desenrolou no ar como um sussurro distorcido, rouco e arrastado, carregado de algo que não era exatamente uma ameaça, mas também não era conforto. Ela piscou rapidamente, o pavor criando uma pressão absurda em sua cabeça. O ex-terrorista a observava como um predador que observa uma presa em pânico. Ela tentou recuar, mas a porta estava bem atrás de si. O que diabos era aquilo? O que diabos estava acontecendo?
Alex abriu a boca para gritar, mas o Coringa inclinou levemente a cabeça, os olhos estreitando-se de um jeito quase preguiçoso, um meio sorriso ainda brincando nos lábios ensanguentados.
-Ahhh, não, não, não… - ele sussurrou, a voz com um fundo perverso disfarçado de desinteresse - você não vai querer fazer isso, querida.
Alex engoliu em seco, os olhos arregalados demais.
-O…o-o que… - sua voz falhou.
O Coringa sorriu com os dentes sujos de sangue antes de passar a língua pelo lábio inferior. Ele ergueu um dos ombros num gesto quase teatral, como se a situação inteira fosse uma grande piada que apenas ele entendia.
-Sabe, normalmente, eu ficaria feliz com uma pessoa gritando na minha frente… mas hoje eu tô com uma dor de cabeça dos infernos - ele inclinou um pouco mais a cabeça para o lado, os olhos se estreitando como se a estudasse - e, olha, gritaria não costuma terminar bem.
Alex sentiu a bile subir em sua garganta. Andy estava do outro lado daquela porta. E agora ela estava presa em um banheiro com um desconhecido que parecia maluco, acorrentado ao encanamento. A mão dela apertou o trinco com tanta força que as juntas ficaram brancas. O Coringa percebeu.
-Tá pensando em sair? - ele lambeu os lábios manchados de sangue, o olhar preguiçoso e divertido - tsc, tsc…ele vai achar você assim querida, não seja burra.
Alex começou a girar a maçaneta, mas um som ecoou do lado de fora. Um som pesado. Eram passos. Ela prendeu a respiração.
O Coringa notou a mudança em sua postura e abriu um sorriso mais largo. Os passos pararam em algum lugar no corredor. Alex sentiu sua pele se arrepiar, o terror a sufocando. Os olhos do louco olhos percorreram Alex, demorando-se no vestido que cobria seu corpo trêmulo. O mesmo vestido. O mesmo maldito vestido.
O ex-terrorista deixou escapar um riso baixo, rouco, quase um sussurro arranhado de diversão. Ele ergueu os olhos para Alex e notou as semelhanças, as semelhanças com Annie.
- …loira - a palavra escorregou da língua do palhaço como um veneno doce. Ele viu a forma como Alex estremeceu.O Coringa sentiu um arrepio de puro prazer maligno percorrer sua espinha.
O Coringa lambeu os lábios rachados, saboreando o gosto metálico do próprio sangue.
-Sabe… eu já usei esse vestido - sussurrou ele, mastigando as palavras, saboreando cada sílaba - … um pouquinho mais apertado do que deveria, mas ele fica em em você.
O Coringa suspirou teatralmente, inclinando a cabeça para trás e batendo-a levemente contra a pia, como se estivesse perdido em lembranças agradáveis. Aquilo estava ficando divertido . Alex se encolheu, como se quisesse desaparecer. Ela olhou para o Coringa, os olhos cheios de desespero, como se implorasse para que ele ficasse quieto. Ele segurou o olhar dela por um momento… e sorriu, sorriu torto, os olhos divertidos e afiados. E então, no momento seguinte, ele abriu a boca para tornar a falar.
Alex se lançou para frente, as mãos tremendo quando pressionou os dedos contra os lábios do ex-terrorista com força, impedindo-o de dizer qualquer coisa. O toque fez algo dentro dela se revirar de puro pavor. Os lábios dele estavam frios e pegajosos.
O palhaço piscou, surpreso, e então… riu. Uma risada abafada contra os dedos da mulher em pânico. Os olhos zombeteiros e cruéis se fixaram nos dela, e ele inclinou levemente a cabeça, como se estivesse se divertindo com aquilo.
Do lado de fora do banheiro, a voz de Andy soou.
-Alex?
O coração dela quase explodiu no peito. A pressão contra os lábios do Coringa aumentou involuntariamente, e ela sentiu a respiração quente dele contra seus dedos.
-Mmmf - ele fez um som abafado, como se zombasse dela.
Ela estava segurando a boca dele com toda a força que tinha, e ele estava zombando dela.
-Alex? - Andy chamou novamente. Sua voz não estava irritada, mas havia um peso nela. O que veio na sequência foi o silêncio, apenas a tensão fria no ar. E então, os passos de Andy se afastaram pelo corredor lentamente.
Os olhos do Coringa nunca deixaram os dela. Ele inclinou a cabeça levemente para o lado, como um lobo estudando uma presa acuada, os olhos brilhando em uma diversão perversa. Ele não gritou. Não fez nenhum movimento brusco. Ele estava gostando disso. Gostando da forma como ela tremia. Gostando da hesitação dela.
Alex sentia seu coração martelando dentro do peito como um tambor de guerra. O Coringa permaneceu imóvel. A mulher engoliu em seco, seus dedos ainda pressionando a boca dele, mas agora de forma mais hesitante, como se estivesse perdendo qualquer controle que achava ter. Os lábios do Coringa se curvaram mais sob seu toque. Devagar, quase imperceptivelmente, ele abriu a boca e deixou a ponta da língua roçar contra a palma da mão dela.
Alex puxou a mão como se tivesse sido queimada, e isso fez o Coringa rir baixinho, a voz um sussurro carregado de algo venenoso. Ela recuou instintivamente, colando as costas contra a porta.
-Alex? - Andy chamou de novo em algum lugar no apartamento, o som fez a espinha dela se arrepiar. Ela precisava sair dali. Precisava sair dali agora.
O Coringa se inclinou um pouco para frente, fazendo as correntes em seus pulsos chacoalhando suavemente.
-Ele não sabe que você está aqui - murmurou o louco, sua voz arrastada e envenenada com diversão - interessante, não é? Você entrou escondida… tsc, tsc, bem, Andy não gostaria de saber disso, querida.
Ela apertou os punhos.
-Eu não vi nada - sussurrou ela, sem saber exatamente por que estava justificando sua presença para ele.
-Ah, doce inocência…- o louco se inclinou levemente para frente, os olhos fixos nos dela como lâminas - ele vai matar você por ter entrado aqui.
Alex sentiu a garganta seca. Do lado de fora, os passos de Andy ecoaram novamente. Ela prendeu a respiração. Ele ia abrir a porta e encontrá-la em algum momento.
O Coringa percebeu a tensão nos ombros dela e sorriu.
-Quer saber um segredo? - sussurrou ele, a voz baixa e venenosa.
Alex não respondeu, seus olhos fixos nos olhos afiados do palhaço.
-Se serve de consolo, Andy não é um cara violento - falou o louco simplesmente - bem, pelo menos não fisicamente.
Alex não sabia se o pânico que sentia era por causa do homem acorrentado à sua frente ou pelo que Andy poderia fazer se a encontrasse ali. O Coringa inspirou profundamente, como se saboreasse o cheiro do medo dela no ar.
-Mas, ahh… você já percebeu isso, não percebeu, querida ? - o louco soltou um risinho abafado, a língua passando distraidamente pelos lábios - você acha que é a primeira?
O estômago de Alex revirou. A resposta estava ali, nas palavras dele, no sorriso dele. O Coringa observou enquanto o pavor se instalava nela, e soltou uma risadinha abafada.
-Ahhh, eu adoro esse momento - sussurrou ele, os olhos brilhando de diversão perversa.
Os olhos de Alex tremeram. Ela queria correr. Queria fugir. Mas suas pernas não obedeciam.
O Coringa se inclinou um pouco mais para frente, apenas o suficiente para que as correntes em seus pulsos chacoalhassem de leve outra vez.
-O que foi ? - ele sussurrou, zombeteiro - não gostou do jogo?
Alex sentiu um arrepio percorrer seu corpo inteiro.
-Bem, não importa, você nunca seria ela…nunca iria ser Annie - falou o louco - mas ei, não se sinta mal, eu também já fui Annie algumas vezes.
A respiração de Alex ficou presa na garganta. As palavras do Coringa se desenrolaram no ar como um veneno denso, escorrendo lenta e implacavelmente para dentro dela.
"Eu também já fui Annie algumas vezes."
Alex sentiu o corpo inteiro gelar. Ela abriu a boca para dizer algo, qualquer coisa, mas nenhum som saiu. O Coringa sorriu cruelmente, ele gostava daquele momento. O ex-terrorista inclinou a cabeça levemente para o lado, os olhos estreitando-se com algo entre divertimento e desprezo.
-Hm? Ah, qual é… não me olhe assim, você acha que ele te escolheu para essa noite porque gostou do seu sorriso? Você não é especial, você só teve o azar de se parecer com alguém, mas não é o fim do mundo, Andy é meio esquisito, mas no fundo é inofensivo.
Alex prendeu a respiração. Lá fora, os passos de Andy ecoaram novamente. Mais próximos e mais lentos. O Coringa notou a tensão no corpo da mulher e lambeu os lábios rachados, sentindo o gosto metálico do sangue.
-Você sabe que ele vai te achar, não é ? - zombou ele.
Os passos de Andy ecoavam cada vez mais próximos do banheiro. O Coringa sorriu, como se estivesse prestes a assistir uma cena divertidíssima. Alex apertou os punhos, o estômago revirando, a pele fria como gelo. A porta se abriu com um estalo seco e o ex-psiquiatra adentrou no cômodo.
O cheiro de ferrugem e sangue saturou o ambiente. Andy absorveu a cena rapidamente: Alex, acuada contra a porta, os olhos arregalados e brilhantes de terror. E o Coringa, sentado no chão, as correntes tilintando levemente quando ele ergueu a cabeça. Seu rosto estava manchado de sangue seco, os cabelos loiros desgrenhados colando-se à testa. O sorriso veio primeiro. Um sorriso preguiçoso, zombeteiro.
-Bem, bem, bem… uma visita surpresa - murmurou o Coringa, a voz rouca e arrastada, como se cada palavra saísse banhada em veneno - e eu achando que a noite seria tediosa.
Andy fechou a porta atrás de si com um clique suave. Seu olhar demorou-se sobre Alex. Ela estava pálida, seu corpo trêmulo. Ele sabia o que precisava fazer.Por um instante, ele se imaginou ajoelhando-se ali mesmo e sufocando-a.O aperto em seu peito se intensificou, um peso esmagador em sua consciência. Alex viu algo que não devia. Ela entrou onde não devia. E agora sabia demais. O ex-psiquiatra respirou fundo, afastando o pensamento, mas não completamente. Havia uma voz dentro dele, insistente e racional que lhe dizia que ele precisava se livrar dela.
Ele avançou em um movimento fluído e agarrou Alex pelo braço. Ela gritou e tentou resistir, mas sua força era insignificante comparada à dele. Andy a arrastou para fora do banheiro, seus dedos enterrando-se na pele macia dela. A porta bateu atrás deles, abafando a risada baixa do Coringa. No corredor, Alex caiu de joelhos, soluçando:
-P-por favor…eu não vi nada, eu juro.
Andy a observou, seu olhar pesado e clínico. Ela estava chorando. Mas estava chorando errado. Não como Annie. O ex-psiquiatra se sentia exausto, ele sentiu um peso nauseante crescer em seu estômago. Ele não era um assassino. Ele soltou um suspiro e se levantou.
-Vá embora - entoou o ex-psiquiatra, sua voz era baixa, carregada de algo que nem ele sabia nomear.
Alex hesitou, os olhos arregalados e úmidos buscando algo nele, alguma garantia de que ele não mudaria de ideia. Mas não encontrou nada. Tremendo, ela se levantou e tropeçou para fora do apartamento sem olhar para trás.
Andy ficou ali por um momento, a respiração pesada. Então, virou-se e voltou para o banheiro.
-Ora, ora - murmurou o Coringa, os olhos brilhando com algo indefinível - eu pensei que você ia matá-la, teria sido divertido escutar mas, ahhh… o nosso querido Andy ainda tem um coraçãozinho mole, não é? Estuprador, torturador, com associações criminosas pesadas, mas hein… não é assassino.
Andy ignorou a provocação. Seus olhos percorreram o Coringa. O sangue seco, os ferimentos. Ele devia estar atordoado, um traumatismo talvez. E ainda assim, seus olhos estavam nítidos, atentos.
-Sabe Andy - continuou o palhaço antes de passar a língua pelo lábio inferior em um movimento automático - matar uma pessoa não é a pior coisa que você pode fazer com ela, acredite.
Andy o ignorou. O ex-psiquiatra apenas se ajoelhou, pegando o rosto do Coringa com uma mão firme. O palhaço não recuou, mas seus olhos estreitaram-se levemente, uma sombra escura passando por sua expressão. Ele queria se retrair, queria cuspir na cara de Andy, arrancar os próprios pulsos das correntes só para não ter que suportar aquele toque, mas… ele precisava jogar bem. Precisava de uma saída.
-O que você fez? - a voz de Andy era baixa, cortante.
O silêncio pairou entre eles, carregado, denso. O Coringa sentia o estômago revirando, cada célula de seu corpo gritava para que ele se afastasse, mas em vez disso, ele relaxou um pouco, inclinando-se ligeiramente para frente, deixando Andy acreditar que estava no controle. O palhaço passou a língua pelos lábios rachados, um hábito, um tique que surgia desde que adquiriu as cicatrizes. Cada centímetro do toque de Andy era como ácido em sua pele, mas ele não se afastou. Ainda não.
-Eu estava entediado - zombou o louco dando de ombros.
O sorriso do Coringa não vacilou, mas havia algo diferente nele agora. Algo sutil, uma nota um pouco dissonante em sua habitual zombaria. Andy sentiu, e isso o irritou. O ex-psiquiatra manteve o aperto firme no rosto do louco, os dedos pressionando levemente contra a pele fria e manchada de sangue.
-Eu perguntei o que você fez - repetiu Andy, sua voz baixa, ameaçadora.
-Está preocupado comigo? Que adorável - zombou o palhaço com um tom de escárnio venenoso - isso quase me faz esquecer do seu comportamento altamente questionável.
O ex-psiquiatra passou a outra mão pelo rosto, sentindo a aspereza da própria pele. Ele não podia levar o Coringa a um hospital. Não podia correr esse risco. Batman já estava caçando-o e era muito arriscado. Mas também não podia deixá-lo assim.
-Porque você se machucou de propósito ? - entoou Andy, seu tom era calmo, quase cansado.
-Andy eu sou louco, eu não preciso de um bom motivo para fazer as coisas - falou o ex-terrorista como se explicasse para uma criança - sabe ? Eu só faço as coisas…e bem, eu estava entediado.
-Você não acha que é louco, é um dos motivos pelo qual é esquizoafetivo - disse Andy simplesmente - você acredita em seus próprios delírios.
Com essas palavras ele soltou o rosto do Coringa bruscamente e ficou de pé, passando uma mão pelo cabelo. Ele precisava pensar. O palhaço estava brincando com ele, mexendo nos pontos fracos que ele nem gostava de admitir que tinha. O que diabos ele estava tentando fazer?
O Coringa lambeu os lábios rachados outra vez, saboreando o gosto metálico do sangue seco. Ele já fez coisas piores para sobreviver. Suportar Andy era um sacrifício pequeno perto do que viria depois. Ele precisava jogar com as cartas que tinha em sua mão no momento.
-Olha, não é por nada, mas estou começando a ver pontos pretos, não acho que seja normal, e minha cabeça está latejando - disse o palhaço entediado depois de um momento de silêncio - você vai sair e me deixar dormir ou vai fazer alguma coisa ? Não estou afim de monólogos e essa conversa está chata.
O silêncio entre os dois parecia um fio esticado até o limite, pronto para romper a qualquer momento. Andy ficou ali, observando o Coringa como se tentasse decifrar algo invisível, algo que escapava à lógica. O palhaço mantinha a expressão de tédio, mas Andy sabia que era uma máscara, um truque calejado.
O ex-terrorista passou a língua pelos lábios, os olhos ardendo. Aquilo tudo era um maldito jogo. E, contra sua vontade, ele estava jogando.
Andy soltou um suspiro lento, arrastado, antes de finalmente se ajoelhar ao lado do ex-terrorista.
-Você é um maldito idiota - entou o ex-psiquiatra com um tom neutro - pode ser um traumatismo, e acho que vai precisar de pontos também.
Então, antes que Andy pudesse reagir, o Coringa inclinou a cabeça para frente, descansando a testa contra o peito do outro homem. Andy congelou por um momento, ele não esperava aquilo. O toque fez o estômago do palhaço se revirar em nojo puro.
O Coringa sentiu uma onda de repulsa atravessar sua espinha, mas ignorou. Ele já tinha feito coisas piores para sobreviver. Já tinha suportado coisas muito mais repulsivas do que isso. E se tivesse que deixar Andy pensar que tinha algum tipo de controle para conseguir o que queria… bem, ele faria o que fosse necessário. Mesmo que cada célula do seu corpo gritava para que ele se afastasse, para que cuspisse no chão e fizesse Andy engolir os próprios dentes. Mas ele não recuou. Não ainda.
Andy continuava imóvel. O Coringa nunca encostava nele. Nunca voluntariamente. Ele sentiu a respiração quente do ex-terrorista contra seu peito, um fantasma de calor que lhe trouxe lembranças que deveriam estar enterradas. Algo retorceu-se dentro dele.
O palhaço manteve a cabeça ali por um instante, os olhos fechados, o corpo rígido. Ele precisava dessa brecha.
-Jay…?
O Coringa quase estremeceu ao ouvir esse apelido. Jay. A bile subiu à garganta do ex-terrorista, mas ele não se moveu. Andy, hesitante, ergueu uma das mãos e pousou-a levemente sobre a nuca do palhaço. O toque era frio, contratando com a pele pegajosa de suor e sangue do louco.
O silêncio que pairava entre os dois era pesado, denso, algo que não podia ser explicado, apenas sentido. Andy não se mexeu, seus dedos ainda pairando sobre a nuca do Coringa, sua mente oscilando perigosamente entre razão e emoção. Ele sabia, sabia que o palhaço era um manipulador, um predador de topo de cadeia disfarçado em sorrisos e sarcasmo.
Mas, naquele momento, algo dentro dele hesitou. Andy sabia que o Coringa não era frágil. Sabia que aquela aparente rendição era um jogo, uma peça de xadrez cuidadosamente movida. Mas a visão diante dele…a cabeça loira contra seu peito, ele não estava vendo o Coringa. Estava vendo Annie. Andy engoliu em seco.
Ele sabia que deveria odiá-lo. Ele sabia que o Coringa o odiava. Mas, no fundo, havia algo ali, algo antigo e retorcido que se recusava a desaparecer. Ele fechou os olhos por um segundo, ele nunca gostou de machucar Annie. E agora, era Annie que ele via ali.
O palhaço recusava qualquer coisa que Andy tentasse lhe dar, como um animal selvagem que preferia definhar a aceitar comida das mãos do inimigo. O ex-psiquiatra odiava isso, odiava a forma como, mesmo quando estava em suas mãos, o Coringa nunca parecia vencido. Mesmo desidratado, machucado e faminto, ainda teimoso como o maldito inferno.
-Você não está comendo muito - murmurou Andy, como se estivesse falando sozinho.
-Que observação brilhante - zombou o palhaço e, mas sua voz estava mais fraca do que deveria. Andy suspirou, passando a mão pelo cabelo do Coringa, tentando afastar a sensação sufocante no peito. Ele não gostava disso, ele não quebrava ossos, não usava lâminas. Ele usava palavras, e o Coringa sabia disso.
Andy abaixou um pouco a guarda. Só um pouco.
-Você precisa comer, e parar de ser tão teimoso.
O Coringa riu, mas não se afastou.
-E você precisa pular de um prédio, mas parece que nenhum de nós vai conseguir o que quer.
Andy fechou os olhos por um segundo. Ele sabia que não devia abaixar a guarda, sabia que tudo isso fazia parte do jogo sujo do Coringa. Mas, mesmo assim, o peso dele contra seu peito…Ele nunca machucou Annie.
-Você não precisa gostar de mim - murmurou Andy .
-Isso é um pedido fofo, Andy - zombou o louco passando a língua pelo lábio inferior - mas eu sou um cara difícil, e além disso, nossa história é um maldito filme de terror ruim, e eu sou um homem muito bem casado e monogâmico.
Aquele nome pairou no ar, mesmo sem ser dito. Bruce Wayne. Andy apertou os dentes. A respiração do Coringa era rasa, mas não tremida. Ele não estava vulnerável, estava jogando. E Andy sabia disso. Era um equilíbrio frágil, uma corda bamba que os dois estavam acostumados a atravessar, cada um esperando pelo momento certo para empurrar o outro para o abismo.
-Ah, sim… o morcego - ele inclinou a cabeça levemente, os olhos avaliando cada minúscula reação do palhaço - sabe, às vezes me pergunto se ele realmente é diferente, diferente de Jack.
O Coringa ficou imóvel. Por um instante, só um mísero instante, a zombaria desapareceu de seus olhos.
-Não seja burro - ele disse, baixo, mas afiado como lâmina - Bruce não é como Jack.
-Não? - Andy arqueou uma sobrancelha, seu tom neutro - é o que você anda dizendo para si mesmo ?
O silêncio entre os dois ficou mais denso, quase sufocante. O Coringa lambeu os lábios novamente, um hábito automático. O louco sabia que o ex-psiquiatra estava tentando confundí-lo. O Coringa riu, um riso seco, curto.
-Nossa, Andy, você devia tentar uma carreira como terapeuta - zombou - Ah, espera… você já tentou.
Andy ignorou a provocação.
-Eu me pergunto… será que você realmente acredita que Bruce é diferente? - entoou o ex-psiquiatra - você realmente acredita que alguém pode te amar de verdade ? Ou então…você só está esperando o momento em que o Wayne vai se cansar da brincadeira ? Você não acredita que ele te ame de verdade, você tem dúvidas.
Dessa vez, a mandíbula do Coringa ficou um pouco mais tensa. O silêncio foi ensurdecedor. O Coringa ainda descansava a testa contra o peito do ex-psiquiatra, mas seu corpo estava rígido agora, como se cada músculo estivesse pronto para reagir. Andy sentiu isso.
-Você quer brincar com a minha cabeça ? - o Coringa sussurrou, a voz gotejando veneno - não vai funcionar.
Andy sentiu a mudança no ar. O jogo havia virado. O ex-psiquiatra engoliu em seco, mas não recuou. Ele conhecia o Coringa bem o suficiente para saber que, sob toda aquela teatralidade, havia algo real. Algo quebrado. E ele queria ver até onde poderia empurrá-lo.
-Você não tem certeza, tem? - murmurou Andy, seu tom quase gentil, quase piedoso.
-Ah, Andy… você está mesmo desesperado por uma reação, hein? - zombou o palhaço antes de passar a língua no canto dos lábios. Mas havia algo em sua voz, algo que não combinava com sua zombaria - deixe Brucie fora do seu joguinho.
O silêncio caiu pesado sobre eles, quase como um cobertor em um dia abafado. O palhaço se mantinha rígido, mas não se afastava do outro homem, mesmo que no fundo quisesse arrancar a própria pele.
-Você precisa de alguns analgésicos e preciso suturar esse corte na sua cabeça, ele pode infeccionar - falou Andy quebrando o silêncio depois de um tempo - se eu pedir comida delivery, lacrada, sem que eu possa adulterar, você come alguma coisa ? Estou realmente preocupado com você.
Andy sentiu o peso do silêncio se arrastar, o ar se tornando mais espesso à medida que os minutos passavam. Ele sabia que estava fazendo um erro colossal, baixar a guarda assim, oferecendo um gesto de cuidado para alguém como o Coringa. O palhaço, por outro lado, parecia estar à beira de explodir, a raiva se acumulando como uma tempestade prestes a se descontrolar. Mas, por agora, ele ficou em silêncio. Andy sabia que o Coringa não era o tipo de pessoa que reagiria de maneira previsível. Era como lidar com uma bomba-relógio prestes a explodir.
-Não vou te machucar...eu prometo, só estou realmente preocupado - Andy murmurou, quase para si mesmo, seus dedos passando levemente pelos cabelos do Coringa .O ex-psiquiatra sabia que com o Coringa era sempre um jogo de manipulação constante. Mas, naquele momento, ele estava quebrando as próprias regras, baixando a guarda, mesmo que momentaneamente.
Notes:
Até a próxima semana :) Obrigado a todos que acompanham até aqui. Comentem para me deixar feliz.
Chapter 25: The Gotham We Have (Parte 25)
Notes:
Desculpem a demora de bem mais de uma semana para postar. Andei muito atarefado nesse início de mês :) Enfim, fiquem com o capítulo.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A madrugada envolvia Gotham como um manto pesado de sombras e promessas quebradas. Bruce e Dick estavam na sala do apartamento, cercados por telas piscando, mapas digitais e números que pareciam aleatórios à primeira vista. Mas não eram.
-Jigawa e Nigéria - murmurou Bruce, franzindo a testa - quando somamos as coordenadas geográficas dessas duas regiões, o resultado bate exatamente com o número de série do contêiner.
A tela do computador piscava com as informações do pen drive, e Bruce afundou-se ainda mais na cadeira, absorvendo cada detalhe. Dick observava o ex-bilionário trabalhar, a expressão séria e concentrada, os dedos ágeis no teclado. O silêncio que pairava entre eles era carregado de tensão e expectativa.
Dick não era do tipo que ficava quieto por muito tempo. Ele se levantou, andando pelo apartamento, os olhos percorrendo o espaço sombrio e desorganizado. Ele já esteve lá antes, quando estava colocando as câmeras e escutas. Mas ainda não tirava da cabeça que o apartamento não era nada do que esperava do homem que ele suspeitava ser o Batman. Tudo parecia improvisado, funcional, sem qualquer luxo desnecessário.
Grayson se aproximou de uma pequena estante onde bugigangas e molduras estavam apoiadas de qualquer jeito. Haviam alguns desenhos também. No entanto, o que chamou a atenção do aspirante a jornalista investigativo foi uma fotografia específica. Nela, Bruce Wayne aparecia com o rosto um pouco torcido sendo abraçado de lado pelo Coringa, que ao contrário do moreno, parecia divertido. O palhaço lhe dava arrepios, mesmo sem a pintura de guerra e cabelos tingidos.
Dick franziu o cenho, ele sempre teve uma imagem definida do Coringa, um lunático sanguinário, mas aquelas imagens contavam outra história. Eles pareciam... quase normais. Bruce, apesar da postura sempre rígida, tinha um olhar mais relaxado.Ele voltou-se para Bruce, segurando a moldura.
-Você tem muitas coisas esquisitas na sua sala - comentou, sem esconder a incredulidade, gesticulando para os desenhos de giz de cera e outras bugigangas estranhas.
Bruce desviou o olhar do computador por um breve segundo, analisando a expressão de Dick antes de responder em um tom neutro:
-Jay é uma pessoa bem expressiva.
-Vou pegar um copo d'água, tudo bem?- perguntou Dick, ainda observando Bruce.
Bruce assentiu voltando a olhar para a tela.
-A cozinha é ali, não mexe em nada.
Dick riu baixinho e seguiu para a cozinha. Não era exatamente bagunçada, mas definitivamente não era bem organizada. Havia algumas caixas empilhadas no canto, como se nunca tivessem sido completamente desempacotadas. Dick se lembrava de quando esteve ali anteriormente, ele havia vasculhado os armários. Ele se lembrou do tubo flexível esquisito, meio desloado, no meio dos mantimentos.
Enquanto enchia o copo de água, isso não saía de sua cabeça e Dick franziu a testa, pegando o objeto no armário, onde sabia que estava e o analisando por um momento em silêncio. Parecia um equipamento médico, mas não fazia sentido. Por que Bruce teria algo assim? Ele tinha uma imagem de Bruce como sendo um homem prático, mas essa era uma peça que parecia muito fora do lugar, estranhamente específica.
Ele não resistiu e, com o tubo nas mãos, se virou para perguntar a Bruce, que agora estava observando-o de maneira mais atenta.
-O que é isso? - Dick questionou, levantando o objeto na direção do ex-bilionário, e Bruce suspirou, sem mover-se da cadeira.
-Já tentou alimentar um bipolar tipo 1 com ciclagem ultradiana passando por uma fase induzida de depressão atípica?
Dick piscou, pego de surpresa.
-Eu… não?
Bruce se levantou e pegou o tubo das mãos do aspirante a jornalista investigativo e o colocou de volta no armário antes de dizer:
-É um inferno, e eu disse para você não mexer nas minhas coisas.
Dick engoliu em seco, sentindo que havia ultrapassado um limite não dito. Ele se afastou, sem dizer nada, e passou a se concentrar em outras coisas, tentando processar tudo o que estava acontecendo.
Bruce, por sua vez, voltou a se concentrar no computador, os dedos ágeis trabalhando rapidamente enquanto tentava entender o sentido do que Dick havia trazido. Mas, por mais que tentasse se manter distante e focado, algo no ambiente havia mudado. Ele sentia os olhos de Dick em suas costas enquanto tentava focar nas informações no computador. Ele sabia que o garoto estava absorvendo mais do que deveria, mais do que era seguro. Cada vez que Dick se aproximava do ambiente pessoal de Bruce, ele estava se aproximando mais de algo que Bruce tentava proteger. Bruce não gostava, sua vida pessoal era muito privada.
O silêncio se estendeu por alguns segundos, enquanto Bruce tentava afastar a crescente sensação de vulnerabilidade. Ele já estava sobrecarregado com tudo o que acontecia ao seu redor, e ver o jovem começando a explorar os cantos mais obscuros de sua vida pessoal era algo que ele não estava preparado para lidar.
Dick, por outro lado, estava lutando contra a crescente sensação de desconforto. Ele não gostava de como as peças estavam se encaixando, e havia algo inquietante na maneira como Bruce estava reagindo. O ex-bilionário estava tentando manter a calma, mas Dick podia ver nos olhos dele que algo mais estava em jogo.
Sem querer perder tempo, Grayson se aproximou novamente da mesa de trabalho de Bruce, seu olhar fixo nas informações que ele havia deixado ali. Tentava ignorar o sentimento de estar invadindo algo privado, mas a curiosidade o impulsionava. A mistura de números e mapas parecia aleatória à primeira vista, mas Dick tinha uma sensação estranha de que havia uma conexão mais profunda.
Ele engoliu a curiosidade, evitando perguntar novamente sobre qualquer detalhe pessoal da vida do outro homem, já era óbvio que o Wayne não queria perguntas, que não estava disposto a abrir o jogo. Em vez disso, Dick se concentrou na tela, tentando encontrar uma linha de raciocínio, alguma pista que o levasse a uma resposta. Não era apenas um caso de investigação.
-A conexão com a Awanig Ltd. pode ser maior do que pensamos - começou Bruce de repente - se esses registros forem legítimos, há um padrão nos portos usados para movimentação das últimas cargas, inclusive, alguns deles foram mencionados em investigações antigas sobre o nome de outras empresas de fachada que tem o mesmo endereço, no entanto, parece que as pistas sempre sumiam antes de levarem a alguém importante.
-Você acha que alguém dentro da polícia está encobrindo isso?
Bruce assentiu levemente, antes de entoar:
-Seria ingênuo não considerar essa possibilidade.
Dick observou Bruce por um momento. Apesar da postura distante e da frieza, havia algo nele que Dick começava a entender. Um cansaço permanente, algo denso e desgastado. Grayson não podia mais ignorar o clima estranho que envolvia o apartamento e a atitude de Bruce. Ele já havia notado antes que o ex-bilionário se escondia atrás de uma fachada de calma imperturbável, mas à medida que o tempo passava ali, os detalhes não se encaixavam. Era como se Bruce estivesse preso entre duas versões de si mesmo, o homem que controlava Gotham nas sombras e o homem atormentado por algo mais profundo.
Dick observava, a curiosidade se tornando uma pressão dentro de si. Ele não era um garoto de se distrair facilmente, mas ali tudo parecia estar errado. Ele passou os olhos pelas paredes, pela desorganização deliberada da sala, pela presença de objetos que não se encaixavam. E, acima de tudo, por aquele vazio gélido que parecia se estender ao redor de Bruce, algo que era tão difícil de identificar quanto de lidar
-Você sempre foi assim, Bruce? - Dick perguntou, as palavras saindo de sua boca antes que ele pudesse pensar nelas. Ele estava entediado, distraído pela monotonia do ambiente, pelas telas piscando e pela falta de progresso em suas próprias investigações. Bruce estava imerso no computador, como se estivesse buscando uma agulha no palheiro. Ele sequer parecia perceber o comentário de Dick. O silêncio se estendeu mais uma vez. Bruce, porém, não se moveu, apenas manteve seus olhos fixos na tela. A tensão entre eles se fazia mais palpável a cada segundo.
Dick hesitou e, em um impulso, decidiu explorar mais. Ele se afastou de Bruce e foi até a estante novamente, pegando um dos desenhos de giz de cera. Era simples, com traços rudimentares que Dick tinha certeza de que alguém que não tivesse uma infância "normal" faria. Mas o que o deixou desconcertado foi o que estava no papel. Não eram desenhos infantis de animais ou coisas simples; eram imagens distorcidas, um pouco assustadoras, uma árvore que se contorcia, um rosto sem olhos, uma figura estranha com braços desproporcionais, parecendo mais uma caricatura bizarra. O traço era infantil, mas a violência das formas parecia falar de algo muito mais profundo.
O ambiente ao redor estava pesado, o ar quase denso de uma tensão que ele não conseguia quebrar. Ele se sentia deslocado ali, como se estivesse em um espaço de limites invisíveis, onde tudo o que ele tocava se tornava mais complexo, mais perigoso.
Ele se afastou da estante, voltando para o lugar onde Bruce ainda estava imerso na tela do computador. O apartamento continuava envolto naquela atmosfera de tensão não dita, e Dick, embora estivesse em busca de respostas, se sentia mais perdido a cada minuto. O silêncio pairava no ar, e Bruce parecia cada vez mais distante, mais fechado.
-O que exatamente você está procurando, Bruce? - Dick perguntou, as palavras saindo com mais impaciência do que ele imaginava. Não era só a investigação que o incomodava, mas o ambiente, as imagens, a sensação de estar vivendo em uma realidade distorcida que ele não entendia completamente. Bruce, no entanto, não pareceu surpreso. Ele virou-se ligeiramente na cadeira, os olhos focados no que estava fazendo.
-Estou buscando padrões - Bruce respondeu com uma calma que não combinava com a frustração que Dick sentia. - padrões nos dados, nas movimentações. Se você soubesse o que é necessário para caçar um fantasma, entenderia.
O aspirante a jornalista investigativo o olhou por um momento, absorvendo as palavras. Ele sabia que Bruce estava tentando lidar com algo mais profundo do que a investigação que estavam conduzindo. O tom da voz de Bruce era quase vazio, como se ele estivesse se mantendo à tona em um mar de memórias e emoções não resolvidas.
-Eu sei que você falou para eu não mexer nas suas coisas... mas o que é isso? - Dick perguntou novamente, pegando um dos desenhos que havia na estante. Era estranho, muito estranho. O ex-bilionário olhou para o desenho por um momento antes de voltar o olhar para o computador dizendo com um tom duro, mas não irritado:
-Eu não faço a mínima ideia de como a cabeça do Coringa funciona.
O moreno voltou a digitar, mas Dick não conseguia tirar os olhos do desenho. Algo na forma como Bruce falou fazia a expressão do homem parecer ainda mais distante. Havia uma dor não dita ali, algo que ele não queria que fosse tocado.
-É meio perturbador ter essas coisas espalhadas pela casa - comentou Dick, tentando arrancar alguma reação de Bruce.
O ex-bilionário, ainda absorto no computador, demorou um instante para responder. Quando o fez, sua voz era neutra, mas havia uma exaustão subjacente, algo que Dick começava a reconhecer nele.
-Concordo - Bruce disse, sem tirar os olhos da tela - mas fui eu quem começou a pendurá-los.
Dick arqueou uma sobrancelha, surpreso, antes de entoar:
-Você?
O ex-bilionário finalmente desviou o olhar do computador e encarou o desenho nas mãos de Dick. Suspirou, pegando seu copo de uísque e girando o líquido âmbar antes de tomar um gole. Seus olhos pareciam distantes por um momento, como se revisitassem algo que ele preferia manter enterrado.
-Eu queria que este apartamento fosse um lugar seguro para nós - confessou, sua voz mais baixa, mas firme - um espaço onde não precisássemos esconder nada, nem as partes boas, nem as ruins.
Richard não esperava essa resposta. Ele observou Bruce por um instante, tentando captar o que se passava por trás daquela expressão sempre controlada. O homem parecia um muro emocional, mas pequenos detalhes estavam começando a rachar essa fachada.
-Então você pendura essas bizarrices como forma de dizer que aceita mesmo as partes mais sombrias dele? - perguntou Dick, mais como uma constatação do que uma provocação.
Bruce assentiu levemente antes de entoar:
-Exatamente.
-Isso não te incomoda? - perguntou o aspirante a jornalista investigativo tentando medir as palavras - digo…essa energia maníaca e desconexa, estamos falando de um assassino sanguinário e cruel.
Bruce parou de digitar por um instante, sua mandíbula se contraindo levemente antes de soltar um suspiro cansado.
-Jay é uma pessoa complexa, a mente dele não funciona como a minha ou a sua - disse o moreno, sua voz carregada de algo que Dick não conseguiu definir.
O silêncio entre os dois se prolongou. Dick pensou em insistir, mas percebeu que Bruce já havia dado mais respostas do que pretendia. Em vez disso, voltou-se para os papéis sobre a mesa, procurando algo que pudesse distrair sua mente. Os números e nomes eram um labirinto de informações
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Era de manhã quando Andy retornou ao banheiro, as sombras da noite passada ainda pairavam em sua mente. Ele havia suturado os ferimentos do ex-terrorista de qualquer jeito com o que tinha em casa, mas ele sabia que precisava ir a uma farmácia e comprar alguns antibióticos. O ex-psiquiatra não sabia o certo com o que fazer com o homem loiro sentado em seu sofá, as mãos presas com algemas na frente do corpo, mas que permitiam alguma mobilidade, além de pés igualmente presos ao pé do velho sofá. O Coringa estava com os cabelos molhados do banho e roupas limpas. Ele não parecia de bom humor.
O palhaço tamborilava os dedos contra o tecido da calça, seu olhar fixo em Andy como um predador entediado estudando sua presa. O silêncio entre os dois era denso, carregado de algo indefinível.
-Vai me dizer o que planeja fazer comigo ou só vai ficar aí me olhando como se estivesse arrependido de me dar banho? - o tom do ex-terrorista era zombeteiro, mas havia uma nota de cansaço embutida nas palavras.
Andy cruzou os braços, encostando-se à parede. Ele sabia que o Coringa estava testando sua paciência, empurrando as barreiras para ver até onde podia ir.
-Você precisa de antibióticos, e de comida de verdade - Andy disse, ignorando a provocação - se continuar assim, vai acabar com uma infecção e não poderei fazer nada por você.
O Coringa riu baixo, jogando a cabeça para trás contra o sofá.
-Ah, que tragédia seria, hein?
Andy ignorou o comentário, pegando uma sacola com o lanche que havia comprado mais cedo e jogando nas mãos do louco antes de dizer:
-Lacrado, sem nenhuma violação.
O cheiro de fritura e carne se espalhou pela sala, fazendo o estômago do Coringa protestar baixinho. O palhaço olhou para a sacola com um brilho zombeteiro nos olhos.
-Ah, que romântico, fast food, Andy? Você quer me seduzir com comida barata ?
O Coringa piscou lentamente, avaliando a situação. Andy estava realmente tentando quebrar suas defesas? Ele sabia que não deveria confiar naquilo, mas a fome era uma inimiga impiedosa, ele sabia muito bem disso com todas as suas experiências anteriores.
Depois de um momento de silêncio, o palhaço abriu a sacola com cuidado. Andy apenas observou, mantendo-se a uma distância segura. O Coringa retirou um hambúrguer ainda quente, deu uma mordida hesitante e depois outra, comendo devagar, os olhos sempre fixos no ex-psiquiatra.
Enquanto mastigava, o Coringa notou que Andy pegava algo de uma gaveta. O som do metal tilintando chamou sua atenção, e ele congelou por um instante quando viu o ex-psiquiatra segurar a coleira de choque, a mesma coleira de choque de Arkham, a mesma coleira de choque do cativeiro do ano passado.
O Coringa ficou imóvel por um instante, seu olhar perdendo parte da zombaria usual. Mas não demorou para que uma risada baixa escapasse de sua garganta, um som rouco e sem humor, antes que ele passasse a língua pelo lábio inferior dizendo:
-Sério, Andy? Voltamos para isso? Que previsível…você sabe que não vai conseguir colocar isso em mim sem que eu arranque a sua mão no processo.
Andy manteve o olhar fixo no dele, sem expressão, sem se abalar.
-Você sabe que eu não posso confiar em você - disse o ex-psiquiatra, seu tom era neutro e controlado.
O Coringa estalou a língua, ainda mantendo o sorriso, mas seu olhar agora tinha uma intensidade perigosa. Ele inclinou a cabeça levemente para o lado, observando cada movimento de Andy, como se estivesse estudando os limites do outro.
-Se você tentar colocar essa coisa em mim de novo, vou fazer você desejar estar morto quando eu sair daqui - rosnou o palhaço.
Andy suspirou, girando a coleira entre os dedos por um momento antes de deixá-la cair sobre a mesa ao lado.
-Isso é engraçado, vindo de você - murmurou ele, cruzando os braços.
O Coringa ergueu uma sobrancelha, ainda mastigando, os olhos nunca deixando Andy. Ele não gostava daquele tom. Era o tipo de voz que precedia algo que ele não queria ouvir.
-Engraçado? - repetiu o louco, lambendo o polegar para limpar um vestígio de molho do canto da boca - o que exatamente é tão engraçado nisso?
Andy inclinou a cabeça para o lado, estudando-o como um cientista observando uma criatura perigosa atrás do vidro.
-Você fala como se já não tivesse me matado.
O Coringa parou de mastigar. Só por um segundo. Foi uma pausa tão breve que talvez qualquer um menos acostumado a ele não tivesse notado. Mas Andy notou. Então, o palhaço deu de ombros, forçando um pequeno sorriso.
-Ah, vamos lá, querido… - cantarolou o ex-terrorista, pegando as batatas fritas no saco e girando-as entre os dedos - isso foi mais culpa sua do que minha, você devia saber no que estava se metendo, o que aconteceu com Annie não foi nada pessoal, você que transformou isso em algo pessoal, em Arkham.
Andy não respondeu. Apenas observou.
O Coringa não gostava disso, do jeito que Andy apenas olhava para ele, sem raiva, sem ódio explícito, apenas aquele maldito controle frio e calculado… aquilo o incomodava.
-Então, vai ficar só me encarando ou finalmente vai me dizer qual é o seu grande plano? - insistiu o Coringa, estalando a língua - porque francamente, já estou cansado da brincadeira, está ficando repetitivo.
-Meu grande plano? - Andy repetiu, quase divertido - eu não tenho um plano, acho que estou maluco.
O Coringa revirou os olhos.
-Você sempre tem um plano, todo mundo tem um plano, mesmo que ridículo.
Andy respirou fundo, mantendo os olhos fixos no Coringa, que agora o observava com uma mistura de cansaço e desprezo, como se estivesse à beira de uma explosão, mas não soubesse exatamente o que fazer com isso. A tensão na sala estava densa, como uma corrente elétrica prestes a estourar.
O ex-psiquiatra deu um passo à frente, a distância entre os dois agora mínima, tão curta que o ar parecia vibrar com a tensão. Ele olhou para o palhaço como se estivesse se aproximando de um ponto de ruptura que não poderia mais ser ignorado.
Em um movimento rápido, como um animal selvagem encurralado, o palhaço o atacou. As algemas foram posicionadas ao redor do pescoço do outro homem com um bote certeiro, como uma cobra venenosa. O movimento do Coringa foi tão rápido que Andy não teve tempo de reagir.
Andy lutou, suas mãos tentando afastar o metal que pressionava a garganta, mas o Coringa não dava trégua, seu sorriso alargado, delirante de prazer maníaco. A dor era aguda e crescente, mas Andy não podia ceder. Seus olhos fixaram-se nos do palhaço, em um desafio silencioso. O ex-terrorista apertou com força, os olhos brilhando com algo entre êxtase e raiva.
O ex-psiquitra viu pontos negros começarem a dançar em sua visão. Seus dedos tentavam, sem sucesso, afrouxar as algemas ao redor de sua garganta. O corpo inteiro protestava contra a falta de oxigênio, mas ele sabia que se desmaiasse ali, estaria acabado.
O mundo começou a escurecer nas bordas da visão de Andy, seus pulmões ardendo pela falta de oxigênio. Seus dedos tentavam alcançar qualquer ponto vulnerável do Coringa, qualquer coisa que pudesse aliviar a pressão esmagadora ao redor de seu pescoço. Mas o maldito sabia o que estava fazendo.
O palhaço se aproveitou da proximidade, os músculos tensionados pelo esforço enquanto pressionava o frio do metal contra a garganta do ex-psiquiatra. O sorriso do Coringa era largo, os dentes à mostra em um deleite perverso. Havia algo faminto em seus olhos, um brilho selvagem, como um predador saboreando o momento exato em que a presa percebe que perdeu.
-Vamos lá, Andy… se debate mais um pouquinho para mim - murmurou o palhaço, a voz arrastada e intoxicada pelo próprio sadismo.
Andy sentiu seus joelhos cederem, sua mente já oscilando entre a consciência e a inconsciência. Um ruído abafado ecoou pelo apartamento, mas ele não conseguiu entender o que era. Seus olhos começaram a se fechar. Ele agarrou os pulsos do Coringa, cravando as unhas na pele pálida em uma tentativa desesperada de afrouxar o aperto. Ele não conseguia respirar. Seus dedos encontraram o rosto do palhaço, pressionando contra seus olhos, tentando forçá-lo a soltar sem sucesso. Foi então que a porta se abriu com um estrondo.
-Solta ele, agora - a voz de Sam cortou o ar como uma lâmina afiada.
O Coringa nem sequer olhou imediatamente. Seus pulsos ainda estavam ao redor da garganta de Andy, sua cabeça tombando ligeiramente para o lado, como se estivesse considerando a ordem como algo meramente sugestivo. Um riso baixo e rouco escapou de seus lábios.
-Olha só quem chegou para salvar o dia…Sammy - murmurou o palhaço passando a língua pelos lábios, sem afrouxar o aperto. Seus olhos se voltaram lentamente para Sam, que estava parado à entrada, a arma apontada diretamente para ele.
Sam não hesitou, embora sua expressão fosse cautelosa. Andy sentiu o mundo girar. O desespero começou a se infiltrar em sua mente, um medo instintivo que ele não queria admitir. Ele não queria morrer ali. Não assim.
Sam ergueu a arma sem hesitar, mirando diretamente na lateral da cabeça do Coringa.
-Eu disse pra soltar ele, seu desgraçado.
O palhaço finalmente virou a cabeça um pouco, os olhos brilhando com algo perigoso.
-Oh, Sammy… - zombou o louco lambendo o canto dos lábios, a voz rouca de divertimento - você vai mesmo atirar? Assim, sem nem contar até três? Tsc, tsc, tsc... Que falta de dramaticidade.
O ex-terrorista apertou ainda mais. O ex-psiquiatra engasgou, sua visão ficando ainda mais turva. Sam não esperou. O tiro ecoou pelo apartamento.
O impacto da bala atingiu o Coringa no ombro, jogando-o para trás com a força do disparo, os olhos arregalados mas não de surpresa Um filete de sangue começou a se espalhar pela camisa limpa, encharcando o tecido. O ex-psiquiatra caiu de joelhos no chão, engasgando e tossindo violentamente, puxando o ar de volta para os pulmões em grandes arfadas. A pressão em sua garganta desaparecera, mas a sensação de sufocamento ainda estava lá.
-Porra... - sua voz saiu rouca, entrecortada.
-Tsc…isso foi rude - O Coringa riu, engolindo um gemido de dor, pressionando a ferida - e você errou a cabeça, Sammy… estou decepcionado.
Sam não abaixou a arma, sua mira ainda fixa no homem ferido.
-Cala a porra da boca - rosnou Sam, avançando para Andy e segurando o amigo pelo braço, ajudando-o a se afastar do palhaço.
O ex-psiquiatra ainda estava respirando pesadamente, sua mente lutando contra o pânico crescente. Seu olhar foi até o Coringa, a expressão indecifrável. Havia algo ali, algo estranho. Ele não queria admitir nem para si mesmo, mas ver o palhaço sangrando daquele jeito não lhe trouxe satisfação. Pelo contrário.
-Porra, Sam! - A voz de Andy era rouca, ainda recuperando o fôlego.
Em três passos, Sam estava sobre o Coringa, empurrando o cano da arma contra a lateral de seu rosto. O metal frio pressionava o osso da mandíbula do palhaço.
-Dá mais um passo fora da linha, e eu juro que dessa vez eu não erro - a voz de Sam era um rosnado.
O Coringa piscou lentamente, os olhos fixos nos de Sam, um brilho quase divertido ali. Então, ele sorriu antes de passar a língua nos lábios. Seu sorriso era de desdém
-Você tá tremendo, Sammy... - murmurou, os olhos semicerrados, estudando cada linha de tensão no rosto do outro - tem certeza de que quer fazer isso?
A mandíbula de Sam se contraiu. Ele estava fervendo de raiva, a adrenalina pulsando forte em suas veias. O Coringa percebeu e se deliciou com isso, absorvendo cada nuance do descontrole do homem à sua frente.
-Você sabe que eu adoro um pouco de pressão… - o palhaço zombou rindo, sua voz escorrendo veneno - vai em frente, me faça ver fogos de artifício.
Isso foi o suficiente para empurrar Sam além do limite. Ele avançou, agarrando o palhaço pelo colarinho da camisa, e num movimento brusco, enfiou o cano da arma dentro da boca do Coringa. O metal gelado pressionou a língua do palhaço, empurrando-a contra o céu da boca. O Coringa parou de rir, os olhos arregalados por um momento, antes de estreitá-los e soltar um som abafado, quase um ronronar.
-Cala a boca sei filho da puta - rosnou Sam entre os dentes, forçando a arma um pouco mais - ou vou fazer você engolir os próprios dentes.
O palhaço piscou devagar, a arma ainda em sua boca, e então… sorriu em torno do cano. Andy observou a cena, sentindo a adrenalina arder sob sua pele. Sam estava perdendo o controle, o Coringa estava brincando com isso, e ele… ele não sabia o que sentir. Mas o Coringa… ele não parecia minimamente intimidado. Pelo contrário. Ele soltou um som abafado, algo que poderia ter sido uma risada, e depois piscou teatralmente para Sam, como se estivesse se divertindo com uma boa piada que só ele entendia. A tensão se tornou insuportável.
-Sam, larga essa porra! - Andy finalmente explodiu, empurrando Sam para trás com força.
O impacto fez Sam cambalear um pouco, e o Coringa aproveitou para cuspir para o lado, rindo enquanto limpava a boca com o ombro.
-Uau, não conhecia esse seu lado Sammy, honestamente, foi melhor do que eu esperava. - murmurou o louco, se acomodando melhor no sofá, apesar da dor no ombro - acho que vou pedir pipoca da próxima vez.
O barulho preencheu o apartamento, um som ensurdecedor que se sobrepôs à respiração ofegante e ao cheiro de pólvora. Mas o tiro não atingiu seu alvo pretendido. No último segundo, Andy avançou, seu corpo instintivamente empurrando Sam para o lado. O desvio foi brusco o suficiente para que a bala errasse a cabeça do Coringa, mas ainda assim encontrasse carne.
Um gemido escapou do palhaço quando o projétil rasgou a lateral de seu abdômen. O impacto fez seu corpo pender para o lado, os músculos enrijecendo com a dor, mas a risada não tardou a vir:
-Hah… ahh… quase, Sammy… - o Coringa arfou, uma de suas mãos voando para pressionar a ferida recém-aberta. Seu riso veio entrecortado, o sangue escorrendo por entre seus dedos - cacete, isso arde… Você não é muito bom nisso, hein? É novato.
-Cala a porra da boca! - Sam rosnou, mas antes que pudesse atirar de novo, Andy o agarrou pelo pulso, torcendo a arma para longe do Coringa.
O estalo dos ossos e o choque de corpos preencheu o ar quando os dois começaram a lutar pelo controle da pistola.
-Para, Sam! - Andy grunhiu, seus dedos apertando o pulso do amigo, tentando afastá-lo.
Mas Sam estava fora de si. Sua mente fervilhava em um redemoinho de adrenalina e ódio. Ele empurrou Andy para trás, tentando se desvencilhar, mas o ex-psiquiatra não soltou. Os dois tropeçaram, o peso de ambos colidindo contra a mesinha de centro, derrubando tudo no chão. O Coringa, mesmo sangrando, assistia à cena com uma diversão cruel, seus olhos acompanhando o caos com um brilho febril.
Um segundo disparo soou no apartamento e Andy gritou. A dor explodiu em sua lateral, queimando como fogo líquido. O choque o fez cair de joelhos, pressionando a mão contra a ferida enquanto o sangue quente escorria pelos dedos. Ele ergueu o olhar incrédulo para Sam, que ainda segurava a arma, mas agora parecia paralisado, os olhos arregalados em horror pelo que havia feito.
O choque e a culpa no rosto do amigo eram quase palpáveis.
-Merda... merda, não... - Sam gaguejou, suas mãos tremendo ao ver o sangue começar a se espalhar pela roupa de Andy - cara, aguenta firme, eu... eu preciso de ajuda, eu…
Sam precisava pensar, precisava fazer alguma coisa. Mas sua mente estava em frangalhos. E então, no meio do caos, o som mais inesperado ecoou pelo ambiente. Um estalo doentio e seco segredo de um pequeno gemido entre dentes cerrados. Sam levantou a cabeça a tempo de ver o Coringa se contorcendo levemente no sofá enquanto segurava o próprio pé que continha as amarras. Sam estremeceu, o doente estava deslocando o próprio tornozelo para baixo em uma posição esquisita.
O Coringa sorriu, os dentes em um sorriso grotesco, como se não se importasse nem um pouco com a dor que ainda estava causando em si mesmo. A mente de Sam estava em um turbilhão, uma mistura de pânico, nojo e um medo primitivo que ele nunca imaginou sentir. Ele sabia o que aquele homem era capaz de fazer, mas assistir o Coringa se machucar daquele jeito era algo que desestabilizava tudo que ele pensava saber sobre resistência humana.
O Coringa estava sorrindo de um jeito que fez Sam tremer por inteiro, como se estivesse observando uma presa se contorcendo antes de ser devorada. Sam sentiu o sangue gelar. Ele olhou para a arma caída no chão sem saber o que fazer frente ao pânico. O Coringa, com uma calma assustadora, retirou as amarras com facilidade, como se fosse uma brincadeira qualquer.
A imagem do Coringa, sujo de sangue, cambaleando para fora do sofá com o sorriso ainda lá, escancarado e insano, foi o suficiente para fazer a adrenalina correr mais rápido em Sam, apertando seu coração. Ele mal podia respirar, e a visão do Coringa se aproximando dele fez tudo parecer mais real, mais mortal. Sam queria correr, mas seu corpo não reagia.
Ele queria gritar, mas sua garganta estava fechada. Ele estava em pânico, a mente dele completamente bloqueada pelo terror absoluto que sentia diante da insanidade do Coringa. Ele olhou para a arma caída no chão novamente, e desejou com todas as forças que tivesse forças para pegá-la. Mas seu corpo não respondia. Ele estava completamente em pânico, o terror rastejando sob sua pele.
Os olhos do ex-terrorista pousaram na arma de Sam, caída a poucos centímetros dele. Mesmo no limite de suas forças, o louco se esticou, os dedos sujos de sangue agarrando o metal frio. Sam percebeu tarde demais, o Coringa virou a arma em sua direção, sua expressão sombria. Ele ia matar os dois. Ele ia atirar.
No entanto, o “ Click” vazio da câmara ressoou como um trovão no silêncio tenso.O Coringa piscou. Tentou de novo, mas não havia balas. Então o louco riu. Ele riu tanto que seu corpo inteiro doeu.
-Isso… isso é hilário… – murmurou o palhaço limpando o canto da boca suja de sangue com as costas da mão.
O Coringa olhou para a arma vazia em sua mão e a girou nos dedos, brincando com o objeto como se não tivesse acabado de tentar matar os outros dois presentes na sala.
-Sabe… eu realmente achei que esse seria o fim - a voz do ex-terrorista era suave enquanto ele lambia o canto dos lábios, quase casual, como se estivessem discutindo o clima.
Sam sentiu um nó apertar sua garganta, as palavras presas por trás do choque e da raiva. Ele quis se mover, fazer alguma coisa, mas suas pernas estavam fincadas no chão. Ele nunca se sentira tão impotente.
A arma escorregou dos dedos do Coringa e caiu no chão com um som oco. Ele ficou ali, parado, apenas observando o objeto inofensivo por um instante. O sorriso que antes se alargava em seu rosto se dissipou lentamente, substituído por algo mais abstrato, mais vazio. O palhaço inclinou a cabeça, como se estivesse ouvindo um som distante que só ele podia captar. Seu peito subia e descia com esforço, a camisa encharcada de sangue grudando em sua pele. Mas ele não pareceu notar. Ele apenas virou-se, lentamente, e começou a andar.
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O apartamento fechado estava mergulhado na penumbra quando a notificação do celular vibrou sobre a mesa. O som era baixo, quase insignificante, mas o silêncio absoluto pareceu ser rompido. Bruce passou uma mão cansada pelo rosto, sentindo o peso da exaustão prender-se aos seus ossos como correntes enferrujadas. Ele e Dick tinham passado boa parte da noite tentando costurar as peças soltas, buscando um padrão em algo que não parecia fazer sentido.
A tela do celular iluminou sua expressão austera, os olhos semicerrados de cansaço ao ler a mensagem.
“ O passado tem uma maneira curiosa de assombrar os que tentam enterrá-lo. Sementes plantadas em terras distantes germinam na sombra, crescendo sem que seus cultivadores sequer saibam de sua existência. O fruto logo estará maduro. Mas será que o jardineiro está pronto para colhê-lo?”
Bruce manteve os olhos fixos na mensagem, sua mente trabalhando rápido. As palavras eram um quebra-cabeça, uma charada que exigia decifração. Essa era nova, enviada por Chuck no início da manhã, juntamente da informação de que Jason Todd havia fugido da penitenciária para menores infratores. Bruce não reagiu de imediato. Apenas respirou fundo e se recostou na cadeira. Era muita coisa acontecendo.
O ex-bilionário se levantou, sentindo a rigidez de uma noite mal dormida em seus músculos. Ele sabia que não devia se envolver. Jason não era sua responsabilidade. Mas mesmo sem o manto, sem os recursos, sem a estrutura que um dia teve, ele ainda era movido pelo mesmo impulso insuprimível.
Bruce largou o celular sobre a mesa e passou as mãos pelo rosto, tentando dissipar o torpor do cansaço. O apartamento parecia ainda menor, sufocante. O ar carregado pelo peso de noites mal dormidas e pensamentos não resolvidos. Ele não devia se envolver.
Ele se levantou, sentindo a rigidez dos músculos protestarem contra o movimento brusco. Seu olhar percorreu o pequeno espaço, os restos de anotações espalhados sobre a mesa, rabiscos e diagramas que ele e Dick haviam tentado construir durante a madrugada. Todos levando ao mesmo ponto morto. E agora, uma nova peça caía sobre o tabuleiro. Ele precisava de ajuda, de ajuda de alguém especialista em enigmas.
Edward Nashton.
O silêncio pesado do apartamento parecia engolir cada movimento de Bruce enquanto ele se aproximava da janela, olhando para a cidade que continuava a se mover indiferente ao caos que se desenrolava ao seu redor. A mensagem de Chuck martelava em sua mente, mas não era apenas o enigma o que o inquietava. Era o fato de que, ao contrário de antes, ele não tinha respostas. Não tinha pistas. Tudo parecia ter sumido em um emaranhado de teorias e suposições, um labirinto sem saída. E Jason... Bruce sentiu uma tensão constante a seu redor, como se tudo estivesse prestes a desabar. O garoto, fugido da penitenciária, era apenas mais uma peça no quebra-cabeça que estava se tornando cada vez mais sombrio.
Bruce fechou os olhos por um momento, respirando fundo, tentando encontrar alguma clareza. Ele não devia se envolver. Não mais. Jason não era sua responsabilidade. Mas isso era o que ele dizia para si mesmo. Não se enganava, sabia que seu instinto sempre o puxaria de volta, como um ímã, para o que ainda restava das sombras.
A luz da manhã brilhou no rosto do ex-bilionário quando ele abriu as cortinas espessas com um suspiro. Aquele apartamento parecia engoli-lo. A urgência o impulsionava até o apartamento de Edward Nashton, e o desconforto era mais do que a necessidade de respostas, era o peso de saber que, talvez, ele tivesse que dar o braço a torcer, e isso o corroía por dentro. Ele não queria pedir ajuda a Edward. Não podia. A relação entre eles sempre foi espinhosa. No entanto, no momento, teria que servir.
O telefone do ex-bilionário vibrou levemente, era Rachel. Bruce não teve coragem de atender. O moreno apenas andou levemente até a pequena cozinha, tomando um gole de café em silêncio enquanto arrumava a ração de Bud. Ele estava se preparando mantalmente para fazer uma visita.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 26: The Gotham We Have (Parte 26)
Notes:
Demorou mais saiu. Não sei se vou conseguir postar nesse fim de semana, mas vou tentar. Obrigado a todos que tem acompanhado até aqui :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce chegou ao prédio de Edward, os olhos escondidos sob a capa e a máscara, a mente uma tempestade de pensamentos conflitantes. Ele já não sabia mais o que esperar. As pistas estavam esparsas e soltas como fragmentos de um quebra-cabeça que se recusava a se encaixar. O risco de perder o controle de tudo, de perder mais uma vez,era algo que o assombrava com uma intensidade quase palpável. Ele não podia falhar de novo.
A porta do apartamento de Edward estava entreaberta quando Bruce chegou. Ele não a forçou. Sabia que Edward não seria fácil de surpreender. Edward sempre soubera quando ele estava perto, como se estivesse lendo sua mente a cada passo que Bruce dava. A atmosfera dentro do apartamento estava densa, carregada de um tipo de tensão elétrica que Bruce podia sentir até nos ossos.
O Charada estava encostado na mesa, as mãos nos bolsos do casaco amarrotado. Os olhos afiados se estreitaram ao ver Batman ali, como se sua presença fosse uma afronta pessoal.
-Engraçado - Edward começou, a voz carregada de desdém - quando percebi que alguém estava vindo, pensei que fosse alguém interessante, mas, claro, tinha que ser você .
Bruce não mordeu a isca, apenas ficou em silêncio por um momento olhando para o outro homem antes que esse continuasse:
-O que você quer, Batman? Eu não tenho tempo para seus joguinhos de detetive.
Com essas palavras Edward virou-se para sua mesa e começou a empilhar papéis, como se Bruce não estivesse ali.
A provocação era calculada, lançada como lâmina afiada. Bruce não reagiu. Respirou fundo e soltou o ar devagar. Ele odiava aquilo. Odiava estar ali. Mas não tinha escolha.
-Preciso da sua ajuda - disse o morcego em um tom neutro.
Ele já conhecia o jogo de Edward, já sabia como ele funcionava. O ego do Charada era um abismo sem fundo, sempre faminto, sempre exigindo reconhecimento.
Edward deu um passo à frente, os olhos escuros avaliando cada detalhe da expressão oculta pelo capuz do morcego.
-Você realmente engoliu esse seu orgulho ridículo para vir aqui me pedir ajuda? Isso é quase comovente, mas por que eu ajudaria?
Bruce sustentou o olhar antes de dizer em seu tom neutro:
-Porque é sobre o Coringa.
Edward arqueou uma sobrancelha, o interesse momentâneo piscando em seus olhos antes de dizer:
-Preciso dizer, essa é uma tática nova, você está tão desesperado assim?
O ar entre os dois pareceu mudar por um instante. Edward ficou em silêncio no momento seguinte, o olhar avaliativo endurecendo sutilmente. Mas foi rápido. Rápido o suficiente para que qualquer um que não o conhecesse bem não percebesse. Obviamente Bruce notou.
-Me deixa fora disso - começou Edward depois de um momento, seu tom era neutro, mas ele parecia um pouco nervoso - vou te dizer a mesma coisa que disse para os outros dois garotos mais cedo, eu não quero estar envolvido com essa merda de novo, eu não quero saber.
-Quem esteve aqui ? - perguntou o morcego franzindo a testa por trás do capuz. Edward era um manipulador nato, mas seu problema sempre fora o mesmo: ele falava demais .
-Quem esteve aqui? - a voz de Bruce cortou o silêncio como uma lâmina fria.
Edward revirou os olhos, o desdém quase performático.
-Você sempre com esse tom ameaçador, como se eu fosse me borrar de medo. Tente algo novo, Batman, me surpreenda, eu não trabalho para você, se quer respostas, vá jogar de detetive em outro lugar.
Bruce permaneceu imóvel, sua presença uma sombra pesada dentro do pequeno apartamento. Ele observava Edward com atenção, o jeito que ele evitava olhar diretamente para ele, a rigidez nos ombros, o modo como suas mãos, normalmente inquietas, estavam firmemente enterradas nos bolsos do casaco.
Bruce deu mais um passo à frente, e Edward se moveu instintivamente para trás, embora tentasse disfarçar a reação. O Charada cruzou os braços, erguendo o queixo em desafio, mas Bruce sabia reconhecer quando alguém estava desconfortável.
-Quem esteve aqui, Edward? - a voz do Batman era baixa, firme, uma ameaça velada na escuridão do apartamento.
-Que parte do 'me deixe fora disso' você não entendeu?
Bruce não reagiu. Apenas inclinou ligeiramente a cabeça, observando-o como um predador que avalia uma presa.
-Você está nervoso - disse o morcego.
O Charada revirou os olhos antes de entoar:
-Claro que estou nervoso, você entrou no meu apartamento sem ser convidado, e isso seria suficiente para um processo por invasão de domicílio, se você não fosse um criminoso fantasiado.
-Quem esteve aqui antes de mim? Você sabe que eu vou descobrir de qualquer jeito - Bruce disse, a voz baixa, letal - nós podemos pular para a parte em que você colabora e evitar que isso se torne desagradável para você.
O homem bufou, dando de ombros.
-Gente. Pessoas. Humanos bípedes que respiram oxigênio. Seja mais específico.
Bruce deu um passo à frente, encurtando a distância entre os dois. A sala parecia encolher ao redor deles. Edward, encostado na mesa, ergueu uma sobrancelha, tentando manter a pose de tédio, mas Bruce notou o sutil enrijecer dos dedos sobre a madeira. Notou a forma como ele inclinou o peso do corpo para trás, criando uma distância mínima entre os dois. Um instinto de autopreservação.
-Quem esteve aqui? - Bruce repetiu, a voz baixa, cortante.
-Não faço ideia, eram dois garotos, não se apresentaram, e eu não me dei o trabalho de perguntar - Edward suspirou, teatral, revirando os olhos - honestamente, Batman, seu nível de paranoia está ainda pior do que antes, eu posso te dar o número do meu terapeuta.
Bruce agiu rápido, ele pegou Edward pelo colarinho e o jogou contra a parede com um impacto seco. O Charada arfou, os olhos arregalando-se em um susto indignado.
-Você tem uma péssima memória - Bruce rosnou, aproximando-se - deixa eu refrescar para você.
Edward abriu a boca para protestar, mas Bruce apertou seu pescoço apenas o suficiente para cortar qualquer palavra antes que pudesse ser dita. Ele não estava acostumado a ser fisicamente dominado, e o golpe ao ego foi instantâneo. Sua máscara de indiferença estava rachando, e Bruce sabia exatamente onde mirar. O Charada engoliu em seco.
Edward tentou se desvencilhar, mas a força de Bruce foi mais do que ele podia lidar. Bruce o manteve contra a parede, os olhos fixos em Edward, sentindo a adrenalina crescer. Ele sabia que estava perto, muito perto de fazer o Charada admitir a verdade, e ele não ia perder essa oportunidade.
-Eu não vou perguntar de novo - falou o morcego.
Bruce apertou um pouco mais, a pressão aumentando, e o Charada engasgou, seu rosto ficando ainda mais vermelho antes que Bruce o soltasse, fazendo Edward se curvar arfando e tossindo por um momento.
-Você está fora de controle, Batman - ele falou, a voz rouca, tentando disfarçar o pânico que já estava tomando conta de seu corpo - você finalmente desistiu de fingir que tem limites?
Bruce não disse nada, ele apenas acertou o rosto do outro homem com uma joelhada dura. Edward caiu pesadamente no chão, o impacto do joelho de Bruce fazendo seu corpo se curvar em um espasmo involuntário. Ele ficou ali por um momento, imóvel, tentando recuperar o fôlego e, mais importante, tentar restaurar sua fachada de controle. Mas a dor que irradiava de seu nariz quebrado e a sensação de impotência não podiam ser ignoradas. O sangue quente escorria de sua narina, tingindo suas mãos e o piso abaixo dele.
Bruce ficou de pé, a postura imponente, sua presença opressiva. Ele observava Edward com uma calma perturbadora, como se ele já tivesse calculado cada movimento, cada palavra que sairia da boca do Charada. A dor, o medo, tudo estava visível em Edward agora, e Bruce não tinha intenção de dar trégua.
-Você gosta de brincar de detetive, então me dê as respostas. - Bruce falou, a voz carregada de um tom frio que cortava o ambiente. Ele sabia que o Charada era movido por seu ego e seu narcisismo, e nada feria mais o ego de Edward do que ser forçado a ceder dessa forma.
Edward levou a mão ao rosto, tentando estancar o sangue, e levantou a cabeça, os olhos cheios de raiva e humilhação. Ele tentou se manter de pé, tentando proteger sua dignidade, mas Bruce não dava espaço para que ele se recuperasse.
-Dois garotos - Edward cedeu finalmente - um mais impulsivo, claramente com um histórico de violência. O outro, mais racional, mas igualmente irritante, eles…eles perguntaram sobre Malia Tate, sobre Tália.
Bruce não reagiu, mas por dentro sua mente já estava juntando as peças.
-Por quê?
Edward não respondeu, a respiração levemente instável. Bruce então se abaixou e puxou Edward pela gola do casaco, forçando o Charada a olhar para ele diretamente.
-Como se eu fosse perder meu tempo perguntando os motivos de dois fedelhos - cuspiu Edward - eu fiz o que qualquer pessoa sensata faria, disse para irem embora e trancarem a porta ao sair.
Bruce pressionou ainda mais, o olhar se tornando um peso em cima de Edward, a tensão crescendo a cada segundo. Ele sentia a adrenalina pulsando em suas veias, mas não se permitia perder o controle. O Charada estava quebrando, e ele sabia que a verdade estava perto, mas ainda precisava de mais.
-Você sabe algo mais - a voz de Bruce era baixa, porém carregada de uma ameaça implícita.
Edward, já ofegante, tentou recuar, mas Bruce não o deixou. O Charada ainda estava tentando manter a compostura, mas as palavras saíam mais difíceis de controlar.
-Eu não trabalho para você.
Bruce não disse nada, apenas manteve o olhar fixo no Charada. Edward, a dor no rosto e a raiva fervendo em suas entranhas, começou a ceder. A pressão psicológica estava tomando seu efeito, e ele sabia que, se continuasse a resistir, a situação só pioraria para ele. Nashton respirou fundo, o sangue ainda escorrendo pelo nariz, a humilhação consumindo cada pedaço de sua identidade. Mas ele sabia, no fundo, que não havia mais para onde correr.
-Eu não sei Batman - disse Edward entre os dentes - eu não perguntei, mas eles…eles pareciam bem interessados, eles não sabiam que ela é Talia, e eu não disse a eles se você quer saber.
Bruce levantou a cabeça, absorvendo as palavras com uma calma assustadora.
-Onde posso encontrá-los? - Bruce perguntou, sua voz implacável. Ele não deixaria Edward escapar tão facilmente.
-Eu não sei... - Edward tentou se afastar, a dor ainda evidente - eu não sei.
-Mas você ainda vai me ajudar - falou o morcego depois de um momento de silêncio contemplativo - eu preciso achar o Coringa e você vai me ajudar, e não estou mais pedindo, estou mandando.
Edward piscou, o olhar carregado de raiva e humilhação, mas algo em Bruce, na intensidade de sua presença, fez a raiva se misturar com o medo. Ele sabia que estava sendo empurrado para um beco sem saída, e não gostava disso. O Charada sempre se orgulhou de sua mente, da maneira como conseguia manipular as situações, mas agora estava se sentindo encurralado. Ele queria gritar, desafiar, mas não tinha mais energia para isso.
Ele olhou para Bruce, tentando recuperar um pouco da compostura, mas sua voz soou mais fraca do que ele gostaria:
-Você acha que vou ajudar você? Você está me ameaçando, e agora quer que eu colabore?
Bruce permaneceu implacável, sua postura rígida, os olhos nunca deixando os de Edward.
-Não é uma questão de escolha, você vai me ajudar - a voz de Bruce era simples, direta, mas carregada de uma ameaça que se estendia além das palavras. O Charada sentiu um calafrio, um estremecer em seus ossos.
-E o que você vai fazer se eu não ajudar? - Edward desafiou, tentando retomar um pouco do controle.
Bruce se abaixou, fazendo a pressão no ambiente aumentar ainda mais. Ele estava perto o suficiente agora para que Edward pudesse sentir a presença ameaçadora de cada palavra que saía da boca do morcego.
-Não preciso fazer nada, você já sabe o que acontece, não me faça repetir.
-Esses dois… não têm muito a ver com o Coringa, só estavam atrás de informações sobre ela, sobre Talia - falou o Charada depois de um momento - eu não sei de nada, eu não sei como te ajudar.
Bruce só ficou ali, observando, esperando que Edward se abrisse mais. Ele sabia que a resistência do Charada não era mais uma defesa, mas um reflexo do desconforto que ele sentia ao ter o controle da situação retirado. Edward gostava de manipular, de jogar com as palavras e os sentimentos das pessoas, mas quando ele estava diante de alguém que não se importava com seus jogos, isso o desconcertava.
-Você me conhece, Eddie - Bruce finalmente falou, e a referência ao apelido dado pelo Coringa fez os olhos de Edward se estreitarem, o olhar por um momento desconcertado - eu não sou paciente, então não me teste.
-Eu não sei como o Coringa aguenta você - suspirou Edward revirando os olhos.
Bruce manteve seu olhar fixo em Edward, a tensão entre eles crescendo a cada segundo. Ele sabia que estava prestes a quebrar a fachada de indiferença de Edward, só precisava pressionar um pouco mais.
O Charada balançou a cabeça, como se tentasse se convencer de que ainda tinha algum controle da situação. Mas Bruce sabia que a luta interna estava acontecendo, e Edward não era mais tão seguro de si quanto parecia.
–Você ainda acha que tem algum poder aqui? - Bruce perguntou, a voz baixa, quase desinteressada, mas com um peso que fazia os ombros de Edward se encolherem.
Edward engoliu em seco, o olhar se desviando brevemente para o chão. A dor em seu rosto era uma lembrança constante, e o medo de perder o controle sobre a situação parecia estar finalmente ultrapassando seu orgulho. Ele finalmente pareceu quebrar, seus olhos se tornando mais frágeis, mais humanos, menos o Charada e mais o homem por trás do personagem. Ele suspirou, o peso da derrota pesado demais para ignorar.
-Eu realmente não sei de nada, eu não sei nada sobre esses garotos ou o que eles queriam com Tália…eu também não sei nada sobre o Coringa ou como te ajudar a achar ele, eu sinto muito.
Bruce permaneceu em silêncio, seus olhos fixos em Edward enquanto absorvia as palavras, ciente de que o Charada ainda estava jogando algum tipo de jogo. Ele sabia que a resistência de Edward não estava apenas relacionada ao medo de ser controlado, mas à necessidade de manter a fachada de superioridade. Mesmo em um momento de aparente derrota, o Charada não queria ceder completamente.
Bruce não relaxou. Sua presença implacável ainda pairava sobre o outro homem, e Edward, embora fisicamente quebrado, ainda era um mestre nas palavras. O Charada sabia como manipular as situações, mas seu orgulho estava dilacerado, e Bruce sabia que ele já estava no limite.
-Você está mentindo - disse ele, a voz fria e controlada, sem emoção.
Edward se encolheu um pouco, como se a pressão de Bruce estivesse finalmente alcançando o ponto crítico.
-Eu não estou mentindo.
-Por enquanto, vou te dar o benefício da dúvida - entoou o morcego em um tom calmo - mas se você estiver mentindo para mim…
-Eu não estou - Edward se apressou em dizer engolindo em seco.
-É bom mesmo que não esteja.
Antes que Bruce pudesse pressionar Edward ainda mais, um barulho do lado de fora chamou sua atenção. Bruce se virou imediatamente, sua mente já antecipando um ataque, mas o que encontrou foi inesperado. Dois jovens estavam ali, congelados na entrada, os olhos arregalados ao ver a cena diante deles. Jason Todd e Timothy Drake.
Os dois pareciam prontos para reagir, mas a tensão no ar os fez hesitar. Jason, sempre impulsivo, deu um passo à frente, os punhos cerrados. Seu olhar oscilou entre Edward, encostado na parede com sangue escorrendo do nariz, e Batman, imóvel, mas ainda uma ameaça imponente.
-Que merda tá acontecendo aqui? - Jason cuspiu, a voz carregada de incredulidade e raiva.
- Mas que merda... - Jason murmurou, dando um passo para frente, o corpo instintivamente se preparando para um embate.
Tim, ao contrário, manteve-se um pouco mais afastado, os olhos afiados avaliando a situação. Ele não conhecia o Batman pessoalmente, mas a reputação do vigilante de Gotham precedia sua presença. Se Jason estava tenso, Tim estava tentando entender como eles poderiam sair dali sem um confronto direto.
Edward se endireitou com dificuldade, limpando o sangue da boca com as costas da mão e lançando um olhar venenoso para Bruce antes de se virar para os recém-chegados.
-Ah, que conveniente - disse Edward, a voz levemente rouca. - meus clientes chegaram bem a tempo de presenciar uma clara violação dos meus direitos civis.
Tim não disse nada de imediato, apenas avaliava a situação com olhos analíticos. Jason, por outro lado, varreu o apartamento com os olhos antes de se fixar em Bruce, sua postura se tornando imediatamente defensiva.
-A gente veio fazer um negócio, mas acho que não é um bom negócio - falou Jason, seu tom era duro - o que diabos está acontecendo aqui?
Bruce não respondeu de imediato. Em vez disso, seus olhos fixaram-se em Jason, avaliando-o. Ele o reconhecia. O garoto tinha fugido do reformatório para menores infratores, o Capuz Vermelho. O tipo de jovem que, com a direção certa, poderia ter um futuro diferente. Mas ali, naquele momento, Jason era apenas um adolescente furioso tentando não demonstrar sua vulnerabilidade.
Bruce manteve seu olhar fixo no garoto de cabelos escuros, observando sua postura defensiva, a maneira como ele mantinha os punhos cerrados, como um animal acuado.
-Você quer encontrar Talia - Bruce disse no momento seguinte.
Tim lançou um olhar para Jason, como se esperando uma resposta. Jason hesitou por um segundo, mas então seu queixo se ergueu, teimoso.
-Isso não é da sua conta.
Bruce permaneceu impassível antes de responder:
-Se vocês querem encontrá-la, então é da minha conta.
-E por que diabos você se importaria? - Jason retrucou, os olhos estreitando - quem é você ?
-Quem eu sou não importa, mas eu sei com quem ela está trabalhando - Bruce respondeu, sua voz grave e implacável - vocês estão mordendo mais do que podem mastigar.
O rosto de Jason se contorceu em surpresa momentânea, mas ele se recuperou rápido, estreitando os olhos.
-Eu não preciso de você - disse ele - eu tenho meus meios.
-Seus meios envolvem pagar um homem que trai qualquer um pelo preço certo? - Bruce indicou Edward com um breve gesto - não parece um plano inteligente.
Edward riu, mas não disse nada.
-Se você não confiar em mim, eu não posso ajudar. - Batman concluiu, observando a expressão tensa de Jason.
O garoto apertou os punhos, o peito subindo e descendo rápido. Ele odiava aquilo. Odiava se sentir encurralado. Mas no fundo, sabia que o morcego tinha razão. Se tinha informação sobre Talia, então talvez ele realmente pudesse ajudar. Jason inspirou fundo antes de finalmente soltar:
-Foi ela que me trouxe para Gotham. - a confissão foi dura de engolir - ela deve saber alguma coisa sobre o paradeiro da minha mãe.
-Eu posso te ajudar - Batman finalmente disse, sua voz firme, mas sem imposição. - mas você precisa confiar em mim.
Jason hesitou. Ele não confiava em ninguém. Mas se queria respostas, talvez precisasse abrir uma exceção.
-E o que você quer em troca? - Jason perguntou, desconfiado.
Batman manteve-se firme. Ele ficou em silêncio por um momento antes de dizer:
-Apenas a verdade, e impedir que você caia nas mãos erradas.
Jason trocou um olhar com Tim, que ainda parecia pesar as possibilidades. Depois de um momento, Jason soltou um suspiro pesado.
-Tudo bem, mas se você tentar me ferrar, eu juro que vai se arrepender.
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O Coringa se arrastava pela rua, os passos erráticos e cambaleantes, como um boneco de corda que havia perdido o ritmo. O sangue empapava suas roupas, tingindo a calçada por onde passava, uma trilha escarlate que denunciava sua decadência. Os olhos vidrados percorriam as luzes da cidade que tremeluziam como vaga-lumes em sua visão distorcida. O mundo ao redor girava, dobrava-se em formas estranhas, se desfazia e se reconstruía com um brilho grotesco.
Ele tentou rir, mas o som que saiu foi um arquejo falhado, um gemido entre o prazer e a dor. Seu corpo estava cedendo. Cada passo era mais difícil que o anterior. Quando suas pernas finalmente recusaram continuar, ele desabou na sarjeta, os joelhos raspando contra o concreto áspero. A cabeça pendeu para trás, apoiando-se contra a parede de um prédio coberto de pichações. A dor pulsava em cada parte do seu corpo, e o frio do asfalto parecia se infiltrar em seus ossos.
Então vieram as vozes. Primeiro, suaves sussurros ao seu redor. Sussurros chamavam seu nome, ou pelo menos, o mais próximo que ele tinha de um nome, “Jay”.
Ele piscou algumas vezes, a realidade escorregando de seus dedos como areia fina. E então ele estava lá. Jack, com seus olhos cor de tempestade e o cabelo revolto, os traços endurecidos pela guerra. Jack estava agachado diante dele, observando-o com um sorriso gentil. Um sorriso mentiroso.
“Ei Jay, levanta”
O palhaço sorriu fraco, mas era um sorriso sem humor. Ele fechou os olhos por um momento, a cabeça inclinada, como se estivesse lembrando das palavras não ditas, das promessas quebradas. A dor não o impedia de sentir a saudade, e o ódio por tudo o que havia se perdido.
A alucinação de Jack sentou ao lado do palhaço na calçada. O Coringa ficou lá, com o rosto distorcido em um sorriso estranho, os olhos fixos no vazio à sua frente. Ele fechou os olhos por um momento, absorvendo a sensação de Jack ao seu lado, como se as memórias estivessem se reconstruindo na sua mente fraturada. As vozes na sua cabeça estavam em uma cacofonia, mas a presença de Jack, de alguma forma, silenciava tudo, deixando-o com uma sensação distorcida de paz.
-Jack... - o Coringa sussurrou, sua voz quebrada, como se estivesse tentando fazer sentido do que estava acontecendo, como se tentasse alcançar alguma verdade entre o delírio e a realidade.
A imagem de Jack parecia sólida, real o suficiente para o Coringa quase esquecer que era um fantasma de sua própria mente. Jack estava ali, sentado ao lado dele, os cotovelos apoiados nos joelhos, a postura casual, como se isso fosse apenas mais uma das noites que passaram juntos, conversando sob um céu estrangeiro, ouvindo o barulho distante dos tiros e explosões. Ele sorriu, aquele mesmo sorriso que o Coringa conhecia tão bem, aquele que parecia dizer tudo e nada ao mesmo tempo.
O palhaço queria acreditar que era real, queria acreditar que Jack estava mesmo ali, que tinha voltado. Mas o Coringa sabia que era mentira. Jack sempre foi uma mentira. Desde o começo.
-Você está péssimo, Jay - Jack comentou, inclinando a cabeça para observá-lo melhor. Sua voz era quase gentil, mas o Coringa sabia melhor do que acreditar nisso.
O palhaço soltou um riso fraco, quase um arquejo, e virou o rosto para Jack. A dor pulsava por todo o seu corpo, mas a presença daquele espectro, daquela ilusão persistente, fazia a dor parecer um detalhe insignificante.
-Eu sempre estive péssimo, amor - murmurou o palhaço, a voz carregada de uma ironia amarga. Seu corpo tremia, os músculos exaustos, mas ele se forçou a se mover, se inclinando para o lado, deixando a cabeça cair no ombro de Jack, buscando o calor familiar.
Jack não se afastou. Não sumiu. Ele ficou ali.
O Coringa suspirou pesadamente, fechando os olhos.
-Eu teria morrido por você, Jack.
Jack não respondeu de imediato. Ele apenas ficou ali, imóvel, deixando o Coringa se apoiar contra ele, como se fosse sólido, real. O palhaço fechou os olhos, sentindo a ilusão preencher o vazio gelado que se espalhava em seu peito. O toque era um fantasma, uma lembrança de algo que nunca existiu de verdade. Mas ele se agarrou a isso, porque era tudo o que tinha.
Os dedos trêmulos do Coringa deslizaram pelo braço de Jack, sentindo o tecido áspero do uniforme militar que ele costumava usar. O cheiro de pólvora e areia queimava em sua memória, e por um momento, ele quase podia jurar que estava de volta. Não na sarjeta suja de Gotham, mas naquelas noites abafadas, longe de tudo, onde Jack costumava sorrir para ele como se realmente se importasse. Como se fosse real.
-Eu teria morrido por você - o Coringa repetiu, a voz mais fraca dessa vez, quase um sussurro perdido no vento.
Jack suspirou, seus dedos passando levemente pelo cabelo desgrenhado do palhaço. Foi um toque gentil, um carinho ausente de qualquer julgamento, exatamente como o Coringa queria lembrar. Como se Jack nunca tivesse traído, nunca tivesse mentido, nunca o tivesse deixado para morrer.
-Eu sei - Jack murmurou, a voz baixa, quente, familiar. Ele inclinou a cabeça, apoiando-a de leve sobre a do palhaço.
O Coringa tremeu sob o toque, o corpo exausto cedendo um pouco mais. Ele queria acreditar naquelas palavras. Queria acreditar que Jack realmente soubesse, que realmente se importasse. Mesmo que fosse uma mentira.
-Eu só queria… - o palhaço começou, mas sua voz falhou. Sua respiração estava pesada, irregular, e a dor parecia se fundir com o frio da calçada. Seu corpo estava desistindo. Jack não disse nada. Apenas continuou ali, firme, como se estivesse esperando o inevitável.
-Fica comigo - o Coringa pediu, a fraqueza evidente em cada sílaba. Ele sabia que Jack não era real, sabia que era apenas sua mente o traindo, lhe dando um último fragmento de consolo antes do fim. Mas ele não se importava. Ele sentiu os braços de Jack ao seu redor, segurando-o com firmeza, como se pudessem impedir que ele escorregasse para a escuridão.
-Eu tô tão cansado... - o palhaço sussurrou, sua voz embargada.
-Então descansa, Jay.
O Coringa piscou devagar, o peso do cansaço se espalhando por cada músculo. O corpo doía em lugares que ele nem sabia que podiam doer, e sua respiração vinha curta, entrecortada por pequenos espasmos de dor. Mas nada disso importava. Não agora. Não enquanto Jack estava ali, sólido, real, com aquele maldito sorriso gentil que sempre o fez ceder.
-Está tudo bem, você pode descansar agora - Jack murmurou contra seu cabelo, um tom de divertimento melancólico em sua voz.
-Você quer que eu morra, Jack? - a voz do ex-terrorista era um fio de som, hesitante, infantil. Ele não sabia se estava perguntando ou apenas tentando ouvir a resposta que já sabia.
Jack suspirou, os dedos deslizando pelos cabelos do palhaço, afagando-os com uma ternura venenosa.
-Eu quero que você morra por mim.
O Coringa estremeceu sob o toque, os dedos crispando no uniforme de Jack como um homem à beira de um precipício, segurando-se na última coisa que restava. Era isso, não era? Era o que ele sempre quis. O que ele sempre esperou. Que Jack quisesse ele de volta. Que ele o amasse o suficiente para aceitá-lo, para amá-lo de verdade sem mentiras. Para dar permissão para que ele finalmente parasse.
Seus olhos se abriram, enevoados, vidrados, e ele encontrou aqueles olhos cor de tempestade que sempre o assombravam. Havia algo cruel neles, uma ternura cortante, uma promessa de descanso. O Coringa sorriu, deixando-se afundar mais nos braços de Jack, a cabeça pesando contra o peito dele. O calor de sua ilusão o envolvia, e por um instante, a dor desapareceu. Tudo desapareceu.
A escuridão veio suave, como um abraço. Ele pararia de lutar. Ele morreria ali, nos braços de Jack, exatamente onde sempre quis estar. E então, no último segundo, algo dentro dele gritou… Bruce.
A dor voltou como um choque elétrico, rasgando-o de dentro para fora. O Coringa arfou, os olhos se arregalando, o peito se contraindo em um desespero sufocante. Ele sentiu seu corpo se sacudir, se retorcer, sua mente tentando escapar da ilusão, tentando escapar da doçura venenosa da morte.
O Coringa arfou, os pulmões se expandindo com um choque de ar gélido. A ilusão de Jack piscou, falhando como uma estática incômoda. As mãos que o seguravam perderam o calor. Ele sentiu a frieza da calçada outra vez, o sangue que encharcava suas roupas, o gosto metálico na boca.
-Não…- ele sussurrou, quase como um reflexo - eu não posso…
O ex-terrorista caiu para frente, os braços fracos tentando amortecer a queda. A realidade voltou em um golpe brutal. O frio da calçada. O cheiro de lixo e sangue. O som distante da cidade que nunca dormia. Seu peito subia e descia em arquejos descontrolados, os dedos se fechando contra o concreto, como se agarrar-se à realidade fosse a única coisa que o impedisse de cair de volta.
Ele ainda estava vivo. Ele ainda estava aqui.
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Algumas horas haviam se passado desde o encontro tenso no apartamento de Edward. Que agora estava sentado em sua cadeira desgastada em frente a um velho computador, seu nariz ainda inchado e avermelhado, os olhos percorrendo as charadas escritas à sua frente. Bruce as havia deixado ali, seu olhar implacável, esperando que Edward fizesse o que sabia de melhor: decifrá-las.
Jason, por sua vez, estava impaciente. Ele andava de um lado para o outro, os punhos cerrados, a raiva evidente em sua postura.
-Isso é perda de tempo - resmungou ele, a voz carregada de frustração - deveríamos estar procurando Talia, não brincando com adivinhações.
Bruce permaneceu calmo. Ele tinha prioridades, e no momento, encontrar o Coringa era o mais importante. Havia mais peças nesse tabuleiro do que Jason conseguia enxergar, e Bruce sabia que apressar-se sem todas as informações seria um erro fatal.
-Precisamos entender o que o Contador de Histórias quer - disse Bruce, sua voz firme - isso pode nos levar até ele, e possivelmente até Talia, não esqueça que eles estão trabalhando juntos.
Jason bufou, cruzando os braços, claramente insatisfeito com a resposta. Mas antes que pudesse retrucar, o telefone de Bruce vibrou em seu cinto. Ele pegou o aparelho e leu o remetente do SMS, Chuck. O morcego franziu a testa mas abriu a mensagem depois de um momento, o tenente não costumava mandar SMS, a menos que fosse importante. Chuck deve ter novas pistas.
"Tenho informações que podem te interessar. Uma garota apareceu algumas horas atrás, uma garota de programa. Talvez você queira falar com ela."
Bruce franziu a testa para a frase na tela. Ele voltou seu olhar para Edward, que estava analisando as charadas. Edward inclinou a cabeça, lendo as palavras lentamente, o dedo percorrendo a superfície da mesa enquanto murmurava para si mesmo.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?"
"Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?"
"O passado tem uma maneira curiosa de assombrar os que tentam enterrá-lo. Sementes plantadas em terras distantes germinam na sombra, crescendo sem que seus cultivadores sequer saibam de sua existência. O fruto logo estará maduro. Mas será que o jardineiro está pronto para colhê-lo?"
Bruce cruzou os braços, observando Edward com atenção antes de dizer:
-Você tem algo para mim?
Edward sorriu de lado, um brilho de interesse surgindo em seus olhos.
-Ah... isso vai ser divertido.
Bruce não reagiu à provocação. Seu olhar permaneceu firme sobre Edward, sem pressa, mas carregado de expectativa.
-Poupe-me do teatro, Edward - falou o morcego, sua voz fria e sem paciência - eu quero seu veredito
O Charada ergueu uma sobrancelha antes de entoar:
-Veredito? Muito bem, vejamos... A primeira charada fala sobre um rio ou um curso d'água, um lugar onde segredos repousam... algo que foi levado pela correnteza e esquecido talvez.
Bruce permaneceu impassível, mas dentro de sua mente, uma peça do quebra-cabeça se encaixava. Ele suspeitava que a charada falava sobre Martin, o agente morto pelo Coringa no ano passado. Bruce havia jogado seu corpo no rio, cobrindo suas pegadas. Mas ele não disse nada. Isso não podia vir à tona.
-A segunda charada... parece descrever uma linha, uma conexão invisível - continuou Edward com um tom neutro - pode ser algo abstrato ou algo físico, mas sem contexto, fica difícil dizer.
Bruce absorveu as palavras. Ele já havia considerado a possibilidade de ser uma linha de comunicação ou algo ligado ao submundo da cidade. Mas ainda faltavam peças.
-E a terceira? - pressionou Batman.
-Parece falar sobre algo que foi plantado há muito tempo e que agora está voltando, algo que não pode mais ser ignorado - Edward deu de ombros - mas sem saber exatamente o que o Contador de Histórias quer, fica difícil dizer ao certo.
Ele ergueu os olhos para Bruce, sorrindo de forma enigmática.
-Acho que você tem mais informações do que está compartilhando comigo, morcego - falou o outro homem - eu preciso de um panorama completo de tudo que tem acontecido desde o ano passado nesse caso, fica difícil sem saber o contexto no qual estamos trabalhando.
—----------
A delegacia estava estranhamente calma, perto da hora do meio-dia. O zumbido das lâmpadas fluorescentes e o ruído distante de telefones tocando eram os únicos sons que preenchiam o ambiente. Bruce entrou na sala de interrogatório, onde Alex estava sentada em uma cadeira metálica, seus braços cruzados sobre o peito. O rosto da mulher estava marcado pelo cansaço e algo mais profundo, um peso que ela tentava esconder.
Ela ergueu o olhar quando ele entrou, seu olhar avaliando o homem mascarado, alto e imponente diante dela. Batman.
-Você não é um policial - disse ela, sua voz carregada de desconfiança.
Bruce sentou-se à sua frente, mantendo-se em silêncio por um momento antes de responder:
-Não, mas eu posso te ajudar.
Alex soltou uma risada seca, sem humor antes de dizer:
-Me ajudar? Eu já ouvi essa antes.
O morcego manteve seu olhar fixo nela, estudando cada pequena reação. Ele sabia que Alex não confiaria nele tão facilmente, mas precisava que ela falasse.
-Me diga o que aconteceu no apartamento com Andy - disse Bruce, indo direto ao ponto.
O nome fez a expressão da mulher endurecer. Ela desviou o olhar, mexendo os dedos sobre a superfície da mesa.
-Não sei de nada - disse ela, sua voz mais baixa.
-Você sabe - retrucou Bruce, sem hesitação. - Você esteve com ele na noite passada.
-Eu não sabia no que estava me metendo - ela confessou, sua voz vacilando um pouco - ele queria... me transformar em outra pessoa, não fisicamente, mas... ele queria que eu fosse…
Bruce permaneceu imóvel, absorvendo suas palavras. Ele já esperava algo assim, mas ouvi-lo diretamente de Alex tornava tudo ainda mais sombrio.
-Ele te machucou? - perguntou, sua voz baixa, mas carregada de peso.
Ela hesitou, depois balançou a cabeça lentamente antes de continuar:
-Não do jeito que você pensa, mas ele me assustou, me fez vestir um vestidos de outra pessoa, falou de morte, de desespero…ele me olhava, mas não me via.
Bruce observou atentamente, seus olhos penetrantes nunca saindo de Alex, como se tentasse encontrar a verdade em cada palavra não dita, cada pausa hesitante. A tensão no ar parecia densa, mas ele não se mexeu. Cada segundo valia.
-Você está segura agora - Bruce disse, seu tom firme. Ele queria transmitir a ela um mínimo de segurança, mas sabia que seria difícil.
Alex suspirou, o ar pesando em seus pulmões, e se recostou na cadeira. A tensão parecia crescer a cada momento, como se ela estivesse se afogando nas próprias lembranças.
-Ele... estava procurando algo em mim - ela murmurou, mais para si mesma do que para Bruce, como se estivesse tentando entender o que aconteceu - era mais... uma busca, como se ele estivesse tentando se convencer de algo, mas não sabia o quê.
Bruce franziu a testa. A mulher estava claramente em conflito, misturando medo e confusão. Ela parecia estar tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça, mas a verdade ainda não estava clara para ela.
-Ele estava... falando de uma mulher, uma mulher que ele perdeu – Alex continuou, ela parecia tentar juntar as palavras - eu não sei quem é, mas ele... mencionou algo sobre ela o tempo todo, e…e eu... eu não sou ela, eu não sou ninguém importante…eu não pude ser ela.
-Você não podia ser Annie - disse o morcego com frieza. Ele sabia que era outra tentativa doentia de Andy de projetar sua mulher morta em outra pessoa.
Alex ergueu o olhar, os olhos fixos nos de Bruce, algo desconcertante refletido neles. Ela não sabia se devia se sentir aliviada ou aterrorizada por ele saber exatamente o que estava acontecendo. O nome “Annie” pairou no ar como uma sombra, e ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Bruce percebeu a reação dela e não desviou o olhar, seus olhos fixos nela, analisando cada movimento.
O moreno manteve a calma, sua expressão impassível, mas a frustração começava a transparecer, como um fio tenso prestes a romper. Ele sabia que, por mais que Alex tentasse fugir da verdade, aquilo era muito maior do que ela conseguia compreender. Ele não estava ali para discutir o sofrimento dela, mas para obter as informações que precisava, para alcançar Andy.
-E o que você viu no apartamento? O que realmente aconteceu lá? - falou o moreno depois de um momento.
Alex engole em seco, suas as palavras presas na garganta. Os olhos dela brilham com uma dor não revelada.
-Eu vi o que não deveria - disse ela, sua voz trêmula - eu vi um homem... preso, ele estava... ele estava acorrentado, e eu pensei que ele fosse morto, mas ele... ele olhou para mim.
Bruce apertou os punhos, o sentimento de raiva começando a tomar conta de si. Cada palavra parecia um soco em sua mandíbula. Ele se inclinou para frente, suas mãos firmes na mesa enquanto seu olhar se endurecia.
-Onde é o apartamento? - sua voz saiu baixa, mas carregada de raiva, como uma ameaça implícita.
Alex estremeceu, hesitando antes de responder, mas Bruce sabia que ela não poderia esconder por muito tempo. Seus olhos estavam fixos nela, cada segundo de silêncio alimentando ainda mais sua fúria crescente.
O morcego tomou uma respiração profunda, tentando domar a ira crescente que ameaçava transbordar. Seus olhos permaneciam fixos em Alex, mas algo em sua postura havia mudado. A tensão estava ainda mais evidente agora, como se Bruce estivesse tentando se segurar para não explodir.
Antes que Alex pudesse falar, a porta se abriu bruscamente, e Chuck entrou na sala, seus passos pesados ecoando no espaço. Ele olhou para Bruce com um olhar de reprovação.
-Isso não vai te levar a lugar algum. - Chuck disse, seu tom firme, tentando controlar a situação - Alex está assustada, Batman. Você está piorando tudo. Ela é uma vítima. Ela não tem nada a ver com o que aconteceu, e você não vai conseguir nada de bom com essa pressão toda.
O morcego virou a cabeça para ele, seus olhos brilhando com uma frieza que só o morcego sabia exibir. A raiva não estava mais contida. Ele se levantou de um salto, sua altura imponente fazendo Chuck dar um passo para trás.
-Não estou aqui para conversar, Chuck. - disse Bruce com uma voz gelada, mas com uma força que deixava claro que ele não seria impedido.
Chuck ficou firme, mas sua voz ficou mais suave quando ele disse:
-Ela é uma vítima, é só uma garota de programa que Andy usou para alimentar suas...perversões doentes, e você... você não pode simplesmente sair quebrando tudo para encontrar o Coringa. O que você quer fazer, Bruce? Matar Andy?
O tenente sabia que Bruce estava à beira do colapso, e o tom da conversa, que até então estava tenso, agora ficava carregado de uma energia perigosa. Bruce não estava mais pensando com a mente fria do detetive. Ele estava totalmente consumido pela raiva, e essa raiva era uma força bruta, imbatível.
Chuck se manteve firme, seu olhar fixo em Bruce, mas o desconforto era palpável. A pressão crescente na sala parecia prestes a explodir. Bruce não estava mais o mesmo. Ele não estava ali para resolver nada com calma ou lógica. Ele estava ali porque a raiva o dominava, consumia cada pensamento, cada movimento.
-Você não entende, Chuck - voz de Bruce estava mais baixa agora, mas o tom era ameaçador, como se ele estivesse controlando com dificuldade a tempestade dentro dele. Ele deu um passo à frente, o rosto a poucos centímetros do tenente -você não sabe o que aconteceu lá, não sabe o que Andy fez, não sabe o que aconteceu em Arkham.
-Não, mas eu sei o que aconteceu com Annie - Chuck falou com frieza, a voz cortante. Ele não hesitou, não se abalou com a intensidade de Bruce - e é tudo o que preciso saber, porque o Coringa é um monstro, ele mereceu seja qual for a merda que aconteceu em Arkham.
Bruce ficou parado por um momento, seus olhos penetrantes fixos em Chuck. As palavras do tenente cortaram como lâminas, atravessando o véu de raiva que cobria sua mente. Ele podia sentir sua respiração ficando mais rápida, o calor da indignação crescendo em seu peito, mas o que Chuck disse foi um golpe direto à sua espinha.
"Ele mereceu"
Bruce sentiu algo explodir dentro dele, uma mistura de frustração e desespero. Ele agarrou a gola da camisa de Chuck e o empurrou contra a parede, sua força deixando claro que ele estava no limite. O olhar de Bruce queimava, uma tempestade de fúria e dor que ameaçava engolir tudo ao redor.
-Você não sabe o que aconteceu em Arkham, Chuck - Bruce disse, sua voz quase inaudível, mas com um peso tão denso quanto a própria escuridão - eu não vou deixá-lo sofrer mais, eu fiz uma promessa.
As palavras reverberaram na mente de Bruce, ecoando de uma forma que ele não queria admitir. Ele se forçou a ficar calmo, mas a dor e o ódio estavam presentes em cada fibra de seu ser. A raiva, a raiva que ele mantinha tão bem controlada, estava escapando, e isso o assustava.
-Não fale do que você não sabe - rosnou o morcego, seu tom era duro, ainda segurando o colarinho do tenente - e não fale de Jay como se você o conhecesse.
-Me solta - rosnou Chuck, seu tom era frio, embora soasse mais baixo que o tenente pretendia.
Bruce não afrouxou o aperto. Seus dedos ainda estavam cerrados, seu olhar incendiado por um turbilhão de emoções reprimidas. Mas então, como se algo dentro dele tivesse sido arrancado à força, ele não apenas soltou Chuck, ele o socou.
O punho de Bruce atingiu a mandíbula de Chuck com um estalo seco. O impacto foi brutal, jogando o tenente contra a parede. Alex, que observava em silêncio até então, soltou um grito agudo de susto e recuou, as mãos cobrindo a boca.
O tenente cambaleou, levando uma mão ao rosto onde sentia o gosto metálico do sangue. Seu olhar se ergueu para Bruce, agora tomado por fúria.
-Você enlouqueceu?! - Chuck cuspiu, os olhos faiscando - vai resolver tudo na porrada agora ?!
A respiração de Chuck era pesada, sua mão ainda pressionando a mandíbula dolorida enquanto ele olhava para Bruce com fúria. A tensão na sala parecia um fio esticado prestes a se romper. Alex permaneceu encolhida na cadeira, os olhos arregalados, sem saber se deveria intervir ou permanecer calada.
O morcego manteve-se firme, seu peito subindo e descendo de maneira contida, mas o brilho feroz em seus olhos não diminuía. Ele sabia que havia cruzado um limite. Mas também sabia que Chuck nunca entenderia. Nunca entenderia o que aquilo significava para ele.
-E agora, Batman? Vai bater em todo mundo até dizerem o que você quer ouvir? - Chuck estreitou os olhos, sua voz carregada de ironia e desafio.
Bruce não respondeu imediatamente. Seu maxilar estava travado, os punhos ainda cerrados. Ele desviou o olhar para Alex, que se encolheu levemente sob seu olhar penetrante. Ela ainda estava assustada. Ainda tremia.
O ex-bilionário soltou um suspiro longo pelo nariz e endireitou a postura. Sua voz saiu baixa, mas firme:
-O endereço. Agora.
Alex hesitou, olhando de Chuck para Bruce, claramente dividida. Mas havia algo na voz do morcego, uma gravidade que fazia com que ela acreditasse que, se não dissesse a ele o que queria, algo muito pior poderia acontecer.
-322, Avenida Morris - murmurou ela, engolindo em seco - apartamento 8B.
Com essas palavras de Alex, o ex-bilionário soltou o colarinho do tenente com um movimento brusco, saindo para fora da sala em passos pesados. Ele sabia que não podia perder mais tempo.
Notes:
Até o próximo capítulo. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 27: The Gotham We Have (Parte 27)
Notes:
Bem, adiantado, digamos que tive um tempo livre para isso nos últimos dias :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A atmosfera estava pesada, o ar carregado de eletricidade enquanto Bruce saía da delegacia, seu corpo tenso, os pensamentos fervendo como um turbilhão incontrolável. Ele sentia o gosto amargo da raiva na boca, o sangue ainda pulsando rápido depois da discussão com Chuck. Mas ele não tinha tempo para isso. Não tinha tempo para mais nada além do que importava: encontrar o Coringa. Encontrar Jay.
Ele atravessou a rua, sua capa se movendo com o vento cortante da cidade em plena luz do dia. Isso passou a ser comum, sair como morcego em plena luz. No entanto, antes que o ex-bilionário pudesse alcançar o Tumbler, uma voz familiar o chamou:
-Finalmente, achei que ia ter que te seguir até o inferno - Jason Todd estava encostado no muro, os braços cruzados, a expressão carregada de desafio. Ao seu lado, Tim Drake observava com uma expressão mais reservada, mas igualmente atenta.
Jason ainda não sabia como se sentir sobre o homem à sua frente, sobre esse vigilante que prometera ajudá-lo e que agora parecia prestes a descartá-lo como um peso morto.
Batman parou, seu olhar escuro se fixando no jovem de cabelos escuros. Ele não tinha tempo para aquilo. Não agora. Ele tinha deixado Tim e Jason com Nashton, ele não imaginou que os adolescentes viessem atrás dele na delegacia.
-O que vocês estão fazendo aqui? - a voz do morcego saiu grave, carregada de impaciência.
-Ah, não se faça de desentendido, você sabe o que eu quero - Jason rebateu, sua postura agressiva - Talia. Você ia atrás dela, não ia? Eu vou com você.
Bruce prendeu a respiração por um instante. Seu autocontrole estava por um fio. Ele não tinha tempo para lidar com um adolescente raivoso que achava que podia resolver tudo com a força dos próprios punhos.
-Não - a resposta de Bruce foi curta, seca - você não vai comigo.
Jason deu um passo à frente, os punhos cerrados.
-Você não pode me impedir - falou o adolescente - nós temos um acordo.
-Eu posso, sim. E vou - Batman respondeu, sua voz fria como aço - isso não é sobre você, não agora, eu tenho outras prioridades.
-Outras prioridades? - Jason riu, mas era um riso amargo.
-Agora não - foi tudo que Bruce disse, sua voz carregada de algo perigoso, algo que fez Jason dar um passo à frente, indignado.
-O quê?! Você disse que me ajudaria a encontrar minha mãe! - Jason cuspiu as palavras, o temperamento explosivo em erupção - não me diga que você vai simplesmente me deixar aqui!
Bruce cerrou a mandíbula. Ele não tinha tempo para isso. Não agora. Ele olhou para Jason e viu a raiva crua nos olhos do garoto. Mas ele também viu algo mais. Medo. Solidão. Algo que Bruce conhecia bem demais.
Tim colocou uma mão no ombro de Jason, tentando acalmá-lo, mas o mais velho se afastou com um movimento brusco.
-Você não está seguro sozinho por aí - Batman disse, ignorando o tom provocativo do jovem - você vai ficar aqui, na delegacia, Chuck vai cuidar para que você não faça nenhuma besteira.
-Ah, então é assim? Vai me prender agora? - Jason cuspiu as palavras, os olhos brilhando com raiva - eu não vou voltar para aquele reformatório, você prometeu me ajudar.
-Isso não é uma escolha - Batman disse simplesmente - faça o que eu estou mandando.
Jason riu de novo, mas dessa vez havia algo mais sombrio na sua expressão.
-Você quer me proteger, é isso? Que piada.
Batman manteve o olhar firme nele por um momento.
-Chuck - ele se virou para o tenente, que havia saído da delegacia e agora observava a cena com um misto de cautela e irritação - ele fica sob sua custódia até eu resolver isso.
-Eu não vou voltar para o reformatório! - Jason gritou, o peito subindo e descendo rápido com a adrenalina - eu prefiro morrer na rua procurando sozinho do que ser jogado naquele buraco de novo!
Bruce sabia que era verdade. Sabia que Jason fugiria assim que tivesse a chance. E sabia que, se o deixasse ir, provavelmente acabaria morto ou pior. Mas agora, ele não podia se dar ao luxo de carregar mais esse peso.
-Você não vai para o reformatório - disse Bruce, sua voz mais baixa, mais controlada - mas eu não posso cuidar disso agora, há coisas acontecendo, coisas maiores do que você pode imaginar, então fique aqui por hora.
Jason apertou os punhos, seu corpo inteiro tensionado. Ele queria lutar contra aquilo, contra a sensação de ser deixado para trás, de ser insignificante. Mas ele também sabia que não tinha escolha.
-Você vai voltar, certo? - sua voz saiu mais baixa, quase insegura.
Bruce não respondeu imediatamente. Ele apenas olhou para Jason por um longo momento antes de finalmente dizer:
-Sim.
O adolescente permaneceu imóvel, a promessa de Bruce ecoava em sua mente, curta, direta, sem emoção enquanto o morcego se afastava.
"Sim."
Aquilo deveria ser suficiente. Mas não era.
Ele apertou os punhos até sentir as unhas cravando na pele. O peito subia e descia rapidamente, a raiva pulsando sob sua pele como um vulcão prestes a entrar em erupção. Ele odiava aquilo. Odiava ser descartado, ser tratado como um problema menor, algo que podia ser colocado de lado enquanto o morcego lidava com suas prioridades mais importantes. Odiava como Bruce conseguia simplesmente virar as costas e ir embora, como se Jason não fosse nada além de uma nota de rodapé na sua missão maior.
Mas a pior parte? A pior parte era que Jason queria acreditar nele. Queria acreditar que Batman voltaria. Queria acreditar que, dessa vez, alguém realmente daria a mínima. Mas a vida já o ensinara a não confiar em promessas. Ele sabia como isso terminava. Ele sabia o que vinha depois.
-Merda... - murmurou Jason, passando a mão pelos cabelos bagunçados.
Tim estava ao seu lado, observando-o em silêncio. Jason sabia que o garoto estava tentando entender o que se passava em sua cabeça, tentando encontrar um jeito de acalmá-lo. Mas não havia nada a ser dito. Tim não sabia o que era ser abandonado. Não sabia o que era passar noites no frio, ser ignorado, ser tratado como um peso morto. Ele não entenderia.
Chuck também não disse nada. Apenas observava, como se esperasse que Jason explodisse. Como se esperasse que ele fizesse exatamente o que todos achavam que ele faria: fugir, fazer algo estúpido, provar que não valia o esforço. O adolescente respirou fundo, tentando controlar a tempestade dentro de si, e então olhou para Chuck com um meio sorriso torto e sem humor antes de dizer:
-Então, o que agora? Você vai me trancar em uma cela até o morcego decidir que tem tempo pra mim?
Chuck cruzou os braços, analisando o garoto por um momento antes de responder:
-Não vou te trancar em lugar nenhum, mas você precisa decidir o que quer fazer, porque se quer continuar fugindo ou se quer uma chance real.
-Uma chance real? Cara, olha pra mim - rosnou Jason, sua voz faiscando de raiva - você acha que alguém realmente me daria isso?
O tenente suspirou, passando a mão pelo rosto. Jason viu o cansaço no olhar do outro. Mas não era um cansaço de quem desistiu, e sim de alguém que já viu essa história antes. Muitas vezes.
-O Batman te deu uma chance - disse Chuck simplesmente - agora, cabe a você decidir se vai jogá-la fora ou não.
Jason sentiu algo dentro dele se contorcer, um incômodo, um aperto que ele não queria sentir. Ele odiava a sensação de ter algo a perder. De ter algo pelo qual esperar. Era mais fácil quando ele não tinha ninguém. Quando não precisava acreditar em promessas vazias. Mas por algum motivo, mesmo sabendo que poderia ser apenas mais uma mentira, ele não conseguia afastar a esperança cruel que o morcego havia plantado dentro dele. A promessa de ajuda.
Ele ia voltar, certo? O morcego voltaria
Jason fechou os olhos por um momento e soltou um longo suspiro.
-Tá - entoou ele - vamos ver até onde isso vai.
E então, sem dizer mais nada, seguiu Chuck para dentro da delegacia.
—--------
Bruce sentia seu coração martelando no peito, não de medo, mas de algo muito mais perigoso: fúria. Ela pulsava em seu sangue como uma febre, queimando cada fibra de seu ser, tornando seus passos mais pesados, suas ações mais violentas.
Ele subiu as escadas de dois em dois degraus, seus pés caindo contra a madeira velha como marteladas, ecoando como trovões pelo corredor apertado. Cada batida era um lembrete da urgência, da raiva, da promessa que ele havia feito. O cheiro do prédio era de mofo e cigarro frio, misturado ao leve odor metálico de ferrugem. Mas nada disso importava.
A porta do apartamento 8B estava entreaberta, oscilando levemente na brisa do corredor, como um convite perverso. Alguém tinha saído às pressas. Bruce não hesitou. Empurrou a porta com força, fazendo-a bater contra a parede com um estrondo seco.
O cheiro o atingiu como um soco no peito. Cigarro velho, suor, cerveja derramada e algo mais denso... sangue seco. A sala estava um caos, móveis revirados, latas de cerveja amassadas espalhadas pelo chão, uma garrafa quebrada perto do sofá. Manchas escuras salpicavam o piso, algumas ainda úmidas, outras já secas, se misturando à poeira e à sujeira do lugar. Mas nada disso importava.
O que importava eram os dois homens paralisados à sua frente. Samuel Rise estava sentado na beirada do sofá, o olhar tenso e os ombros encolhidos como um animal acuado. As mãos tremiam levemente sobre os joelhos, os olhos correndo para a porta como se ainda tivesse esperança de escapar. Andy, por sua vez, estava encostado na pia da cozinha, os braços cruzados, mas sua postura não enganava Bruce. Ele estava rígido, alerta, preparado para reagir. Bruce não perdeu tempo.
-Onde ele está? - sua voz era um trovão abafado, fria e letal como uma lâmina recém-afiada.
Samuel lançou um olhar nervoso para Andy, como se buscasse alguma orientação, mas o ex-psiquiatra apenas apertou os lábios, a garganta oscilando em um engolir seco.
-Eu não sei - murmurou Andy, sua voz arrastada, mas firme - você está atrasado, morcego.
Bruce avançou antes mesmo que a frase terminasse. Sua capa ondulou atrás de si como uma sombra viva. Em um movimento rápido e calculado, agarrou Samuel pela gola da jaqueta e o ergueu com facilidade brutal, jogando-o contra a parede com um baque surdo. A prateleira acima da cabeça do homem balançou violentamente, um copo caiu e se estilhaçou no chão.
-Eu não tenho tempo para joguinhos - a voz de Bruce era um rosnado baixo, gélido e repleto de ameaça.
Ele soltou Sam bruscamente, permitindo que ele deslizesse pela parede até cair de joelhos, engasgando com o ar preso em seus pulmões. Então, com um giro de corpo quase fluido, Bruce atacou Andy.
O impacto foi brutal. Bruce o empurrou com força contra o fogão enferrujado, o baque ecoando pela cozinha. A boca de Andy se abriu em um grunhido abafado quando sua coluna colidiu contra o ferro duro.
-Onde está o Coringa?! - Bruce rugiu.
A resposta foi um chute. Samuel, em um último ato de desespero, tentou acertar Bruce, mas o vigilante foi mais rápido. Desviou facilmente e revidou com um golpe seco no estômago do homem, que se dobrou com um som sufocado, tossindo violentamente enquanto tentava respirar.
Bruce voltou sua atenção para Andy, empurrando-o ainda mais contra o fogão.
-Eu não sei! - Andy gritou, sua voz quebrada pelo desespero, o olhar selvagem - ele está ferido, mal conseguiu sair daqui!
Bruce não acreditava em uma única palavra. Seu sangue fervia. Ele ligou o gás do fogão com um clique metálico. A chama azul crepitou, lançando sombras trêmulas pelo rosto de Andy. O ex-psiquiatra arregalou os olhos quando Bruce pressionou seu ombro contra o metal quente da grade do fogão. O calor irradiava, a sensação insuportável lambendo sua pele. O calor se espalhava por seu rosto de forma quase insuportável.
-Você acha que eu não vou fazer isso? - a voz do morcego era um sussurro venenoso, uma promessa de dor.
Andy se contorceu, tentando se afastar da chama, sua respiração curta e errática. O suor brotava em sua testa, a pele já começando a arder com o calor sufocante.
-Eu não sei onde ele está! - Andy gritou, a voz embargada pelo medo e pela dor iminente - mas se ele perder mais sangue, vai morrer! Você está perdendo tempo!
Bruce apertou os dentes, seus dedos se fechando ainda mais sobre o colarinho de Andy. Ele queria esmagá-lo ali mesmo. Queria afundar sua cara naquela maldita chama até que ele gritasse tudo o que sabia. Mas, no fundo, ele reconhecia a verdade.
O Coringa havia fugido. Ele estava baleado. E Bruce estava perdendo tempo.
Com um movimento brusco, ele soltou Andy, que caiu no chão, engasgando e arfando, sua mão tremendo ao tocar o rosto suado. O fogo ainda crepitava ao lado dele, lançando sombras oscilantes pela cozinha.
O ex-bilionário respirou fundo, o ódio queimando dentro dele como um incêndio incontrolável. Sua visão estava vermelha, seus músculos tensos como cordas prestes a se partir. Ele não queria soltar Andy. Ele queria acabar com aquilo ali mesmo. Mas ele não podia.
Bruce deu um passo para trás, sua presença ainda imensa e esmagadora. Seus olhos estavam fixos em Andy, mas sua mente já estava longe. Ele respirava pesado, seu peito subindo e descendo com o esforço contido de não esmagar o ex-psiquiatra ali mesmo. Mas a raiva dentro dele não cedia, não enfraquecia. Seu corpo inteiro tremia com a necessidade de agir, de fazer algo, qualquer coisa.
O ex-psiquiatra arfava no chão da cozinha, o rosto suado, o peito subindo e descendo em um ritmo irregular. Seu ombro latejava com a queimadura superficial do fogão, e a dor era um choque vivo sob sua pele. Mas isso não era o pior. Ele estava ferido.
Bruce notou agora, realmente notou, o sangue escuro manchando a lateral da camisa de Andy. Ele havia tentado esconder, mas o curativo improvisado que Samuel havia feito estava visível, encharcado de vermelho.
Bruce cerrou o punho e sem aviso, ele se abaixou e agarrou Andy pela gola, puxando-o com brutalidade. O ex-psiquiatra engasgou com o movimento repentino, suas pernas falhando quando foi arrastado para cima.
-Você não vai ficar aqui - a voz de Bruce era um rosnado puro, um trovão de ameaça e ira contida.
Com uma força monstruosa, o vigilante o puxou para frente e o jogou contra a parede da cozinha, o impacto arrancando um gemido rouco de Andy. Samuel, ainda no chão, se encolheu, sem ousar interferir.
-Você vem comigo - Bruce murmurou contra o ouvido do ex-psiquiatra, sua respiração quente e carregada de raiva - e eu espero, pelo seu bem, que o Coringa ainda esteja vivo.
Sem mais uma palavra, Bruce o agarrou novamente, desta vez pelo braço que tinha sido pressionado contra o fogão quente. Andy soltou um grito de dor quando os dedos de Bruce apertaram o local. Ele tentou se soltar, mas o ex-vigilante o arrastou para a porta como se ele fosse um saco de carne sem importância.
-Agh! Caralho, solta! - Andy gritou, mas sua voz era sufocada pelo aperto de ferro que Bruce mantinha sobre ele.
Sam se remexeu no chão, os olhos arregalados, mas não fez nada. Ele sabia que se tentasse interferir, seria o próximo a sentir a fúria do morcego. Bruce abriu a porta com um chute violento e puxou o ex-psiquiatra pelo corredor do prédio. Ele tropeçou, seu ombro latejando, a dor tornando-se insuportável.
-Você está… você está fora de controle! - Andy arfou, tentando recuperar o fôlego enquanto era arrastado escada abaixo.
Bruce ignorou suas palavras. Ele apertou ainda mais seu punho sobre o ferimento de Andy, forçando o ex-psiquiatra a soltar um grito de dor cortante que ecoou pelo corredor vazio. Samuel Rise apareceu na porta do apartamento, observando com olhos arregalados, mas não fez nada. Ele sabia que qualquer tentativa de interferir terminaria com sua cabeça contra a parede.
Bruce empurrou Andy pela escada fazendo-o tropeçar nos degraus. O ex-psiquiatra sentiu um calafrio correr sua espinha. Bruce iria matá-lo. Andy sentia cada músculo de seu corpo gritar de dor. Seu ombro queimava como se ainda estivesse pressionado contra o metal quente do fogão. Seus joelhos falhavam a cada degrau que Bruce o forçava a descer, mas o morcego não desacelerava. Ele era um monstro de sombras e fúria, um pesadelo vestido de preto que o arrastava pelo prédio como se fosse um pedaço inútil de carne.
O ex-bilionário empurrou o ex-psiquiatra com um pouco mais de força, fazendo-o cair nas escadas. O impacto fez Andy soltar um grunhido abafado, e seu corpo deslizou levemente para o lado antes que Bruce o segurasse pelo colarinho novamente.
-Fique de pé - a voz do ex-vigilante era baixa, gélida, mas carregada com um peso insuportável.
Andy tentou se firmar, suas pernas tremiam e seu corpo implorava por descanso, mas Bruce não lhe deu essa opção. Com um puxão brutal, o manteve erguido, seu rosto agora perigosamente perto do dele.
-Se o Coringa morrer, Andy, eu juro que você vai querer que eu tenha te matado agora - Bruce sussurrou, sua respiração quente e controlada, mas o ódio em seus olhos era como fogo puro.
Andy engoliu em seco, sua garganta apertada pela raiva sufocante que irradiava do homem à sua frente. Bruce ficou imóvel por um momento. Sua respiração era lenta e controlada, mas qualquer um que o conhecesse sabia que ele estava no limite. Ele queria matá-lo. Andy via isso em seus olhos. O morcego estava lutando contra si mesmo.
O ex-bilionário arrastou o outro homem para fora do prédio. O sol escaldante bateu contra seus olhos, mas Andy mal teve tempo de reagir antes de ser jogado violentamente contra o concreto da calçada. Ele caiu de joelhos, arfando, o corpo inteiro tremendo com a dor latejante no ombro. Seu curativo improvisado na lateral do corpo estava umedecido de sangue.
-Onde ele foi? - a voz de Bruce era um trovão abafado, um peso esmagador no ar quente da tarde.
-Eu já disse…! - Andy tentou falar, mas foi interrompido quando o punho de Bruce se fechou em torno de sua garganta e o ergueu com força.
-Se ele morrer por sua culpa… - Bruce rosnou, os olhos faiscando de ódio - eu juro que você vai implorar para que eu te mate rápido.
Os olhos de Andy se arregalaram, não apenas pelo ar lhe faltando, mas porque, por um momento, ele viu algo no rosto do morcego que o fez estremecer: verdade. Batman não estava ameaçando. Ele faria isso. Ele esmagaria cada osso de seu corpo se achasse necessário. Mas Andy não queria que o Coringa morresse. Nunca quis. Ele queria mantê-lo, segurá-lo naquela corrente de lembranças torturadas onde Annie ainda existia.
-Ele… ele fugiu, porra! - Andy arfou, seus dedos tentando afrouxar o aperto ao redor de sua garganta.
Bruce o jogou contra a lateral enferrujada de um carro abandonado na rua, o impacto arrancando um gemido rouco do ex-psiquiatra. O metal rangeu sob a força do golpe. Andy caiu sentado na calçada, o peito subindo e descendo rapidamente.
O morcego sentia o sangue martelar em suas têmporas, os músculos de seu maxilar travados em pura tensão. Andy arfava na calçada, a poeira e o sangue se misturando em sua pele pálida e suada. Ele se encolheu levemente contra a lateral do carro enferrujado, mas o olhar fixo do morcego não o deixava escapar.
Bruce o estudou com desprezo. Cada detalhe dele o enojava. O suor escorrendo pela testa, a forma como sua respiração estava instável, o leve tremor de suas mãos. O medo real em seus olhos. Mas havia algo mais ali, algo que fazia Bruce sentir algo além do ódio. Nojo. Um desprezo absoluto pelo que aquele homem representava.
Seu punho se fechou e, num movimento rápido, Bruce acertou um soco brutal na lateral do rosto do ex-psiquiatra. O estalo dos ossos sendo atingidos reverberou pelo silêncio opressor da rua deserta. Andy grunhiu, o impacto o jogando para o lado. Sangue escorreu pelo canto de sua boca.
-Você tem noção do que fez? - Bruce rosnou, sua voz carregada de ódio puro. Ele se abaixou, agarrando o ex-psiquiatra pelo colarinho mais uma vez e o puxando para perto.
Bruce o empurrou violentamente de volta ao chão. Andy caiu sobre o próprio ombro ferido, soltando um gemido gutural de dor. Ele se contorceu levemente, sua mão pressionando o ferimento mal tratado na lateral do corpo.
-Você não entende, não é? - tentou Andy arfando - eu nunca quis machucá-lo, nunca…eu só queria…
Bruce sentiu seu sangue ferver. Ele deu um passo à frente e chutou Andy no estômago com brutalidade. O ex-psiquiatra dobrou o corpo para frente, engasgando.
-Cala a boca - Bruce rosnou, seu tom era frio como lâmina de uma faca.
-Você não entende… - Andy murmurou, a voz arrastada - ele é tão parecido com ela... nos olhos, na forma como quebra e se recompõe de novo, eu só-
-Cala a boca! - o morcego rosnou cortando a frase do ex-psiquiatra.
Ele se ajoelhou ao lado de Andy, sua mão enluvada agarrando o rosto do ex-psiquiatra, forçando-o a encará-lo. Os olhos de Bruce eram um abismo negro de fúria contida. Ele sentiu um calafrio percorrer sua espinha. A raiva dentro dele se transformou em algo mais letal. Algo que ameaçava ultrapassar os limites que ele sempre jurou manter.
-Você é um doente - Bruce sussurrou, sua voz quase inumana de tão carregada de nojo enquanto apertava a mandíbula de Andy com mais força, forçando o outro a soltar um ruído de dor - você não é nada além de um estuprador patético que queria transformar esse fantasma em carne outra vez, usando a morte de Annie para justificar suas fantasias esquisitas.
Andy arfava, seu sangue escorrendo da lateral de sua boca, misturando-se ao suor que pingava de sua testa. O aperto de Bruce sobre sua mandíbula era sufocante, como se estivesse tentando esmagá-lo ali mesmo, com as próprias mãos. O ex-psiquiatra tentou desviar o olhar, mas a força do morcego o forçava a encará-lo.
-Você não entende… - Andy sussurrou entre respirações entrecortadas - eu só queria…
Bruce apertou ainda mais, fazendo um estalo seco ecoar quando seus dedos forçaram a mandíbula de Andy contra os dentes.
-Eu disse para calar a porra da boca - rosnou o ex-vigilante, sua voz carregada de um ódio cortante, profundo, de algo que vinha do âmago de sua existência.
Andy sufocou um gemido de dor, mas o olhar nos olhos dele ainda carregava aquele brilho, aquela obsessão que fazia Bruce sentir o estômago revirar. Ele via as engrenagens na cabeça do ex-psiquiatra girando, tentando encontrar as palavras certas, tentando manipular a situação a seu favor. Como ele sempre fazia.
-Pode me torturar o quanto quiser - murmurou o ex-psiquiatra - mas eu nunca o machucaria… nunca.
Bruce estava prestes a atacar novamente, os músculos tensos como cordas prontas para se partir. Ele podia sentir sua raiva crescendo ainda mais, seu controle sendo testado a cada palavra sussurrada por Andy. Mas, ao mesmo tempo, havia algo em suas palavras, algo que lhe causava uma sensação estranha, incômoda. Andy estava tentando manipular a situação de novo, e isso fez com que Bruce apertasse ainda mais o punho em volta da sua mandíbula.
Andy fechou os olhos por um segundo, sua respiração irregular. Quando os abriu, não havia desafio, apenas cansaço.
-Eu nunca quis machucá-lo, não mais, não depois do ano passado - Andy sussurrou - eu jamais faria isso, eu só… queria que ele ficasse, eu só queria protegê-lo, eu só…eu não sei, mas eu nunca quis vê-lo sofrer, não de novo.
-Você vai apodrecer por tudo o que fez - disse Bruce, sua voz agora mais baixa, mas carregada de uma frieza cortante - mas primeiro… você vai me ajudar a encontrá-lo.
Bruce olhou para o ex-psiquiatra no chão, sua respiração ainda pesada e carregada de fúria. Cada palavra que Andy pronunciava parecia escorrer pela mente de Bruce como veneno, e ele não tinha mais paciência para isso. Mas, em vez de seguir com mais violência, um leve calafrio percorreu sua espinha ao se lembrar de algo mais importante. O Coringa.
Bruce sentia o sangue martelar em suas têmporas, os músculos de seu maxilar travados em pura tensão. Ele não hesitou ao agarrar Andy pelo colarinho, puxando-o com força para cima. O ex-psiquiatra grunhiu de dor quando foi brutalmente arrastado pelo asfalto áspero da rua. Bruce o empurrou contra o Tumbler sem cuidado algum, abriu a porta e praticamente o jogou para dentro.
Andy arfava, pressionando o ferimento em sua lateral, mas não reclamou. Ele sabia que não tinha escolha. Bruce entrou logo em seguida, batendo a porta com força. O carro rugiu ao ganhar vida, os pneus cantando quando ele acelerou sem hesitação.
O silêncio entre os dois era opressor. Bruce mantinha os olhos fixos na estrada, mas seu peito subia e descia com força. Ele não queria ouvir mais nada vindo de Andy, mas ao mesmo tempo precisava. Mesmo que ele não soubesse para onde Jay tinha ido, Bruce não podia deixá-lo escapar. Assim que tudo isso terminasse, ele o levaria direto para a delegacia.
-Eu não toquei nele, se é o que você está se perguntando - Andy finalmente quebrou o silêncio, sua voz rouca - eu jamais forçaria ele a nada de novo.
Bruce sentiu seus dedos apertarem o volante com mais força.
-Você quer que eu acredite nisso? - sua voz era um rosnado baixo.
Andy fechou os olhos por um instante antes de virar o rosto na direção de Bruce.
Bruce trincou os dentes. Ele queria odiar Andy sem restrições, queria espancá-lo até que a dor no próprio corpo fosse maior que a dor de sua raiva. Mas não podia se dar ao luxo disso agora. Jay precisava dele.
—------
O sol queimava sua pele como lâminas incandescentes. Ele caminhava pela calçada como um fantasma, uma sombra de si mesmo. Os passos arrastados, inseguros, como se o próprio asfalto quisesse engoli-lo. O calor fazia o sangue seco em sua camisa grudar contra a pele, um lembrete pegajoso da bala que atravessara seu corpo horas atrás. Cada pulsação era uma pontada afiada, mas ele não se importava. A dor era um conceito distante. Algo que vinha e ia, que existia e depois desaparecia. Como um truque de mágica ruim.
Seus olhos vagueavam pelo mundo ao seu redor, mas nada parecia real. O sol, o céu azul, as pessoas passando sem olhá-lo duas vezes. Tudo era borrado, distorcido, como se ele estivesse preso em um sonho febril. Ele piscou. Um clarão. Uma lembrança? Não. Algo mais profundo. Algo que não deveria estar ali.
A rua se misturava com Arkham, os prédios ao redor ganhando o tom acinzentado e doente das paredes da cela acolchoada. O barulho dos carros se transformava em sussurros, em vozes.
Ele tropeçou, as pernas falhando por um instante. A dor no estômago rasgou sua consciência em dois. Ele olhou para baixo e viu os dedos trêmulos pressionando a ferida aberta, sentindo a viscosidade quente escorrer entre seus dedos. Vermelho.
As luzes da cidade piscavam, mas não eram postes ou neon, eram lanternas de mão. Ele não estava mais na calçada. Estava na terra fria, os joelhos afundando na lama. Seus dedos seguravam uma pá pesada demais para seu corpo.
"Cava."
O comando ecoou pelo seu crânio como um tiro. Ele sentia a terra grudando sob suas unhas, mas não podia parar. Se parasse, eles fariam isso por ele. Se parasse, ele estaria morto. O medo rastejava por sua espinha como dedos gelados. Suas mãos doíam. Seus braços tremiam. Mas ele continuava. Cavando, cavando e cavando, até que a cova estivesse funda o suficiente. Até que eles decidissem que já era hora.
O ex-terrorista cambaleou para frente, a visão distorcida se misturando com a realidade. As pessoas passavam por ele na rua, mas seus rostos estavam errados. Eram pálidos demais, olhos fundos demais. Espectros que o observavam, esperando que ele caísse, esperando que ele fosse enterrado ali mesmo, na calçada suja. Seu corpo gritava, cada fibra sua implorando para que parasse. Mas parar significava morrer. Como naquela noite. Como naquele buraco.
Ele tropeçou e caiu de joelhos. Seus olhos se arregalaram ao perceber que suas mãos estavam cobertas de terra.
Não, na verdade não estavam. Isso não era real. Isso não era real.
Ele piscou freneticamente, o coração martelando no peito. Mas quando olhou para as próprias mãos novamente, os dedos tortos e quebrados pareciam desaparecer, substituídos por mãos sujas, finas demais, trêmulas demais.
Ele viu seu reflexo em uma vitrine suja. Mas não era ele. Era o adolescente magrelo, ossos à mostra, com terra sob as unhas e rosto sujo de barro, olhos arregalados demais. O garoto que deveria ter morrido ali. O garoto que cavou sua própria cova e saiu dela.
Ele riu. Porque, no fim, ele nunca parou de cavar. E sabia que, um dia, aquela cova finalmente o engoliria. Ele ainda esperava o tiro em sua nuca que nunca veio.
A risada morreu em sua garganta. O chão oscilava sob seus pés, e ele se forçou a levantar. Um passo, depois outro. Mas a cidade se dissolvia ao seu redor, transformando-se naquele quarto escuro, na respiração abafada contra sua pele.
O ex-terrorista pressionou a testa no chão deitando-se de lado. Ele queria abraçar o próprio corpo, se encolher como uma criança, mas se sentia fraco demais para isso. Não era um bom momento para ter um de seus ataques de pânico.
O som do próprio coração batendo em seus ouvidos era como um tambor distante, e a dor no estômago parecia se expandir para o resto de seu corpo, se arrastando pela pele, pela carne. Ele queria gritar, mas não tinha forças. O sol se tornava uma chama ardente sobre ele, queimando sua visão, distorcendo ainda mais a realidade que o cercava. A calçada não existia mais. As ruas não existiam. Nada fazia sentido, nada era real, exceto o vazio imenso dentro dele.
Ele fechou os olhos por um segundo. Uma última tentativa de escapar. Mas, em vez de paz, a memória o devorou, com a fúria de uma onda. Ele viu o quarto novamente. Aquele quarto sem janelas. Apenas uma cama suja, uma lâmpada que tremia no canto, uma câmera e a respiração pesada de homens que se aproximavam, cujas sombras se estendiam sobre ele como monstros. Monstros sem rosto.
As memórias se emaranhavam no tecido da sua mente, desconexas, rasgadas. O cheiro do suor, da sujeira. Ele se lembrava das vozes, mas não sabia os nomes. Não sabia sequer como era possível ter sido alguém antes disso, ele não era ninguém. Não tinha nome. Não tinha rosto. E ainda assim, ele sobreviveu. Sobreviveu ao que não podia lembrar. Sobreviveu ao que ninguém deveria sobreviver.
As cicatrizes que cobriam sua pele eram um lembrete constante de tudo o que ele carregava, tudo o que ele nunca poderia deixar ir. Cada marca era uma sentença, cada dor uma memória gravada em sua carne. Ele tentou se levantar de novo. Ele sempre tentava, então ele se arrastou pelo chão, como sempre fez a vida toda.
A voz de Jack entoou, suave, como se o chamasse de algum canto escuro da sua mente. Aquele rosto, aquele sorriso. Ele sabia que Jack estava ali, no fundo da sua mente, espreitando. Mas então, algo mudou. A voz se alterou, ficou mais grave, mais firme. A temperatura da realidade ao seu redor pareceu mudar, como se ele estivesse sendo puxado. E então, a voz foi se moldando, se transformando.
Era a voz de Bruce. A voz do Batman. A voz que ele conhecia tão bem, tão profundamente. Ele se ergueu um pouco, as mãos trêmulas se apertando contra o chão, como se tentasse se segurar, mas a sensação de se afundar no nada o tomava.
A sensação de não ser ninguém o afligia com uma violência quase insuportável. Ele tentou, por um momento, lembrar do que foi antes. Mas… o que ele foi antes? Alguma vez foi alguém? Ele se perguntava isso enquanto olhava para as mãos sujas de terra, sujas de sangue, sujas de tudo que já fez.
Ele fechou os olhos com força. Tentou se lembrar de um nome, de algo que fizesse sentido. Mas tudo o que ele tinha era uma sensação de vazio, uma dor crua que ele não sabia de onde vinha, que parecia vir de todos os lugares. Era como um eco, um buraco, uma falta, um desespero que lambia seus ossos lentamente. Uma folha em branco que nunca foi escrita, um corpo sem um nome para carregar. Ele não era ninguém.
Ele já foi várias pessoas, ou pelo menos achava que sim. Cada uma delas era uma vida separada, um rosto diferente, um corpo estranho. Mas todas as vidas tinham uma coisa em comum: a dor. A dor e o vazio. Era a única constante que ele reconhecia em si mesmo.
Ele fechou os olhos e se levantou, mas isso não ajudou. As imagens, os fragmentos, as vozes estavam lá. Mas de quem era essa voz? Não era sua. Não podia ser. Cada pedaço de memória era como uma cena de um filme que ele nunca assistiu. O mundo ao redor dele oscilava. O calor esmagava seus ombros, como se estivesse tentando enterrá-lo vivo, mas seu corpo continuava. Andando. Apenas andando. Sem destino, sem direção. Apenas seguindo em frente porque parar era perigoso. Porque parar significava morrer.
Mas ele já não havia morrido? Quantas vezes?
As lembranças vinham em pedaços, como cacos de vidro enterrados em sua mente. Ele não sabia quem era. Nunca soube. Cada versão sua havia morrido para que outra tomasse seu lugar. E todas elas estavam enterradas em algum lugar dentro dele, sufocadas, gritando.
Ele não era uma pessoa. Ele era um monte de partes quebradas, amontoadas umas sobre as outras, sem sentido, sem lógica. Era um mosaico feito de cacos de vidro e pele rasgada, sangue coagulado e risadas que não significavam nada.
Ele baixou o olhar para suas mãos novamente. Os dedos tremiam, contorcidos, tortos, quebrados. E então, de repente, eram mãos pequenas e sujas, mãos de uma criança que nunca teve nome. O cheiro da morte vagando pelos corredores apertados, da fome queimando seu estômago vazio até ele esquecer que sentia alguma coisa. O garoto tinha uma mãe? Um pai? Sim, mas ele não se lembrava dos rostos deles. Só lembrava das vozes ásperas, das mãos pegajosas, do jeito como o arrastavam como se fosse um objeto qualquer. O garoto foi vendido por quase nada, passado de mão em mão até não restar mais nada dele. Seus dentes foram arrancados brutalmente, um por um, porque ele mordia. Porque ele lutava. Então ele morreu.
O ex-terrorista piscou, engolindo seco, os olhos piscando para afastar a névoa da memória. Mas o passado era insistente, faminto, querendo devorá-lo de novo. Ele sabia que não havia escapatória. O tempo nunca seguia em frente para ele. Sempre voltava para puxá-lo de volta para o buraco.
O garoto morreu, mas em seu lugar veio outro.
Ele sentiu o peso da pá, a textura da lama em suas mãos, o cansaço em seus ossos. O adolescente que cavou sua própria cova com as mãos tremendo, com a pá pesada demais para seus braços magros e cicatrizados. Ele não chorou. Não implorou. Ele só cavou, porque sabia que, se não cavasse, alguém faria isso por ele. E talvez isso fosse pior.
Mas esse também morreu.
Morreu na beira daquela cova rasa, olhando para baixo, esperando o tiro em sua nuca que nunca veio. Morreu quando abriu os olhos e percebeu que ainda estava respirando, que teria que continuar existindo. Quanto atacou e matou primeiro o atirador. Quando quis continuar existindo.
Depois veio o assaltante faminto com um moletom vermelho, aquele que apanhou nas ruas, que passou fome e se meteu no que não deveria. Que se meteu com agiotas, que tentou lutar com as armas que tinha. Que tentou até não conseguir mais. Ele morreu também. Todos morriam.
E então veio o soldado. Ele quebrou todos os outros. Pegou o que restava do garoto, do adolescente e do assaltante e os esmagou até não restar mais nada além de uma casca vazia. O soldado lutou, porque era isso que os soldados faziam. E no fim, quando tudo desmoronou, ele matou a única pessoa que achou que o amava. E então o soldado morreu também.
E assim ele foi se reinventando. Criando novas versões de si mesmo, matando-as uma a uma, deixando suas carcaças pelo caminho. Ele não sabia quantas versões suas já tinham morrido. Talvez dezenas. Talvez centenas. Mas, de alguma forma, ele ainda estava ali. Ou o que restava dele. Se é que restava alguma coisa.
O presente e o passado eram a mesma coisa. Ele ainda estava naquele quarto escuro. Ele ainda estava ajoelhado sobre a terra fria, cavando sua própria morte. Ele ainda estava no campo de batalha, ensopado de sangue e chuva. E ao mesmo tempo, ele estava ali, na rua, com os olhos fixos no horizonte, sem saber por que diabos ainda estava respirando.
Talvez ele já estivesse morto. Não, ainda não.
O sol se tornava uma chama ardente sobre ele, queimando sua visão, distorcendo ainda mais a realidade que o cercava. Uma sombra passou por ele, um vulto apressado que não olhou para o homem ensanguentado vagando pela rua.
Ele precisava. Precisava de um telefone. Precisava ligar para Bruce. Precisava continuar vivo. Então com um último surto de força, sua mão se fechou no pulso da pessoa, puxando-a com uma força recém encontrada
-Seu telefone... me dá o telefone.
O homem tentou se desvencilhar, o medo reluzindo em seus olhos enquanto entoava:
-Me solta, porra!
Mas o Coringa não soltou. Ele nunca soltava. Seu corpo reagiu antes de sua mente, como sempre acontecia. Seu instinto de sobrevivência era feroz, primitivo. Ele apenas fixou os olhos no rosto do homem. Seus olhos estavam vazios, como um abismo que não refletia nada de volta, exceto a mania que o consumia. Ele sabia o que era ser ignorado, ser deixado para apodrecer, mas também sabia como lutar para não ser esquecido. A dor de sua ferida não o parava, mas a ideia de estar sozinho de novo... isso, sim, era um pensamento que o assombrava.
O palhaço puxou o homem mais perto, a respiração ofegante, e seus lábios se moveram de forma quase imperceptível:
-Seu telefone... agora - sua voz era uma ordem. Ele não queria ser ignorado mais uma vez, não queria ser deixado no chão, esperando que a morte o encontrasse.
O homem, agora visivelmente mais assustado, hesitou por um segundo. Ele olhou para o Coringa que, com sua expressão vazia e febril, mais parecia uma fera encurralada. Então, sem pensar, ele passou o telefone para o palhaço, o gesto rápido e ansioso.
O Coringa pegou o aparelho com as mãos trêmulas, mas firmes. Ele começou a discar. Discar os números que sabia de cor. Ele precisava ouvir a voz do seu morcego, precisava de algo familiar, algo que o fizesse acreditar, por um breve momento, que o mundo não estava se desintegrando. Ele só queria Bruce agora.
O som do telefone vibrando parecia queimar seus ouvidos, e trouxe de volta a sensação de que o tempo ainda existia, e a possibilidade de uma resposta fez o coração dele acelerar, ainda que de dor. Ele só queria ouvir a voz de Bruce.
Finalmente, o som familiar de uma voz do outro lado da linha cortou o ar pesado:
-Alô ?
Era Bruce. Era A voz. Aquela que o Coringa reconhecia com uma familiaridade aterrorizante. A voz que sabia quando ele estava prestes a perder o controle, quando ele estava afundando, quando ele estava prestes a quebrar. O palhaço não conseguiu responder de imediato. Só respirou, pesadamente, como se estivesse tentando se prender à própria vida.
-Brucie…- a voz do Coringa soou rouca, quase inaudível, como se ele estivesse tentando se agarrar a cada palavra, como se aquelas palavras pudessem salvar sua alma.
-Onde você está? - veio a voz do morcego do outro lado da linha.
O Coringa engoliu em seco, respirando com dificuldade. Ele olhou em volta, o cenário ao seu redor ainda um borrão.
-Eu não sei.
-Tudo bem, não desligue, vou encontrar você.
O Coringa apertou o telefone contra o ouvido, seus dedos agora tremendo. Não havia mais espaço para palavras, mas ele não podia evitar:
-Traga rosquinhas querido, eu estou com vontade de doces.
Notes:
Obrigado a quem está acompanhado até aqui. Até a próxima semana.
Chapter 28: The Gotham We Have (Parte 28)
Notes:
Demorei mais voltei ! Desculpe gente, eu tive uma difículcade em encontrar o tom certo para esse capítulo, por isso demorou um pouco. Obrigado a todo mundo que tm acompanhado, sério, vocês são demais.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce apertou o celular contra a orelha, os olhos fixos na estrada enquanto acelerava. O som da respiração pesada do Coringa ecoava pelo outro lado da linha, entrecortado, instável. Ele estava mal.
-Ouça, fique onde está - a voz de Bruce era firme, mas havia um fio de urgência contida nela - não tente ir a lugar nenhum, eu estou indo.
A risada do Coringa veio como um sussurro rachado, fraco, mas ainda carregado daquele tom de escárnio que Bruce conhecia bem.
-Brucie... você diz isso como se eu tivesse escolha... - ele arfou, o som seguido por um chiado doloroso, e o som de uma lambida preguiçosa - mas você sabe que eu nunca fui bom em ficar parado.
Bruce trincou os dentes. Ele podia ouvi-lo desmoronando pelo telefone. O Coringa estava prestes a perder a consciência.
-O que está ao seu redor? - perguntou o morcego, tentando localizar sua posição.
O silêncio do outro lado foi longo demais. Bruce prendeu a respiração por um momento antes de ordenar com um tom mais duro:
-Hey, fala comigo.
O Coringa soltou um suspiro longo, como se estivesse se esforçando para focar.
-Uma rua… lojas… tem um cheiro horrível de comida gordurosa…ah, e tem um monte de porcarias.
Bruce sentiu um gosto amargo na boca. Ele sabia que não tinha tempo a perder. Qualquer segundo desperdiçado poderia significar que o Coringa sangraria até a morte ali mesmo, naquela calçada imunda.
-Você está sangrando muito? - Bruce perguntou, mesmo já sabendo a resposta. O palhaço arfou uma risada baixa.
-Oh, eu diria que está… consideravelmente desconfortável, mas não se preocupe, querido, eu sempre fui muito difícil de matar…
Bruce acelerou. O motor rugindo enquanto ele manobrava pelas ruas de Gotham de forma tempestuosa.
-Você vai ficar acordado - disse ele, sua voz um comando frio e inegociável - continue falando comigo, não desligue.
O Coringa fechou os olhos, balançando a cabeça. A risada veio antes que ele pudesse impedir, baixa, sufocada, mas inegável.
-Eu nunca desligo, querido...você sabe disso, além do mais... você tem minha atenção agora - disse o palhaço antes de passar a língua no canto dos lábios - e eu, hm, adoro um pouco de drama.
O palhaço cambaleou para trás e apoiou-se em um poste, tentando recuperar o equilíbrio. Ele sentia o telefone escorregar dos dedos, mas segurou firme. Ele precisava da voz de Bruce. Precisava daquilo como se fosse oxigênio.
-Brucie... me diga... você tá sozinho? - sua voz pingava veneno e diversão, até mesmo em seus momentos de queda, o palhaço não podia deixar a brincadeira de lado - porque eu juro que consigo ouvir alguém... alguém respirando pesado ao seu lado.
Do outro lado da linha, dentro do Tumbler, Andy se remexeu desconfortavelmente no banco do passageiro. Seu ombro ainda queimava de dor, a lateral da camisa manchada de sangue. Mas o desconforto real vinha do olhar de Bruce, da forma como seus dedos apertavam o volante, do silêncio que falava mais do que qualquer ameaça.
-Você tá muito calado, querido - o Coringa continuou, a voz oscilando entre uma provocação e algo mais trêmulo, mais instável - aposto que tá aí, de cara fechada, segurando esse volante como se fosse meu pescoço…
Bruce acelerou ainda mais, o motor do Tumbler rugindo enquanto ele costurava pelo tráfego de Gotham sem hesitação. O rádio da polícia começava a pipocar com relatos de um homem ferido vagando pela cidade, alguém que combinava com a descrição do Coringa. Ele estava perto.
-Eu já estou chegando, não desligue - Bruce ordenou, sua voz carregada de algo afiado, algo urgente. Mas do outro lado, o Coringa já não parecia estar ouvindo.
Seu corpo balançava levemente contra o poste onde se apoiava, os olhos piscando devagar. O telefone ainda estava em sua mão, mas seu aperto estava enfraquecendo. Ele sentia o mundo girar ao seu redor, os sons se embaralharem como ecos distantes.
O sangue escorria quente sob sua roupa, encharcando a camisa já suja, misturando-se ao suor, ao cheiro de pólvora que ainda impregnava sua pele. Ele piscou. E de repente, não estava mais ali.
Ele tentou focar em Bruce. Na voz dele. Mas o passado era faminto, e estava engolindo-o vivo. O ex-bilionário apertou ainda mais o telefone contra a orelha ao perceber que a respiração do Coringa estava ficando mais irregular. Mais errática.
-Jay ?
O silêncio do outro lado era espesso, quebrado apenas por um chiado fraco.
Bruce apertou o telefone contra o ouvido, seus dedos se fechando ao redor do volante enquanto o Tumbler rugia pelas ruas de Gotham.
-Jay.
Nada. Apenas a respiração instável, um ruído quase imperceptível, como se o palhaço estivesse se afogando dentro da própria mente.
-Fala comigo.
O Coringa piscou lentamente, as pálpebras pesadas demais. A voz de Bruce soava distante, como se estivesse ecoando debaixo d'água. Tudo estava oscilando ao seu redor, os sons da cidade se misturando com o murmúrio abafado das lembranças.
-Eu tô aqui, Brucie... - a voz do Coringa soou arrastada, como se cada palavra fosse um esforço imenso.
O moreno trincou os dentes antes de rosnar:
-Fica acordado.
-Você gosta de me dar ordens, não é? - disse o palhaço, passando a língua pelo lábio inferior. O palhaço riu baixinho, um som fraco, quebrado, quase um sussurro. Bruce não respondeu. O Tumbler cortava a cidade em velocidade insana, cada rua, cada cruzamento desaparecendo atrás dele em um borrão de luz e concreto. Ele estava perto. Mais um pouco.
Bruce apertou o volante com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. O Tumbler rugia pelas ruas de Gotham, cortando o trânsito sem piedade, os pneus derrapando violentamente quando ele virou a esquina. Ele não estava vendo nada além da estrada, além dos pontos borrados de luz que passavam ao seu redor como flashes desconexos. Tudo nele era puro movimento, puro instinto, puro desespero reprimido.
O telefone ainda pressionado contra seu ouvido captava a respiração instável do Coringa, entrecortada, oscilando entre risadas fracas e um silêncio assustador. Bruce sabia o que aquilo significava. Ele estava oscilando. Deslizando.
-Fala comigo, Jay - a voz de Bruce estava mais baixa agora, mais tensa.
O silêncio do outro lado se prolongou. Longo demais. Bruce sentiu seu estômago afundar. O Tumbler rugia como um monstro de metal, rasgando as ruas de Gotham com pressa impiedosa.
Droga. Droga. Droga.
O ex-bilionário apertou ainda mais o volante, sua mandíbula tão travada que parecia que seus dentes iam rachar. Sua visão estava ficando vermelha nos cantos. Raiva. Medo. Culpa. Tudo misturado e queimando dentro dele como ácido.
-Fala comigo, Jay - ele rosnou, sua voz cortante como lâmina.
Silêncio, e então, um ruído. Algo entre uma risada e um gemido. Bruce trincou os dentes.
-Fica acordado.
A risada que veio do outro lado da linha era fraca, falhando no meio do caminho.
-Você já disse isso amor … - o palhaço murmurou - eu não sou surdo.
Bruce acelerou ainda mais, seus músculos rígidos de tensão. Ele tinha que chegar logo. Ao seu lado, Andy se mexeu. Bruce sentiu, mais do que viu, o olhar do ex-psiquiatra sobre ele.
-Ele vai ficar bem - a voz de Andy não tinha deboche, não tinha provocação. Só uma preocupação genuína, um peso real. Bruce queria quebrar o rosto dele. Sua mão se soltou do volante antes que ele percebesse, e de repente ele estava agarrando o colarinho do ex-psiquiatra e puxando-o com força.
A porta lateral do Tumbler se abriu com um estalo violento, e em um movimento brutal Bruce o inclinou para fora, segurando-o sobre o asfalto que passava em um borrão sob seus pés. O grito sufocado de Andy foi carregado pelo vento, suas mãos instintivamente agarrando o pulso de Bruce, tentando encontrar equilíbrio.
-Cala a boca - Bruce rosnou, sua voz mais sombria do que qualquer ameaça poderia ser.
O ex-psiquiatra engoliu em seco, sua respiração acelerada, mas não protestou. O morcego o puxou de volta para dentro do carro com um tranco, jogando-o contra o banco com brutalidade antes de bater a porta.
-Se eu ouvir sua voz de novo, eu juro que vou arrancar cada um dos seus malditos dentes.
Andy ficou quieto. Bruce não olhou para ele. Ele só manteve os olhos fixos na estrada. O Tumbler rugiu mais alto quando ele forçou o motor ao limite. Foi então que ele viu, apoiado contra um poste. Seu palhaço.
O ex-bilionário freou tão rápido que os pneus caíram no asfalto. O calor escaldante de Gotham batia contra Bruce como um tapa quando ele saiu do Tumbler, mas ele não sentiu nada. Seu foco estava fixo na figura encurvada contra o poste,
A visão do Coringa, pálido e ensanguentado, fez algo dentro dele se contorcer violentamente. Ele se moveu em passos pesados, os ombros rígidos, cada músculo do seu corpo pulsando entre o impulso de segurá-lo e a raiva corrosiva de que isso sequer fosse necessário.
O palhaço levantou a cabeça, seus olhos piscando devagar como se estivesse tentando focar nele. Um sorriso fraco puxou seus lábios, um daqueles que não era realmente um sorriso.
-Você demorou querido - zombou o louco antes de passar a língua no canto dos lábios - eu já estava começando a pensar que iria ter que ir rastejando até você.
Bruce não respondeu. Ele apenas agarrou o braço do Coringa com força, sustentando seu peso. O palhaço por sua vez, soltou um suspiro, inclinando-se contra o moreno em um gesto que seria preguiçoso, mas dadas as circunstâncias, era mais cansado.
-Hmm... eu preciso de um banho - murmurou o palhaço, fechando os olhos por um momento - e depois, hm, preciso me deitar, a minha cabeça tá me matando…
-Você precisa de um hospital - disse o morcego em um tom controlado.
A camisa do Coringa estava pegajosa de sangue, sua respiração um pouco irregular. Bruce afastou o rosto do ex-terrorista para olhá-lo nos olhos, sua expressão rígida. O palhaço abriu um sorriso pequeno, cansado.
-Não seja tão dramático, querido… eu já passei por piores .
Bruce trincou os dentes. A adrenalina que o manteve firme até agora estava se transformando em outra coisa. Ele segurou o Coringa pelo rosto, mantendo-o firme enquanto seus olhos o escaneavam. O sangue. O suor. A palidez. Ele precisava levá-lo para um lugar seguro. Agora. Mas primeiro, ele precisava resolver um problema.
O moreno puxou o celular e discou para Chuck, que atendeu rapidamente.
-Estou com Matthew - disse Bruce sem rodeios - Samuel Rise ficou no apartamento, mas deve estar nas redondezas ainda, mande seus homens atrás dele, mas antes, me mande uma viatura rápido, eu preciso de um carro.
- Rise era mais importante! - a frustração na voz de Chuck era evidente - merda, Batman! Você devia ter ficado lá até a polícia chegar!
Bruce fechou os olhos por um segundo, respirando fundo antes de rosnar:
-Você me deve essa.
-Eu te devo? Eu devia te prender por obstrução, isso sim.
Bruce não se abalou, ele apenas respirou fundo antes de continuar:
-Preciso de uma viatura, não posso colocar Andy e o Coringa no Tumbler, não tem espaço.
Chuck ficou em silêncio por um momento, antes de soltar um suspiro pesado.
-Isso é uma péssima ideia…mas tudo bem, tô mandando um carro, vou rastrear a sua chamada, mas fica melhor se você disser onde está.
O Coringa parecia sair e entrar da consciência, ele não entendia direito o que o morcego estava falando no telefone. O palhaço se inclinou mais para frente, fazendo seu corpo quase que completamente ser sustentado pelo ex-bilionário. Porra, ele não estva se sentindo bem.
Bruce guardou o telefone depois que a linha ficou muda, e ele e Chuck terminaram sua conversa com declarações secas. O morcego e olhou para o Coringa de novo. Ele parecia ainda mais pálido agora, os olhos semicerrados.
-Vai me levar pra casa, docinho? - o palhaço murmurou, um sorriso torto brincando em seus lábios cheios de cicatrizes.
Bruce apertou o maxilar.
-Cala a boca.
O Coringa abriu um sorriso pequeno, a cabeça tombando levemente contra o peito do ex-bilionário.
-Você tá tenso, Brucie... - murmurou, sua voz arrastada, mas ainda carregada daquele tom provocativo - é o esse meu charme natural te deixando nervoso?
Bruce ignorou a provocação.
-Fica quieto.
O palhaço riu baixinho, um som fraco e rouco antes de lamber o canto dos lábios e dizer:
-Sempre tão mandão.
O Tumbler estava a poucos metros, e Bruce sentia cada fibra do seu corpo vibrando de raiva e urgência. Ele queria arrancar Jay dali, levá-lo para longe, mas ainda tinha Andy para lidar, e isso o fazia querer esmurrar algo até sentir os ossos de sua mão se partindo.
O carro da polícia não estava ali ainda. Chuck podia ser eficiente, mas Gotham era um caos. Bruce sabia que precisaria esperar. Ele não gostava de esperar. Ele não deveria ter deixado isso acontecer. Ele deveria ter protegido Jay. Bruce sentia aquela culpa corroendo suas entranhas como ferrugem. Mas a raiva, a raiva estava logo atrás, crescendo dentro dele como um incêndio descontrolado.
O ex-bilionário em um movimento que poderia ser considerado carinhoso, ajudou o palhaço a se sentar no chão, escorado na roda dianteira do Tumbler. Na sequência, Bruce abriu a porta do veículo com um puxão brusco, e então, sem aviso, agarrou Andy pelo colarinho e o puxou para fora com brutalidade.
O ex-psiquiatra arfou, sua mão ferida se fechando ao redor do pulso de Bruce por puro reflexo.
-Se abrir a boca, eu te jogo debaixo do primeiro carro que passar na rua - Bruce rosnou, sua voz um trovão contido.
Andy arregalou os olhos por um segundo, sua boca abrindo levemente, mas nenhuma palavra saiu. Ele viu a forma como Bruce o segurava, viu a forma como seus olhos queimavam com um ódio puro, bruto. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Bruce fechou a porta com um estrondo, os dedos latejando pelo aperto violento.
Ele não olhou para Andy. Ele não podia. Ele só se virou para o Coringa, sua respiração pesada, seu peito subindo e descendo de forma irregular.
-Gostei desse lado seu, me dá arrepios - zombou o palhaço antes de passar a língua no lábio inferior - eu devia perguntar o que ele está fazendo aqui, mas estou cansado e as coisas estão meio confusas.
Bruce fechou os olhos por um segundo. Ele só queria que aquela maldita viatura chegasse logo. Bruce sentia seu maxilar travado, os músculos tensos, a raiva crescendo como um trovão dentro dele. Sua respiração era pesada, mas ele a mantinha controlada. Ele tinha que manter tudo sob controle. Mas então o palhaço abriu a boca de novo.
-Brucie…- a voz do palhaço era arrastada, oscilando entre o cansaço e o sarcasmo de sempre - não me diga que você se esqueceu das minhas rosquinhas?
Bruce fechou os olhos por um segundo, sentindo sua paciência se despedaçar.
-Não, não, eu tô falando sério - o Coringa ergueu a cabeça um pouco, seus olhos ainda turvos, mas brilhando com algo perversamente divertido - eu tô morrendo aqui, e tudo o que eu quero é uma porcaria de doce, seria cruel me deixar morrer sem comer açúcar.
O ex-bilionário soltou um longo suspiro, esfregando a ponte do nariz. Ele estava cansado, ele só queria ir para casa e se deitar, porra, ele só queria fingir que os últimos dias tinham sido um sonho ruim.
-Você realmente não trouxe as rosquinhas, trouxe? - o moreno saiu de seus pensamentos quando o palhaço rompeu o silêncio. Bruce fechou os olhos por um segundo antes de se ajoelhar ao lado do Coringa.
-Eu juro por Deus, se você não calar a boca, eu vou socar a sua cara.
O palhaço riu, um som quebrado, mas genuíno antes de passar a língua nos cantos dos lábios e entoar:
-Que declaração de amor mais fofa, querido... combina com você, eu só queria um açúcar antes de…bem, você sabe.
-Você não vai morrer - falou o morcego, seu tom era definitivo.
-Hm... - o palhaço zombou antes de passar a língua no lábio inferior - você diz isso com tanta certeza... mas eu tô vendo o túnel de luz ali na frente…
Bruce bufou.
-É o reflexo do sol, idiota.
O Coringa riu baixinho, mas seu riso logo virou um gemido abafado quando uma pontada de dor rasgou sua lateral. Foi nesse momento que Andy, que havia permanecido quieto até então, finalmente quebrou o silêncio.
-Se ele perder mais sangue, vai entrar em choque.
Bruce apertou os dentes antes de dizer com um tom de advertência:
-Eu sei.
Andy hesitou antes de continuar, sentindo o tom do morcego:
-Então por que ainda estamos aqui?
Bruce se virou lentamente, e Andy prendeu a respiração. O olhar do ex-bilionário era puro aço.
-Porque a droga da viatura ainda não chegou.
Andy fechou a boca por um momento antes de dizer:
-Também preciso de um médico, meu ferimento a bala começou a vazar de novo, devido aos últimos acontecimentos, que foram um pouco…agitados demais.
Bruce trincou os dentes. Sua paciência já estava desgastada, esticada até o limite, e a voz de Andy apenas adicionava mais pressão a algo que já estava prestes a explodir. O ex-bilionário desviou os olhos do Coringa por um instante e olhou diretamente para o ex-psiquiatra.
O morcego cerrou os punhos e desviou o olhar, sentindo sua própria raiva queimando sob a pele. O Coringa, por sua vez, parecia estar oscilando entre a consciência e o delírio.
-Hmmm... sabe, querido... - murmurou o palhaço, a cabeça tombando levemente para o lado, mas ainda sorrindo - pelo menos eu não fui o único a levar uns tiros de Sammy…
Bruce bufou.
-Cala a boca.
O palhaço riu fracamente, seu corpo se inclinando um pouco mais contra o Tumbler antes de entoar:
-Você tá estressado, amor... por quê? Não é como se eu estivesse morrendo ou algo do tipo…
Bruce olhou para ele, e pela primeira vez em longos minutos, sua expressão se suavizou. Mas era um tipo perigoso de suavidade. Um tipo que escondia um furacão por trás.
-Você é um idiota.
Bruce suspirou pesadamente, passando as mãos pelo rosto. Ele estava cansado. Mentalmente, fisicamente. Sua paciência estava em frangalhos, sua raiva fervia embaixo da pele, e a visão do palhaço tão frágil diante dele fazia algo muito mais profundo e perigoso se agitar dentro de si.
Mas então veio aquela voz arrastada, carregada de brincadeira e cansaço.
-Senta aqui do meu lado.
Bruce desviou os olhos para o Coringa. Ele ainda estava pálido, sujo de sangue e suor, um desastre completo, mas havia algo na forma como ele olhava para o ex-bilionário, um cansaço genuíno, uma vulnerabilidade que, por mais que estivesse envolta em deboche, era real.
-Você não trouxe minhas rosquinhas, então você me deve isso - o palhaço sorriu, pequeno e preguiçoso, mas seus olhos estavam meio vidrados, piscando devagar, tentando se manter ali.
Bruce cerrou o maxilar, mas não discutiu. Com um último olhar para a rua, ele suspirou e se abaixou ao lado do Coringa, encostando-se ao Tumbler. A viatura ainda parecia longe de chegar.
O palhaço se moveu lentamente, inclinando-se para o lado até que sua cabeça encostasse no ombro de Bruce.
-Você ainda tá tenso... - murmurou o ex-terrorista, os olhos meio fechados.
-Você ainda tá sangrando - Bruce rebateu, o tom seco.
-Ah, detalhes... - o palhaço disse antes de lamber o lábio inferior, a respiração pesada. E então, no momento seguinte, ele fechou os olhos por um momento.
Bruce observou em silêncio, sentindo o peito apertar de novo. Ele queria dizer algo, mas nada parecia certo. Então, ele apenas ficou ali, sentindo o peso do Coringa contra si.
Andy observava a cena a alguns passos de distância. Não era como se ele não soubesse. Não era como se ele não tivesse visto isso antes. Mas ver assim, tão cru, tão natural... o jeito que Bruce estava ali, imóvel, deixando o palhaço se encostar, seu corpo ainda tenso, mas sem afastá-lo..
O Coringa suspirou suavemente, a dor evidente em cada movimento seu. Mas ali, contra Bruce, ele parecia... quase confortável.
-Se eu apagar... - murmurou o louco, quase um sussurro.
Bruce não hesitou em completar:
-Eu te acordo.
O palhaço sorriu de novo, fraco, mas genuíno.
-Bom... porque eu definitivamente não quero sonhar agora.
Bruce apertou os punhos, forçando-se a manter a respiração estável. Ele só queria levá-lo para casa. Ele manteve os olhos fixos na rua à frente, esperando ansiosamente pela maldita viatura. Sua paciência já estava desgastada, sua raiva pulsava em suas têmporas, mas, naquele momento, nada importava mais do que o corpo frágil e quente do Coringa apoiado contra si.
Ele sentia a respiração irregular do palhaço contra seu ombro, os pequenos tremores que percorriam seu corpo, o sangue ainda quente que umedecia as fibras de sua roupa. E, mesmo assim, Jay ainda encontrava forças para zombar, para provocá-lo como se não estivesse à beira da inconsciência.
Bruce queria socá-lo por isso. Mas queria ainda mais segurá-lo firme e nunca mais soltá-lo.
-As cores estão dançando Bats, eu gostaria que você pudesse ver isso - disse o ex-terrorista depois de um momento de silêncio - eu detestaria sonhar agora, tudo parece colorido demais, até para os meus padrões.
Bruce fechou os olhos por um segundo, inspirando fundo.
-Então não durma.
O palhaço soltou um riso baixo, algo quebrado, mas genuíno.
-Você me faz cada pedido difícil, amor... - ele se moveu um pouco contra o ombro do ex-bilionário, buscando um pouco mais de conforto.
Bruce sentiu seus músculos tensionarem mais, mas ele não se afastou. Ele apenas observou o palhaço, seu rosto mais pálido do que deveria ser, os cabelos desgrenhados e grudados pelo suor, as olheiras fundas abaixo dos olhos.
-Tá me olhando assim porque ? - entoou o ex-terrorista em um tom divertido.
-Você está cada dia mais lindo.
-Você está bêbado ? - zombou o ex-terrorista antes de lamber o lábio inferior.
-Não - disse o moreno com um tom neutro.
Por um momento parecia que o palhaço iria soltar outra zombaria, mas ele parou por um momento e seus olhos suavizaram, um pouco menos de zombaria e escárnio sendo transmitido por eles.
O silêncio que se seguiu foi diferente, confortável. O Coringa o encarou por um momento antes de soltar um suspiro longo, sua cabeça pesando um pouco mais contra Bruce.
-Então…você realmente tá bêbado.
Bruce revirou os olhos, mas não conseguiu impedir que o canto de seus lábios se erguesse por um segundo, quase imperceptível.
-Cala a boca .
O palhaço sorriu, um sorriso pequeno, verdadeiro, antes de fechar os olhos por um instante, apenas sentindo o calor do outro ao seu lado.
Alguns minutos se passaram e Bruce já sentia os músculos do seu corpo tensionados, seu instinto de proteção à flor da pele, e quando a viatura finalmente virou a esquina e se aproximou com as sirenes desligadas, ele sentiu uma onda de alívio misturado com irritação. Demorou. Tudo demorou demais.
Bruce se ergueu do chão e apenas observou quando o carro preto e branco virou a esquina, o giroflex lançando flashes vermelhos e azuis contra os prédios sujos. Andy se remexeu ao lado, endireitando os ombros enquanto a viatura parava. Ele sabia o que viria a seguir.
A porta do motorista se abriu primeiro, e um homem de meia-idade saiu. Rugas profundas marcavam seu rosto, sua expressão era dura, mas os olhos carregavam cansaço, um cansaço de anos naquele trabalho. Jimmy Gordon saiu do lado do passageiro.
Jimmy olhou para a cena à frente, seus olhos passando rapidamente de Andy para o Coringa, desacordado contra a roda do Tumbler. O jovem policial franziu a testa, como se tentasse processar a situação, antes de fixar o olhar em Bruce. Fazia tempo que ele não via o morcego frente a frente
-Voltou da aposentadoria, Batman?
Bruce ignorou o comentário, seu corpo rígido como uma lâmina prestes a cortar. O policial mais velho ajustou o cinto, olhando diretamente para Andy.
-Matthew Cole, você está preso.
Jimmy já estava com as algemas em mãos antes mesmo que Andy pudesse reagir. O ex-psiquiatra suspirou, levantando as mãos lentamente, a camisa suja de sangue se repuxando com o movimento.
-Eu preciso de um hospital - murmurou Andy, sem hesitação - tenho um ferimento a tiro.
-A polícia vai te levar para o hospital e te manter sob custódia - entoou Bruce em um tom medido.
Andy não contestou. Ele sabia que qualquer coisa que dissesse naquele momento só tornaria a situação pior. Jimmy e o outro policial se moveram rápido, prendendo as algemas ao redor dos pulsos de Andy e o guiando até a viatura.
Jimmy Gordon lançou um olhar breve para Bruce.
-Rise ainda está por aí ? - perguntou ele.
O ex-bilionário assentiu antes de dizer:
-Ele ficou no apartamento, não deve estar lá agora, mas ainda deve estar nas redondezas, vocês vão encontrá-lo por perto.
O policial mais velho suspirou, passando a mão pelo rosto antes de dizer:
-Ótimo.
Jimmy fechou a porta da viatura após colocar Andy dentro, mas então seus olhos se desviaram para a roda dianteira do Tumbler, onde o Coringa permanecia imóvel.
Bruce já sentiu o desconforto crescer no jovem policial antes mesmo que ele falasse.
-E o Coringa ?
O policial mais velho se aproximou, dando um passo hesitante na direção do palhaço
-Ele está desacordado - sua voz era neutra, mas não escondia o desconforto - ele tá respirando ?
Bruce já sabia onde aquilo estava indo. Ele viu quando a mão do policial se moveu, o gesto discreto mas claro de quem estava prestes a tocar no Coringa, mas recupou no momento seguinte com uma careta. O policial mais velho olhou de Bruce antes de dizer:
-Acho que ele precisa de um hospital.
-Eu vou levá-lo para o hospital.
O morcego rapidamente colocou o ex-terrorista no banco passageiro do Tumbler. Bruce dirigiu em silêncio por alguns minutos, o rugido do Tumbler preenchendo o espaço ao redor. Gotham passava em borrões de concreto e luz ao seu redor, mas ele não estava realmente vendo nada. Sua mente estava fixa na figura pálida e imóvel no banco do passageiro. Ele apertou o volante com força, o maxilar trincado. Ele não deveria ter deixado isso acontecer. Ele não deveria ter perdido tanto tempo.
Respirando fundo, o ex-bilionário estendeu uma mão e apertou o ombro do Coringa. Nenhuma resposta. O corpo do palhaço oscilou levemente com o movimento, mas ele não reagiu. Bruce franziu a testa e apertou de novo, dessa vez um pouco mais forte.
-Ei, acorda - disse o moreno.
No entanto, nada aconteceu.Bruce sentiu um nó apertar seu estômago. Ele diminuiu a velocidade por um momento e esticou o braço, segurando o rosto do Coringa entre os dedos enluvados.
-Jay, acorda.
Um ruído baixo escapou dos lábios do palhaço, algo entre um gemido e um resmungo. Bruce exalou devagar, seu coração ainda martelando no peito. Os olhos do Coringa piscaram, preguiçosos, como se ele estivesse lutando para sair de um sonho muito profundo. Ele respirou fundo antes de murmurar:
-Se for pra me acordar, espero que tenha trazido café…
Bruce soltou um suspiro, fechando os olhos por um breve segundo. Ele queria sorrir, queria dizer algo bobo, mas tudo o que conseguia sentir naquele momento era o alívio esmagador de ver aqueles olhos abertos.O ex-bilionário sentiu o peso da exaustão pressionando seus ombros, uma tensão que ele carregava desde o momento em que percebeu que Jay tinha desaparecido. Desde o momento em que se deu conta de que poderia nunca mais encontrá-lo.
Bruce não disse nada. Ele só manteve a mão no rosto do ex-terrorista por mais um momento, sentindo a textura das cicatrizes familiares e a pele pegajosa de suor.
Ele voltou sua atenção para a estrada, acelerando de novo. O Coringa bufou divertido, mas não disse nada. Ele apenas fechou os olhos de novo. Bruce com um movimento rápido, pressionou um botão no painel, ativando o modo automático do Tumbler. A inteligência artificial assumiu o controle da direção, e um pequeno alarme soou em confirmação.
Bruce exalou devagar e levou a outra mão até a máscara do morcego. Ele a lentamente e a retirou, soltando um suspiro pesado. Sem a máscara, ele respirou um pouco mais livremente. Então, depois de um momento, ele virou o rosto e observou o outro homem ao seu lado.
O Coringa estava ali. Verdadeiramente ali. E, por um breve momento, Bruce se permitiu sentir isso. Lentamente, ele estendeu a outra mão, afastando os fios loiros suados do rosto do palhaço. Seus dedos passaram suavemente pela pele pálida, fazendo com que o ex-terrorista franzisse levemente a testa com o toque, mas não abrisse os olhos.
O ex-terrorista sempre encontrava forças para rir, para zombar, para fazer parecer que tudo era um jogo ou uma brincadeira. Mas Bruce conhecia os detalhes. O pequeno tremor nos dedos torcidos e quebrados do palhaço, a rigidez de seu corpo, tentando ignorar a dor. Ou ainda, o jeito como seus olhos demoravam um segundo a mais para focar, como se estivesse lutando contra a inconsciência.
Bruce respirou fundo, forçando-se a desviar o olhar.
O Tumbler seguia seu curso pelo trânsito caótico de Gotham, e o hospital mais próximo estava a apenas alguns minutos. Mas a ideia de deixá-lo em um lugar cheio de médicos desconhecidos o fazia hesitar.
-Você tá com essa cara de quem tá pensando demais... - o louco zombou, sua boca se curvando em um sorriso preguiçoso antes de passar a língua no lábio inferior - não frite esse seu cérebro de morcego, realmente não tô com energia pra ouvir um discurso agora…
Bruce suspirou por um momento, deixando a tensão sair de seu corpo. No momento seguinte ele abaixou o rosto, seus lábios roçando suavemente contra a testa do palhaço antes de dizer baixinho:
-Eu senti sua falta.
O Coringa soltou um pequeno som, quase um riso cansado antes de responder:
-É mesmo?
O ex-bilionário passou o polegar contra uma das cicatrizes no canto da boca do palhaço, um toque leve, familiar. No momento seguinte o moreno suspirou antes de entoar:
-Eu achei que não ia te encontrar.
O Coringa abriu os olhos por um momento, cansados, antes de virar o rosto para olhar para o morcego.
-Oh, querido... - o palhaço lambeu os lábios, um brilho brincando em seu olhar - se tem alguém nesse mundo que nunca vai conseguir se livrar de mim... esse alguém é você.
Bruce manteve os olhos fixos no Coringa por mais alguns segundos. Ele não conseguia se afastar. Não conseguia parar de olhar para ele. O morcego trincou os dentes, sua mandíbula tensionando até doer. Ele deveria dizer algo. Deveria repreendê-lo por ter fugido, por não ter esperado por ele, por sempre, sempre , colocar a própria vida em risco como se não valesse nada. Mas, no momento, nada disso importava.
Bruce apenas se inclinou um pouco mais, roçando os lábios contra os do ex-terrorista em um beijo leve, quase hesitante. O gosto de sangue e suor ainda estava ali, o cheiro da pólvora impregnado na pele do palhaço.
O Coringa suspirou contra ele, os olhos se fechando devagar.
-Hmm... -um sussurro brincalhão escapou dos lábios do palhaço - se isso for uma alucinação ou sonho, eu vou ficar bem puto quando acordar.
Bruce soltou um pequeno suspiro antes de pressionar mais um selinho leve e se afastar um pouco.
-Então é melhor não dormir.
O Coringa riu, mas o som morreu rápido, substituído por um gemido baixo de dor quando ele se mexeu no banco.
Bruce recuou totalmente, se endireitando no banco do motorista, sua expressão endurecendo novamente.
-Você vai aguentar até o hospital?
O palhaço piscou lentamente como se tentasse focar.
-Precisamos mesmo ?
Bruce passou uma das mãos pelo rosto, exalando devagar.
-Você prefere o quê? Sangrar até a morte no banco do meu carro?
O Coringa abriu um sorriso preguiçoso, mas não respondeu.Bruce, por sua vez, trincou os dentes, seu maxilar se contraindo antes que ele dissesse:
-Isso não é engraçado.
O palhaço lambeu os lábios, o olhar vidrado oscilando entre Bruce e o teto do Tumbler.
-Pra você, nada nunca é, né, Batsy? - o Coringa piscou devagar, a respiração pesada.
Bruce respirou fundo, controlando a própria raiva. Ele queria pegar Jay pelos ombros e sacudi-lo até que ele entendesse o óbvio,ele não podia morrer. Ele não ia morrer.
O morcego desviou os olhos para a estrada. O hospital já estava a poucos minutos. Ele sabia que precisava levá-lo para lá, sabia que os ferimentos eram sérios. Mas…
-Eu sei que você odeia hospitais... - murmurou Bruce, mais para si mesmo do que para o outro.
Eles ficaram em silêncio por um momento até que o ex-bilionário olhou para as mãos do Coringa de verdade, pela primeira vez. Os dedos estavam inchados, arroxeados, alguns tortos, outros visivelmente quebrados, retorcidos de um jeito que fazia seu estômago se revirar. Os pulsos tinham marcas vermelhas profundas, como se algo os tivesse cortado repetidamente. Marcas profundas. Bruce sentiu a respiração pesar.
-Jay... - sua voz saiu tensa.
O palhaço piscou para ele, preguiçosamente, antes de erguer as mãos de leve, os dedos quebrados oscilando no ar.
-Ah, sim, achei que um novo estilo cairia bem... - sua voz era arrastada, carregada de dor e sarcasmo antes que ele lambesse o canto dos lábios.
Bruce não riu. O palhaço sim. Riu como se fosse uma grande piada interna.
-Eu tentei me soltar... - continuou o palhaço, olhando para os próprios dedos, flexionando levemente um deles - mas, uh... não fui muito bem-sucedido…
Bruce cerrou os punhos, seus olhos escuros como a tempestade que se formava dentro dele.
-Você tentou se soltar das correntes…
-Dá para me culpar pelo tédio? Só ouvindo Andy falar e falar…eu estava ficando louco.
Bruce sentiu ferver dentro dele. Mas o Coringa ainda não tinha terminado, ele deu um riso fraco e um pouco sinistro antes de inclinar a cabeça.
-Ei, Brucie... - sua voz ficou quase conspiratória - você não vai gostar dessa parte, mas... meu pé também tá meio... err... torto.
Bruce trincou os dentes, franzindo a testa antes de olhar para o outro homem.
-Torto?
-É uma longa história - suspirou o ex-terrorista - eu meio que tive que deslocá-lo pra sair das correntes.
Bruce queria socar alguma coisa, queria gritar. Mas ele não podia, ele tinha que manter a calma, a cabeça fria. O que ele podia fazer agora era levar o palhaço para o hospital.
-Não importa o quanto você reclame - rosnou Bruce, os olhos queimando com algo perigoso - você vai para o hospital.
-Sabia que você ia dizer isso... - o Coringa lambeu os lábios, franzindo o nariz. - mas, honestamente, eu já passei por coisa pior…
Bruce virou o rosto lentamente para ele. O Coringa piscou e riu baixinho.
-Você odeia admitir que me entende, Brucie, e você precisar relaxar... - o palhaço murmurou, fechando os olhos por um instante antes de abrir um deles e zombar - faz bem para pele, sabia?
Bruce bufou, exausto antes de dizer:
-Só vou relaxar quando puder te levar para casa.
-Podíamos passar em uma padaria para comprar algumas rosquinhas - falou o louco em um tom arrastando, antes de lamber o canto dos lábios em seu tique característico - eu duvido que tenham algo assim no hospital.
-Não estou negociando - desse o morcego simplesmente.
-Oh vamos Brucie, você disse que me amava, não vai me negar um doce quando estou quase tendo um choque hipovolémico, não é ?
-Não adianta me chantagear - suspirou o ex-bilionário.
-Jamais faria isso - zombou o louco passando a língua no lábio inferior - não me julgue tão mal assim.
-Eu digo porque te conheço - suspirou o morcego com um tom forme - e a resposta continua sendo não.
Bruce não ia cair naquilo, o Coringa estava machucado, exausto, e provavelmente delirando em parte, mas ainda conseguia ter energia para provocar. Isso, pelo menos, não tinha mudado.
O palhaço ficou em silêncio por alguns segundos, e Bruce quase acreditou que ele finalmente havia desistido. Mas então, em sua voz arrastada e rouca, ele murmurou:
-Você sabe que só estou brincando…
Bruce lançou um olhar rápido para ele antes de responder em um tom mais seco do que o pretendido:
-Sei.
O silêncio que se seguiu foi diferente. O ex-terrorista não sorriu de imediato. Ele apenas o observou por um momento, os olhos semicerrados, pesados de exaustão.
-Mas você ainda está tenso... - murmurou ele antes de passar a língua no lábio inferior, como se estivesse tentando entender algo que não conseguia tocar.
Bruce manteve os olhos na estrada.
-Porque eu quero chegar logo.
-Não - retrucou o louco - não é só isso.
Bruce não respondeu, ele não queria responder ao questionamento. O Coringa respirou fundo e soltou o ar devagar, fechando os olhos de novo.
-Você realmente achou que não ia me encontrar? - perguntou o palhaço em um tom um pouco menos desdenhoso do que o seu habitual.
Bruce apertou os punhos, sentindo algo torcer dentro de si. Ele não respondeu de imediato. Ele não conseguiu responder de imediato, isso realmente tinha passado por sua cabeça muitas vezes, mais vezes do que o ex-bilionário queria admitir. Mas Bruce também não queria mentir para o palhaço.
-Por um momento... - a voz do moreno saiu mais baixa do que ele queria - sim.
O Coringa ficou quieto por um momento antes que um sorriso pequeno, verdadeiro, menos zombeteiro do que seus sorrisos habituais, puxasse levemente seus lábios para cima.
O silêncio que se seguiu foi mais leve. Não desconfortável, não tenso. Apenas um momento raro de tranquilidade entre os dois. Bruce soltou um longo suspiro, desviando o olhar por um segundo antes de continuar, sua voz mais baixa, mais rouca:
-E ainda assim, aqui estamos.
O silêncio se instalou novamente entre eles. Cheio de coisas não ditas, mas que não mereciam ser ditas agora. Não cabiam. Não era apenas sobre o que o palhaço estava dizendo. Era sobre o que ele estava evitando dizer.
Bruce conhecia esse padrão. O sarcasmo, as piadas, a zombaria. Tudo aquilo era um escudo. O Coringa estava cansado demais para mantê-lo completamente erguido, mas ele ainda tentava. O ex-bilionário observou de canto de olho o jeito como os dedos quebrados do palhaço tremiam levemente sobre seu colo. Ele estava doendo. Estava exausto. Mas ainda encontrava forças para provocá-lo, para fingir que nada daquilo o afetava. Mas Bruce via através disso. Ele sempre via.
Você realmente achou que não ia me encontrar?
A pergunta de Jay ecoava em sua mente, martelando como uma faca fincada no osso. Ele queria responder que não. Queria dizer que sempre soube que o encontraria. Mas não foi isso que aconteceu.
Bruce olhou para o palhaço novamente, o maxilar trincado antes de dizer:
-Eu achei que tinha perdido você
A confissão saiu antes que ele pudesse impedi-la. O ex-terrorista piscou devagar, como se estivesse absorvendo as palavras. O Coringa zombava de tudo. Da vida, da morte, da própria dor. Mas agora, por um segundo, ele não zombou. Ele apenas olhou, simplesmente olhou para Bruce. Ele não riu da desesperança de Bruce em achá-lo, porque sabia que era verdade. Ele mesmo sentia isso.
-Sabe... - a voz do palhaço veio baixa, havia algo arrastado nela, um peso escondido debaixo das palavras - eu pensei nisso também, Bats, pensei que, talvez... fosse dessa vez, mas você sabe, eu sou como uma barata, eu continuo sobrevivendo, mesmo quando a sorte está contra mim.
Bruce segurou o volante com mais força.
-E você odeia isso - disse o moreno simplesmente, como se fosse um fato conhecido
O Coringa riu, mas não zombou.
-Acho que... não sei - ele desviou o olhar, antes de passar a língua no canto dos lábios - só me acostumei com a ideia de que um dia eu simplesmente não vou mais acordar, e sabe,tudo bem…nem todo mundo precisa de um final feliz, Brucie.
Bruce sentiu algo rosnar dentro dele, então o ex-bilionário soltou um pouco mais cruel do que deveria:
-Eu preciso que você tenha, que a gente tenha, então pare de ser egoísta e de pensar nas suas próprias merdas fodidas por um segundo, eu quase enlouqueci, então não me venha com isso agora.
O Coringa virou a cabeça devagar, os olhos turvos fixando-se nele. Por um momento, Bruce pensou que ele fosse rir. Que fosse zombar, provocar, fazer um comentário ácido. Mas ele não fez nada disso. E, por um segundo, apenas por um segundo, Bruce teve a sensação de que o palhaço queria dizer algo mais. O ex-bilionário respirou fundo, seus dedos relaxando minimamente sobre o volante, como se tentasse puxar um pouco de ar para dentro de seus pulmões depois de dias de sufocamento.
O ex-terrorista ainda estava olhando para a cidade, os olhos semicerrados, as sombras do passado pairando sobre suas feições. Bruce sabia que ele falava sério. Não era exagero, não era uma dramatização. Por um momento, o ex-bilionário não soube o que dizer.
-Você sabe, Brucie... - ele virou os olhos para o morcego, sua respiração irregular - eu sempre fui meio ruim em diferenciar as coisas na minha cabeça, eu não sei dizer onde eu termino e onde os outros de mim começam.... mas acho que isso não importa muito agora, importa? Não nessa altura do campeonato.
Bruce desviou o olhar para a estrada, amantes de dizer simplesmente:
-Importa para mim.
O louco ficou quieto por um momento, e então, ele sorriu.
-Eu sei.
Foi uma confissão silenciosa. Mas então o hospital apareceu no campo de visão .E o momento se dissipou. O palhaço soltou um suspiro cansado e murmurou:
-Acho que vou ter que cancelar as rosquinhas, né?
Notes:
Eu posto na próxima semana se nada acontecer, obrigado mais uma vez. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 29: The Gotham We Have (Parte 29)
Notes:
Mais um capítulo saindo do forno, um pouco atrasado, mas as coisas andam caóticas :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O hospital estava inquieto. Não era o tipo de inquietação barulhenta, onde vozes se erguiam e passos ecoavam pelos corredores. Era um silêncio tenso, carregado de olhares de esguelha, sussurros abafados e mãos hesitantes que evitavam qualquer contato desnecessário. Porque Jack Wayne estava ali. E porque o Batman estava ali. Duas presenças que, sozinhas, já causariam comoção suficiente para fazer qualquer um repensar suas escolhas de vida. Mas juntas…A situação parecia um pesadelo logístico para a administração do hospital.
Bruce não se importava. Ele permaneceu ao lado do centro cirúrgico, os braços cruzados, sua capa cobrindo parte do uniforme enquanto sua postura rígida mantinha qualquer um a uma distância segura. Ninguém queria ser a pessoa que tentaria pedir que o Batman esperasse em outro lugar.
Os olhares curiosos eram inevitáveis. Enfermeiros cochichavam, médicos evitavam contato visual, e até os policiais que acompanhavam o caso de Andy que foram para o hospital a pedido de Chuck pareciam desconfortáveis. Mas Bruce não se mexia. Ele não falou com ninguém. Ele apenas esperava. A cirurgia do ex-terrorista já estava durando tempo demais.
O ex-bilionário trincou o maxilar, sentindo a impaciência se misturar com a frustração e a raiva que ainda queimava sob sua pele. Ele deveria tê-lo encontrado antes. Ele deveria ter sido mais rápido. A raiva não mudaria nada. Não o ajudaria agora. Mas, droga, ele queria quebrar alguma coisa.
O som de passos chamou sua atenção. Ele não precisou erguer os olhos para saber quem era. Jimmy Gordon. O jovem policial observava de braços cruzados, encostado em uma parede do corredor, enquanto o Batman permanecia imóvel ao lado da porta do quarto.
A presença do morcego já era intimidadora por si só. Mas o que realmente incomodava Jimmy era o motivo pelo qual ele estava ali. Jimmy nunca se importou com teorias conspiratórias sobre quem estava sob o capuz, mas naquele momento, enquanto via a postura rígida do Cavaleiro das Trevas, algo dentro dele se torcia. Porque tudo aquilo... toda aquela obsessão, aquela presença imutável ao lado do quarto... não era apenas preocupação de vigilante. Era pessoal.
Jimmy trincou o maxilar, desviando o olhar. Ele não queria mexer nesse vespeiro.
-Você realmente vai ficar parado aí o tempo todo? - murmurou Jimmy depois de um tempo, quase sem esperar uma resposta.
Batman permaneceu em silêncio como esperado e Jimmy soltou um suspiro irritado, passando a mão pelo rosto. Esse trabalho era uma merda total.
-Eu sei que você está me ouvindo - continuou o filho do ex-comissário - não precisa agir como um maldito fantasma.
Bruce finalmente se moveu apenas um leve virar de cabeça, mas o suficiente para que seu olhar caísse sobre Jimmy.
-Então pare de falar besteira.
O policial bufou, cruzando os braços mais firmemente. Ele sentia um incômodo profundo rastejando sob sua pele. Ele não queria estar ali.
Jimmy se lembrava das histórias. Histórias que os policiais veteranos contavam sobre o tempo em que Gotham pertencia ao caos, quando o Coringa não era apenas um nome, mas uma força da natureza que deixava rastros de destruição por onde passava. Histórias sobre pessoas que nunca voltaram para casa. Sobre policiais que nunca foram encontrados. E agora ele estava aqui, olhando para a porta do centro cirúrgico onde ele estava sendo operado. E o Batman estava bem ali.
Jimmy olhou para os pés. Ele não sabia por que tentava conversar. Talvez porque o silêncio estivesse deixando ele inquieto. Sabia que a maioria dos oficiais evitava o Coringa como a praga. Sabia que, quando ele passava pelo departamento, os olhares se desviavam. Nenhum policial gostava da ideia de trabalhar com ele e, honestamente? Pelo amor de Deus, como Bruce Wayne , o homem que já foi o playboy mais conhecido de Gotham, casou com ele?
O Coringa era sinistro. As pessoas evitavam olhar para ele, evitavam falar com ele, evitavam até mesmo ficar no mesmo ambiente que ele por tempo demais. Ele nunca almoçava com os outros policiais. Nunca se juntava às conversas no café. O problema era o tipo de presença que ele tinha. Uma energia ruim pesada como o inferno. A forma como ele falava. Como olhava para as pessoas. Como sabia coisas sobre elas que nunca deveria saber. Ele notava tudo.
Jimmy se lembrava de como o estômago dele embrulhou quando, em um dia aleatório, o Coringa simplesmente parou ao lado dele e disse que devia visitar seu pai mais vezes com aquela expressão desdenhosa de sempre
Jimmy lembra de ficar parado, olhando para ele absorvendo aquela presença ruim até ser demais. Havia algo podre na energia dele. Era algo carregado.
Ele via isso nos olhos afiados demais, na postura relaxada e predatória ao mesmo tempo. No jeito como os dedos dele tamborilavam contra a mesa de uma forma quase compulsiva. Ou talvez fosse o tique irritante de passar a língua pelos lábios.Talvez fosse a forma como ele olhava para as pessoas. A forma como ele oscilava entre infantilmente irritante, desdenhosamente cruel e perigosamente sério.
Talvez fosse o simples fato de que, toda vez que ele parecia quieto demais, Jimmy sabia que era um péssimo sinal. Porque o Coringa sempre ria, zombava, fazia piadas estúpidas e provocava as pessoas. Ele era uma piada ruim, um palhaço com um senso de humor mórbido, até o momento em que simplesmente não era mais. Até o momento em que só se parecia com um cara esquisto com sérios problemas mentais.
Jimmy ainda lembrava da primeira vez que o viu realmente parado.O palhaço estava sentado sozinho, mexendo em um pequeno isqueiro de metal entre os dedos, acendendo a chama compulsivamente. Sem sorrir. Sem falar. Apenas olhando para o fogo aparecendo e sumindo como se o mundo ao seu redor não existisse. A sala inteira ficou mais silenciosa. Ninguém queria incomodá-lo. Porque ninguém sabia o que aconteceria se o fizessem. E Jimmy odiava admitir, mas ele também não queria descobrir.
O filho do ex-comissário coçou a nuca, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta, saindo de seus devaneios. Ele olhou de relance para o Batman, parado ali, rígido, quase fundido às sombras do hospital.
Ele apenas ficou quieto, observando enquanto a porta do centro cirúrgico se abria e um dos médicos saía. Batman se moveu imediatamente, sua figura imponente deixando um rastro pesado no ar.
-O quadro dele ainda é instável, mas estamos movendo ele para o quarto agora - começou o médico - as balas foram removidas, mas houve muita perda de sangue, e os ossos quebrados precisarão de acompanhamento.
Batman apenas assentiu em silêncio. Ele não parecia menos tenso. O médico terminava de dar as informações ao Batman, sem nunca realmente olhar para o Batman. O homem parecia nervoso, sua prancheta tremendo levemente em suas mãos. O morcego tinha esse efeito sobre as pessoas. Era uma lenda viva, uma lenda que reapareceu dos escombros de sua aposentadoria.
-Os sedativos ainda estão no sistema dele, então ele deve demorar um pouco para acordar, mas ele está fora de perigo imediato.
Batman apenas assentiu sem desviar o olhar e o médico limpou a garganta, claramente desconfortável.
-Estamos movendo ele para um quarto, mas, ah… - o médico hesitou, como se escolhesse as palavras com cuidado - dadas as… circunstâncias… estamos preparando uma ala isolada.
É claro que estavam. Porque ninguém queria que o Coringa ficasse no meio dos outros pacientes. O silêncio do Batman era sufocante. Ele apenas inclinou levemente a cabeça.
-Onde?
-Terceiro andar, quarto 307.
Batman se virou sem uma palavra e seus olhos se fixaram em Jimmy. O policial sentiu todo o ar ser drenado de seus pulmões. Não era algo agradável ter o Batman olhando diretamente para você.
-Onde está o Matthew ? Vocês o trouxeram para cá a mando do Chuck - entoou o morcego com um tom neutro.
-Ele está em observação, amanhã mesmo, se não hoje, vai ser movido para interrogatório e depois para Blackgate - respondeu Jimmy tentando manter a postura profissional - o tiro pegou de raspão e a bala não ficou alojada.
Jimmy não sabia o que era pior, ser interrogado pelo Batman ou ser ignorado por ele. Porque, naquele momento, o morcego apenas deu um aceno breve de cabeça antes de se virar completamente, encerrando qualquer chance de conversa.
Bruce caminhou pelo corredor sem realmente enxergar nada à sua frente. Os sons do hospital se tornaram um ruído branco distante, um zumbido indistinto que não conseguia atravessar a muralha de sua mente. Seus passos eram pesados, sua respiração rasa.
Ele encontrou um banheiro no fim do corredor e entrou, fechando a porta atrás de si com força. Ele apoiou as mãos na pia, a cabeça baixa, e respirou fundo, tentando acalmar a tempestade dentro dele. Mas não conseguia.
Seus músculos estavam tensos como se estivessem prontos para o combate, seus punhos coçavam com o desejo de esmagar Matthew Cole contra o concreto, de fazer aquele desgraçado pagar por qualquer merda que tenha acontecido. Mas não era o momento para isso.
Seu reflexo o encarava no espelho, a sombra do capuz obscurecendo seus olhos. O Batman estava ali. Mas Bruce… Bruce queria gritar. Porra. Ele queria sentir o cheiro do suor frio misturado ao sangue na pele pálida do Coringa. Queria arrastar os dedos pelo cabelo desgrenhado, puxá-lo para perto e dizer o quanto ele era um maldito idiota por quase morrer. Ele queria segurá-lo com força. Mas ele não podia.
Ele não estava ali como Bruce Wayne. Estava ali como o Batman, e o Batman não podia comprometer sua identidade.
Bruce fechou os olhos e apertou a borda da pia com tanta força que seus dedos doeram. Ele respirou fundo, forçando-se a encontrar aquele controle frio e calculado que o manto exigia. A dor latejava dentro dele, mas ele a engoliu.
Quando abriu os olhos novamente, o Batman estava no reflexo. Ele soltou o ar devagar, endireitou-se e ajustou a capa antes de sair do banheiro sem hesitação. Havia muito a ser feito, ele tinha deixado Jason com Chuck, ele ainda tinha que encontrar Samuel Rise, já que aparentemente, a polícia não teve sucesso.
Ele tinha que fazer tudo isso. Ele, o Batman, não ele Bruce. No entanto, o moreno só queria ser Bruce agora. Ele apenas queria ficar ao lado do Coringa. Ele sabia que provavelmente havia várias mensagens não respondidas de Richard Grayson, o moreno culpa seu desespero por aceitar puxar o cara para isso. Dick era apenas um aspirante a jornalista investigativo que estava mordendo mais do que poderia mastigar. Todavia, ele não era problema agora.
Bruce não sabia como se orientar nessa nuvem de problemas a sua frente, ele não queria lidar com tudo isso. Ele só queria ficar ao lado do Coringa e levá-lo para casa, depois ele pensa no resto. Depois ele pensa em como ajudar Jason, em como ajudar a polícia no caso do Contador de histórias. Depois Bruce manda um SMS de desculpas para Rachel e vai visitar Alfred. Depois. Depois, não agora.
Depois de alguns momentos o moreno saiu do banheiro, seus pés levaram o moreno para onde ele sabia que queria ir, ele precisava disso. Ele precisava.
O cavaleiro das trevas entrou no quarto do ex-terrorista sem que ninguém tentasse impedi-lo. Apenas o som do monitor cardíaco preenchia o espaço. O palhaço parecia meio inofensivo ali, e inofensivo e Coringa não cabiam na mesma frase. O loiro estava cercado por lençóis brancos, fios e curativos. Seu rosto estava pálido, os cabelos bagunçados contra o travesseiro. Os dedos quebrados estavam enfaixados, e a perna estava imobilizada.
Bruce ficou ao lado da cama por um momento, apenas observando. O ex-terrorista respirava devagar, de forma constante. Isso deveria aliviar a tensão em seu peito. Mas não aliviava.
Bruce puxou uma cadeira e sentou ao lado dele. Ele não segurou sua mão, porque o Batman não faria isso. Mas Bruce queria. Porra, Bruce queria para caralho. Ele passou a mão pelo rosto, os dedos pressionando o nariz como se pudesse aliviar o cansaço acumulado.
-Você é um idiota… - murmurou o morcego, a voz baixa, áspera.
O Coringa não respondeu. Ele apenas respirava, preso em algum lugar na inconsciência. Bruce queria que ele acordasse, queria ouvir sua voz, irritante e cortante, zombando dele mesmo na porra de um leito de hospital. Queria ver aquele sorriso torto, mesmo que fosse só para provocá-lo. Porque o silêncio nunca combinou com ele.
Bruce sabia disso. Era como se o universo tivesse se dobrado em algo antinatural, algo errado, só porque o ex-terrorista estava quieto. Porque o Coringa não deveria estar quieto. Bruce odiava isso.
Ele ficou ali, sentado ao lado da cama, observando os fios conectados ao corpo magro do palhaço. O bip ritmado do monitor cardíaco era o único som que preenchia o quarto. Ele queria segurá-lo. Mas não podia, porque o Batman não faria isso. Então ele apenas ficou ali.
O tempo passou, mas o morcego não se moveu. Ele nem percebeu quando os minutos se tornaram horas, quando a luz do hospital assumiu aquele tom morto e artificial que deixava tudo com um brilho estranho.
-Você está parecendo ainda mais dramático do que o normal - a voz do Coringa soou tirando o moreno de seus devaneios, era baixa, arrastada - não fique com essa cara emburrada, faz mal para você.
Bruce ergueu os olhos encontrando os do Coringa, que estavam meio abertos, ainda pesados de sono e anestesia. Mas havia um pequeno brilho zombeteiro neles. Bruce trincou o maxilar e ficou em silêncio por um momento antes de entoar:
-Você devia estar dormindo.
O Coringa soltou um pequeno som, algo entre um suspiro e uma risada fraca. Seus olhos semicerrados tinham um brilho distante, entorpecido pelos sedativos. Bruce não disse mais nada, ele apenas o observou por um longo momento, absorvendo os pequenos detalhes. O jeito como seu peito subia e descia devagar, como seus dedos enfaixados tremiam sutilmente contra os lençóis, como seus lábios rachados se curvavam em um sorriso torto. Aquele brilho estava lá. Aquela faísca insuportável de zombaria e algo mais… algo que Bruce nunca soube nomear.
-E você deveria estar menos…assim - o palhaço murmurou, antes de passar a língua no canto dos lábios por um momento - sabe, esse seu negócio de sentar ao lado da minha cama com essa cara de viúvo traumatizado… não é muito saudável.
Bruce não respondeu. Ele não tinha energia para um jogo de palavras agora. Ele apenas manteve os olhos nele, sentindo aquele aperto no peito crescer, a pressão na garganta se tornar insuportável. O ex-terrorista piscou de novo, a respiração irregular, e tentou mexer a mão, mas os curativos e a dor o impediram.
Bruce viu o pequeno espasmo de frustração passar pelo rosto do outro. O moreno apertou os punhos.
-Você é um idiota.
O Coringa riu, um som curto e entrecortado, antes de lamber o canto dos lábios.
-A gente já estabeleceu isso, querido.
Bruce odiava isso. Odiava o jeito como o ex-terrorista falava da própria dor como se fosse uma piada ruim. Odiava o jeito como ele jogava tudo para debaixo do tapete.
-Você precisa descansar - suspirou o morcego - tenta dormir.
O ex-terrorista suspirou, os olhos voltando a se fechar lentamente antes de entoar:
-E você precisa relaxar, mas eu duvido que algum de nós vá fazer o que o outro está mandando…
Bruce não queria discutir. Não agora. Seu olhar deslizou lentamente pelo rosto do outro, absorvendo cada detalhe. O suor frio misturado ao cheiro metálico de sangue, os cabelos grudados na testa, a respiração ainda pesada.
Ele queria levá-lo para casa. Queria afundar o rosto na curva de sua nuca e fingir que os últimos dias não aconteceram. Fingir que Jay nunca sumiu. Que Bruce nunca precisou revirar Gotham inteira atrás dele, seguindo rastros onde cada pista o levando mais fundo em um inferno particular. Ele queria fechar os olhos e dormir ao lado dele. Mas ele não podia. Porque ali, naquele hospital, ele ainda era o Batman .
Momentos depois, Bruce se levantou da cadeira sem dizer nada. O Coringa acompanhou o movimento com os olhos pesados, observando enquanto o morcego começava a andar pelo quarto.
Era um hábito. Um instinto. Bruce precisava inspecionar, precisava ter certeza de que aquele lugar era seguro. Ele passou a mão ao longo da parede, testando a firmeza do material, checando cada canto com olhar afiado.
O ex- terrorista soltou um suspiro baixo antes de dizer:
-Você está esperando alguém sair do teto?
Bruce não respondeu, ele apenas continuou. Olhou para a janela. Inspecionou o armário no canto. Avaliou as câmeras. Havia uma no canto do teto, mas desligada. Isso foi o bastante.
O morcego puxou um pequeno dispositivo do cinto e o fixou na tranca da porta. Ele ouviu um clique baixo. Estava travada. E, pela primeira vez desde que entrou no hospital, ele se permitiu respirar. O palhaço o observava em silêncio, um pequeno brilho nos olhos cansados. Bruce se virou para ele devagar, os ombros ainda rígidos, ainda carregando aquela tempestade silenciosa. Mas então ele ergueu as mãos e retirou a máscara.
O Coringa viu o momento exato em que tudo mudou. Os olhos de Bruce, antes endurecidos pelo manto, suavizaram. O peso do Batman ainda estava ali, mas, por baixo dele, havia algo mais humano. O ex-bilionário cruzou a pequena distância entre eles e sentou na beirada da cama, finalmente perto o bastante para tocar.
Eles não disseram nada, palavras não eram precisas. Bruce apenas estendeu a mão e segurou a do outro, com cuidado, com um toque que não combinava com o jeito bruto do Batman. O louco piscou devagar quando sentiu os lábios quentes pressionarem contra as bandagens que cobriam seus dedos destruídos. Foi um toque delicado, intencional. Bruce passou os lábios sobre a gaze branca, um gesto tão silencioso quanto tudo que não foi dito entre eles naquela noite.
Bruce ergueu o olhar, seus dedos ainda envoltos na mão ferida do outro. Ele apertou os olhos por um segundo, sua mandíbula travando. Ele queria dizer algo. Queria dizer “ você é um idiota inconsequente” . Mas Bruce apenas segurou a mão do ex-terrorista. Ele apenas fechou os olhos e se inclinou um pouco mais, pressionando um beijo contra os dedos enfaixados do Coringa mais uma vez.
Por um momento, eles ficaram ali. Apenas respirando. Apenas existindo no mesmo espaço, sem precisar de palavras ou provocações. Bruce continuava ali, sentado na beira da cama, segurando a mão do palhaço entre as suas. Seus polegares deslizavam levemente sobre a gaze branca. Bruce queria levá-lo para casa. Mas, por enquanto, ele ficaria ali.
-Você está muito quieto - murmurou o palhaço, sua voz arrastada pelo sono e pelos analgésicos.
Bruce não respondeu. Ele apenas passou os dedos pelo dorso da mão enfaixada do outro, o polegar deslizando em círculos lentos. O silêncio se prolongou entre eles, carregado de algo denso e pesado. Algo que o Coringa poderia ter cortado com uma lâmina cega se quisesse. Mas não quis. Não dessa vez. Ele sabia que não deveria dizer nada, mas quando foi que ele já seguiu esse tipo de regra?
-Se eu soubesse que levar um tiro ia te deixar tão carinhoso assim, teria me deixado acertar antes.
Bruce parou. Sua mão ainda segurava a do palhaço, mas o movimento suave de seus polegares cessou. Ele ergueu os olhos devagar, sua expressão indecifrável, mas algo ali… algo no silêncio que seguiu foi o bastante para que o palhaço soubesse.
Antes que pudesse abrir a boca para falar qualquer outra coisa, Bruce apertou sua mão um pouco forte demais, fazendo-a estalar e soltar um barulho levemente doentio. Bruce não respondeu. Ele só manteve o aperto, os olhos queimando em algo que o palhaço não conseguia nomear. Ele queria ver raiva, queria ver frustração, queria ver qualquer coisa que lhe desse um ponto de apoio. Mas não era isso que estava nos olhos do morcego.
Bruce estava cansado. Não fisicamente. Não da maneira óbvia, exaustiva, de alguém que não dorme há dias. Era um cansaço diferente, e o palhaço conhecia esse tipo de cansaço. O tipo que vinha de algo que se estendia por tempo demais.
-Não diga isso de novo - a voz do ex-bilionário saiu baixa, mas carregada, afiada como uma lâmina bem polida. Não havia raiva na sua voz, no entanto, mas Bruce não estava brincando. Por um segundo, o ex-terrorista quis soltar outra provocação. Dizer que era engraçado como, depois de tudo, o morcego ainda queria acreditar que algumas coisas poderiam ser controladas. Mas, naquele momento, ele estava cansado também.
Então, ao invés de uma piada, ele apenas suspirou. E Bruce soltou sua mão.
O palhaço sentiu os dedos latejarem levemente, um calor incômodo subindo pelo braço. Ele observou Bruce abaixar a cabeça por um momento, esfregando o rosto com a outra mão antes de finalmente soltar um longo suspiro.
-Você precisa parar com isso.
-Com o quê? - perguntou o louco.
Bruce ergueu os olhos para ele, e o Coringa pôde ver. O peso. A frustração. O medo.
-De agir como se a sua vida não importasse - Bruce murmurou, seu tom mais baixo e frio do que deveria ser.
-Ah, então é isso? - a voz do Coringa saiu arrastada, os cantos da boca se puxando em um sorriso torto.
Bruce passou a mão pelo rosto de novo, desviando o olhar.
-Eu só quero que você pare de se machucar.
-Isso nunca vai acontecer - disse o ex-terrorista simplesmente, como se fosse um simples fato, como quem diz a cor do céu.
Bruce trincou os dentes, frustrado antes de encarar o outro homem e entoar:
-Então pelo menos pare de me machucar no processo.
O silêncio que se seguiu foi longo demais. E pela primeira vez em muito tempo, o Coringa não tinha uma resposta na ponta da língua. Ele apenas olhou para Bruce. Apenas respirou e fechou os olhos.
O moreno o observou por um momento, os punhos fechados, a mandíbula travada. Ele queria dizer algo. Queria dizer que estava cansado de vê-lo se machucar. Que queria segurá-lo com força, prendê-lo, protegê-lo de tudo, inclusive dele mesmo. Mas o ex-bilionário não disse nada.
O moreno apenas se inclinou, pressionando um beijo leve contra a testa do palhaço. Foi rápido, mas Bruce não se afastou de imediato. Ele permaneceu ali, com os lábios roçando contra a pele quente e febril, sentindo sua respiração pesar contra a do palhaço. Ele queria falar. Queria dizer que não dormiu. Que não comeu direito. Que Gotham poderia ter queimado que ele ainda estaria lá, procurando por Jay, revirando cada pista estúpida, cada resquício de rastro que ele pudesse encontrar. Mas ele não disse nada.
O silêncio entre eles era pesado. Não desconfortável. Apenas… intenso. Como tudo entre eles sempre foi. Como tudo entre eles sempre seria. O ex-terrorista não disse nada também, o que era raro, mas Bruce sabia que não era porque ele não tinha nada para dizer. Era porque ele sabia que nada do que dissesse agora faria diferença.
Bruce sentiu os dedos enfaixados do palhaço se moverem contra os lençóis, como se tentasse alcançá-lo. O movimento era fraco, hesitante. Mas Bruce percebeu. Ele se afastou apenas o suficiente para olhar para ele. O palhaço estava cansado. Os sedativos ainda pesavam em seu corpo, sua expressão oscilava, mas seus olhos… seus olhos eram nítidos. E estavam fixos nele.
Bruce deslizou uma das mãos para o rosto do palhaço, afastando os fios loiros bagunçados que grudavam na pele suada. Ele passou os dedos com cuidado pela lateral do rosto do outro, o toque lento, intencional.
O ex-bilionário sentia a exaustão puxar seus músculos para baixo, seus olhos ardiam de cansaço, e sua mandíbula doía de tanto que ele a apertava. Bruce sabia que deveria descansar. Que deveria sair dali, respirar um pouco de ar que não cheirava a antisséptico e sangue seco. Mas ele não podia, ele não queria.
A máscara do Batman ainda estava ao seu lado, pousada sobre o lençol branco como uma sombra de algo que não pertencia àquele ambiente. Ele olhou para o Coringa de novo. O palhaço ainda o observava, olhos semicerrados. Havia uma quietude incomum nele, como se a própria dor tivesse decidido descansar por um instante. Bruce se aproximou mais, a respiração pesada ecoando em seu peito, mas ele manteve a compostura. Ainda Batman. Ainda vigilante. Ainda distante.
-Desculpe, eu sei que não é o momento para essa conversa, você precisa descansar - Bruce murmurou, a voz baixa, quase sufocada pela tensão que carregava há dias. Não havia julgamento ali, apenas a urgência crua de quem tenta salvar alguém, mesmo quando o mundo diz que é impossível.
-Não pode me culpar por ter tentado fugir de lá - falou o loiro depois de um momento, lambendo o canto dos lábios.
-Eu teria encontrado você, não t-
O ex-terrorista interrompeu o moreno no meio da frase com um tom um pouco sério demais:
-Eu não preciso ser salvo por você, eu sei me virar, eu sei fugir, porra, não preciso que você fique agindo como se eu fosse incapaz de resolver minhas próprias merdas.
Bruce permaneceu em silêncio, absorvendo cada palavra, cada nuance na voz do Coringa. Ele sentiu a rigidez nas palavras, a tensão que quase transbordava, mas não se moveu. Não precisava responder com palavras agora. Bruce sabia que, por trás das defesas verbais e do tom áspero, havia algo mais.
Bruce fechou os olhos por um segundo, apertando a mandíbula, tentando filtrar a frustração que fervilhava sob sua pele. Ele não podia permitir que o Coringa o afastasse. Não agora. Não depois do que ele já havia sacrificado.
-Não se trata de você não saber se virar - Bruce murmurou, a voz baixa, mas carregada de uma determinação quieta e implacável.
O ex-bilionário apenas apertou a mão do Coringa com uma suavidade diferente daquela firmeza que o caracterizava, um gesto pequeno, quase imperceptível, mas carregado de significado. Foi um lembrete silencioso: Eu estou aqui, quer você precise de mim ou não.
O Coringa encarou a mão de Bruce por um instante, a expressão flutuando entre ceticismo e algo mais tênue. Talvez uma tênue centelha de aceitação. Bruce permaneceu imóvel por alguns segundos, sentindo a pulsação irregular do palhaço contra sua pele. O silêncio era pesado, carregado com todas as palavras não ditas, com cada cicatriz invisível que ambos carregavam. O monitor cardíaco marcava o tempo como um lembrete cruel, constante, inexorável. Bruce podia ouvir sua própria respiração, mais pesada agora, cada batida do coração ecoando em seus ouvidos.
O Coringa não quebrou o olhar. Bruce sentiu o peso daquela observação, como se o palhaço estivesse tentando decifrar cada fragmento da alma do moreno. Era exaustivo, mas Bruce não desviou o olhar. Ele sabia que não podia.
Depois de um tempo que Bruce juraria ter durado uma eternidade, o Coringa sussurrou, com a voz ainda embotada pela anestesia:
-Não fique com essa cara feia Brucie, você não vai se livrar de mim tão facilmente, não precisa dessas demonstrações destrutivas de amor, eu sei que você me ama, só espero que a nossa casa não esteja cheia de garrafas de Whisky e louça suja.
O silêncio que se seguiu foi denso. O palhaço sorriu.
-Ah, não vai dizer dessa vez?
-Dizer o que ? - perguntou o morcego.
-Que me ama.
Bruce permaneceu imóvel por um momento antes de deslizar a mão do rosto dele para segurar sua mão enfaixada novamente. Ele a ergueu, pressionando mais um beijo contra as bandagens brancas. Então, Bruce finalmente respondeu.
-Eu te amo.
O Coringa sorriu. Não foi um daqueles sorrisos amplos e desdenhosos, cheios de sarcasmo e zombaria. Foi algo menor. Algo mais silencioso, mais real. Seus olhos piscaram devagar, pesados pelo sono e pelos analgésicos, mas ainda afiados o suficiente para absorver cada detalhe daquele momento.
Bruce o observava com a paciência de quem tinha esperado por esse instante há tempo demais. O ex-bilionário ainda segurava sua mão, os dedos fortes, mas cuidadosos, envolvendo a pele enfaixada como se pudesse protegê-la de tudo.
-É, eu sei - murmurou o palhaço, sua voz arrastada pelo cansaço.
Bruce bufou em um quase sorriso antes de dizer:
-Claro que sabe.
-Mas é sempre bom ouvir - o loiro fechou os olhos por um instante antes de reabri-los lentamente, sua boca ainda curvada naquele pequeno sorriso - já que nós dois sabemos que você nunca achou que ia dizer isso pra mim.
-Você também nunca achou que ia ouvir isso de mim - retrucou o morcego.
-Eu sabia que era uma questão de tempo - zombou o louco passando a língua nos lábios - foi amor à primeira vista, éramos um desastre apenas esperando para acontecer.
Bruce bufou, ele balançou a cabeça, exalando devagar. Amor à primeira vista? Com certeza, não foi isso, o morcego já havia deixado claro várias vezes. O Coringa riu baixo, um som rouco, misturado com cansaço, mas ainda carregado daquele tom provocativo que era tão intrínseco a ele.
-Ah, vamos lá, Brucie… - murmurou o ex-terrorista, a voz ainda lenta, arrastada pelos sedativos - eu sou irresistível pra caralho.
Bruce ergueu uma sobrancelha, sem paciência para aquele tipo de conversa. Ele sabia que o palhaço estava zombando.
-Irresistível?
-Totalmente, querido - o sorriso do palhaço se alargou um pouco, mas seus olhos continuavam pesados - mas não fique bolado, o seu jeito de demonstrar afeto evoluiu bastante.
-Já tivemos essa conversa, eu queria te matar, eu teria se pudesse.
-Mas não matou.
Bruce apertou a mandíbula. Sim, isso era verdade. Ele teve tantas oportunidades para acabar com ele, para dar fim àquela loucura de uma vez por todas. Mas ele nunca o fez.
-Eu não sei quando exatamente isso mudou - admitiu Bruce, sua voz um pouco mais baixa, como se estivesse pensando alto. Bruce desviou o olhar por um momento, seus olhos fixando-se na parede à frente. Ele não gostava de falar sobre isso, sobre a bagunça que seus sentimentos haviam se tornado.
Ele sabia que o Coringa era perigoso. Sempre soube. Mas, de alguma forma, de algum jeito que ele nunca conseguiu entender completamente, o que começou como ódio puro e brutal lentamente se transformou em algo mais. Foi um longo processo. Muito longo. E Bruce só se deu conta de que havia algo diferente no ano passado, quando os dois ficaram presos juntos naquele maldito cativeiro.
O ex-bilionário se lembrava da dor excruciante de não saber se ele ou o palhaço iriam sair vivos de lá. Do desespero esmagador de ver o loiro sangrando, de sentir sua respiração vacilar, de perceber que não podia fazer nada. Foi naquele momento que ele soube. Mas, com certeza, não foi amor à primeira vista.
Bruce soltou um suspiro cansado, fechando os olhos por um instante.
-Você nunca sabe quando parar, né?
O ex-terrorista deu um sorriso preguiçoso antes de entoar:
-Você gosta disso.
Bruce sentiu os músculos relaxarem um pouco, seu corpo cansado cedendo ao desgaste dos últimos dias. Ele deslizou os dedos pelo dorso da mão enfaixada do outro, seus movimentos lentos e cuidadosos.
O Coringa o observou por um momento antes de murmurar:
-Você devia dormir.
-Você devia descansar.
-Eu estou deitado em uma cama de hospital, amarrado a um monte de fios e cheio de remédios - falou o palhaço antes de lamber o canto dos lábios - bem, eu acho que isso conta como descanso.
Bruce não respondeu. Ele só olhou para ele, seu olhar sério e exausto.
-Eu só vou dormir quando eu te levar pra casa - disse o ex-bilionário, sua voz baixa, carregada de uma convicção inflexível.
O silêncio que se seguiu foi diferente. Não era incômodo. Não era tenso. Era apenas… denso. Cheio de coisas que não precisavam ser ditas. O ex-terrorista apenas observou o moreno. Observou o jeito que ele ainda segurava sua mão, os dedos deslizando contra as bandagens com cuidado absurdo, como se algo dentro dele precisasse sentir aquela presença, como se fosse uma âncora.
O ex-bilionário sempre foi assim. Intenso. Superprotetor até a última fibra de seu ser. O Coringa sabia disso. Ele sabia que Bruce era do tipo que tentava carregar o mundo nas costas. Que tentava controlar o incontrolável. Que, mesmo sabendo que o palhaço era perfeitamente capaz de se proteger sozinho, ele ainda se consumia com a ideia de que algo pudesse acontecer.
O ex-terrorista piscou devagar, os olhos pesados pelo cansaço e pelos remédios, mas ainda afiados o suficiente para absorver cada pequeno detalhe. Bruce estava exausto. O peso dos últimos dias estava impresso em cada músculo tenso, em cada vinco ao redor dos olhos, em cada pequeno gesto carregado de frustração reprimida. Ele estava ali. Ao lado dele. Mas, ao mesmo tempo, parecia que ainda estava lutando contra algo. Algo que ele não podia socar até se desfazer.
O Coringa lambeu o canto dos lábios, um pequeno sorriso brincando em sua boca antes de entoar:
-Você realmente sabe como conquistar uma garota, hein ?
Bruce não respondeu. Ele apenas segurou sua mão com um pouco mais de firmeza. O palhaço sentia a presença do morcego segurando sua mão como um bálsamo, era um gesto pequeno, mas para ele não.
O ex-terrorista viveu sua vida inteira dentro de uma guerra interna e externa. Ele aprendeu desde muito cedo que ninguém viria salvá-lo, que ninguém se importaria se ele caísse, que ele era apenas mais um pedaço de carne tentando sobreviver em um mundo podre. Ele sempre lutou sozinho e mesmo quando achou que tinha encontrado algo diferente, era apenas mentira. Mas agora havia algo real, havia Bruce.
O Coringa observava o morcego por debaixo das pálpebras pesadas, seu olhar deslizando pelos traços rígidos do rosto do ex-bilionário, pela forma como sua mandíbula se mantinha travada, como seus ombros ainda estavam tensos, como se ele estivesse segurando o próprio corpo no lugar só por pura força de vontade.
Bruce nunca soube como existir sem carregar um peso. Ele segurava tudo, cada fracasso, cada dor, cada medo, como se fosse sua maldita responsabilidade impedir que o mundo desmoronasse. E agora, nesse exato momento, Bruce estava cansado. Mas ele não se permitiria descansar. Não enquanto não o levasse para casa. Não enquanto não soubesse que ele estava seguro.
O ex-terrorista umedeceu os lábios, sentindo a própria respiração mais lenta, mais arrastada. Ele estava afundando de novo, no efeito da anestesia, nos analgésicos que entorpeciam seu corpo. Mas sua mente… sua mente ainda estava ali. Ainda registrava cada pequeno detalhe do jeito que Bruce segurava sua mão, como se fosse algo precioso demais para se perder.
Aquela era a diferença. Ninguém nunca segurou ele assim. Ele sempre lutou sozinho, sempre teve que se levantar depois de cada porrada, depois de cada queda, porque não existia ninguém para segurá-lo. Nunca houve ninguém para sussurrar que o levaria para casa, não de verdade.
Mas então veio Bruce. Bruce era raiva, calor e intensidade. Bruce era um furacão de proteção cega. Bruce era alguém que se recusava a deixá-lo para trás, alguém que lutaria por ele independente das desvantagens, alguém que aprendeu a amar tudo que havia de mais confuso e fragmentado nele, e agora… agora ele estava ali, segurando sua mão com uma delicadeza que ninguém nunca teve com ele antes.
A paz era estranha em sua pele, porque o loiro nunca soube o que era não estar lutando. Nunca soube o que era ter alguém ali, alguém que se recusava a deixá-lo para trás. Era um sentimento estranho. Um sentimento que ele não sabia como processar.
Bruce observava o palhaço sob a luz fria e estéril do hospital. O bip constante do monitor cardíaco preenchia o silêncio entre eles, um lembrete de que ele ainda estava ali, respirando, vivo. Mas algo dentro do ex-bilionário ainda queimava. A tensão em seus músculos não cedia, a pressão em seu peito não diminuía. Ele deveria estar aliviado.
O morcego sabia lidar com a dor. Sabia como processar a raiva, como transformar o medo em ação, como usar a culpa como combustível para continuar. Droga, ele não conseguiu impedir que o palhaço se machucasse, ele chegou tarde. Ele falhou. Se o Coringa não tivesse ligado provavelmente teria morrido em algum canto.
O ex-bilionário soltou um suspiro baixo, fechando os olhos por um instante antes de olhar de volta para o Coringa. O loiro ainda estava acordado, embora seus olhos parecessem pesar a cada segundo.
O louco piscou lentamente, seus olhos oscilando entre a exaustão e algo mais profundo, algo que Bruce sempre teve medo de nomear, mas que hoje não tinha mais.
-Você realmente não vai dormir até me levar pra casa ? - a voz do palhaço soou baixa, quase rouca pelo cansaço, mas ainda carregando aquele tom provocativo que era tão dele.
Bruce apertou sua mão, sua resposta clara mesmo sem palavras.
Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas existindo naquele espaço, naquela bolha estranha.
-Você sabe que pode soltar minha mão, né? - murmurou o loiro antes de passar a língua no canto dos lábios, seus olhos estavam muito pesados - eu não vou a lugar nenhum.
Bruce não respondeu. Ele só continuou segurando. Ele queria acreditar no ex-terrorista estava dizendo. O peso dos últimos dias ainda estava sobre Bruce como uma segunda pele, algo que ele não conseguia arrancar, não importava o quanto tentasse. Ele estava exausto. Não era só físico. Não era só a dor incômoda que pressionava seus músculos, nem a ardência nos olhos pela falta de sono. Era mais profundo. Mais visceral.
Ele se lembrava das noites em claro, sentado no chão frio do apartamento, cercado por mapas, telas acesas, arquivos espalhados, café frio e garrafas vazias de uísque que ele não se lembrava de ter terminado. Ele se lembrava da frustração cortante que queimava sob sua pele, da raiva surda martelando dentro do peito, do gosto amargo de falha que se agarrava à sua garganta toda vez que mais uma pista levava a lugar nenhum.
Ele havia perdido a noção do tempo. Havia ignorado ligações, havia ignorado o trabalho, havia ignorado até Alfred e Rachel. Bruce sempre foi um estrategista, um homem com um plano. Mas dessa vez, não havia estratégia, não havia plano, não havia lógica. Só havia o desespero um absoluto, o pavor comendo seus ossos, um pavor que se agarrava ao seu peito como um parasita, a certeza cruel de que, se perdesse o Coringa agora, nunca se perdoaria.
Os olhos do loiro, semicerrados, acompanharam cada movimento das mãos de Bruce, absorvendo a força contida naquela pressão firme. Bruce não soltaria. E o palhaço sabia disso com uma certeza brutal. O bip constante do monitor cardíaco se tornou um ritmo quase hipnótico, marcando o tempo com precisão impiedosa.
O ex-terrorista murmurou, sua voz baixa, tingida por um cansaço que parecia querer puxá-lo para o abismo:
-Ainda quero minhas rosquinhas.
-Dorme - suspirou o morcego - quando você acordar eu posso pensar no seu caso.
Notes:
Obrigado a todos que estão acompanhando até aqui.
Chapter 30: The Gotham We Have (Parte 30)
Notes:
Ok, eu sei que estou atrasado, mas demorei um tempo para conseguir o tom que eu queria para esse capítulo, desculpem erros de digitação, estou em uma rotina maluca. Eu sei que vocês estão esperando um Hot kkkkk, bem, isso vem em algum momento. Por enquanto eu quero manter tudo nessa atmosfera, afinal, não acho de bom tom colocar conteúdo sexual nesse momento da história em que estamos, então esperem que isso logo vem ! (eu sei que minhas histórias não tem muito esse teor, mas é porque gosto mais de diálogos e dilemas emocionais, inclusive as vezes me perco nas minhas próprias filosofias.). Enfim, até a próxima semana :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O apartamento estava mergulhado em uma penumbra confortável, iluminado apenas pela luz fraca que se infiltrava através das cortinas fechadas. Bruce estava sentado na beirada da cama arrumando alguns travesseiros para o palhaço que reclamava de ser tratado como um inválido. A respiração do Coringa era tranquila agora, diferente das últimas noites no hospital. Havia sido um inferno.
Depois daquela noite, quando o ex-terrorista finalmente adormeceu, Bruce não havia saído do hospital. Mesmo quando os médicos garantiram que ele estava estável, mesmo quando Alfred ligou e insistiu que ele voltasse para casa e descansasse. Ele não conseguiu.
Os dias seguintes foram um ciclo exaustivo de rotina hospitalar e burocracia. O Coringa odiava ficar ali, isso era óbvio. Ele resmungava sobre o cheiro de desinfetante, reclamava das enfermeiras que se moviam rápido demais e zombava dos médicos que tinham medo de se aproximar dele. E Bruce… Bruce estava tão cansado.
Ele teve que desaparecer como Batman em algum momento ainda no primeiro dia. Porque ele precisava estar ali. Ele precisava ser Bruce Wayne. Pela primeira vez em tanto tempo, ele precisou abaixar as armas, deixar a armadura de lado, e simplesmente ficar ao lado do ex-terrorista com seu rosto de carne. E agora, finalmente, os dois estavam de volta ao apartamento.
Bruce se levantou devagar, soltando um suspiro pesado. Ele se aproximou do outro lado da cama, onde o Coringa estava deitado, a cabeça afundada no travesseiro, a respiração lenta e profunda. Os fios loiros estavam espalhados sobre o tecido branco, alguns grudados na pele devido ao calor.
O palhaço tinha dormido a maior parte do tempo desde que voltaram para casa. Os remédios, a exaustão, a recuperação… tudo o puxava para a inconsciência. Bruce estava aliviado por isso. Porque o apartamento estava uma merda. Ele deveria agradecer ao Grayson, que de alguma forma, veio dar comida para Bud nesse tempo que Bruce esteve com o Coringa no hospital.
Bruce sabia que precisava colocar as muitas garrafas de bebida vazias fora, que precisava limpar o chão do apartamento. Porra, ele também precisava comer alguma coisa descente.. É como se pela primeira vez em dias ele olhasse para a bagunça que esteve sua vida nos últimos dias. Ele estava tão cansado. Ele passou a mão pelo rosto, sentindo o peso dos últimos dias pressionando suas têmporas. Ele precisava descansar. Alfred já tinha avisado. Mas Bruce ignorou o aviso.
Em algum momento, quando o moreno ainda parecia perdido em seus pensamentos, o palhaço se mexeu. Bruce ergueu os olhos imediatamente. O ex-terrorista piscou algumas vezes, seus olhos oscilando entre o sono e a vigília. Ele franziu o cenho por um segundo antes de virar o rosto na direção de Bruce.
-Você ainda tá com essa cara - murmurou, a voz rouca pelo sono.
Bruce exalou lentamente, sentindo uma onda de alívio absurda ao ouvir sua voz. Ele rolou os olhos, mas não conseguiu evitar o pequeno sorriso que ameaçou se formar em seus lábios. O ex-bilionário inclinou-se um pouco, os olhos escaneando cada detalhe do rosto do outro, certificando-se de que ele realmente estava ali.
-Como você se sente?
-Maravilhoso - zombou o loiro antes de passar a língua para umedecer o lábio superior - como se tivesse sido atropelado por um caminhão e depois cuspido por um moedor de carne.
O Coringa virou a cabeça para ele, os olhos semicerrados, avaliando-o por um momento antes de continuar:
-Você dormiu?
Bruce desviou o olhar antes de responder:
-Eu dormi o suficiente.
-Então isso é um não - zombou o palhaço em retaliação.
O ex-bilionário franziu o cenho, mas o Coringa apenas observou com aquele sorriso preguiçoso, como se pudesse ver através dele com facilidade.
Bruce suspirou, inclinando-se um pouco para frente, pressionando os dedos contra as têmporas, sentindo a exaustão pesar sobre ele, sentindo o peso excruciante da exaustão puxando seus músculos para baixo. Mas ele não dormiria. Não ainda.
Ele olhou para o louco de novo. O ex-terrorista sempre parecia perigoso. Sempre afiado, sempre um fio de navalha à espera de um motivo para cortar. Mas agora, ali, no meio das cobertas, com a respiração calma e os cabelos bagunçados contra o travesseiro, ele parecia… diferente.
Bruce nunca soube nomear esse sentimento. Nunca quis. Mas nos últimos dias, ele foi forçado a encará-lo. Ele quase o perdeu. Bruce fechou os olhos por um instante, a mandíbula travada. Ele sabia que o Coringa estava acostumado a se virar sozinho, nunca esperou que alguém viesse resgatá-lo. Mas Bruce nunca permitiria que ele enfrentasse qualquer merda sozinho de novo.
O Coringa o observou em silêncio por alguns segundos antes de murmurar tirando o outro homem de seus devaneios:
-Eu sou bom em ler as pessoas, Brucie.
Bruce ergueu os olhos lentamente, encontrando os dele.
-Eu sei - respondeu o moreno.
-Então você sabe que eu percebo quando você está prestes a colapsar.
Bruce abriu a boca para responder, mas não havia nada para dizer. Porque o ex-terrorista estava certo. Ele estava no limite. O Coringa o observava com olhos semicerrados, pesados pelo sono, mas ainda afiados o suficiente para ver através dele. Sempre via. Sempre soube exatamente onde cutucar, onde encontrar as rachaduras na armadura e forçá-las a se abrir.
-Eu estou bem - mentiu o morcego.
O Coringa riu baixo. Um som rouco, algo entre zombaria e exaustão.
-Ah, é mesmo? - ele lambeu o canto dos lábios, estreitando os olhos - então me diz, o que você comeu hoje?
Bruce ficou em silêncio.
-Ontem? - insistiu o loiro.
O palhaço arqueou uma sobrancelha, um sorriso satisfeito surgindo em seus lábios rachados. O silêncio pesou por mais um momento antes que o loiro tornasse a falar:
-O que eu pensei.
Bruce fechou os olhos por um momento, sentindo o peso esmagador dos últimos dias pressionando seus ombros. O apartamento estava uma bagunça. Ele estava uma bagunça. E, pela primeira vez desde que tudo começou, ele conseguia ver isso com clareza.
O ex-bilionário não dormiu. Ele não comeu. Ele mal saiu do apartamento, exceto para vasculhar cada canto de Gotham atrás de qualquer pista que o levasse até ele. Bruce Wayne desapareceu do mapa. Batman virou um fantasma nas sombras, mais brutal, mais implacável. Ele não permitiu que nada o desviasse do objetivo. Porra, ele até deixou que um universitário se envolvesse na investigação.
E agora… agora ele estava ali, parado na beira da cama, exausto demais para sequer processar o que vinha a seguir.
-Você está pensando demais - contentou o palhaço - eu posso ouvir as suas engrenagens trabalhando.
O Coringa observou em silêncio, deixando que ele se estendesse, denso, mas não desconfortável. Bruce sempre carregava tudo nos ombros, sempre tentando controlar o incontrolável. Sempre achando que era sua responsabilidade consertar tudo. Ainda havia tanto para fazer, tanto. O moreno tinha negligenciado tantas coisas nos últimos dias. Ele nem sabia por onde começar.
Ele sabia que precisava comer. Dormir. Respirar. Mas havia tantas coisas negligenciadas nos últimos dias que ele nem sabia por onde começar.
-Ainda tem tanto pra fazer… - sua voz saiu mais baixa do que ele pretendia, um sussurro carregado de exaustão.
O Coringa piscou devagar, os olhos analisando cada pequeno detalhe de sua expressão antes de dizer:
-Nada que precise ser feito agora.
-Queria que fosse tão simples - retrucou o ex-bilionário.
-Bruce.
O palhaço olhou para ele em silêncio, Bruce suspirou e por um instante pela farta do apelido, apenas por um instante, algo na sua expressão suavizou. O Coringa sempre soube ver através dele. Sempre soube onde acertar. Mas dessa vez… não havia ironia em sua voz, nem provocação. Apenas uma certeza tranquila.
O moreno sentiu os ombros relaxarem, como se uma parte do peso esmagador dentro dele tivesse se dissipado, ainda que por um momento. Ele deslizou os dedos pelo lençol, hesitante.
-Eu deveria deixar você descansar.
-Brucie - suspirou o palhaço - não me faça levantar daqui e te arrastar comigo para essa cama de merda.
Bruce bufou, exasperado antes de revirar os olhos, passando as mãos pelos cabelos. O ex-terrorista era insuportável. Ele nunca soube quando calar a boca, quando simplesmente aceitar as coisas. Mas agora… agora Bruce percebia que ele precisava disso. Ele precisava que alguém o puxasse de volta.
Porque, se dependesse dele, Bruce continuaria ali, de pé, sentindo a exaustão corroer cada músculo, cada pensamento.
O ex-bilionário hesitou por um momento antes de finalmente ceder, deslizando para o lado da cama com cuidado. Ele sentiu o colchão afundar sob seu peso, o calor do corpo do Coringa irradiando contra ele, mesmo através dos lençóis.
-Tá vendo? Nem doeu - murmurou o palhaço, satisfeito.
Bruce apenas suspirou, mas não retrucou.
O apartamento estava escuro pelas cortinas fechadas, silencioso. Apenas a respiração dos dois preenchia o espaço. O Coringa se mexeu levemente encostando a cabeça contra o ombro do moreno levemente e fechando os olhos, como se aquele simples gesto de ter Bruce ali, ao seu lado fosse o bastante para puxá-lo de volta para a exaustão.
Os minutos se arrastaram, parecendo horas. Bruce ainda estava tenso, sua mente trabalhando, reorganizando tudo que havia sido negligenciado nos últimos dias. Mas, de alguma forma, o peso do ex-terrorista contra ele, a respiração quente contra seu ombro, era reconfortante.
—------
Chuck estava exausto. A delegacia ainda estava ativa, como sempre. Gotham não dormia, e muito menos o departamento de polícia. Pilhas de papel se acumulavam sobre sua mesa, misturando relatórios, declarações e evidências soltas de casos que, por alguma razão, pareciam se entrelaçar de forma insidiosa.
Nos últimos três dias, a delegacia parecia um inferno logístico. Batman estava fora de cena, e tudo o que podia dar errado parecia estar acontecendo ao mesmo tempo.
Primeiro, o garoto. Jason Todd era um problema ambulante que o morcego simplesmente deixou no colo do departamento de polícia. O adolescente tinha uma paciência praticamente inexistente e uma teimosia que fazia Chuck lembrar de alguém, e ele odiava admitir que esse alguém era o próprio Batman. O garoto passava boa parte do tempo questionando tudo e todos, insistindo em saber onde o morcego estava e quando voltaria.
A segunda desgraça foi a morte de Samuel Rise. E Matthew Cole...Andy estava envolvido novamente na investigação. Parecia um déjà vu do ano passado. Chuck passou as mãos pelo rosto, tentando organizar os pensamentos.
Eles estavam atrás de Rise depois que Batman acabou dando brecha para que o cara desaparecesse, mas agora, agora eles não conseguiriam as respostas. Ele estava morto. E não era um assassinato qualquer.
Chuck pegou o relatório da cena do crime. Samuel havia sido encontrado em um galpão abandonado no distrito industrial, amarrado a uma cadeira, com marcas de espancamento e as cordas vocais cortadas.
O tenente olhou para o relatório sobre Andy, ele já estava em Blackgate a essa altura. O ex-psiquiatra jurava que não tinha nenhuma ligação com o Contador de Histórias desde sua prisão no ano passado. E, pelo que Chuck sabia, era verdade. Mas então, por que o desgraçado continuava sendo apontado pelo Contador de Histórias ?
E havia o enigma que novamente se repetiu, encontrado no local onde o corpo de Samuel Rise foi encontrado.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou ?”
Chuck encarava a charada rabiscada em seu bloco de notas, a caneta girando entre seus dedos enquanto sua mente trabalhava, tentando conectar os pontos.
Ele já tinha passado por dezenas de hipóteses nos últimos dias, mas nada parecia concreto o bastante. Um túnel abandonado? Um esgoto? Uma caverna subterrânea? Gotham era cheia dessas merdas, cheia de lugares onde o sol nunca tocava. Mas nenhuma dessas opções se encaixava
O tenente pegou uma caneta e começou a rabiscar palavras no bloco de anotações à sua frente.
Rise — tráfico humano — conexão com Contador de Histórias
Tráfico humano — Margareth Todd ? — Jason Todd
Margareth Todd — Samuel Rise
Jason Todd —Tália
Tália — Contador de Histórias — Porque ela está ajudando ele ?
Andy — envolvimento? Mentindo?
O container… o que há lá?
Chuck sabia que precisava de alguma forma conversar com Andy, Matthew parecia ter sido envolvido novamente em seja lá o que o Contador de Histórias esteja tramando. Talvez ele não estivesse conscientemente envolvido, era um palpite, talvez ele fosse uma pista, alguma coisa para que pudesse clarear seus esquemas mentais.
O tenente não gostava da ideia de ficar cara a cara com o ex-psiquiatra, não depois de tudo que aconteceu, depois do ano passado, depois de Annie, Coringa e Blackgate. O tenente foi retirado de seus pensamentos quando Jimmy Gordon bateu na porta antes de entrar.
-Chefe, tem algo que você precisa ver.
Chuck levantou o olhar para Jimmy Gordon, já esperando por mais uma dor de cabeça. O departamento inteiro estava um caos, e a última coisa que ele precisava era de mais um problema.
-Diga logo - suspirou o tenente, largando a caneta e esfregando os olhos.
O jovem detetive entrou no escritório, carregando uma pasta aberta e um tablet na outra mão. Ele fechou a porta atrás de si antes de falar:
-Os arquivos sobre Samuel Rise, Sarah tinha me pedido para averiguar algumas transações antigas dele, e encontramos uma conexão com algumas pessoas da pesada que ele trabalhava antes, não foi algo fácil de se conseguir, mas enfim, encontramos uma ligação de um desses nomes, “Rick Crale”, te parece familiar ?
-A. Crale Imports, a empresa de fachada envolvida com o lance do contêiner desaparecido - disse o tenente refletindo por um momento.
-Sim - Jimmy assentiu, deslizando o dedo pela pasta e a entregando para Chuck - Rick Crale aparece em uma série de transações suspeitas entre 2000 e 2006., depois disso ele simplesmente desaparece, nenhum rastro, como se nunca tivesse existido antes.
Chuck franziu o cenho. Ele já tinha visto esse tipo de coisa antes. Identidades falsas criadas para operações ilegais, utilizadas por um tempo e depois descartadas. Mas o que o incomodava era a coincidência de datas.
-2006 - murmurou, pegando um dos papéis sobre sua mesa - é a mesma data de emissão do contêiner desaparecido.
Ele folheou os arquivos rapidamente, buscando o relatório anterior sobre A. Crale Imports. Chuck sabia que teria que conversar com Matthew sobre Samuel, Andy provavelmente nem sabia que Rise estava morto. O tenente sabia que precisava saber um pouco mais sobre a relação de proximidade do ex-contrabandista e do ex-psiquiatra. No entanto, Chuck não estava nem um pouco inclinado a isso.
A última coisa que queria era ter que olhar Andy nos olhos de novo. O desgraçado sempre parecia saber mais do que dizia, e, pior, gostava de jogar jogos mentais com todo mundo ao redor. Mas Chuck não tinha escolha. Rise estava morto. Andy estava no centro da confusão. E, de alguma forma, tudo voltava para aquele maldito contêiner.
Ele voltou o olhar para Jimmy por um momento antes de entoar:
-Você sabe se o Batman conversou com Matthew no hospital ?
Jimmy deu de ombros antes de responder:
-Ele perguntou em que quarto ele estava, mas não sei se ele foi até lá.
Chuck soltou um suspiro pesado, massageando as têmporas. Ele precisava descobrir o que diabos Matthew sabia, se é que sabia de alguma coisa. O tenente voltou os olhos para a pasta que Jimmy lhe entregara. Rick Crale. A Crale Imports. O contêiner desaparecido. Samuel Rise.
Os nomes e conexões começavam a se entrelaçar na cabeça de Chuck, mas ele ainda não tinha todas as peças do quebra-cabeça.
-Tem mais alguma coisa? - perguntou o tenente, fechando a pasta e encarando Jimmy.
O jovem detetive hesitou antes de deslizar o tablet sobre a mesa.
-Sim… e acho que você vai querer ver isso.
Chuck pegou o aparelho e deu play no vídeo que Jimmy abriu. Era uma filmagem da câmera de segurança de um galpão perto dos armazéns da orla. O horário no canto da tela marcava duas noites atrás, pouco antes de Samuel Rise ser encontrado morto.
No início, o vídeo parecia inútil. Imagens granuladas de um beco entre dois prédios, iluminação precária, sombras projetadas contra a parede de concreto. Mas então, um carro preto parou próximo ao beco, e duas figuras saíram.
Chuck franziu o cenho. O primeiro homem era Samuel Rise. O outro…Ele ampliou a tela. O homem estava de capuz, não dava para saber quem era.
-Essa foi a última vez que ele foi visto com vida, ainda estamos averiguando quem estava com ele - falou Jimmy depois de um momento - a gente ainda não sabe o que aconteceu depois disso, mas provavelmente ele foi capturado, torturado e morto, deixado para que a gente encontrasse.
O Contador de Histórias queria contar alguma coisa com isso, mas o que ? A ligação de Samuel Rise com Margareth Todd e também sua ligação com a empresa de fachada A.Crale Imports acabava de alguma forma unindo as duas linhas de investigação, tanto o contêiner quanto o caso de Jason estavam ligados de alguma forma.
Na verdade, parecia que tudo estava ligado a essa altura do campeonato. Porque, de alguma forma, Tália estava nisso, ela tinha trazido Jason para Gotham e o DNA dela foi encontrado to do DNA de uma cena de crime de mais de 3 anos atrás, um DNA inconclusivo, daquele caso de violência doméstica onde uma mulher desconhecida e um bebê de 1 mês nunca foram encontrados. O caso de Gerald Mullks.
De alguma forma, parecia que tudo estava interligado, como um emaranhado de fios onde tudo voltava para o mesmo ponto.
Caso Mullks — Talia.
Talia — Jason
Jason —Margareth
Margareth — Samuel Rise.
Samuel Rise — A. Crale Imports.
A.Crele Imports — Container.
Chuck sentia a pressão da dor de cabeça se acumulando em suas têmporas. Cada conexão que ele fazia só levantava mais perguntas, e nenhuma delas parecia ter uma resposta simples. Tudo estava entrelaçado de um jeito perverso, como se alguém tivesse planejado cada peça para levar exatamente até aquele momento.
Ele olhou novamente para os rabiscos no bloco de anotações, deixando a ponta da caneta bater levemente contra o papel. Ele precisava de algo concreto, algo que amarrasse essas peças soltas de uma vez. Rise, Margareth, Jason, Tália, o contêiner…
“Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?”
Ele pegou o tablet e voltou para o vídeo da câmera de segurança do galpão. Parou a imagem no momento em que Rise e o homem encapuzado estavam de pé ao lado do carro preto. Algo na traseira do veículo chamou sua atenção. Um símbolo.
Chuck ampliou a imagem o máximo que pôde. Não dava para ver completamente, mas parecia...Uma logo desgastada. Ele puxou a pasta novamente e virou para os registros de A. Crale Imports.
O logotipo da empresa era um círculo estilizado com linhas que se cruzavam. Parecia vagamente uma bússola, ou talvez um mapa. Ele voltou para a tela do tablet. O símbolo no carro era parecido. Não idêntico, mas parecido o suficiente para ser suspeito.
O carro estava ligado a A. Crale Imports. O homem encapuzado estava com Rise. E Rise estava morto.
Tudo voltava para o contêiner.
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Ele não sabia em que momento acabou dormindo. Bruce acordou em um salto. Seu coração disparou, a respiração presa na garganta enquanto seu corpo reagia antes mesmo que sua mente compreendesse o que estava acontecendo. O quarto estava mergulhado na penumbra, e por um momento ele se sentiu desorientado. Seus olhos desenfocaram antes de se fixarem no espaço ao seu lado. O palhaço não estava lá.
O pânico foi imediato, rápido e brutal como uma faca girando em seu estômago. Seu corpo reagiu antes de sua mente. Ele se levantou da cama quase tropeçando no lençol, os músculos tensos, os sentidos alertas. Ele já estava pronto para sair pela porta quando ouviu um som vindo da cozinha.
Bruce congelou por um instante, seu coração ainda batendo forte contra as costelas. Ele seguiu o som, passos silenciosos enquanto atravessava o corredor estreito. A cozinha estava mal iluminada, apenas a luz fraca da cidade se infiltrava pela janela, lançando sombras suaves pelo espaço. E ali, de pé ao lado do balcão, estava o Coringa.
O ex-terrorista estava de costas, mexendo em algo sobre a pia. Bruce piscou, sua mente demorando um segundo para absorver a cena. Então, um cheiro familiar preencheu o ar. Café.
-O que diabos você está fazendo? - a voz de Bruce saiu mais grave do que ele pretendia, ainda carregada pelo resquício do pânico que ainda pulsava em seu peito.
O Coringa virou a cabeça ligeiramente, lançando um olhar de esguelha por cima do ombro.
-Hm, bom dia para você também, dorminhoco - zombou o loiro, sua voz arrastada e rouca, mas ainda carregada de sarcasmo.
Bruce estreitou os olhos, se aproximando. Ele conseguiu ver melhor agora, os cabelos loiros ainda desgrenhados, os dedos enfaixados segurando a alça da cafeteira. Ele não deveria estar de pé.
-Você deveria estar descansando - disse Bruce, mas sério agora
O Coringa bufou, rolando os olhos enquanto pegava uma caneca com as mãos enfaixadas
-E eu estou ótimo, obrigado pela preocupação, docinho.
Bruce sentiu sua paciência se desgastar rapidamente. Ele suspirou por um momento antes de entoar:
-Você levou dois tiros, quase teve um choque hipervolumétrico, quebrou os dedos deliberadamente e torceu o próprio pé.
O palhaço revirou os olhos, mexendo a caneca no balcão antes de se virar para encará-lo completamente.
-Pff - entoou o louco antes de passar a língua no canto dos lábios - detalhes.
Bruce passou a mão pelo rosto, exausto.
-Você é impossível.
-Eu sou incrível - corrigiu o ex-terrorista, dando um meio sorriso enquanto levava a caneca até os lábios.
Bruce ficou tenso. A forma como o Coringa segurava a alça da caneca era estranha, mais cuidadosa do que o normal. Ele não queria admitir, mas estava machucado. E Bruce sabia que ele odiava parecer fraco.
Bruce suspirou, cruzando os braços sobre o peito.
-Você realmente não consegue ficar quieto, consegue?
O loiro soltou um riso baixo, aquele riso arrastado de quem ainda estava cansado, mas que nunca admitiria isso.
-Eu nunca fui bom em ficar parado.
Bruce o observou por um momento, seus olhos escuros deslizando pelos curativos nos dedos, pelo jeito como, mesmo agora, mesmo depois de tudo, ele ainda tentava agir como se nada tivesse acontecido.
-Você sempre faz isso - murmurou Bruce, sua voz saindo mais suave agora.
O Coringa ergueu uma sobrancelha, levando a caneca de volta aos lábios depois de passar a língua no canto dos lábios:
-Isso o quê?
Bruce deu um passo mais perto.
-Age como se estivesse bem - falou o moreno, seu tom era calmo - como se nada importasse.
-Porque estou bem amor, e nada importa.
Ele observou o palhaço por um longo momento antes de suspirar, aproximando-se de leve. Com um gesto cuidadoso, ele estendeu a mão e segurou a caneca, guiando-a para longe dos lábios do loiro. O Coringa franziu o cenho, mas não reclamou quando Bruce colocou a caneca de volta no balcão.
E então, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Bruce deslizou uma mão pela lateral de seu rosto, os dedos quentes contra a pele fria. O Coringa ficou em silêncio. Bruce o olhou por um longo momento antes de murmurar:
-Você não precisa fingir quando está comigo.
O loiro piscou, sua expressão hesitante por um momento, como se algo dentro dele tivesse parado por um segundo inteiro. Então, devagar, ele fechou os olhos e soltou um pequeno suspiro. O Coringa permaneceu ali, de olhos fechados, a respiração lenta e profunda, como se aquele simples toque fosse suficiente para desmontá-lo. Bruce sentia o peso do ex-terrorista contra sua palma, o calor sutil de sua pele sob seus dedos. Ele não queria soltar.
A cozinha estava mergulhada no silêncio, apenas o ruído distante da cidade preenchia o espaço entre eles. O cheiro de café pairava no ar. Bruce não sabia quanto tempo ficou ali, apenas segurando o rosto do Coringa, sentindo sua respiração roçar contra sua palma. O ex-terrorista não se afastou. Não zombou. Apenas ficou ali, parado.
Ele passou o polegar devagar contra a maçã do rosto do palhaço, um toque inconscientemente cuidadoso. O Coringa abriu os olhos lentamente, como se estivesse voltando de um lugar distante.
-Você tá sendo dramático, Brucie - murmurou, mas sua voz não tinha a zombaria de sempre.
Bruce exalou pelo nariz, passando a mão pelo rosto do outro mais uma vez antes de soltá-lo.
-Você me dá motivos, você deveria estar na cama.
O Coringa inclinou a cabeça, um sorriso pequeno brincando no canto dos lábios, rolando os olhos dramaticamente antes de zombar:
-Se eu ouvir essa frase mais uma vez, vou começar a achar que você quer me manter amarrado lá.
Bruce estreitou os olhos.
-Não me tente.
O loiro sorriu de canto, passando a língua nos lábios, aquele brilho provocativo finalmente voltando aos seus olhos.
-Isso é uma ameaça ?
Bruce trincou a mandíbula, soltando um suspiro pesado antes de simplesmente se aproximar, ignorando a provocação. Em um movimento rápido o ex-bilionário segurou o palhaço pelo tornozelo não machucado e o puxou. O Coringa arfou quando sentiu o puxão repentino. Num instante, ele estava de pé, no outro, estava no chão de bruços, sendo arrastado de volta para o quarto.
-Brucie, isso é desnecessário, eu posso andar, sabia? - a voz do louco carregada de indignação, as bandagens dos braços raspando no chão frio.
Bruce sequer parou, arrastando-o pelo pé que não estava machucado como se ele fosse um peso morto. O palhaço bufou, mas não lutou contra, ele sabia que não iria adiantar nada.
-Você sabe que está me machucando, né? - falou o ex-terrorista tentando virar de costas inutilmente.
-Se você pode bancar o rebelde na cozinha, pode lidar com isso - respondeu o morcego finalmente o levando para dentro do quarto.
O Coringa bufou, ainda deitado no chão do quarto quando Bruce soltou o seu tornozelo.
-Você realmente não vê problema nenhum nisso - zombou o louco antes de passar a língua no lábio inferior.
Bruce cruzou os braços, observando-o de cima.
-Eu te avisei.
O Coringa soltou um suspiro longo e dramático antes de finalmente se empurrar para uma posição mais confortável no chão, se sentando e recostando-se contra a lateral da cama.
-Isso foi humilhante.
Bruce rolou os olhos antes de entoar:
-Se fosse humilhante de verdade, você estaria reclamando mais.
-Ah, eu estou escolhendo minhas batalhas, querido.
O ex-bilionário soltou um suspiro exasperado antes de finalmente se abaixar, colocando uma mão sob os braços do Coringa e o puxando para cima. O palhaço não resistiu dessa vez, apenas deixou-se ser guiado de volta para a cama, ajeitando-se contra os travesseiros.
Bruce ignorou o ar de deboche do palhaço e apenas colocou uma mão contra a testa do outro homem, verificando sua temperatura.
-Você ainda tá quente - suspirou o moreno.
O loiro ergueu uma sobrancelha antes de zombar com um tom provocativo
-Obrigado pelo elogio, amor.
Bruce estreitou os olhos, ficando em silêncio por um momento antes de dizer simplesmente:
-Você ainda está com febre.
O palhaço bufou, revirando os olhos enquanto lambia o canto dos lábios:
-E daí? Eu sobrevivi a coisa pior, você sabe disso.
Bruce apertou a mandíbula.
-Você deveria descansar.
-Eu estou deitado, não estou? - bufou o ex-terrorista dramaticamente.
-Contra a sua vontade - apontou o moreno com um tom indiferente.
O Coringa deu um sorriso pequeno e preguiçoso antes de murmurar:
-Mas eu deixei você me arrastar.
Bruce franziu o cenho, desconfiado antes de suspirar e dizer:
-Você não tinha escolha.
-Ah, eu sempre tenho - zombou o outro homem.
O ex-bilionário ficou em silêncio por um momento, observando o rosto do outro, o jeito que seus olhos ainda tinham aquele brilho de exaustão por trás da provocação. Bruce observou o palhaço por um momento, absorvendo cada detalhe. O jeito como seus olhos ainda estavam pesados de cansaço, como os fios loiros caíam de qualquer jeito sobre sua testa. Bruce observou por um momento em silêncio antes de finalmente se sentar na beirada da cama.
O ex-bilionário não afastou a mão quando o palhaço deslizou os dedos enfaixados sobre seu antebraço, os movimentos lentos e um pouco desajeitados devido ao estado de seus ossos.
-Você tá exausto, Brucie - murmurou o loiro, a voz arrastada, mas sem a malícia de sempre.
Bruce não respondeu. Ele sabia disso. Mas o que ele poderia fazer? Simplesmente apagar por mais algumas horas e fingir que não passou os últimos dias revivendo o pior cenário possível em sua cabeça? Porra, ele tinha dormido, mas ainda parecia uma merda.
O Coringa suspirou, como se soubesse exatamente o que se passava na mente dele.
-Vem cá, amor - murmurou o palhaço, deslizando os dedos para segurar o pulso do ex-bilionário com um toque surpreendentemente suave puxando-o para a cama - você precisa descansar também, depois a gente vê como resolve tudo isso.
Bruce sentiu que seu corpo o traiu quando ele não lutou contra o palhaço, deixando-o puxá-lo para a cama. O ex-terrorista envolveu o moreno em um abraço, uma conchinha meio desajeitada. O Coringa enterrou o rosto na nuca do ex-bilionário respirando pesadamente, seu braço jogado ao redor do outro homem em um abraço leve, mas seguro. Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas suas respirações preenchendo o ambiente ao redor.
Eles ficaram em silêncio por um momento, depois de cerca de alguns minutos Bruce se virou nos braços do ex-terrorista para encará-lo. Eles ficaram ali, olhando um para o outro antes que o moreno estendesse a mão lentamente para acariciar a bochecha do outro homem com o polegar, por onde se estendiam as cicatrizes. o Coringa semicerrou os olhos suspirando, aproveitando o carinho.
O ex-bilionário levou o polegar para acariciar o lábio superior do ex-terrorista levemente, de forma despreocupada, sentindo a respiração do outro contra seus dedos. No momento seguinte, Bruce fechou o espaço entre eles, juntando seus lábios delicadamente. O moreno suspirou contra os lábios do outro homem, depositando leves beijos de boca aberta. Era lento, carinhoso apenas como Bruce sabia ser.
O Coringa soltou um ruído baixo contra a boca do outro, algo entre um suspiro satisfeito e um riso abafado. Bruce sentiu os dedos enfaixados do palhaço deslizarem lentamente por sua nuca, puxando-o mais para perto.
Ele sabia que devia ir devagar, que o Coringa ainda estava machucado e se recuperando. Não era a melhor hora. Eles ainda tinham muito o que conversar, mas como esperado, o ex-terrorista não parecia inclinado a falar sobre seu recente tempo em cativeiro. Bruce não queria forçar o outro a falar, ele daria espaço por enquanto.
O palhaço rompeu o beijo primeiro, encostando a testa na do moreno, os olhos semicerrados, sua respiração acelerada contra os lábios de Bruce. O ex-terrorista se inclinou, fechando o espaço entre eles novamente apenas para morder levemente o lábio inferior do outro homem e sussurrar baixinho contra seus lábios:
-Aconteceu alguma coisa divertida enquanto estive fora ?
-Terminei com o estoque de Whisky se é isso que você quer saber - falou o morcego antes de roçar os lábios levemente contra os do outro homem, passando a língua na costura dos lábios. O Coringa sorriu contra a boca do outro, os lábios se entreabrindo quando a língua de Bruce traçou um caminho lento e preguiçoso contra a sua.
Os dedos enfaixados do palhaço deslizaram da nuca para o cabelo de Bruce, puxando-o para mais perto, apertando o suficiente para que o moreno soltasse um suspiro rouco contra sua boca. Bruce retribuiu o gesto segurando firme a cintura do loiro, seus dedos deslizando sob a camisa fina, sentindo a pele quente sob as pontas dos dedos.
O ex-terrorista arfou quando Bruce o puxou ainda mais para si, seus corpos colados de forma quase sufocante,seu peito subindo e descendo com a respiração irregular quando o ex-bilionário rolou por cima dele para prendê-lo no lugar. Bruce mordeu o lábio inferior do outro antes de deslizar a boca por sua mandíbula, seu maxilar tenso, os dentes arranhando de leve a pele pálida enquanto descia os beijos até o pescoço.
O palhaço inclinou a cabeça para trás no travesseiro, os olhos semicerrados, um suspiro escapando por entre os lábios quando sentiu Bruce mordiscar a pele de sua garganta, sugando com força o suficiente para deixar uma marca. As mãos enfaixadas deslizaram para os ombros do ex-bilionário, os dedos apertando, cravando-se ali como se quisesse marcá-lo de volta.
Bruce desceu os beijos pelo pescoço do Coringa até sua clavícula, mordiscando e chupando cada centímetro de pele que encontrava. O palhaço soltou um ruído baixo, algo entre um suspiro e um gemido cortado. Os movimentos entre os dois eram lentos, intensos, como se quisessem queimar o tempo perdido na pele um do outro. Não havia pressa, apenas a necessidade crua de sentir, de se ter ali, um do lado do outro, compartilhando o mesmo ar viciado entre suas bocas.
Bruce voltou a encará-lo, os olhos pesados, escuros. O Coringa sorriu de canto, o peito subindo e descendo com a respiração acelerada. Ele ergueu a mão e deslizou os dedos pelo rosto do ex-bilionário, o toque era suave, um carinho que geralmente as pessoas não associariam ao ex-terrorista.
Nenhum dos dois disse nada. Não precisavam. Bruce apenas se inclinou novamente, capturando os lábios do outro em um beijo profundo, cheio de tudo o que palavras nunca poderiam expressar. O Coringa gemeu contra a boca do ex-bilionário quando sentiu as mãos firmes deslizarem por sua cintura, subindo lentamente por baixo da camiseta, aproximando-os mais. As mãos do loiro deslizaram pelas costas largas até o peito do morcego, os dedos enfaixados roçando a pele nua por baixo da camisa do ex-bilionário.
O ex-terrorista fechou os olhos por um momento, quando sentiu a boca de Bruce descer por seu maxilar novamente, traçando um caminho preguiçoso de beijos por seu pescoço e sua clavícula. O Coringa riu baixo quando sentiu os dedos do ex-bilionário apertarem sua cintura com mais força, mas com um carinho que apenas Bruce sabia demonstrar por ele, mesmo nas pequenas coisas, até mesmo nas coisas mais irrelevantes mas que de alguma forma, acabavam sendo o cerne do relacionamento.
O ex-bilionário voltou a subir, mordiscando o maxilar do loiro antes de capturar seus lábios novamente, mais firme dessa vez. O palhaço abriu a boca, gemendo suavemente contra a língua de Bruce, sentindo o peso de Bruce sobre ele, sentindo as mãos dele apertando sua cintura como se quisesse se ancorar ali, como se não houvesse mais nada fora daquele quarto. E talvez, por ora, não houvesse mesmo.
Eles pararam por um momento, Bruce encostou a testa contra a do ex-terrorista levemente. A respiração entre eles era quente e pesada, carregada de uma intensidade crua. O Coringa passou a língua pelo próprio lábio, os olhos semicerrados enquanto encarava o rosto de Bruce tão próximo ao seu.
Ele sorriu de canto, antes de murmurar contra a boca do outro:
-Não posso levantar da cama para fazer um café, mas posso ser arrastado pelo chão e prensado na cama por um cara que pesa mais de 80 kg ?
Bruce soltou um suspiro pesado, o canto da boca se contraindo levemente, quase como se estivesse à beira de um sorriso, ele não devia se surpreender, era óbvio que o palhaço transformaria aquele momento em mais uma provocação.
-Estou apenas apontando a hipocrisia - continuou o louco antes de mordiscar o lábio inferior do moreno - você não me arrastou pelo chão sob o pretexto de me fazer descansar ?
-Não é como se eu conseguisse te manter deitado aqui de outra forma - falou o moreno antes de afastar seu rosto do outro por um momento, olhando em seus olhos.
O loiro levantou os braços e envolveu-os ao redor do pescoço do ex-bilionário puxando-o levemente para baixo, fazendo suas respirações se misturarem novamente.
-Você me conhece tão bem - sussurrou o palhaço roçando seu nariz com o do outro homem - eu senti sua falta, muito.
Bruce piscou lentamente, absorvendo aquelas palavras, o tom surpreendentemente sincero do palhaço. O Coringa não era do tipo que admitia sentimentos tão facilmente sem uma boa camada de zombaria, muito menos dessa forma crua, sem disfarces. Ele não respondeu de imediato. Apenas deslizou as mãos pelo rosto do loiro, seus polegares traçando um caminho lento pelas cicatrizes familiares antes de rolar para o lado, para se acomodar no colchão junto ao ex-terrorista.
O moreno, ainda com as mãos no rosto do outro homem, virou lentamente a cabeça do ex-terrorista para que esse olhasse em seus olhos.
-Você foi a coisa mais…- Bruce fez uma pausa, ainda acariciando o rosto do palhaço carinhosamente - … a coisa mais feliz e confusa que aconteceu na minha vida em muito tempo.
O loiro lambeu os lábios, seus dedos enfaixados deslizando lentamente pelo maxilar do ex-bilionário, como se quisesse ter certeza de que ele ainda estava ali, sólido, real.
-Feliz e confuso, hein? - murmurou, sua voz rouca, um pouco mais baixa do que o normal - eu nunca fui bom em coisas felizes, Brucie…em contrapartida, eu entendo bem de confusão.
Bruce soltou um riso baixo, quase inaudível, um som que o Coringa mal teve tempo de processar antes de sentir os lábios do outro tocarem os seus novamente. Era lento, cuidadoso, carregado de significados que eles não precisavam dizer em voz alta.
O loiro fechou os olhos, se permitindo afundar naquele toque. Os dedos enfaixados subiram até os cabelos de Bruce, agarrando-os levemente, puxando-o mais para perto. O calor do corpo do ex-bilionário o envolvia por completo, e pela primeira vez em dias, ele sentiu que estava, de fato, seguro.
Bruce afastou os lábios por um instante, respirando fundo, sua testa roçando contra a do outro.
-Você pode não ser bom em coisas felizes… - murmurou o ex-bilionário, a voz grave e baixa contra a boca do Coringa - …mas de alguma forma, você ainda é a única coisa que faz sentido no meio dessa confusão toda, pelo menos agora, e é a única coisa que eu quero pensar nesse momento.
-Se não fossemos casados isso soaria como um pedido de casamento - zombou o louco antes de passar a língua no lábio inferior.
Bruce revirou os olhos, mas não se afastou. O sorriso do Coringa era preguiçoso, satisfeito, e mesmo com as olheiras marcando sua pele pálida e os sinais de exaustão evidentes, ele ainda conseguia ser irritantemente provocador.
-Não estrague o momento - moreno murmurou contra os lábios do loiro.
O Coringa riu baixinho, mas não retrucou. Apenas deslizou os dedos enfaixados pelo maxilar de Bruce, como se tentasse memorizar o formato de seu rosto. O silêncio entre eles não era incômodo. Pelo contrário, parecia quase necessário. Ambos haviam passado tempo demais envolvidos em caos, sangue e incertezas. Ter aquele pequeno instante de paz, mesmo que roubado e mesmo que temporário,era algo que nenhum dos dois ousava quebrar.
Bruce o encarou por um momento antes de soltar um suspiro e passar os dedos pelos cabelos do loiro. Seu peito subia e descia em um ritmo mais lento agora, como se o peso das últimas horas estivesse finalmente começando a se dissipar.
-Eu queria ficar aqui para sempre - admitiu o moreno depois do momento de silêncio - só sentindo você, só…olhando nos seus olhos
-Então fica.
Notes:
Obrigado a quem está acompanhando até aqui :) Comente para me deixar feliz.
Chapter 31: The Gotham We Have (Parte 31)
Notes:
Desculpem pela demora :) Obrigado a todos que vem acompanhando até aqui. Infelizmente eu não vou conseguir postar semana que vem, mas não estou sumindo, juro!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A manhã chegou mais rápido do que Bruce gostaria. Ele acordou com a luz fraca filtrando pelas cortinas, sentindo o peso morno do corpo do Coringa ainda preso ao seu. O loiro dormia profundamente, os fios dourados levemente escuros espalhados pelo travesseiro. Bruce o observou por um momento antes de, cuidadosamente, se afastar.
Ele sentia cada músculo de seu corpo protestar, mas ignorou. Levantou-se e seguiu até o banheiro, lavando o rosto antes de vestir algo mais apropriado para começar o dia. Bruce ainda tinha que falar com Harvey sobre seu emprego na promotoria, se é que ele ainda tinha um emprego nessa altura. A tranquilidade daquele instante se quebrou com três batidas firmes na porta principal do apartamento.
Bruce franziu o cenho. Não estava esperando ninguém. O moreno rapidamente trocou de camiseta antes de sair do quarto em passos rápidos em direção a entrada do apartamento. O ex-bilionário passou uma das mãos pelo rosto, respirou fundo, antes de abrir a porta. Não era comum visitas tão cedo, o que significava, inevitavelmente, problema.
Ao abrir a porta, deparou-se com Chuck. O tenente vestia a expressão fechada que Bruce já aprendera a decifrar: alguém estava prestes a jogar uma bomba no colo dele.
Ao lado de Chuck, estava Jason. O adolescente usava o mesmo moletom surrado, o olhar duro demais para alguém com tão pouca idade.
-Bruce - Chuck assentiu uma vez - preciso falar com você, a sós.
Jason ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Só desviou o olhar, cruzando os braços e encostando-se ao batente da porta com uma expressão que mesclava desconfiança e desinteresse mal fingido.
Bruce franziu o cenho.
-O que houve?
-Posso entrar? - perguntou o tenente depois de um momento de silêncio.
Bruce olhou para Jason por um segundo antes de abrir espaço e deixar Chuck passar. Assim que o policial cruzou a porta, a expressão relaxada do ex-bilionário desapareceu por completo. Ele fechou a porta devagar, como se estivesse ganhando tempo, e então se virou, enfrentando o olhar do tenente.
-Preciso que você fique com ele - disse Chuck, indo direto ao ponto. Não adiantava ficar de joguinhos, ambos sabiam que não funcionaria.
Bruce travou a mandíbula.
-O quê?
-Ele não pode mais ficar na delegacia, Bruce - suspirou o tenente - ele está se metendo em coisas demais, coisas perigosas.
Bruce apertou os olhos antes de dizer:
-E por que não o entrega para os assistentes sociais?
-Porque você prometeu ajudá-lo, Batman prometeu, e se ele for para alguma casa de internação vai fugir de novo, e vai voltar para as ruas, para procurar por Talia, e pode acabar morto ou coisa pior.
-Não é um bom momento, Chuck - falou o moreno depois de uma pausa.
-Nunca é - tenente retrucou, sem vacilar - mas eu não vou deixar ele solto por aí, e não tenho muitas opções de lar temporário, então é com você.
Bruce passou a mão pelos cabelos, exalando um suspiro pesado. O dia mal começara e já parecia estar escorregando por entre seus dedos.
-Chuck… - começou ele, com a voz baixa, mas firme - ...ele não pode ficar aqui, não agora, você sabe que o Coringa não é exatamente a pessoa mais fácil de conviver quando você não sabe como lidar com ele.
-Eu não posso correr o risco de Jason voltar para as ruas. - Chuck se aproximou, a voz agora mais contida, mas ainda incisiva - esse garoto está cheio de raiva engasgada e esperança torta, ele só precisa de um lugar pra respirar, e convenhamos, você não é o ideal... mas é o que eu pensei no momento.
Bruce ficou em silêncio por alguns instantes. O olhar desceu para o chão, como se buscasse ali uma resposta que pudesse se sustentar. Mas não havia nenhuma que não envolvesse riscos. Nenhuma que não o fizesse engolir a própria angústia e empurrar os próprios limites mais um pouco.
-Ele não pode saber - falou o moreno por fim - sobre o Batman, sobre a minha identidade.
-Ele não vai saber - garantiu o tenente.
-Tudo bem - ofereceu o ex-bilionário depois de um momento em silêncio.
Chuck soltou o ar que estava prendendo, como se só agora permitisse a si mesmo relaxar. Assentiu brevemente, antes de dar meia-volta e abrir a porta. Jason olhou de um para o outro, tentando decifrar o que fora decidido em seu nome.
-Você vai ficar aqui por um tempo - disse Bruce, cruzando os braços diante do peito.
Jason franziu o cenho, os olhos pulando de Bruce para Chuck e depois voltando.
-É sério? Isso é tipo… você me jogando para um desconhecido, ou quê? - o tom de Jason carregava sarcasmo, mas também exaustão - e onde eu assino?
-Estou te dando uma chance aqui - falou Chuck depois de um momento - e você vai agarrar essa chance, entendeu? Você vai ficar com Bruce até o Batman conseguir localizar Tália, ou você vai voltar para o reformatório.
Jason bufou, mas não retrucou. Pegou a mochila no chão e a jogou no ombro com um movimento brusco.
-Você tem regras? - ele perguntou para Bruce, com desdém proposital.
Bruce o observou por um segundo, medindo cada reação, cada linha de expressão no rosto jovem, já endurecido pela vida.
-Algumas - declarou o ex-bilionário - mas vamos conversar depois do café, o que você acha ?
-Claro - falou o adolescente com desdém - um café da manhã com o bilionário falido, vai ser divertido.
Chuck revirou os olhos, mas manteve-se calado antes de dar as costas e sair do apartamento. Bruce, por sua vez, se virou, gesticulando para que o garoto o seguisse até a cozinha.
-Eu não estava esperando um hóspede, então não tenho um quarto preparado para você - disse Bruce, caminhando na frente, os passos firmes, ainda que um pouco mais lentos do que o habitual - mas vou dar um jeito nisso até o fim de semana, enquanto isso, espero que você não se importe de dormir no sofá-cama da sala.
-Dormi em piores lugares - respondeu Jason, largando a mochila com um baque seco ao lado do móvel em questão e seguindo Bruce até a cozinha.
O ex-bilionário parou por um momento, observando o garoto enquanto ele examinava o ambiente com os olhos de quem procura pontos de fuga, zonas seguras e possíveis ameaças. Aquilo o fazia lembrar demais de si mesmo quando mais jovem.
-O café está quase pronto - disse Bruce, quebrando o silêncio incômodo e indo até a cafeteira - gosta de ovos mexidos?
Jason deu de ombros, mas respondeu:
-Gosto, desde que não venham queimados.
-Exigente ? - perguntou Bruce com uma sobrancelha arqueada, tentando, contra toda a sua natureza, soar leve.
Jason soltou um meio sorriso, rápido demais para durar.
-Um pouco talvez.
Bruce assentiu, indo até o fogão. O silêncio seguiu de novo, agora menos denso.
-Preciso sair mais tarde para fazer algumas compras. Você quer vir comigo? - perguntou Bruce.
Jason pareceu surpreso pela pergunta.
-O quê, tipo... ajudar a escolher frutas?
-Tipo isso - brincou Bruce.
Jason soltou uma risada abafada, a primeira de verdade. Bruce a registrou mentalmente como uma pequena vitória.
-Sei lá... pode ser - respondeu o garoto, dando de ombros - se eu tiver direito a escolher uns salgadinhos também.
-A gente negocia - respondeu Bruce, tentando conter o sorriso que ameaçava surgir - e já que vamos sair, pode me dizer o que você gosta de comer, usar... sei lá.
-Gosto de ler - murmurou Jason, quase como se estivesse revelando um segredo sujo - ler quadrinhos, alguns livros de mistério, eu gosto de correr também... às vezes. Ajuda a esvaziar a cabeça.
Bruce assentiu, absorvendo cada detalhe.
-E música?
-Punk, e um pouco de rap, mas não aquele autotune idiota - falou o adolescente se sentando na mesa da cozinha - e você? Aposto que ouve jazz quando está triste e música clássica para parecer elegante.
-Errou por pouco - Bruce respondeu, pegando uma xícara e se escorando no balcão da cozinha - Jazz quando tô cansado, silêncio absoluto quando tô triste.
Jason o observou por alguns segundos, como se tentasse entender onde estava se metendo. Havia uma curiosidade ali, enterrada sob camadas de sarcasmo e cautela. Bruce reconhecia isso.
Jason estava terminando a segunda xícara de café quando passos arrastados soaram pelo corredor. Não passos de alguém determinado. Eram passadas preguiçosas, acompanhadas do arrastar suave das patas de um cão.
Do batente da cozinha, surgiu o Coringa, desgrenhado, vestindo apenas uma camiseta larga demais com o logo desbotado de alguma banda antiga e uma calça cinza de moletom. O cabelo estava num emaranhado revoltado, como se tivesse travado uma guerra com o travesseiro e perdido. Os olhos semicerrados denunciavam claramente que ele ainda não havia acordado por completo, e não queria estar acordado.
Bud caminhava atrás dele com o mesmo humor amassado do dono, língua para fora, rabo balançando preguiçosamente. Jason se endireitou na cadeira, franzindo o cenho. Ele sabia que o palhaço e o ex-bilionário estavam juntos, mas não esperava cruzar com o Coringa tão cedo.
O loiro o ignorou completamente. Passou por ele como se Jason fosse um móvel da casa. Foi direto até a cafeteira, pegou a caneca que Bruce havia deixado limpa no escorredor e serviu o café num gesto automático, ainda que suas mãos estivessem enfaixadas Ele fazia aquilo há tempo suficiente para não precisar pensar. Depois de um momento, ele entoou com um tom de tédio:
-Você disse que ia manter a casa livre de adolescentes mal-humorados, amor.
-Nunca disse isso - respondeu Bruce, já indo direto ao armário pegar os cereais.
O loiro bufou, sentando-se pesadamente na cadeira à frente de Jason. Bud se encostou à sua perna. O adolescente, por sua vez, ainda encarava o ex-terrorista. Não havia medo em seu olhar, havia cautela. Algo no jeito que o Coringa se movia, mesmo com sono, fazia os instintos do garoto se acenderem. Era como estar perto de um animal imprevisível: você não recua, mas também não relaxa.
O silêncio se estendeu. O Coringa girou a caneca entre as mãos, o olhar ainda meio enevoado pelo sono, mas a atenção agora fixada no garoto.
-Vamos cortar as apresentações, já que você me conhece e eu já te conheço - o louco passou a língua pelos lábios por um momento - aproveitou sua estadia no reformatório ? Nunca estive em um, parece…divertido.
Jason não respondeu de imediato. Apenas cruzou os braços, recostando-se levemente na cadeira, mantendo o olhar cravado no do Coringa, como quem mede as distâncias entre uma provocação e um ataque.
-Divertido não é bem a palavra - respondeu Jason, seco, com um certo gosto de ferrugem na voz. - mas você ia se encaixar bem lá. Tem gente que ia adorar te conhecer.
O Coringa soltou uma risada baixa, sem humor. Era um som arrastado, quase afônico, como se não merecesse a energia de uma risada de verdade. Ele apoiou o cotovelo na mesa e encostou o queixo na palma da mão, ainda encarando Jason com um olhar que misturava tédio e curiosidade.
-Aposto que sim, mas prefiro minha liberdade... relativa - disse, virando-se ligeiramente para Bruce - quantos dias até ele me esfaquear nas costas, você acha? Dois? Três?
-Se alguém vai esfaquear alguém aqui, sou eu - respondeu Bruce, colocando uma tigela de cereal na frente do loiro sem tirar os olhos dele - é só se você continuar sendo insuportável antes das oito da manhã, come essa merda e cala a porra da boca.
O Coringa bufou uma risada, quase divertida, e deu um gole no café antes de fazer uma careta.
-Querido, me traz o açúcar - reclamou o louco - isso daqui tá péssimo.
Bruce revirou os olhos, mas esticou o braço até alcançar o pote de açúcar no armário, colocando na mesa na frente do Coringa.
-Você devia estar deitado.
-Brucie, eu não aguento mais ficar trancado naquele quarto - falou o ex-terrorista antes de passar a língua no lábio inferior - eu estou bem, não seja dramático.
Jason observava tudo em silêncio. A troca entre os dois era… esquisita. Não no sentido clássico da palavra, embora fosse isso também, mas no modo como havia uma intimidade ali que beirava o surreal. Talvez fosse porque Jason foi criado por uma mulher com vários problemas de saúde, que ficava muito tempo no hospital às vezes. Jason não sabia exatamente como um casal deveria funcionar fora da ficção.
Ele desviou o olhar, voltando para a própria xícara de café. Jason não sabia se queria rir ou sair correndo pela janela mais próxima.
-E você, passarinho…gosta de leite ou prefere seu cereal crocante ?
Jason ergueu uma sobrancelha. Ele não entendeu o apelido, mas Chuck já havia comentado em algum momento, o Coringa dava um para quase todo mundo. Jason, por mais que não queira admitir para si mesmo e muito menos para os outros, é como um filhote que caiu do ninho, que ainda não aprendeu a voar, mas já não cabe na segurança de onde veio.
Ele está em busca de sua própria força, mas sempre se joga no mundo com impulsividade, sem saber ao certo como lidar com as coisas. Pássaros migram, cruzam céus em busca de algo, de lar, de calor, de direção. Jason está exatamente nessa busca.
-É Jason - respondeu o adolescente com um tom curto, ele notou tardiamente que o cereal barato, colorido, e franziu o nariz para isso - e eu não gosto de cereal infantil.
O loiro sorriu, dessa vez com dentes, e com um brilho divertido nos olhos.
-Eu gosto desse garoto, sabe o jeito trágico me deixa entediado, mas me lembra você, Brucie.
Bruce apenas suspirou, já conhecendo demais aquele tom de dramatização teatral. Pegou sua própria xícara de café e deu um longo gole, sem tirar os olhos dos dois. Jason de um lado, ainda com os ombros tensos, como se estivesse pronto para explodir ou fugir; e o Coringa do outro, sorrindo como quem achou um novo brinquedo com bordas afiadas.
-Relaxa, passarinho - zombou o louco antes de dar um gole no café ridícula,ente doce - eu não vou te bic... quer dizer, morder.
Jason não respondeu. Apenas manteve o olhar cravado no palhaço por mais alguns segundos antes de se recostar de novo na cadeira, tenso, mas tentando parecer indiferente.
- “Passarinho”? - repetiu ele, num tom entre zombeteiro e irritado.
O Coringa deu de ombros, pegando uma colher e mergulhando no cereal com o entusiasmo de alguém que nunca leva nada a sério. Ele mastigou lentamente antes de responder, a voz arrastada.
-Você tem cara de quem caiu do ninho faz pouco tempo, ainda aprendendo a voar, cheio de penas arrepiadas, bico afiado… - o ex-terrorista sorriu com gosto antes de lamber o lábio inferior, inclinando-se levemente sobre a mesa - …e com o olhar de quem acha que pode cruzar o céu só na base da raiva.
Jason o encarou, mas algo naquelas palavras, por mais insuportável que fosse a fonte, ficou grudado como farpa sob a pele.
-Você é sempre assim? - rebateu o garoto, sem levantar o tom, mas com firmeza nos olhos.
-Assim como ? - provocou o palhaço com um falso tom inocente.
-Irritante e… desagradável - entoou o adolescente com os olhos fixos no ex-terrorista.
O palhaço sorriu, um sorriso frio e cheio de desdém, antes de se virar para Bruce com uma falsa expressão incrédula.
-Olha Brucie, ele está me insultando na minha própria cozinha - zombou o palhaço passando a língua no canto dos lábios - estou ofendido, nem vou dormir à noite.
Bruce apenas revirou os olhos, levando a xícara de café até os lábios, mas não disse nada. Ele já aprendera que, com o Coringa, às vezes o silêncio era a única resposta sensata. E, honestamente, Jason não parecia precisar de defesa. Estava se saindo melhor do que muitos adultos.
-Come garoto - disse o moreno colocando um prato de ovos mexidos na frente de Jason e finalmente se sentando na mesa.
Jason olhou para o prato por um momento como se estivesse considerando se aquilo tudo era mesmo real. Mas então pegou o garfo e começou a comer, ainda lançando olhares desconfiados ao Coringa, que agora mergulhava no cereal doce como se nada mais no mundo importasse.
O silêncio que seguia era estranho, mas não desconfortável. Era o tipo de silêncio que vinha depois de uma tempestade repentina, ainda havia nuvens no céu, mas por ora, nenhuma chuva.
Jason terminou de mastigar devagar, como se cada garfada servisse mais para dar tempo ao cérebro do que ao estômago. Ele ainda não tinha certeza se aquilo era um abrigo temporário ou um novo tipo de prisão, só com mais travesseiros e café decente.
-Você cozinha bem - murmurou, sem olhar para Bruce.
-Eu me viro - respondeu o ex-bilionário, simples - tive que aprender.
O Coringa arqueou uma sobrancelha e ergueu a colher de cereal antes de entoar:
-Ovos e macarrão instantâneo são as únicas coisas que Brucie sabe fazer, você vai se surpreender com a comida aqui de casa.
-Eu cozinho melhor que você - retrucou o moreno olhando para o palhaço.
-Isso não é grande coisa, somos ambos péssimos - riu o louco - mas talvez a gente não mate o passarinho de fome, ele parece gostar dos seus ovos.
Jason rolou os olhos, mas não retrucou. Estava começando a entender que responder ao Coringa era como jogar gasolina no fogo e, naquele momento, ele já estava cansado de incêndios.
Bruce terminou o café e se levantou, pegando os pratos vazios com movimentos calmos. O silêncio de novo. Bud bocejou alto, se espreguiçando no canto da cozinha, alheio à tensão sutil no ar.
-A gente vai sair mais tarde - disse Bruce para o palhaço, enquanto colocava as louças na pia - vou comprar umas coisas pra casa, também coisas para o quarto temporário de Jason, você fica aqui e tenta descansar.
O Coringa torceu os lábios num muxoxo e apoiou a cabeça na mão, observando Bruce de canto de olho.
-Ah, que fofo, vai levar ele para escolher cortinas também ?
Jason resmungou algo entre os dentes que Bruce preferiu não ouvir. Ele apenas assentiu com a cabeça e olhou para o adolescente.
-Vista uma jaqueta - falou o ex-bilionário para o adlescente - a gente sai em vinte minutos, se quiser tomar banho, ele fica na segunda porta à direita no corredor.
Jason levantou, e murmurou um “tá”, antes de sair da cozinha. Quando seus passos sumiram pelo corredor, o Coringa deixou a máscara de zombaria cair por um instante antes de olhar para o ex-bilionário com um olhar menos afiado e desdenhoso.
-Vou sentir sua falta - falou o palhaço depois de passar a língua no canto dos lábios - trás chocolates para mim ? Vou precisar para conviver com um adolescente.
Bruce suspirou antes de se aproximar do ex-terrorista ainda sentado na mesa.
-Você podia tentar… não ser um completo babaca, pelo menos nas primeiras vinte e quatro horas ? - falou o moreno finalmente, sem qualquer vestígio de humor.
O Coringa fez um bico teatral, erguendo o olhar para Bruce com uma expressão que misturava falsa inocência e pura provocação.
-Eu estou tentando, amor - falou o ex-terrorista - Isso foi eu tentando.
-Tente mais - disse Bruce, sem humor, os olhos fixos nos dele.
O palhaço ficou em silêncio por alguns segundos, o sorriso ainda nos lábios, mas sem brilho nos olhos. Era como se, por um instante, algo ali dentro dele reconhecesse a seriedade das palavras. Ele deu um suspiro leve, puxando Bud para o colo e alisando distraidamente o pelo do cachorro com as mãos ainda enfaixadas.
-Tá bom... vou me esforçar - disse ele, surpreendentemente sincero - mas se ele tentar me envenenar ou roubar minhas coisas eu chamo você.
O sorriso voltou aos lábios do loiro quando ele olhou para o moreno, mas era um sorriso gentil, menos espinhoso do que os habituais.
Bruce apenas assentiu, uma expressão cansada no rosto, antes de ir até a sala buscar a carteira e as chaves. No meio do caminho, ele parou, voltando um pouco os olhos para o palhaço ainda sentado.
-É sério, chocolates? Que tipo?
O Coringa sorriu como se tivesse ganhado o dia.
-Qualquer porcaria, você sabe que sou uma garota fácil de agradar - respondeu o palhaço.
Bruce balançou a cabeça com um suspiro resignado, mas havia um leve sorriso no canto dos lábios. Era sempre assim com ele, caos e charme em doses desequilibradas.
Do corredor, Jason surgiu já vestido com uma jaqueta escura, o cabelo ainda úmido. Ele parou ao ver o Coringa acariciando o cachorro, Bud não parecia ter medo do ex-terrorista, ele parecia descansado, como se não percebesse toda a energia pesada que o louco possuía.
-O cachorro gosta de você ? - falou o adolescente depois de um momento observando.
Jason não sabia como o ex-terrorista tinha conseguido o cachorro. Os olhos do palhaço se voltaram para Jason por um momento.
-Todos nós amamos a mão que nos alimenta - divagou o louco passando a língua no canto dos lábios - cachorros são simples, bem menos complexos de se relacionar, você os alimenta e recebe amor em troca.
Bruce surgiu logo depois, pegando as chaves sobre a mesinha de entrada.
-Vamos?
Jason assentiu, e os dois saíram porta afora. O Coringa ficou para trás, observando-os da cozinha, com Bud ainda enroscado em suas pernas. Quando a porta se fechou, ele murmurou para si mesmo, num tom baixo e quase pensativo:
-Hora de preparar armadilhas afetivas para adolescentes desajustados... que delícia.
—---------
O mercado estava mais cheio do que Bruce esperava para uma terça-feira à tarde. Ele empurrava o carrinho com uma mão e segurava a lista de compras na outra. Jason caminhava ao seu lado, olhando em volta distraidamente. O adolescente olhou para o carrinho por um momento, havia uma variedade muito boa de congelados, alguns tipos de massas.
O ex-bilionário tinha entrado em outro corredor e colocando duas caixas idênticas de cereal infantil barato, alguns biscoitos e achocolatado em pó. Não parecia o tipo de coisas que você associaria a um homem adulto e sem filhos. Mas pelo que o adolescente havia presenciado mais cedo, o Coringa parecia um cara com um paladar bem infantil quando se tratava de café da manhã.
O moreno retirou Jason de seus devaneios depois de um momento dizendo:
-Se quiser alguma coisa é só colocar no carrinho.
Jason assentiu, mas não colocou nada junto com o restante das compras de Bruce. Eles continuaram pelo mercado com um silêncio agradável quando, no setor de enlatados, Bruce pegou duas latas de feijão e, sem olhar, falou:
-Olha, Jason, Jay é…diferente, complicado, não dê muita atenção para as bobagens que ele fala.
O adolescente olhou para o ex-bilionário por um momento antes de entoar:
-Vai me dizer que o cara tem um bom coração? Que no fundo, no fundo, ele só está tentando ajudar?
Bruce soltou um suspiro e, pela primeira vez naquela tarde, olhou diretamente para ele.
-Definitivamente, não - a resposta foi seca, e Jason não conseguiu conter a risada.
A risada escapou rápida, inesperada, e por um segundo o peso no peito de Jason pareceu mais leve. Ele balançou a cabeça, como se não acreditasse que Bruce realmente tivesse dito aquilo com aquela cara séria.
-Ok, ponto pra você - murmurou o garoto, ainda com um meio sorriso nos lábios.
Bruce apenas deu de ombros, voltando a empurrar o carrinho enquanto seguiam para o próximo corredor.
-Mas ele está tentando - completou o ex-bilionário, o tom mais baixo, como se não estivesse confortável admitindo aquilo em voz alta - do jeito torto, esquisito e geralmente irritante dele.
-Tentar não significa que ele deva ser recompensado com cereal de estrelinha e achocolatado - respondeu Jason, apontando com o queixo para as caixas no carrinho.
-Você prefere qual? - rebateu Bruce, virando-se para ele com uma sobrancelha arqueada.
O adolescente bufou uma risada de nariz, pegou uma caixa de biscoito recheado da prateleira e colocou no carrinho.
-Esse, e não é pra ele, é pra mim.
Bruce apenas assentiu, satisfeito.
Chegaram ao corredor das frutas e, enquanto o ex-bilionário analisava bananas com uma intensidade quase desconcertante, Jason se escorou no carrinho, observando-o com um olhar meio curioso, meio desconfiado.
-Por que você fez isso? - perguntou de repente - me deixou ficar, você não precisava, o tenente Charles…ele disse que ia tentar um lar temporário até o Batman achar que tem um tempo para mim, você era só uma das opções.
Bruce não precisou perguntar o que ele queria dizer. Apenas respondeu, ainda escolhendo as frutas com calma
-Porque alguém fez algo parecido por mim, um dia.
Jason franziu o cenho antes de entoar:
-Você também era um adolescente revoltado?
-Pior - respondeu Bruce, colocando um cacho de bananas no carrinho - eu era um adolescente silencioso, e às vezes, o silêncio é mais perigoso que a raiva.
Jason encarou o chão por alguns segundos, como se estivesse digerindo aquilo. Quando voltou a falar, sua voz estava mais baixa:
-E você não tem medo de eu fazer alguma merda? Eu sempre faço alguma merda.
-Não - respondeu o moreno com um tom neutro.
Jason desviou o olhar, desconfortável com a sinceridade. Fingiu se interessar pelas maçãs por um momento.
-Não? - ele perguntou, quase descrente, sem olhar para Bruce - eu faria, eu teria medo de mim.
Bruce pegou algumas maçãs e as examinou antes de responder:
-Você não me parece o tipo de garoto que quer errar, só parece... perdido, acredite, eu sei bem como uma pessoa que não se importa com as consequências se porta.
Jason soltou uma risada abafada, amarga antes de dizer:
-Isso é só uma forma educada de me chamar de problemático.
-Problemático é alguém que não liga pras consequências, mas você se importa, está na sua cara - disse Bruce, colocando as maçãs no carrinho - você só está tentando entender onde pisa, eu entendo estar assustado.
O adolescente balançou a cabeça, os olhos ainda fixos nas prateleiras.
-Eu nem sei onde eu tô agora, pra falar a verdade - falou o adolescente depois de um momento em silêncio - Gotham é um lugar estranho.
Bruce empurrou o carrinho em silêncio por um instante, deixando as palavras do garoto ecoarem. No corredor seguinte, pararam em frente às verduras. O silêncio parecia mais denso agora, mas não desconfortável. Bruce pegou um saco de espinafre e, enquanto dobrava com calma para colocá-lo no carrinho. O ex-bilionário olhou de lado para Jason, como se estivesse tentando ver através da casca que o garoto fazia tanto esforço para manter.
-Não se preocupe, você está se saindo bem - falou Bruce.
Jason soltou uma risada curta, quase sem humor.
-Você mal me conhece - entoou o adolescente - como pode saber ?
-Eu presto atenção.
O garoto abaixou o olhar, como se não soubesse o que fazer com aquela resposta.
Estava acostumado com gente que julgava com pressa, não com alguém que observava em silêncio.
-Ele ainda vai me ajudar, né? O Batman. Com... ela?
Bruce assentiu devagar, como se medisse cada palavra antes de dizê-la:
-Vai, se ele prometeu, ele vai cumprir.
Jason apertou os lábios e assentiu, quase com relutância
-Você fala como se conhecesse ele pessoalmente - Jason comentou.
Bruce lançou um olhar breve por cima do ombro, neutro, antes de entoar:
-Sou casado com um dos caras que o Batman caçava pela cidade, então acredite, eu sei bem do que estou falando, Batman costuma cumprir suas promessas.
No corredor dos pães, Bruce pegou um pacote integral e um de forma comum, sem nem olhar. Jason observou com um certo tédio fingido, mas seus olhos não paravam, ele analisava tudo, não os produtos, mas o homem à sua frente. Tentava entender. Quando chegaram na parte dos frios, Jason quebrou o silêncio:
-A Tália... você sabe por que ela sumiu? Quer dizer, por que o Batman não a encontra?
Bruce pegou uma bandeja de queijo e outra de peito de peru, ajeitando no carrinho antes de responder:
-Ela é boa em desaparecer, e também é boa em esconder o que não quer que seja encontrado.
Jason assentiu devagar. Isso fazia sentido. Mas a raiva em seu peito não diminuiu.
-E se ela não quiser ser encontrada?
Bruce olhou para ele, sério, antes de entoar:
-Batman vai encontrá-la.
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Blackgate Penitentiary – Sala de Entrevistas 03
A luz fluorescente zumbia. Uma mesa estava posicionada no centro, duas cadeiras. Uma delas ocupada por Andy. Chuck entrou na sala sem pressa, mas com os ombros tensos. O barulho da porta se fechando atrás de si ecoou como um selo.
O tenente não queria estar lá, ele não queria falar com Matthew, o fantasma de Annie, sua colega e amiga ainda entre eles. Chuck sabia da raiva que Andy sentia, ele mesmo sentia uma semelhante, mas até certo ponto, ele não entende como um homem instruído como o ex-psiquiatra conseguiu chegar naquele ponto.
Os dois homens se encararam por um momento, muitas coisas sendo ditas naquele espaço silencioso. Andy o observava com uma postura neutra.
-A que devo a visita, Tenente Charles ? - entoou o ex-psiquiatra em um tom limpo.
-Samuel Rise foi encontrado morto - falou o tenente depois de um momento de silêncio - parece coisa do Contador de Histórias, achei que você gostaria de saber.
Andy ficou em silêncio por um momento, ele parecia processar essa informação, afinal, Samuel era seu amigo, e foi arrastado novamente para essa confusão por conta dele, ou talvez nunca tivesse de fato, saído.
-Eu aposto que você não perderia sua tarde apenas para me contar que meu amigo foi assassinado, Chuck - falou calmamente o ex-psiquiatra - vá direto ao ponto, o que te trás aqui ?
-Achamos que você pode nos ajudar a elucidar algumas questões sobre esse caso - falou o tenente.
Eu não sei de nada, eu já disse - suspirou Andy - meu contato com o Contador de Histórias acabou quando fui preso no ano passado, eu não estou envolvido nisso.
-Eu acredito em você Matthew - disse o tenente escolhendo suas palavras - mas acho que você ainda pode nos ajudar, afinal, Samuel era seu amigo.
-O que você quer saber ? - perguntou Andy com um tom neutro e desinteressado.
-Você sabia que Samuel Rise estava ligado com o tráfico de pessoas ?
-Sam não traficava pessoas - falou o ex-psiquiatra - ele vendia fitas, cenas explícitas, esse tipo de merda.
-Você conhece Rick Crale ? Esse nome te diz alguma coisa ?
-Não - respondeu Andy - na época que Sam começou a mexer com essas coisas eu acabei me afastando por causa de Annie, eu não queria que ela descobrisse, então eu achei melhor me afastar, eu não conheço as pessoas com quem Sam estava envolvido nesse período.
-Bem - continuou o tenente - foi encontrado uma mensagem junto com o corpo de Rise, uma mensagem que já apareceu antes para nós da delegacia.
-Quando ?
-Em um telefonema - falou o tenente - é uma espécie de charada.
Andy respirou fundo, o olhar fixo em um ponto qualquer da parede atrás de Chuck. Havia raiva contida ali. Culpa, talvez. Mas também um ressentimento antigo, de raízes profundas. Andy ficou em silêncio por mais um momento antes de entoar:
-Qual é a charada ?
-Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou? - respondeu o tenente.
O ex-psiquiatra ficou em silêncio, digerindo as palavras ditas pelo tenente com uma frieza cirúrgica. Depois de alguns minutos, Andy quebrou o silêncio:
-Bem, isso pode ser muitas coisas, ela por si só não diz nada e eu tão pouco consigo associar ela com Sam.
-Rick Crale, o nome que temos vinculado ao Rise, tem o mesmo sobrenome de uma empresa de fachada que fazia entregas rotuladas como bens diversos, A. Crale Imports - continuou o tenente - temos um contêiner desaparecido dessa empresa, datado de 2006, isso te diz alguma coisa ?
O ex-psiquiatra ficou em silêncio por um momento, absorvendo o que foi dito pelo tenente com uma expressão neutra. Ele sabia de um contêiner, ele pensou por um momento se reteria essa informação. O contêiner que estava no fundo do rio de Gotham, o container com os corpos das crianças traficadas. O contêiner que o Coringa havia jogado no rio.
-Bem - começou o ex-psiquiatra - nesse caso, eu acho que a charada pode significar o fundo de um rio.
Andy falou com calma, mas havia um peso sutil em sua voz, como se cada palavra estivesse sendo medida antes de ser liberada. Chuck percebeu. Conhecia aquele tom. Era o tom de quem sabia mais do que estava dizendo, mas ainda decidia o que valia a pena compartilhar.
-O fundo de um rio? - repetiu o tenente, os olhos presos no rosto do ex-psiquiatra.
-Faz sentido, não faz? - continuou Andy, apoiando os cotovelos na mesa de metal, entrelaçando os dedos - silêncio, lama, fluxo constante... Um lugar onde o sol não toca, e onde segredos... apodrecem.
Chuck manteve o olhar firme, mas sua mandíbula estava tensa.
-Você já sabia de um contêiner - acusou, a voz baixa, controlada - está escolhendo cuidadosamente o que me contar.
O ex-psiquiatra ergueu uma sobrancelha.
-E você está me fazendo perguntas como se não estivesse carregando metade das respostas no bolso - falou Andy calmamente, mas havia um peso em sua voz - vamos poupar o teatro, Chuck.
-Eu não estou aqui pra encenar nada - rosnou o tenente, o maxilar travado - estou aqui porque mais uma pessoa morreu, então é melhor você contar tudo o que sabe.
Andy desviou o olhar, inclinando-se ligeiramente para trás na cadeira. Um gesto sutil de defesa. Mas Chuck viu algo mais ali, um desgaste real. Fadiga. Mas também um cuidado minucioso com cada palavra.Mas também um cuidado minucioso com cada palavra.
Andy manteve a expressão neutra, mas por dentro, uma tempestade de pensamentos se formava. Ele sabia mais do que estava revelando, mas expor certas verdades poderia desencadear consequências imprevisíveis.
-Sinto muito, Chuck - falou o ex-psiquiatra por fim - eu gostaria de poder ajudar mais, mas estou tão no escuro quanto você.
Chuck o estudou por um momento, tentando discernir a veracidade por trás das palavras. Finalmente, ele se levantou, ajeitando o paletó.
-Se lembrar de algo, qualquer coisa, me avise.
Andy assentiu, observando enquanto Chuck se dirigia à porta. Quando o tenente saiu, Andy permitiu-se fechar os olhos por um instante, sentindo o peso das informações que escolheu não compartilhar. Algumas verdades, ele sabia, eram perigosas demais para serem reveladas.
Notes:
Obrigado por ler até o final :) Comente para me deixar feliz.
Chapter 32: The Gotham We Have (Capítulo 32)
Notes:
Feliz Páscoa galera, vou deixar um presentinho aqui. Por conta do feriado consegui ter um tempo a mais e terminar esse capítulo dentro do prazo :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Uma semana havia se passado desde que Jason cruzara a porta do apartamento de Bruce, carregando nos ombros mais cicatrizes do que anos vividos. E embora a princípio tudo tivesse o gosto amargo de um abrigo temporário, de pratos divididos, silêncios esquisitos e o Coringa resmungando pela casa como uma entidade caótica matutina, Jason começava, aos poucos, a se adaptar.
Ele ainda dormia no sofá-cama, mas já não deixava a mochila fechada como se estivesse prestes a fugir a qualquer segundo. Bud passara a deitar perto dele as vezes, e o garoto mas ocasionalmente deixava escapar uma piada durante o jantar, mesmo que sempre em tom sarcástico. Bruce observava tudo com discrição, atento, mas sem invadir. Ainda era um território frágil. Algo em construção, uma tênue confiança.
O Coringa não fazia questão de facilitar. Ele era provocador, imprevisível, mas também... estranhamente constante. Jason já não se enrijecia tanto ao vê-lo pela manhã. O loiro continuava com sua teatralidade usual, mas parecia entender seus limites com uma clareza desconcertante. Talvez por saber reconhecer nos olhos do garoto algo que um dia existiu nos seus próprios.
Apesar do clima parecer menos tenso por fora, as coisas continuavam furiosamente sombrias por trás das cortinas. Bruce adentrava as noites em seu laptop procurando por algum sinal de Talia, mas não havia nenhum. Ela tinha evaporado novamente e o ex-bilionário sentia Jason cada dia mais impaciente. Esse momento de trégua não iria durar.
Dick Grayson tinha ligado várias vezes para o apartamento durante os últimos dias. Bruce, no entanto, não queria atender. O moreno sabia que havia cruzado uma linha quando permitiu que um universitário, sem qualquer treinamento ou instrução, adentrasse na investigação dessa forma. Bruce não podia deixar de se sentir responsável por ter, mesmo que não intencionalmente, colocado Richard na investigação do Contador de Histórias.
O ex-bilionário sabia que o aspirante a jornalista investigativo não havia desistido, que possivelmente não desistiria, mesmo que Bruce não atendesse seus telefonemas. Bruce precisava de alguma forma fazer com que o Dick perdesse a curiosidade nesse caso. Até onde o outro homem sabia, Bruce Wayne e Batman eram duas pessoas distintas. Bruce Wayne estava procurando por Matthew Cole, que coincidentemente estava envolvido no caso do Contador de Histórias. Agora que o Coringa tinha aparecido Bruce Wayne não tinha mais motivos para estar envolvido nisso. Bruce contava que Dick entendesse isso.
O ex-bilionário não atenderia o telefone, ele não daria qualquer esperança para o jornalista investigativo. Além disso, ele estava mais focado em outra parte, mesmo que um pouco mais indireta, da investigação. Ele estava procurando por Talia.
O moreno se lembra da última conversa que teve com a mulher semanas atrás, quando estava tão imerso na busca pelo Coringa. Ele se lembra do tom triste usado por Talia. Bruce sabia que tinha alguma coisa acontecendo, que ela precisava de ajuda, que talvez ela não estivesse fazendo o que estava fazendo por vontade própria.Talvez não totalmente por vontade própria, já que ninguém era capaz de fazer uma mulher como Talia fazer aquilo que não quer.
Ele foi tirado de seus pensamentos quando o Coringa entrou no quarto com uma xícara de café forte e a colocou em cima da escrivaninha para o moreno.
-Algumas restrições sobre a televisão que eu preciso saber ? - perguntou o ex-terrorista descansando as mãos nos ombros do moreno - o garoto não sai da frente daquilo o dia todo.
Bruce levou alguns segundos para processar a pergunta. Ainda estava com metade da mente imersa nos rastros digitais de Talia, nos registros do porto, em câmeras que talvez nunca tivessem existido. Ele olhou de relance para a xícara, o cheiro do café forte invadindo seus sentidos, e depois ergueu os olhos para cima até encontrar os do loiro por um momento, antes de voltar sua atenção para a pilha de papéis e para a tela do laptop a sua frente.
-Desde que ele não comece a assistir reality shows sobre reforma de casas... acho que ele está livre - murmurou o moreno, a voz grave, carregada pelo cansaço acumulado.
O Coringa riu, um som rouco e baixo que não chegou a ser provocador, apenas cansado, como ele também estivesse se segurando nas bordas de um dia longo demais.
-Eu me lembro de ler em algum lugar - murmurou o louco passando a língua no canto dos lábios por um momento - acho que foi em uma das revistas da velha biblioteca do Arkham, ou alguma coisa assim…enfim, telas em excessos podem desencadear insônia e ansiedade.
-Ele precisa de algo idiota o suficiente pra anestesiar a cabeça por algumas horas - falou Bruce com um suspiro, apenas pegano a xícara e dano um gole no café. O calor amargo cortando um pouco da névoa mental que se acumulava nos últimos dias.
-Ele está inquieto - continuou o moreno, ainda olhando para a tela - está tentando esconder, mas eu vejo, ele está esperando por uma resposta que talvez eu não consiga dar.
-Você se preocupa demais - falou o louco passando a língua no lábio inferior - não é como se ele estivesse planejando uma fuga ou ainda, explodir esse apartamento com algum tipo de bomba caseira.
Bruce fechou o laptop com um estalo seco, os olhos ainda cansados, e se virou lentamente na cadeira para encarar o Coringa, que ainda estava atrás dele.
-Você precisa voltar ao psiquiatra - falou o moreno, mudando de assunto de repente - eu sei que o promotor responsável pelo seu caso apareceu aqui hoje de manhã, e você sabe que isso é meio insustentável, que sua liberdade provisória depende do seu tratamento para atestar que você não é uma ameaça para a cidade.
-E você precisa para de agir como se fosse sua responsabilidade resolver todos os problemas dessa cidade esquecida por deus - falou o louco se jogando dramaticamente na cama - mas olha só, nenhum de nós está fazendo o que devia fazer, eu estou postergando meu encontro com meus medicamentos e você está brincando de detetive de novo, com medo de decepcionar um adolescente.
Eles ficaram em silêncio por mais um momento, apenas o som de teclas sendo pressionadas e o som baixo da televisão no outro cômodo. Bruce soltou um suspiro pesado, deixando o corpo afundar um pouco mais na cadeira enquanto o Coringa se estirava na cama como se não fosse ele mesmo quem tinha recebido uma visita ameaçadora de um promotor judicial horas atrás. O ex-bilionário esfregou o rosto com uma das mãos, sentindo a barba por fazer raspando sob seus dedos.
O Coringa deixou a cabeça pender para o lado, os cabelos loiros caindo sobre os olhos e a expressão entediada, mas atenta. Ele tamborilou os dedos no próprio estômago antes de falar, um sorriso atravessando seus lábios com um toque de escárnio.
-Então é assim que soa a nossa primeira discussão sobre como criar um filho? - entoou o palhaço teatralmente.
Bruce bufou, mas não riu. Apenas apoiou os cotovelos nos joelhos e esfregou o rosto por um momento, como se tentasse afastar o cansaço que se acumulava em cada centímetro do seu corpo.
-Ele não é nosso filho - respondeu, sério, com uma calma deliberada.
-Não? - o loiro arqueou uma sobrancelha, divertindo-se mais do que devia - e então por que está tão aflito como um pai prestes a perder a guarda? Você acorda antes dele, faz café, pergunta sobre o humor do dia, vasculha o rastro de uma mulher que talvez nem queira ser encontrada só pra dar ao garoto um pedacinho de verdade sobre o passado, você está quase completando o pacote com um boletim escolar e uma reunião de pais.
Você vai se esgotar - murmurou o palhaço, de forma surpreendentemente suave - isso aqui, essa coisa com Jason... não vai acabar do jeito que você quer, você está colocando esperança onde não devia, isso nunca termina como nos filme, nunca.
Bruce se recostou na cadeira, girando-a lentamente para encarar a janela fechada, onde a luz cinza da tarde mal conseguia atravessar a persiana.
-Eu sei disso.
O louco o observou por mais um tempo, a expressão agora menos debochada
-Então por que continuar? - falou o palhaço lambendo o canto dos lábios - você sabe que mesmo que encontre Talia nada garante que ela saiba alguma coisa sobre a mãe biológica de Jason, e mesmo que ela saiba, talvez não seja a resposta que ele quer ter.
Bruce apertou os olhos. Ele não respondeu logo, apenas respirou fundo. Ele sabia que o Coringa tinha razão até certo ponto, nada garantia que Jason conseguiria as respostas que queria. Talvez ele consiga as respostas que não quer.
-Você sabe como crianças acabam indo parar em redes de tráfico? - perguntou o louco no silêncio que se seguiu - esqueça esse lance de sequestro, não estou dizendo que não acontece, mas, a maioria ? Bem, eles preferem crianças que não vão aparecer atrás caixas de leite nos supermercados.
Bruce não respondeu de imediato. Seu maxilar se contraiu levemente, a única reação aparente enquanto deixava as palavras do Coringa se infiltrarem. O silêncio que se instalou na sala não era vazio, era pesado, quase viscoso. O tipo de silêncio que não vinha da falta de coisas a dizer, mas do excesso.
-Eu sei - respondeu ele por fim, a voz rouca, baixa - eu sei disso.
O Coringa virou o rosto na direção do moreno, agora sentado mais ereto na cama, os olhos semicerrados avaliando cada microexpressão de Bruce.
-Então porque ? - perguntou o louco.
-Porque ele não vai parar até ter as respostas, mesmo que não seja as que ele espera - respondeu o moreno depois de um momento, sua voz era calma, mas pesada - as vezes o melhor é que ele sofra o que precisa sofrer, para que ele possa se curar com o tempo e seguir em frente.
O Coringa ficou em silêncio por um instante, analisando Bruce como quem observa uma peça rara de um quebra-cabeça distorcido. Depois, se levantou da cama num movimento lento e quase preguiçoso, atravessando o quarto até parar ao lado do moreno, que ainda encarava a janela como se esperasse encontrar ali alguma resposta.
-Eu não posso forçar o que ele vai fazer com as verdades que encontrar - continuou o moreno - eu só posso garantir que, quando ele tiver que encará-las... não vai estar sozinho.
Por um segundo, os olhos do Coringa suavizaram. Algo quase imperceptível. Uma sombra de emoção que passou rápido demais para ser nomeada.
-Você sempre teve esse maldito complexo de mártir.
Antes que Bruce pudesse responder, uma batida seca soou na porta do apartamento, vinda da sala. Não era urgente, mas era firme.
Bruce franziu o cenho. Ele não estava esperando ninguém.
-Se for o promotor de novo, manda ele entrar com ordem judicial - murmurou o Coringa, jogando-se de novo na cama.
Bruce ignorou o comentário e saiu do quarto em direção à porta. Jason estava sentado no sofá com Bud ao lado, os dois virando o pescoço ao mesmo tempo para a entrada. Bruce destravou a tranca e abriu.
Era Dick. O jovem segurava uma pasta de documentos contra o peito e parecia frustrado, não por raiva, mas pelo cansaço que só a frustração prolongada provocava.
-Bruce - falou o aspirante a jornalista investigativo com um tom urgente - você não tem atendido minhas ligações, nós precisamos conversar.
-Eu não tenho nada para conversar - falou o moreno em um tom neutro, baixo, tentando manter a conversa apenas para ele e para o outro homem - eu estou fora dessa investigação, Matthew foi preso, é só isso que importa para mim, já te disse, vá para a polícia, eles vão saber como ajudar.
-Eu…Eu não posso - falou Dick, seu tom instável e seu rosto nervoso - a gente precisa conversar, eu…eu descobri uma coisa.
O ex-bilionário lançou um olhar por cima do outro, encontrando seu olhar com Jason. O adolescente estava na sala e ele não queria Jason envolvido com isso. Ele fingia estar vidrado na televisão, mas Bruce sabia ler melhor do que aquilo. O garoto estava ouvindo.
-Entra - o ex-bilionário disse por fim - mas fala baixo.
Dick entrou. Bruce fechou a porta atrás deles e apontou com o queixo para a cozinha. Jason virou o rosto brevemente, mas não disse nada, apenas seguiu assistindo algo aleatório na TV, sem dar muita importância.
Na cozinha, Bruce nem sequer sentou na mesa, ele fitou Grayson com um olhar cauteloso antes de dizer:
-Vamos falar rápido.
Dick largou a pasta sobre a mesa de forma controlada, mas seus dedos estavam trêmulos. Bruce se apoiou na bancada, cruzando os braços, a expressão sóbria.
-O que foi?
-Você se lembra da Awaning Ltd? Aquela empresa e fachada que eu encontrei com os nomes Nigéria e Jigawa que apareciam no caso mais de uma vez ? - falou Dick apressadamente
-Sim, as coordenadas de Nigéria e Jigawa, somadas, davam o número do contêiner da A. Crale Imports, desaparecido em 2006 - completou o moreno com um tom neutro, como alguém que já sabia dessas informações e as tinha repassado várias vezes nos últimos dias - o que tem ?
Dick respirou fundo, tentando organizar os pensamentos antes de falar. Seus olhos estavam agitados, como se cada detalhe da investigação estivesse saltando dentro de sua cabeça ao mesmo tempo.
-Eu tenho investigado a polícia nos últimos dias, uma vez que, bem, nós levantamos a hipótese de que alguém da polícia poderia estar envolvido nisso, já que a Awaning aparece em várias investigações sem conclusão, e não só elas, mas várias empresas igualmente fantasmas, empresas de fachada dona de outras empresas - continuou o aspirante a jornalista investigativo - Awaning ela é só a ponta do iceberg, ela pertence a uma holding sediada em Hong Kong que, por sua vez, é controlada por outra empresa registrada em Belize… eu fui puxando o fio, uma empresa atrás da outra, a maioria sem funcionários, sem sede física.
Bruce permaneceu em silêncio, os olhos fixos em Dick, o maxilar travado.
-E onde isso termina?
-Termina em uma empresa chamada Eclar - respondeu Dick, abrindo a pasta e virando um dos papéis na direção de Bruce - últimos registros fiscais de 1998.
-Eclar…- repetiu o ex-bilionário como quem experimenta o nome estranho. O moreno ficou em silêncio por um momento antes de tornar a falar:
-E por que você não pode levar isso à polícia?
-Porque, como eu disse, tem alguém na polícia que está mexendo alguns pauzinhos, que tem mexido pauzinhos a anos… eu não sei em quem posso confiar - admitiu Dick.
-Converse com o Tenente Charles, ele é um homem de confiança, ou com a detetive Sarah Essen - falou o moreno - são pessoas idôneas, que vão saber o que fazer com essa informação bem mais do que eu.
Dick assentiu e estava pegando sua pasta quando o ex-bilionário tornou a falar:
-E depois que você falar com eles, você vai se afastar dessa história - a voz o moreno era dura - isso acaba aqui.
Dick parou com a pasta nas mãos, hesitando por um instante. Ele não olhou para Bruce de imediato, seus olhos estavam fixos em algum ponto entre a mesa e o chão, como se soubesse que ouvir aquilo era inevitável.
-Você sabe que eu não posso fazer isso - respondeu o aspirante a jornalista investigativo, a voz mais baixa, menos urgente agora - não depois do que vi, do que descobri, eu já estou envolvido demais para voltar agora.
Bruce descruzou os braços devagar, soltando o ar pelos dentes como se aquilo fosse um esforço físico. Ele caminhou até o canto da cozinha, girando o corpo levemente para verificar se Jason ainda estava na sala. O garoto continuava na frente da TV, aparentemente sem escutar nada.
Bruce voltou os olhos para Dick, o olhar agora mais duro, quase sombrio.
-Isso não é uma matéria universitária - disse ele, num tom mais baixo, quase seco - isso é uma linha direta com o pior tipo de gente que existe, pessoas que somem com crianças, lavam dinheiro, matam testemunhas e enterram as provas embaixo de cem nomes falsos.
Dick o encarou, e por um instante, o peso das palavras pareceu se assentar em seus ombros. Mas ainda assim, não recuou.
-Eu sei disso - respondeu o Grayson com firmeza - e é justamente por isso que eu não posso largar isso, e eu fingir que não vi, sou cúmplice, e eu não quero ser mais um nome passivo entre os que deixaram isso passar.
Bruce apertou a mandíbula, os olhos pesando sobre o rapaz como se tentasse protegê-lo apenas com a força do olhar. Ele reconhecia aquele ímpeto, aquela teimosia moral que não se dobrava. Era o mesmo traço que havia admirado nele desde o começo. E, talvez, o mesmo traço que podia destruí-lo.
-Só me diz uma coisa - falou Bruce, por fim - você sabe o que está procurando?
-Não - admitiu o universitário - mas eu vou descobrir o que estou procurando quando encontrar.
Bruce ficou em silêncio por um longo momento, apenas observando Dick, como se procurasse nele algo que pudesse convencê-lo a recuar, mas o olhar do garoto era firme. Teimoso. Aquilo o lembrava de si mesmo até certo ponto.
O silêncio que seguiu foi breve, interrompido pelo som de Bud latindo uma vez na sala e o volume da televisão sendo abaixado.
Jason apareceu na porta da cozinha, de braços cruzados, encostado no batente com a expressão de quem tentava fingir que não estava escutando, mas já escutava desde o segundo parágrafo.
-Vocês são péssimos em cochichar, sabia? - disse ele, com uma sobrancelha arqueada.
Bruce e Dick trocaram um olhar rápido. O moreno se adiantou antes que qualquer coisa saísse do controle.
-Não é nada que você precise se preocupar - disse Bruce, direto.
-Aham - Jason murmurou, cético - porque conversa em sussurros, troca de pastas e olhares carregados sempre indicam coisas irrelevantes, claro.
Bruce já ia dizer algo mais direto, mas a voz arrastada e debochada do Coringa cortou o ar antes disso.
-Olha só - disse o loiro, surgindo no corredor com uma caneca na mão, vestindo um moletom desbotado - um clube da conspiração.
Sua postura era preguiçosa de quem já estava de saco cheio antes mesmo de abrir a boca. Ele deu um gole na caneca, parou ao lado de Jason e o olhou de cima a baixo como quem avalia um móvel fora do lugar.
-Anda, moleque, vai cuidar da sua programação cerebral de alienação enquanto os adultos falam de coisas de adultos - disse, dando um tapinha leve no ombro do garoto - e para de bisbilhotar ou vou comer seu cereal novo, vai brincar com o Budie ou assistir qualquer porcaria na TV, mas para de bancar o detetive mirim na cozinha.
O garoto bufou, rolou os olhos e saiu da cozinha, mas não sem lançar mais um olhar desconfiado por cima do ombro.
-Vocês são todos péssimos em esconder segredos nessa casa - falou Jason se afastando.
O Coringa acompanhou o garoto com os olhos até ele sumir da vista, e então virou a atenção para o convidado. Seus olhos pousaram em Dick como quem observa uma mancha estranha no carpete, algo que não deveria estar ali.
-E você ? - disse o palhaço antes de passar a língua no canto dos lábios, o tom agora carregado de uma curiosidade ácida - não me disseram que teríamos visita.
Dick travou. Nunca tinha estado frente a frente com o palhaço. Já tinha lido dezenas de artigos, relatos clínicos, perfis criminais, e até assistido vídeos de depoimentos, mas nada disso preparava alguém para estar a dois metros do Coringa.
-Richard Grayson - disse ele, tentando soar mais casual do que se sentia - eu sou…amigo de Bruce.
O Coringa sorriu. Mas não era um sorriso simpático, seus olhos estavam frios como metal afiado.
-Ele está estagiando no The Gotham Times - ofereceu o moreno com um tom neutro, tentando encerrar a conversa - já está de saída.
-Sim - afirmou o rapaz um pouco rápido demais - eu já estou de saída.
-Ah, não, não - o Coringa ergueu as mãos, teatral, dando um passo para dentro da cozinha - imagina, eu não quero atrapalhar.
Dick engoliu em seco, os olhos voltando para Bruce por um breve instante. O ex-bilionário não se moveu, mas estava em alerta, os dedos contra a bancada, o olhar fixo no palhaço. Um único gesto e ele interviria.
Mas o Coringa só deu um passo para o lado, deixando a tensão pairar no ar como fumaça. Dick tentou sustentar o olhar, mas havia algo no jeito que o Coringa o encarava, como se já tivesse decidido exatamente onde enfiaria uma faca, caso a conversa seguisse mal, que fazia seus músculos retraírem sem que ele percebesse.
-Eu só vim entregar umas anotações - disse Dick, tentando soar casual, mas sua voz saiu um pouco mais baixa e tremula do que ele gostaria.
-Dick já estava indo - repetiu Bruce, desta vez com mais firmeza, como quem traça uma linha invisível no chão.
O Coringa ergueu as sobrancelhas e assentiu devagar, como se estivesse considerando um argumento bem razoável, mas não se moveu para sair do batente da porta.
-Claro, claro, eu só achei... curioso - ele inclinou o rosto de volta para Dick, os olhos fixos, implacáveis - sabe, você tem esse ar de gente que ouve mais do que deveria, e isso é bom pro jornalismo, mas péssimo para saúde.
Dick engoliu em seco. A pasta parecia pesar o triplo em seus braços.
-Eu... já vou mesmo - disse ele rapidamente, se virando para sair, passando ao lado do Coringa - Obrigado, Bruce.
-Uma pena - murmurou o palhaço nas costas do garoto, com uma voz arrastada e suave como veludo sujo.
Dick hesitou por um segundo, mas não respondeu. Apenas acelerou o passo até a porta. Bruce o acompanhou até lá em silêncio, abrindo sem dizer uma palavra. Depois que Dick saiu Bruce entrou novamente na cozinha, onde o Coringa cantarolava uma melodia baixa, quase infantil, enquanto girava uma colher esquecida na caneca.
-O que foi aquilo? - disse Bruce, a voz baixa, controlada, mas com o maxilar travado.
O Coringa continuou girando a colher por mais dois segundos antes de levantar os olhos.
-Aquilo foi um universitário metido, metendo o nariz onde não devia - respondeu o palhaço, dando um gole longo no café frio.
-Você foi longe demais - disse Bruce, se aproximando - ele não é seu inimigo.
-Ainda não - respondeu o loiro lambendo o lábio inferior, com um sorriso enviesado - mas sabe como é... o cheiro da desconfiança é difícil de ignorar.
Bruce agarrou o Coringa pelo braço com firmeza, não o suficiente para machucar, mas o suficiente para deixar claro que não queria continuar aquela conversa ali. O ex-bilionário o puxou até o quarto, fechando a porta atrás de si com um estalo seco.
-Jason está na sala - murmurou o moreno - e você sabe muito bem quando não é hora de provocar uma briga por coisas estúpidas.
O Coringa riu, mas sem humor.
-Ah, que bonitinho, puxando a mamãe para quarto para brigar longe da criança.
-Você sabia de alguma coisa - acusou Bruce, soltando o braço do loiro e recuando um passo - você não estava só testando ele ou brincando de ser ciumento.
O Coringa ergueu uma sobrancelha, depois lambeu o lábio superior lentamente, pensativo.
-Talvez sim, talvez não - disse, antes de se jogar na cama, de novo - mas agora que você mencionou…
Ele se virou de lado, apoiando a cabeça em uma mão e encarando Bruce com os olhos semicerrados.
-Andy falou dele.
Bruce o encarou, confuso.
-Do Grayson ?
-Não pelo nome - disse o palhaço passando a língua no lábio inferior - ele só disse que não tinha sido ele quem colocou as câmeras aqui em casa, disse que um tal estagiário do The Gotham Times andava curioso demais... que estava farejando sua vida e que talvez tivesse plantado mais do que perguntas.
Bruce ficou imóvel. Os músculos do pescoço tensionaram, os olhos presos nos do Coringa.
-As câmeras e os microfones ?
-É - respondeu o loiro, esticando os braços dramaticamente - as câmeras escondidas que fizeram você ficar paranoico, não eram do Andy.
O silêncio que se seguiu pareceu se esticar no ar como um elástico prestes a estourar. Bruce se afastou devagar, o cérebro processando rápido demais e, ao mesmo tempo, não acreditando.
-Você está dizendo que... foi ele que invadiu o apartamento? Que plantou equipamento de escuta e vídeo?
-Ora, ora - o Coringa riu baixo, se arrastando um pouco mais para o centro da cama - quem diria que ele tinha isso dentro dele, mas eu achei que ele fosse mais resistente, estava tremendo, coitadinho, acho que exagerei.
Bruce se virou de costas por um segundo, uma das mãos apertando a nuca. A tensão que já o corroía nos últimos dias se fechava agora como uma armadilha.
Ele sabia que Dick estava investigando. Sabia que desconfiava dele ser o Batman, que achava que Bruce Wayne era mais do que deixava transparecer. Mas aquilo? Instalar câmeras no apartamento onde viviam ele e o Coringa? Era mais do que teimosia. Era um grau totalmente novo.
-Eu vou resolver isso - disse o ex-bilionário por fim, num tom baixo, mas firme.
-Ah, vai, vai sim - o Coringa murmurou - vai conversar com ele, com essa cara de decepcionado. "Eu esperava mais de você, isso foi muito feio" , e aí ele vai fingir que está arrependido, vai escrever um artigo brilhante e ainda vai colocar uma notinha de rodapé sobre você ser o Batman.
Bruce se virou, os olhos ardendo, mas o rosto ainda estava calmo. Ele sabia como o Coringa operava. Cutucava, provocava, destilava veneno por entre frases banais.
-Você não vai falar com ele de novo - disse Bruce, seco - não chega perto dele, nem menciona isso, você entendeu ?
-Tudo bem - o loiro respondeu, erguendo as mãos como quem se rende - não sou eu que estou cheio de segredinhos com estagiários, só estava tomando meu café.
-Se você estiver mentindo - disse Bruce, sem se virar - se isso for só mais uma das suas manipulações…
-Então me desmente - interrompeu o Coringa, a voz leve, mas com veneno gotejando em cada sílaba - você acha que eu inventaria algo assim ?
-Sim - falou o moreno simplesmente olhando para o palhaço.
-Ok, eu faria - admitiu o loiro olhando para o moreno de onde estava na cama - mas eu não estou mentindo amor, eu juro.
-Tudo bem - falou o ex-bilionário com um suspiro - eu acredito em você.
-É a primeira vez que você diz isso para mim - disse o palhaço depois de um momento de silêncio, seus olhos mais suaves.
-Não abuse.
Bruce cruzou os braços, encostado na lateral do guarda-roupa, os olhos presos na figura largada sobre a cama. Ele estava cansado. Não só fisicamente, embora isso também fosse verdade.
-Você vai conversar com ele? - perguntou o Coringa depois de um tempo, ainda deitado de lado, os dedos brincando com a borda do lençol.
Bruce não respondeu de imediato. Ele queria dizer que sim, que colocaria tudo às claras, que resolveria aquilo com calma, com lógica, com controle. Mas parte dele sabia que, naquele momento, não era o Batman que iria falar com Dick. Era Bruce Wayne, confuso, traído e com raiva.
-Sim, mas não hoje - disse por fim, com um suspiro - o que mais Andy te disse ?
-Sobre nosso querido jornalistazinho ? Nada - respondeu o palhaço - mas você sabe que sempre podemos só ir até Blackgate e perguntar.
-Não quero você perto dele - falou o moreno, sua expressão ficando mais dura.
-Você não é meu dono, Brucie - entoou o ex-terrorista - acredite, eu sou a última pessoa que quer conversar com o filho da puta do Andy.
-Eu vou falar com ele - disse o moreno, seu tom era duro.
O Coringa se ergueu um pouco na cama, apoiando o tronco nos cotovelos, os cabelos bagunçados escorrendo pela testa. Ele observou Bruce em silêncio por alguns segundos, os olhos apertados, como se tentasse decifrar algo que ainda lhe escapava.
-Você acha que eu preciso de proteção de alguém como o Andy? - perguntou, não com raiva, mas com uma curiosidade irritada - isso é fofo… e profundamente ofensivo.
Bruce não respondeu de imediato. Seu maxilar se movia, tenso, como se mastigasse algo que não conseguia engolir.
-Não é sobre o que você pode ou não fazer - murmurou Bruce, olhando para o chão por um momento antes de voltar os olhos para ele.
-Ah, então é sobre amor - o louco sorriu, mas o sorriso era cortante - que horror, Bruce, eu achei que a gente tinha superado essa fase. Andy é só um cara esquisitinho, ele não é realmente perigoso.
-Ele sumiu com você por dias - disse o moreno simplesmente, como se falasse um fato corriqueiro sobre o tempo - te manteve em cárcere privado acorrentado dentro de um banheiro.
-Brucie eu estou bem - falou o palhaço, sua voz era calma - só brincamos de terapia barata, ele não tentou me machucar, ele só…queria conversar comigo, seja lá o que isso quer dizer.
Bruce ficou em silêncio após a última frase do palhaço, como se ela tivesse deixado um eco incômodo dentro dele. “Só brincamos de terapia barata.” Aquilo soava como uma piada, como tantas outras que o Coringa usava para minimizar a dor. Mas Bruce sabia. Sabia o que havia por baixo daquela camada de cinismo teatral, o que existia nas entrelinhas quando o loiro dizia que estava "bem".
Ele se afastou da parede e caminhou até a janela, afastando a cortina apenas o suficiente para ver a cidade encoberta pelas nuvens cinzentas de fim de tarde. O silêncio se estendeu por mais um momento antes de ele falar, sem virar o rosto:
-Eu sei que você sabe se defender.
O Coringa ficou quieto por alguns segundos, observando o moreno com uma expressão que oscilava entre tédio e atenção genuína.
-Você está com raiva - constatou o loiro estalando a língua antes de passá-la no lábio inferior despreocupadamente.
-Estou, estou porque eu amo você, porra - disse Bruce, enfim, com uma dureza que tentava esconder a vulnerabilidade da frase.
O silêncio que seguiu não foi constrangedor, mas carregado. O Coringa deixou escapar um pequeno riso abafado, quase descrente, e virou de costas, deitando de bruços com o rosto no travesseiro por um instante. Depois, falou com a voz abafada :
-Você é péssimo nisso, sabia? Eu sei que brinco que sou a garota do nosso relacionamento, mas não é para você levar isso a sério.
Bruce se manteve de costas por um tempo, a mão ainda apoiada na cortina. Ele observava a rua lá embaixo, mas não via nada de fato, só formas borradas e reflexos disformes nas janelas dos prédios. Lá dentro, tudo apertava.
-Eu sei que você sabe se cuidar - repetiu ele, mais calmo agora, mas ainda com a voz tensa - e eu sei que não posso te impedir de resolver isso do seu jeito, e não quero fingir que posso te proteger de tudo... mas se ele te arranhar mais uma vez, mesmo que seja só por dentro, eu juro que…
-Você vai bater nele? - o Coringa riu baixo, encostando a testa no travesseiro - você vai me abraçar no meio da noite, vai achar que eu estou dormindo, e vai dizer baixinho que não devia ter deixado isso acontecer ?
-Talvez.
O silêncio que veio depois não era leve, mas também não era cruel. Era o tipo de silêncio que só existia entre pessoas que se conhecem demais, se machucaram demais e que, de alguma forma torta, ainda escolheram ficar juntos.
O ex-terrorista se levantou lentamente da cama, caminhando até o ex-bilionário. Soltando um suspiro pesado antes de apoiar o queixo em seu ombro por trás.
-Você está pensando demais, eu estou bem, de verdade.
Bruce não respondeu de imediato. Ficou ali, parado, com o queixo do Coringa encostado em seu ombro, o peso leve e morno da presença dele misturado ao turbilhão frio dentro do peito. A cidade lá fora seguia indiferente, suja e indiferente como sempre.
Os minutos se arrastaram, apenas a respiração de ambos preenchendo o espaço entre eles. A televisão ainda era um ruído de fundo, denunciando que Jason ainda estava olhando algum programa na sala, alheio a todos os sentimentos que cabiam naquele silêncio entre o ex-bilionário e o palhaço.
A mão do moreno se mantinha firme na cortina, os olhos presos em um ponto qualquer além da janela, além da cidade, além daquele quarto. Ele sabia que estava sendo superprotetor. Sabia que o homem atrás dele era um predador por natureza, que ninguém manipulava o Coringa sem ser manipulado em troca.
Bruce sabia que o ex-terrorista não era um peso-pena na arte de resistir e executar torturas mentais e físicas. Mas aquilo não mudava o nó que se formava em seu estômago sempre que Andy entrava em cena. Porque Andy sabia sobre o Coringa, ele cavou demais, cavou o suficiente para saber como mexer com ele.
Bruce finalmente soltou a cortina e virou o rosto levemente, não o suficiente para encará-lo de frente, mas o suficiente para que suas palavras pudessem ser ouvidas com clareza.
-Você e Andy têm um histórico de merda - disse o moreno, seco, direto - não me importo mais com os motivos dele, para o inferno com o que ele está pensando ou o que está sentindo, se ele te encostar mais uma vez... de qualquer jeito, eu vou fazer a lembrança de você cortando as bolas dele parecer brincadeira de criança.
O Coringa não disse nada, apenas deixou que o silêncio tomasse o lugar que deveria tomar. Ainda com o queixo apoiado no ombro de Bruce, ele fechou os olhos por um segundo, como se absorvesse o peso daquelas palavras, não pelo tom ameaçador, mas pelo que havia por trás. Ele envolveu frouxamente os braços ao redor da cintura do outro homem. O silêncio entre eles era cheio de coisas não ditas. Ele não sorria. Também não zombava. Só respirava fundo, o suficiente para o moreno sentir o peito dele se mover contra suas costas.
Bruce deixou os olhos se fecharem por um breve instante. A mão apertando de leve a moldura da janela, como se a madeira pudesse conter a raiva que ainda fermentava sob sua pele. Como se cada músculo do seu corpo estivesse preso numa tensão invisível que só o toque do loiro suavizava minimamente.
Eles não disseram nada por um longo tempo. Porque havia coisas que não podiam ser ditas. Porque havia fantasmas na sala. Estavam ali, nos olhos que Bruce evitava encontrar, nas palavras que o Coringa não dizia.
Bruce soltou o ar devagar, como se estivesse segurando aquilo dentro de si a muito tempo.
-Você não me contou tudo - disse ele, finalmente, a voz grave, mas estranhamente branda - sobre você, eu quero dizer.
-Nem tudo precisa ser contado - respondeu o Coringa, com aquela suavidade incômoda de quem já aceitou que há dores que não servem pra serem explicadas, só suportadas - você sabe tudo que precisa saber, talvez mais.
-Não é isso - Bruce balançou a cabeça, virando-se um pouco, o suficiente para vê-lo de relance - é que eu acho... que eu não conseguiria ouvir.
-Você sabe que eu não fiz coisas bonitas na minha vida, Brucie - suspirou o palhaço - há muito mais entre o tráfico infantil, a rua, a guerra, Jack…há muitas coisas que você não quer saber sobre mim.
-Acha que existe alguma coisa sobre você que pode me assustar ? Eu já vi o pior de você - falou o moreno, sua voz era sem emoção, sem conforto, mas sem acusação, apenas uma constatação - eu vi você matar e torturar muitas pessoas, eu sei muito bem o tipo de coisa doentia que você é capaz de fazer.
O ex-terrorista se afastou um pouco, só o suficiente para que Bruce pudesse virar de frente, mas não o suficiente para romper o contato. Estavam próximos demais, naquela linha tênue entre a intimidade e o abismo. O olhar do palhaço agora estava diferente. Não havia brilho, nem deboche. Só cansaço.
-Tem coisas que eu fiz antes mesmo de você saber que eu existia - entoou o louco, passando a língua no canto dos lábios - tantas coisas que eu fiz antes de todo o nosso joguinho começar…antes da nossa historinha de amor.
O loiro fez uma pausa antes de continuar, medindo suas palavras:
-Eu não sou uma boa pessoa, e eu não sei ser, não foi por todas as merdas que aconteceram comigo, eu simplesmente sou assim.
Bruce não respondeu de imediato. Seus olhos estavam cravados nos do outro homem, mas não havia julgamento neles. Havia algo mais antigo que isso. Algo que vinha dos cantos mais escuros da alma, e reconhecia.
-Você não precisa ser uma boa pessoa - disse o moreno por fim, a voz baixa, firme - eu nunca precisei disso de você.
O Coringa o observou com uma atenção silenciosa. Aquilo o desarmava mais do que qualquer discurso moralista. Mais do que qualquer acusação ou tentativa de concerto. Bruce, não tentava remendar nada, não mais. Ele simplesmente estava ali. Mesmo quando tudo estava errado.
-Você só precisa não mentir para mim - completou o ex-bilionário, depois de um tempo - e me contar o que se passa na sua cabeça para a gente poder lidar com isso.
O Coringa deixou o queixo cair um pouco, os olhos ainda nos de Bruce, como se estivesse tentando decidir se ria, cuspia, ou apenas se calava. Por um momento, o silêncio entre eles pareceu ressoar mais alto do que qualquer palavra.
-Você quer saber o que se passa na minha cabeça, Brucie? - perguntou o loiro, com a voz baixa, lenta, como se saboreasse cada palavra - às vezes, quando eu acordo de madrugada, tem uma voz no fundo da minha cabeça que diz que eu devia te matar, ela não grita, não esperneia, ela só... sussurra.
Bruce não reagiu de imediato. Ele não se mexeu, nem desviou o olhar. Só ouviu.
-Não é um trauma, não é um gatilho, não é flashback de guerra, nem a porra da infância desgraçada - continuou o louco paando a língua no lábio inferior, o tom ficando mais seco - é só... o que eu sou, desde sempre.
O ex-terrorista passou a mão pelos próprios cabelos, bagunçando ainda mais os fios loiros já desgrenhados, e deu um passo para trás, afastando-se completamente do toque de Bruce. Não por raiva. Mas como quem precisa de espaço para não desmoronar.
-Acha que não pensei em matar o garoto na sala ? - continuou o palhaço, sua voz era dura - tem um pé de cabra atrás da porta do banheiro, já pensei em estourar a cabeça dele com aquele pedaço de ferro algumas vezes, só para ver a cabeça dele se abrindo, seus olhos saltando para fora do crânio.
Bruce continuou parado, o corpo tenso, mas o rosto imutável, uma máscara esculpida no controle absoluto. O que o Coringa dizia não era surpresa. Não completamente. Era o tipo de verdade que Bruce já carregava no fundo do estômago, mas que raramente era dita em voz alta. Era diferente ouvir aquilo. Cru. Sem rodeios. Sem o verniz da teatralidade. Não era o Coringa sendo um palhaço ácido, era sem filtro. Sem os contornos divertidos. Somente a mania falando.
-Eu não fiz - continuou o palhaço, a voz agora mais baixa, quase um sussurro áspero - e não porque sou bonzinho, ou porque você ia ficar triste, ou por alguma ideia romantizada que você possa vir a ter, eu não fiz porque, no momento, eu não quis, foi como Budie, que eu não planejei trazer para casa depois de matar o Martin.
Bruce soltou um suspiro lento. Seus olhos ainda cravados no homem à sua frente. Não havia julgamento neles. Havia peso. Havia cansaço. Mas também havia compreensão, não a do tipo “eu entendo o que você passou”, mas a que vem de alguém que sabe onde está pisando, e ainda assim continua ali.
-Eu sei - disse Bruce, enfim, e aquelas duas palavras pareceram cair no quarto como um bloco de concreto.
O Coringa o encarou por um longo momento. Ele esperava algo mais. Uma reação, um sermão, um afastamento. Mas tudo o que recebeu foi aquela frase, dita com a firmeza de quem olha no olho do monstro e diz que ainda assim vai ficar.
O ex-bilionário caminhou lentamente até o loiro. Parou a menos de um palmo. Sua presença era densa, sólida. Como uma âncora. Então o moreno levantou uma das mãos para acariciar as cicatrizes em um dos lados das bochechas do outro homem. As pontas dos dedos tocaram delicadamente o emaranhado de pele cicatrizada.
O Coringa não recuou, apenas ficou ali, parado, os olhos fixos nos de Bruce, como se estivesse esperando alguma outra coisa, talvez um tapa, talvez um soco, ou talvez… a certeza de que, naquele momento, alguém finalmente veria tudo o que ele era e, ainda assim, não fugiria correndo. Bruce não fugiu.
-Está tudo bem - continuou o moreno, sua voz era calma.
-Você acha que eu sou louco - o Coringa engoliu seco, seu peito ainda subia e descia devagar, mas a expressão em seu rosto era estranha, não se parecia em nada com o palhaço ácido e sarcástico.
-Acho que você precisa de ajuda.
O silêncio pairou entre eles, Bruce o puxou de leve pela nuca e encostou a testa na do ex-terrorista delicadamente. O ex-terrorista fechou os olhos. Por um instante que durou mais do que deveria, ele simplesmente ficou ali, imóvel, com a testa colada à de Bruce, os dedos ainda pendendo frouxos ao lado do corpo, como se estivesse à beira de um abismo que ele conhecia bem, um abismo para qual ele olhava sozinho.
-Às vezes eu não sei quem sou - murmurou o palhaço, a voz tão baixa que Bruce quase não ouviu - às vezes sou só...sinto que estou caindo, em queda livre, as vezes não sei se estou dormindo ou acordado dentro de alguma lembrança fragmentada que não quero lembrar.
Bruce não disse nada. Sua respiração se mantinha calma, firme, estável. Um farol em meio à tempestade que se formava no homem à sua frente.
-Você acha que eu sou um monstro - continuou o loiro, ainda sem abrir os olhos - e às vezes, Brucie, às vezes eu acho também, mas eu... - ele hesitou, a respiração falhando por um instante - eu não quero machucar você.
Bruce apertou suavemente a nuca do ex-terrorista, o toque firme e cuidadoso com sempre, antes de fechar os olhos também, respirando devagar e entoando:
-Está tudo bem, amor.
O silêncio que veio depois daquelas palavras não era o tipo que separa pessoas, mas do tipo de silêncio que une, ainda que por fios tênues, frágeis e desgastados. Eles ainda estavam ali. Ainda juntos. Era um tipo de silêncio que não pedia explicações.
Bruce manteve a testa encostada à do Coringa por mais alguns segundos, a respiração deles se mesclando, formando um compasso imperfeito, mas sincero. Nenhum dos dois falava. Nenhum precisava. O silêncio dizia tudo.
Com um movimento lento, Bruce deixou os dedos deslizarem da nuca do outro até se embrenharem nos fios desalinhados de cabelo loiro, seus dedos se fecharam ali, com delicadeza, mas com firmeza. O ex-bilionário o envolveu com o outro braço, passando por suas costas até prender os braços do loiro contra o corpo. Um gesto silencioso de proteção, mas também de controle. Um abraço que era contenção, escudo e ancoragem.
O Coringa não resistiu. Seu rosto afundou no ombro do moreno, os olhos fechados apertados como se quisesse apagar o mundo ao redor. Seus punhos se mantiveram fechados ao lado do corpo, sem revidar, sem revidar porque não havia ataque. Era só o peso do próprio corpo sendo sustentado por alguém que sempre prometeu suportá-lo, mesmo quando o mundo inteiro dizia que ele não valia o esforço.
Bruce não disse mais nada. Sua mão nos cabelos do outro homem deslizava devagar, como quem tenta acalmar um animal ferido que só conhece o mundo através da dor. Ele inspirou fundo, sentindo o cheiro do cabelo do palhaço misturado a café velho e algo quente que só existia quando os dois estavam assim.
Lá fora, a cidade seguia indiferente. Carros buzinavam, sirenes cortavam o ar em algum bairro distante, e uma chuva fina começava a cair sobre Gotham como uma manta de silêncio. Um silêncio cheio de promessas mudas.
O Coringa respirou fundo, e Bruce sentiu o peito dele tremer ligeiramente, não como quem chora, mas como quem segura firme um nó muito antigo, um daqueles que se forma quando você passa a vida esperando ser descartado. E Bruce... apenas segurava. Os segundos se arrastaram em silêncio, e o quarto, antes carregado, agora parecia conter apenas dois corações batendo em ritmos desalinhados tentando, de algum modo, se encontrar.
Bruce fechou os olhos, com o queixo apoiado no topo da cabeça do loiro, seus dedos ainda mergulhados entre os fios bagunçados. O quarto ficou em silêncio, mas era um silêncio doce. Como se o mundo lá fora pudesse esperar um pouco mais. Como se, só por hoje, Gotham pudesse seguir sem eles.
Notes:
Obrigado a todos que vem acompanhando até aqui, vocês são demais. Comentem para me deixar feliz.
Chapter 33: The Gotham We Have (Parte 33)
Notes:
Voltei, me esforcei para não deixar vocês na mão essa semana. Desculpem pelo capítulo um pouco chato, é que essa história é realmente lenta e um pouco menos movimentada que a anterior (que já era lenta). Juro que vou tentar fazer as coisas andarem de forma mais rápida, mas tenho medo de parecer muito artificial.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Na manhã seguinte, o café da delegacia estava mais amargo do que o habitual. Chuck sentava-se à sua mesa, o copo de isopor meio vazio na mão, os olhos perdidos em algum ponto entre as pastas empilhadas e a luz pálida que entrava pela janela empoeirada. As vozes ao redor, telefone tocando, impressoras funcionando, passos apressados, soavam distantes, como se ele estivesse submerso, ouvindo tudo por uma camada de água.
A conversa com Andy na tarde anterior voltava em pedaços, como cenas de um filme antigo passando fora de ordem. A sala gelada. O olhar clínico e calmo. As palavras medidas. A omissão deliberada.
Chuck apertou o copo com mais força. Andy não mentia, pelo menos não da forma tradicional. Ele contava meias verdades. Sabia muito bem como guiar uma conversa sem dizer absolutamente nada, como costurar ambiguidade em cada frase até que a verdade se perdesse no subtexto. E ainda assim, o tenente sabia. Sabia que ele estava certo quanto ao fundo do rio. Sabia que ele conhecia aquele contêiner. Sabia que havia uma peça faltando, talvez várias, e que Andy estava sentado em cima de uma delas como um corvo sobre os ossos.
Mas o que mais o incomodava não era o silêncio calculado do ex-psiquiatra. Era a sensação, cada vez mais incômoda, de que Andy estava protegendo alguém.Chuck esfregou os olhos, respirando fundo. Ele lembrava de Andy antes disso tudo, antes do caso do Contador de Histórias, antes de Annie morrer, antes do sumiço, da prisão, da ruína. Um homem culto, meticuloso, inteligente. Um psiquiatra talentoso. E agora... aquilo.
Ou talvez Andy sempre tivesse sido aquilo, só estava camuflado entre poltronas elegantes e palavras bem colocadas. Chuck se perguntou, não pela primeira vez, como alguém como ele podia ter se perdido tão completamente. Tanta gente boa naquele sistema e, no fim, era sempre quem mais sabia onde doía que acabava cruzando a linha.
O tenente olhou para o quadro de avisos à sua frente, onde fotos de vítimas, mapas e documentos estavam fixados com alfinetes. A imagem de Samuel Rise entre eles. Os olhos fechados na foto do necrotério. A mensagem cravada na cena do crime.
O fundo de um rio ? Andy estava falando a verdade ? Chuck se recostou na cadeira.
O peso da conversa o esmagava aos poucos. Andy sabia. Sabia onde procurar, o que significava, mas não dizia. E Chuck odiava admitir, por mais que soubesse que Andy estava omitindo, parte dele entendia. Parte dele sabia o que era manter certas verdades enterradas porque revelá-las significava abrir um abismo sem fundo. Significava perder ainda mais do que já havia sido perdido.
Ele pensou em Annie. No que ela teria feito. No que ela teria dito se estivesse ali.
“Não abaixe a cabeça para monstro nenhum, Chuck”
“Não trate como paciente”
Mas e quando o monstro era o próprio marido dela ? Será que Annie diria a mesma coisa ? Como jogar com um ainda falava como médico? Quando eles tinham uma dor em comum. Annie, a amiga dele. Annie, a esposa de Andy.
Chuck fechou os olhos por um instante, tentando afastar a imagem dela da mente. Annie com seu sorriso torto, com o cabelo preso de qualquer jeito, falando rápido demais quando estava empolgada com um caso. Ela era brava. Impaciente. Justa até o osso. Nunca aceitou respostas fáceis. Nunca teve medo de encarar o abismo, e talvez, por isso o abismo a tenha engolido.
A conversa com Andy na tarde anterior voltava em flashes soltos. A sala fria de Blackgate. A mesa metálica. O olhar de alguém que não era mais o mesmo. Antes da morte de Annie, Andy era... normal. Não no sentido banal da palavra, mas no sentido humano. Empático. Dedicado. Um cara que ria de piadas ruins, que corrigia as pessoas com gentileza, que ficava horas preocupado com o progresso de um paciente.
Agora, ele era outra coisa.
Chuck levou o copo aos lábios e sentiu o amargor queimando a garganta, um gosto que combinava demais com o que se formava por dentro. Raiva, sim. Mas também pena. Um luto que ele não sabia onde colocar.
O tenente apoiou os cotovelos na mesa, as mãos juntas diante da boca. A lembrança da entrevista o corroía. Andy sabia do contêiner. Sabia do rio. Sabia de Samuel. Mas não dizia. Ele estava protegendo alguém. Isso era nítido. E pela primeira vez, Chuck se perguntou se esse "alguém" era mais importante pra ele do que a memória da mulher que havia perdido.
Ou talvez, proteger alguém agora fosse a única forma que Andy encontrou de sobreviver à dor de ter falhado com ela.
Chuck olhou para o quadro de avisos à sua frente. A foto de Annie estava lá, num canto, entre recortes de jornal e memorandos antigos. Ele manteve aquela imagem porque precisava lembrar que tudo aquilo era pessoal. Que havia uma linha que fora cruzada. Uma linha entre a justiça e a ferida aberta.
Chuck soltou o ar devagar, o olhar voltando para a pasta do caso em sua mesa. Sabia que voltaria a falar com Andy. Sabia que ia precisar pressionar mais, mas agora por um motivo diferente. Não era só para resolver o caso.
Era porque, no fundo, ele ainda queria acreditar que Andy não tinha desaparecido por completo. Que em algum lugar, debaixo de toda aquela frieza... ainda tinha alguém tentando fazer o que era certo.
Mesmo que isso significasse admitir o pior. Mesmo que isso significasse entregar quem ele estava tentando proteger.
O tenente se levantou, caminhou até a cafeteira e encheu o copo de novo. Dessa vez, o amargor desceu mais fácil. Ele voltou à mesa com o copo novo entre os dedos e se deixou cair de volta na cadeira com um peso que parecia vir de dentro. O vapor quente subia devagar, desenhando formas sem sentido no ar parado da delegacia. Chuck não tirava os olhos do quadro.
Havia outra coisa incomodando. Algo que ele não conseguiu encaixar ontem, mas que agora começava a ferver devagar, como um fio solto que puxava um novelo maior. Chuck tomou mais um gole, os olhos fixos nas palavras escritas num pedaço de papel preso por um alfinete vermelho: “Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante…”
Mas a imagem que mais grudava em sua mente, mais do que as charadas, mais do que o nome Rick Crale ou a maldita A. Crale Imports, era a de Andy sentado do outro lado da mesa, com os dedos entrelaçados e a voz calma, quase anestesiada, dizendo:
“Eu gostaria de poder ajudar mais.”
Chuck não sabia se era mentira. Ou se era o mais próximo da verdade que ele podia dar, naquele estado. Porque talvez Andy não pudesse mais ajudar. Não pudesse oferecer mais do que isso.
O tenente olhou para a pasta à sua frente. Havia muita coisa em sua cabeça, os nomes vagavam, se conectavam, como uma linha invisível, como um filme macabro contado em diferentes pedaços, de forma desordenada.
Caso Mullks — Talia.
Talia — Jason
Jason — Margareth
Margareth — Samuel Rise.
Samuel Rise — A. Crale Imports.
A.Crele Imports — Container.
Estava tudo entrelaçado de alguma forma doentia. Mas porque ? O que o Contador de Histórias queria contar ?
Chuck encarou os nomes na pasta como quem olha para um tabuleiro de xadrez montado por um louco. As conexões estavam ali, tênues, quase ilusórias, mas não podiam ser coincidência. Nada era coincidência. O Contador de Histórias escolhia cada peça com precisão, como se montasse uma narrativa oculta que só faria sentido no último capítulo, quando fosse tarde demais para qualquer um escapar. Quem se daria ao trabalho de inventar esse tipo de coisa?
Qual era o objetivo ? Denunciar uma rede de tráfico de pessoas ? Mas porque ? Porque dessa forma ? Ele tinha deixado alguma coisa passar ? Alguma coisa tinha saído da sua vista ? Ele pensou na última interação do Contador de Histórias, antes do Elliot ser preso. Porque o Contador de Histórias voltou ? Por que demorou tanto tempo ? Eram muitas perguntas, perguntas para as quais ele talvez nunca tenha respostas.
As linhas antigas dos crimes, a história do ano passado, ele tinha deixado alguma coisa passar ? O tenente desenterrou as pastas do caso arquivado. Ele conhecia tudo de cor, mas tinha que ter alguma coisa, alguma coisa que ele não estava vendo.
No caso arquivado haviam três linhas de crimes. A primeira delas, Chuck nunca soube do que se tratava, não exatamente, mas estava vinculada com o tráfico de pornografia infantil. A segunda linha de investigação eram recriações de casos antigos do agente Julian Backwood, ele mesmo e Sarah tinham averiguado isso. E por fim, a terceira linha, trazia à tona o caso sobre a Wayne Enterprises.
O tenente passou os olhos pelo caso do ano passado por um momento, absorvendo, vendo se havia algo deixado para trás. Não parecia haver. Eles tinham esgotado todas as alternativas, martelado suas cabeças até a exaustão. Havia uma linha que conectava todas as 3 linhas antigas de investigação. Julian Backwood havia investigado tanto o caso de Samath Ross, que fazia parte da linha que contava sobre as empresas, quanto uma ligação entre a família Elliot e a Família Maroni. Thomas Elliot foi preso, por associação ao tráfico de pessoas. Não somente ele. Por conta das investigações do ano passado, muita gente foi presa. Muita gente grande.
Chuck olhou para a pasta de arquivos por um segundo. Ele gostaria de ser Gordon nesse momento, ele saberia como resolver isso. Mas Gordon estava aposentado, e o novo comissário não se mostrou confiável. Chuck se sentia sozinho nisso, embora soubesse que não estava realmente sozinho. Ele tinha Sarah. Ele tinha o Batman.
O tenente calmamente traçou uma nova linha na folha que estava rabiscando.
Jullian Backwood —- Investigou Samantha Ross (Ligada a linha de investigação 3 (Wayne Enterprises)), investigou tráfico de pornografia infantil (Linha 1 de investigação) e Seus casos antigos foram recriados (Linha 3 de investigação).
O agente Backwood, agente desaparecido há anos, ligava as três linhas de investigação do ano passado de alguma forma. Chuck não sabia como essa informação poderia ajudá-lo agora, se é que era uma informação relevante a essa altura.
Mas alguma coisa queimava no fundo da mente de Chuck. Um incômodo antigo. Como uma farpa mal arrancada sob a pele.Todo mundo nesse tabuleiro tinha algo a esconder. E talvez o Contador de Histórias estivesse empurrando todos para o mesmo lugar, ele não queria só expor nomes. Ele queria obrigar Gotham a olhar para o próprio reflexo distorcido.
Chuck encarou o quadro mais uma vez. Não como um policial. Mas como alguém tentando entender a lógica de um narrador doentio. Três linhas. Três pontos de colisão. E no centro, o agente que sumiu sem deixar rastros.
“Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu ? ”
“Jullian Backwood ?”
Era ele quem tinha investigado todos os pontos que agora retornavam como fantasmas dançando no escuro: o tráfico de pornografia infantil, os negócios suspeitos da Wayne Enterprises, os elos entre a elite de Gotham e os crimes silenciosos da cidade. E por fim… Julian também era a origem da linha mais bizarra e simbólica de todas, as recriações dos seus próprios casos, repaginadas pelo Contador de Histórias no ano passado.
Chuck passou os dedos pela têmpora. Ele foi o único nome que apareceu em todos eles. Além de Elliot. Afinal, Elliot estava ligado às empresas Wayne, foi investigado por Backwood no caso de ligação com a família Maroni e no ano passado foi preso por ligação com tráfico de pornografia infantil. O agente Backwood era um ponto de convergência, assim como Elliot era.
“O laço entre o vazio e a existência…”
Era Jullian ? O elo entre as vítimas e os algozes. O homem que viu demais. Que sabia demais. E que desapareceu antes que pudesse contar tudo.
Talvez... talvez o Contador de Histórias não estivesse apenas expondo os horrores. Talvez estivesse terminando o trabalho que Julian começou. Ou… talvez estivesse usando o trabalho de Julian como base para seu próprio jogo. Chuck rabiscou uma seta conectando os três grandes fios do caso antigo até o nome do agente desaparecido.
O tenente passou as mãos pelo rosto cansado, sentindo a barba rala por fazer. Ele estava chegando em algo. Se essa charada realmente fazia referência ao agente Backwood, o que O Contador de Histórias estava tentando dizer ?
Que ele estava vivo?
A pergunta bateu como um soco seco no meio do pensamento. Chuck parou a caneta no ar, os olhos fixos no nome de Julian Backwood. A tinta ainda fresca das setas que ligavam os três eixos principais da investigação pareciam pulsar na folha, como uma rede vascular de um organismo vivo.
“Sigo caminhos que os olhos não podem ver...”
Se fosse mesmo sobre Jullian, se aquela charada não fosse apenas simbólica, não fosse uma referência ao legado dele, mas sim… uma pista literal? E se Julian estivesse vivo?
Chuck não ousava escrever isso no papel. Ainda não. Era absurdo demais. Ou... talvez não. Talvez fosse apenas o próximo passo lógico nessa cidade que havia parado de seguir qualquer lógica faz tempo. O agente não havia deixado rastros. Nenhum corpo. Nenhuma carta. Nenhum adeus. Apenas sumiu.
E se o Contador de Histórias estivesse dizendo exatamente isso? Julian não desapareceu. Julian foi silenciado. E agora... ele está voltando.
Chuck se levantou de súbito, o copo de café quase tombando sobre os papéis. O zumbido da delegacia voltou de uma só vez, os telefones, conversas, sapatos batendo no chão encerado, mas o tenente já não ouvia mais nada.
-Se você está vivo… - murmurou o tenente - por que não apareceu? Por que deixar o Contador de Histórias usar seu nome, seus casos, sua história?
Ou talvez fosse isso mesmo. Talvez o Contador estivesse tentando falar por ele. Talvez... ele fosse Julian. Mas se o seu raciocínio estiver certo e o agente Backwood for o Contador de Histórias…Porque tudo isso ? Porque só não falar ? Por que criar o Contador de Histórias ? Isso fazia sentido ?
O tenente foi retirado de seus pensamentos com batidas na porta, e logo o rosto da agente Essen apareceu na fresta dizendo:
-Desculpe, tenente, tem um estagiário do The Gotham Times aqui, ele quer falar com você.
-Não vou dar entrevista - disse o tenente - peça para que espere por comunicados dos oficiais encarregados, seja qual caso que ele está cobrindo.
-Ele disse que foi Bruce Wayne que o mandou aqui - falou a agente Essen - parece algo importante.
-Mande entrar então - suspirou Chuck, sua dor de cabeça se espalhava pelo crânio em ondas.
O tenente tinha muitas coisas girando em sua cabeça, mas em Gotham os problemas nunca esperavam. Eles batiam na porta incessantemente.
A porta se abriu com um rangido lento, e Dick Grayson entrou com passos medidos, uma pasta preta pressionada contra o peito como se fosse um escudo. Usava uma gravata desalinhada, blazer amarrotado e uma expressão que tentava ser profissional, mas denunciava ansiedade. Chuck observou-o por cima da caneca de café.
-Tenente Charles? - perguntou Dick, hesitante, em frente ao homem mais velho.
-Fecha a porta.
O som da madeira estalando atrás dele foi mais alto do que devia.
-Eu sou Richard Grayson, estagiário no The Gotham Times - o aspirante a jornalista investigativo fez uma pausa - eu… Bruce Wayne me mandou aqui.
-E por que diabos Bruce Wayne está mandando estagiários do The Gotham Times pra falar com a polícia? - retrucou Chuck, os olhos semicerrados.
-Porque eu acho que descobri uma coisa - falou o jovem simplesmente, seu tom era tenso.
Dick abriu a pasta e puxou um maço de papéis grampeados, todos impressos com anotações à mão, algumas rabiscadas com pressa. O jovem colocou os documentos sobre a mesa, virando-os na direção de Chuck.
-Eu investiguei a Awanig Ltd. - começou - ela apareceu em documentos antigos, em investigações não resolvidas, e aparece novamente vinculada ao caso do contêiner desaparecido da A. Crale Imports.
Chuck ergueu os olhos das folhas antes de dizer:
-Você puxou documentos fiscais?
-Sim, e também registros cruzados de propriedade em Hong Kong, Belize e Gibraltar - continuou o aspirante a jornalista - a Awaning é uma empresa de fachada, que pertence a outra, que pertence a outra... até chegar numa chamada Eclar.
Chuck franziu o cenho.
-E como você chegou nisso, Sr. Grayson ?
Dick hesitou, mas respondeu:
-Eu... comecei investigando o Bruce Wayne.
Chuck levantou os olhos por um momento antes de perguntar:
-É mesmo? Por que ?
-Eu..- o aspirante a jornalista investigativo ficou em silêncio por um momento - eu achava que ele…era mais do que fingia ser, então eu comecei a investigar quando percebi, tinha chegado nesse emaranhado de nomes, empresas, documentos encobertos, só que... isso era maior do que qualquer coisa que eu esperava.
Chuck o encarou, calado. Os olhos fixos. O rosto sem emoção.
-Como exatamente você chegou em Awanig Ltd ? - perguntou o tenente, seu tom era neutro.
-Era um dos nomes que encontrei vinculado a A. Crale Imports - falou o homem mais jovem - me chamou atenção no primeiro momento por ser uma junção dos nomes “Nigéria” e “Jigawa”, aqueles nomes que continuam aparecendo nos arquivos policiais.
-Você invadiu o sistema da polícia ? Isso não foi relatado ao público - disse o tenente depois de um momento de silêncio. Sua expressão era séria enquanto ele encarava o homem à sua frente.
Dick ficou em silêncio por alguns segundos. O peso da pergunta, do olhar de Chuck atravessando a mesa, da tensão pairando no ar abafado da sala, tudo parecia querer empurrá-lo para trás. Mas ele se manteve firme. O silêncio pairou tenso e congelante, quem o interrompeu foi o tenente, sua voz grave e séria:
-Você tem noção do que acabou de admitir pra mim ?
-Eu tenho - respondeu Dick, tentando manter o tom controlado - e foi errado, eu sei disso, mas…
-Mas? - Chuck interrompeu - você achou que, por estar juntando um quebra-cabeça, isso te dava o direito de invadir o banco de dados da polícia? De acessar relatórios confidenciais, registros de vítimas, investigações em curso?
O silêncio pairou novamente no ar, denso e pesado. Chuck não disse nada por um momento. Apenas olhou para ele, aquele olhar de quem já viu demais, já ouviu de tudo, e mesmo assim ainda consegue se surpreender.
-O que exatamente você estava investigando ? - perguntou o tenente, quebrando o silêncio novamente - digo, você disse que estava investigando o Bruce Wayne, porque ?
-Eu estava investigando a ligação do Wayne com o Batman - admitiu o aspirante a jornalista investigativo - eu acabei tropeçando no último caso que o Batman havia trabalhado com a polícia no ano passado.
Chuck manteve os olhos no garoto por mais um segundo, como quem mede o peso de um homem, ou de um menino, sem tirar os olhos do seu rosto. O silêncio que se seguiu foi tão firme que o som da delegacia do lado de fora parecia abafado por uma parede de concreto.O tenente já tinha visto gente demais tentando bancar o esperto em Gotham. Quase todos terminavam do mesmo jeito, em silêncio... ou em sacos pretos.
-Então me diz - disse o tenente, a voz grave como cascalho - você acha que Bruce Wayne é o Batman?
Dick hesitou. Era uma armadilha. Chuck sabia disso, e agora ele também. Se dissesse “sim”, pareceria um conspiracionista lunático. Se dissesse “não”, estaria mentindo, e Chuck sabia reconhecer uma mentira de longe.
-Eu achava - respondeu por fim o jovem, escolhendo as palavras com cuidado - mas não é disso que se trata mais, não agora.
-Hm - grunhiu Chuck, nada convencido.
O tenente pegou os papéis na mesa calmamente e começou a folheá-los, mais para ganhar tempo do que por necessidade. Seus olhos percorriam os documentos, mas sua atenção estava cravada no garoto à sua frente.
-Você sabe o que isso aqui parece, Sr. Grayson?
-O quê?
-Parece infiltração - falou o tenente, a voz mais baixa - parece um garoto metido, bancando o detetive, se enfiando em um caso que envolve gente morta, gente poderosa... e agora vem me dizer que tropeçou em tudo isso porque achava que o ex-bilionário Wayne era o Batman?
Chuck largou os papéis na mesa com um baque surdo. Cruzou os braços.
-Eu já vi esse tipo de história - continuou o tenente - você sabe como isso soa ?
Chuck manteve os olhos em Dick por um longo tempo. Um silêncio duro se estendeu entre os dois, o tipo de silêncio que não precisava ser preenchido com palavras. O tipo que fazia os fracos suarem e os espertos morderem a língua.
Mas Dick não desviou o olhar. Estava claramente desconfortável, o blazer amarrotado, a gravata torta, os dedos se remexendo sutilmente contra o tecido da pasta, tudo nele gritava nervosismo. Mas havia algo mais. Uma centelha teimosa nos olhos. Uma vontade de continuar ali, mesmo que engolindo seco.
-Eu sei o que parece - respondeu o jovem, com esforço para manter a calma - e sei que invadi um território que não me pertence, mas eu juro que não estou tentando atrapalhar.
Chuck não respondeu de imediato. Ficou ali, parado, os olhos cravados no garoto à sua frente como se estivesse esperando que ele vacilasse. Como se testasse seus limites sem precisar levantar da cadeira.
-E quem mais sabe do que você encontrou? - perguntou o tenente, finalmente.
-Só Bruce - disse Dick, rápido demais, e depois corrigiu - e... talvez o Coringa.
Chuck se recostou na cadeira, os braços ainda cruzados sobre o peito largo, o copo de café agora abandonado ao lado.
-Escuta, Grayson - começou Chuck - eu sou policial nessa cidade há tempo demais, e já vi muita gente morrer achando que estava fazendo a coisa certa, gente que achava que ia fazer justiça, gente que achava que tinha achado o “fio da meada, a maioria deles... terminou em pedaços.
Dick engoliu em seco. Chuck continuou, sem desviar os olhos:
-Sabe o que eu vejo quando olho pra você? Um garoto esperto, mas ingênuo o suficiente pra achar que está no controle, o tipo de garoto que o tipo certo de gente usaria como ferramenta, como isca.
Dick franziu o cenho, mas não respondeu. Estava começando a entender que aquilo não era só uma advertência. Era um interrogatório disfarçado.
-Me diga, Richard - disse Chuck, o nome soando formal de propósito - por que eu deveria acreditar que você não tá trabalhando pra alguém? Que você não é parte desse jogo, do lado errado, talvez sem nem saber?
A sala ficou em silêncio por um longo segundo.
-Porque se eu fosse eu não estaria aqui - disse Dick, mais baixo agora - eu não teria mostrado esses documentos, não teria me exposto, eu estaria mandando mensagens anônimas, jogando pistas pela cidade, plantando corpos... como o Contador de Histórias faz, mas eu não sou ele.
Chuck o observou por mais alguns segundos, mas nada em seu rosto suavizou.
-Talvez - disse o tenente, por fim depois de um silêncio denso - ou talvez essa seja exatamente a narrativa que ele quer que a gente acredite, um garoto inteligente, um rosto limpo, um estagiário inofensivo com uma pasta de provas nas mãos.
Dick balançou a cabeça, irritado.
-Eu nunca faria isso.
-Todos têm um ponto de ruptura, Grayson - respondeu Chuck, encostando-se de novo à cadeira - só espero que, se o seu chegar... ele não custe mais vidas.
O silêncio que veio depois era denso. Nem o som dos passos do corredor ou do telefone no fundo da delegacia conseguiam atravessar. Chuck olhou uma última vez para os documentos sobre a mesa, depois para o garoto. Ele não confiava. Mas também não podia ignorar o que estava ali.
-Vou analisar isso - disse o tenente, pegando a pasta - mas se você fizer qualquer coisa fora da linha, qualquer uma, eu vou saber, entendeu?
-Entendi - respondeu Dick, firme. Mas a tensão no maxilar denunciava que ele sentia o peso daquela promessa.
Chuck assentiu uma única vez antes de dizer:
-Pode ir, e... se eu descobrir que tem mais do que isso escondido, ou se isso aqui for só uma distração bem montada…
Ele não terminou a frase. Só o olhar bastava.
Dick se levantou devagar, sem agradecer, sem protestar. Apenas fechou a pasta vazia, virou-se e saiu pela mesma porta que entrou. Chuck observou até que a porta se fechasse. Só então permitiu que sua expressão endurecesse de vez.
O garoto podia ser só um curioso metido. Mas podia também ser uma peça infiltrada, e o Contador de Histórias, esse narrador invisível, adorava personagens que pareciam inofensivos à primeira vista. Chuck puxou a cadeira de volta e murmurou, para ninguém ouvir:
-Se você for só um moleque metido... ótimo, mas se for mais que isso... eu vou descobrir.
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Bruce tinha chegado há pouco, sem avisar, e desde então disse muito pouco. Alfred serviu o chá com seus gestos precisos, a prataria ainda impecável.
O homem mais velho se movia com a calma habitual, como se o tempo funcionasse diferente quando ele estava por perto. Ele tinha reparado torradas, não porque achasse que Bruce fosse comer, mas porque era o tipo de gesto que preenche o silêncio com algo sólido. Algo familiar.
-Faz tempo que o senhor não aparece sem estar precisando de alguma coisa - disse o mordomo, finalmente, sem olhar para ele, apenas mexendo o bule com a colher - devo me preocupar? Embora, de alguma forma, eu suspeite que você não veio para o chá e conversa fiada.
Bruce apenas assentiu, pegando a xícara, mas sem levar à boca.
Alfred se sentou na cadeira ao lado e o observou em silêncio por alguns segundos. O rosto do homem à sua frente era o mesmo de sempre, sóbrio, contido, cansado demais para a idade que tinha. Mas havia algo diferente naquele dia. Uma tensão atrás dos olhos, como uma corda esticada prestes a romper.
-Você costuma falar pouco, mas hoje está se superando.
Bruce soltou um leve suspiro, mas não respondeu.
-Está relacionado ao garoto que você me disse na semana passada ? - arriscou Alfred, olhando de esguelha - Jason parece ser um desafio constante, um adolescente que precisa de instrução, lidando com muita coisa para alguém tão jovem.
-Jason está... se adaptando - respondeu Bruce, a voz baixa - aos poucos, mas não é sobre ele.
Alfred o observou mais um pouco, como quem lê uma carta antiga por entre as rugas de um rosto. Depois, com a mesma calma de sempre, perguntou:
-Então é sobre ele ?
Bruce ergueu os olhos por um breve instante. Aquela palavra dita assim, sem nome, era suficiente.
-Você costuma falar sobre ele com um misto de exaustão e zelo. Não é uma combinação fácil de carregar nos ombros - Alfred continuou, com suavidade - ele está bem?
-Na medida do possível - Bruce finalmente levou o chá aos lábios, mas apenas um gole curto - ele me contou coisas, coisas que eu já sabia em partes, mas que ditas daquela forma, com aquela... frieza... foi diferente.
Alfred esperou. Sem apressar, sem interromper. O silêncio pairou por um momento.
-O que ele disse? - perguntou Alfred, com um tom cuidadoso.
-Que às vezes ele acorda e pensa em me matar - Bruce soltou a frase com a calma de quem havia ensaiado isso na mente muitas vezes.
Alfred respirou fundo, mas não se chocou. Sabia o suficiente. Sabia onde estava pisando.
-Ele te contou isso esperando que você fugisse - disse Alfred, após um gole calmo. Bruce encarou a xícara nas mãos, sem beber.
-Eu não sei se foi uma confissão... ou um teste - disse o moreno - talvez os dois.
Alfred inspirou fundo e pousou a xícara sobre o pires com um cuidado quase cerimonial.
-Ele disse que tem vontade de matar o Jason, não porque o odeia, mas só… porque a ideia aparece, e às vezes ela parece boa, e ele não estava brincando - acrescentou Bruce - não estava encenando, nem provocando, só... dizendo, como quem descreve o tempo, e.. o mais assustador é que... eu acreditei.
O silêncio entre os dois se estendeu por um momento, até Alfred finalmente quebrá-lo com sua voz firme, mas não dura:
-Você devia saber, ele não sente as coisas como você, como eu, como o mundo espera que alguém sinta.
-Eu sei - murmurou o moreno - racionalmente eu sei, mas ouvir da boca dele, com aquela calma...
Alfred ficou em silêncio, deixando as palavras do moreno amadurecerem no ar, pesarem o que deveriam pesar. Bruce apertou a borda da xícara com força, os olhos começando a brilhar sob o peso da exaustão.
-Eu sei o pouco que você me contou sobre o passado dele - o homem mais velho quebrou o silêncio - e o pouco já é suficiente para saber que... ele aprendeu o mundo por meio da violência.
O silêncio se instalou novamente, cheio de coisas já ditas e repetidas como um mantra. Porque eles já tiveram aquela conversa. Não aquela, mas uma versão diferente dela. Tantas e tantas vezes. O moreno respirou fundo, os olhos ainda cravados no chão. Alfred o observava com a mesma ternura de sempre, a ternura de um pai que vê um filho sangrando por dentro, mas sabe que precisa deixá-lo escolher o caminho.
-Eu quero... segurar ele firme quando tudo o que ele conhece é instinto de fuga - entoou o ex-bilionário - quero que ele entenda que não precisa destruir nada só porque está com medo, mas eu não sei como fazer isso, ele me disse que não quer me machucar, que às vezes se sente caindo, como se estivesse preso numa lembrança que ele não quer lembrar, e que, no meio disso tudo... ele não quer me machucar.
-Isso é o mais próximo que ele pode chegar de dizer que te ama - disse Alfred, com simplicidade.
Bruce ergueu os olhos para ele, surpreso pela facilidade com que Alfred dizia aquilo.
-Você acha que isso é amor?
-Acho que, para ele, é - Alfred deu de ombros levemente - pode não ser o tipo de amor que você aprendeu, e nem o que a maioria das pessoas aceitaria, mas, quando alguém que só conheceu relações de destruição... e escolhe pela primeira vez não destruir, isso é significativo.
O silêncio que seguiu foi confortável, pela primeira vez naquele dia. O tipo de silêncio que não pede resposta. Alfred recostou-se levemente na cadeira, cruzando as pernas com aquele gesto contido e elegante de quem já viu o suficiente do mundo para não se impressionar com seus extremos. Ele observou Bruce por alguns segundos, com o olhar suave, mas firme. O olhar de quem nunca deixou de cuidar, mesmo quando não era mais sua responsabilidade.
Bruce olhou para a xícara e finalmente bebeu um gole do chá. Já estava frio, mas de algum modo, agora, não parecia mais tão amargo.
-Você sempre foi melhor com palavras do que eu - murmurou o ex-bilionário.
-Não, eu apenas escutei mais gente ao longo da vida - respondeu Alfred, com um leve toque de humor na voz - inclusive o senhor.
Alfred não mais disse nada no silêncio que se instalou, respeitando o silêncio que vinha depois de se tocar em algo tão íntimo. Mas Bruce não se levantou, não desviou o olhar, não se fechou. Ele permaneceu ali, como se ainda precisasse mais um pouco daquele espaço onde ser humano não era uma falha.
-Tem algo mais - disse Bruce, por fim, sua voz grave agora mais rouca, quase um sussurro arrastado - algo que eu não queria dizer em voz alta, nem para mim.
Alfred não se mexeu. Só se manteve presente, inteiro.
-Eu pensei em matar Andy.
A frase caiu como chumbo na mesa. E Bruce a deixou ali, nua, crua, sem enfeite. Olhou para frente, os olhos fixos em algum ponto entre o bule e as torradas frias.
-Não só por raiva - continuou o moreno, a voz embargada - mas porque seria fácil, porque ele machucou alguém que eu amo, e porque, por um instante... matar ele parecia fazer sentido, não do ponto de vista estratégico, não como o Batman, mas como eu, como…Bruce.
Alfred o observava com os olhos mais suaves que alguém poderia oferecer diante de uma confissão tão brutal.
-E esse pensamento não passou, ele ainda está aqui, eu sei onde aquele desgraçado está preso, sei que poderia entrar e sair sem deixar marca, e parte de mim... parte de mim quer.
Bruce fechou os olhos com força por um momento. Como se quisesse empurrar aquilo para longe. Mas era tarde. Já estava dito. Já estava fora do peito. Alfred não respondeu logo. Nem fez qualquer gesto de reprovação.
-É estranho... - Bruce continuou, mais baixo - porque por tanto tempo eu me achei diferente do Coringa, por tanto tempo eu me agarrei a isso, a ideia de que eu não atravessaria certas linhas, mas essa linha... essa linha tá tão perto agora e a vezes eu acho que já a atravessei e só não tive coragem de olhar pra trás.
Alfred inspirou fundo, o som quase imperceptível no ar. Depois, falou com a voz firme, mas sem dureza:
-Você sente raiva, raiva de verdade, e isso não é um crime, você nunca foi um homem que age por impulso, até mesmo a violência que você executa como o Batman... é calculada, fria, isso não foi o Batman, Isso foi você, ferido, com medo, com raiva, e humano.
-Mas o que eu quero fazer com essa raiva... - Bruce murmurou, sem encarar o outro - não é humano.
Alfred recostou-se um pouco mais na cadeira, os olhos pousando na xícara que ainda segurava com uma das mãos.
-Raiva é como fogo, serve para iluminar, aquecer... mas também para queimar o que estiver pela frente - falou o homem mais velho calmamente - e você passou a vida tentando canalizar esse fogo, moldá-lo em algo que ajudasse os outros, mas agora ele está aceso por algo pessoal, e isso te assusta.
O ex-bilionário finalmente terminou o chá. A xícara vazia tremia levemente entre seus dedos, denunciando a tensão que ele ainda mantinha no corpo. Alfred observava em silêncio, o olhar firme de quem esperava, mas não forçava. De quem compreende que certas confissões precisam amadurecer sozinhas no peito de um homem antes de ganharem voz.
-Eu quase matei ele - a voz do moreno saiu baixa, mas cortante, como uma faca pressionada contra a pele antes do corte.
Alfred não reagiu. Nem ao conteúdo da frase, nem ao tom. Apenas esperou.
-Não no sentido “poderia ter matado”, ou “pensei em matar”... não - continuou o homem mais jovem - eu ia matar ele, eu senti isso, eu quis com cada fibra do meu corpo.
Bruce engoliu seco, os olhos cravados em um ponto qualquer da tapeçaria antiga, mas a mente em outro lugar. Ele estava de volta naquele apartamento fétido, com o calor da chama do fogão subindo contra a pele, o grito de Andy ecoando em seus ouvidos. O cheiro do sangue, o gosto amargo da raiva.
-O senhor tem todo o direito de sentir raiva do que Andy fez - disse o mordomo - qualquer um teria, e sim, isso o moveu além do que o senhor gostaria, mas o senhor ainda se importa por ter ido longe demais.
-Às vezes eu acho que o que me impede de cruzar essa linha… é o medo de descobrir que não tem mais volta - disse o moreno, por fim - que se eu matar Andy, se eu fizer isso… eu não volto mais.
-E talvez não volte mesmo - respondeu Alfred, honesto, sem suavizar - mas não por causa do ato, e sim, porque se o senhor cruzar essa linha acreditando que isso é justiça, que isso é certo , então já não será mais o homem que conheci.
Bruce fechou os olhos. A imagem de Andy arfando, sangrando, o som seco do corpo dele batendo contra o fogão. O cheiro do gás. O baque da carne contra o concreto. Tudo ainda queimava em sua memória. Não como culpa, mas como uma ferida exposta que ele ainda não conseguia parar de cutucar..
Alfred permaneceu em silêncio por alguns segundos. Mas não era um silêncio vazio, era um silêncio de contenção, de sabedoria. Um silêncio que permitia que a dor respirasse. Ele olhava para Bruce com aquele mesmo olhar que o viu crescer, cair, sangrar, endurecer... mas também amar.
-Obrigado, Alfred - disse o moreno, por fim.
-Sempre, patrão Bruce.
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A televisão ainda estava ligada, mas Jason não prestava atenção. O som do noticiário ecoava pela sala, abafado pelo barulho da chuva batendo contra a janela. Bud dormia enroscado no tapete, o focinho se contraindo vez ou outra em algum sonho canino.
Jason estava jogado no sofá, uma das pernas apoiada no braço do móvel, a cabeça inclinada para trás, os olhos fixos no teto. Tentava não pensar. Mas o apartamento era apertado demais para isso. E o Coringa estava em casa.
Ele ouviu o ranger da porta do banheiro e, em seguida, passos descalços no chão de madeira. Jason nem precisou olhar para saber quem era.
O Coringa apareceu no canto da visão do garoto, com um pote de cereal na mão, cereal que, Jason notou, era o dele. Que Bruce o pediu para escolher. A colher batia contra o plástico num ritmo irritante.
-Sabe que esse treco tem açúcar suficiente pra matar um cavalo, né? - comentou o loiro, se acomodando sem cerimônia na poltrona à frente do sofá.
Jason virou lentamente o rosto em direção a ele, sem disfarçar a expressão de desprezo antes de entoar:
-Você também já matou um cavalo? Ou isso está na lista de coisas que ainda quer fazer? Além disso, achei que você gostasse de coisas ridiculamente doces.
O Coringa soltou uma risada baixa, quase satisfeita. Gostava da língua afiada do garoto. Não era como Bruce, que carregava as palavras como lâminas escondidas. Jason simplesmente cuspia.
-Você tem um ponto sobre o açúcar - disse o louco passando a língua no canto dos lábios por um momento - mas não, ainda não matei nenhum cavalo, mas já fiz um pônei explodir, na minha festa de aniversário.
Jason revirou os olhos, cruzando os braços.
-Você já disse a verdade alguma vez na vida ? - falou o adolescente.
-Quase sempre, só não quando é mais interessante mentir - respondeu o Coringa, dando outra colherada no cereal.
Novamente o silêncio preencheu o ambiente. A TV mostrava a movimentação no centro da cidade, mas nenhuma das vozes realmente preenchia o cômodo. O Coringa mastigava devagar, como se estivesse saboreando algo que não era apenas cereal.
-Você não tem cara de quem gostava de aniversários - disse ele depois, casual.
Jason não respondeu.
-Ou não tem cara de ter tido muitos aniversários - loiro continuou, como quem apenas solta fumaça num cômodo fechado - imagino que não havia muitas bexigas ou bolos onde você cresceu.
-Você sabe onde eu cresci? - Jason rebateu, na defensiva.
-Não exatamente, mas... sei farejar gente que nasceu do lado de fora do script - disse o palhaço, olhando para ele com olhos semicerrados, passando a língua no lábio superior pensativamente - sem pai, provavelmente uma mãe doente, por isso você teve que crescer rápido demais, teve que aprender sozinho, e teve que cuidar da sua mãe quando era ela que devia estar cuidando de você.
Jason virou o rosto devagar para encará-lo. Seus olhos agora carregavam algo mais frio. Ele apertou o controle remoto com força, mas não respondeu.
-Não me entenda errado, eu não vou te contar uma historinha triste e dizer eu sou como você, garoto - disse o loiro, de repente - eu tive uma infância bem normal, casa com cerca branca, uma mãe que usava vestidos floridos e assava tortas, um pai que cortava a grama aos domingos enquanto eu jogava beisebol com as crianças da vizinhança.
O adolescente o encarou, cético. A televisão esquecida por um momento.
-Você está mentindo - Jason cruzou os braços sarcasticamente, virando novamente para a televisão - aliás, que bom que sua infância foi traumática o suficiente para justificar você inventando um pônei explodindo em uma festa de aniversário.
O Coringa deu um gole direto no pote de cereal, como se fosse uma sopa mal disfarçada de café da manhã atrasado. A colher tilintou de novo, e Jason se perguntava se ele fazia aquilo de propósito só pra irritar.
-Ah, não é mentira, eu tive uma infância ótima - disse o palhaço com desdém, lambendo o canto dos lábios - mas você sabe como é, crianças podem ser…cruéis, às vezes a culpa são de pais muito permissivos, foi o meu caso.
O silêncio que se seguiu não foi respeitoso. Foi esquisito. Incômodo. Como se ambos tivessem tropeçado numa linha invisível, mas ainda estivessem tentando fingir que ela não existia.
-Você tá inventando isso agora.
-Será que estou ? - respondeu o Coringa sem pestanejar, deixando que a dúvida fosse plantada na cabeça do garoto - mesmo eu estivesse, não é assim que a maioria das pessoas conta a própria história ? Editada para parecer menos fodida do que realmente é? Você fez isso sua vida inteira.
Jason não respondeu de imediato. O maxilar ainda travado, o olhar fixo na televisão, que agora exibia um bloco qualquer sobre o trânsito na cidade. Mas ele não estava mais ouvindo nada. As palavras do Coringa estavam ali, como espinhos fincados entre os pensamentos.
O Coringa não sorriu dessa vez. Apenas observou. Um brilho estranho nos olhos, que não era bem deboche. Era estudo. Como se cada reação de Jason fosse parte de um quebra-cabeça que ele estava montando só por diversão.
-Você fala como se soubesse de alguma coisa - disse o adolescente, firme - mas você só está entediado, não tem o Bruce para cutucar, então resolveu ver o que dá para tirar de mim.
O Coringa sorriu como quem foi pego em flagrante... e não se importava.
-Toquei num nervo exposto? - entoou o ex-terrorista lambendo o lábio inferior.
-Eu não sou seu brinquedo - devolveu Jason, um tom contido de raiva - se você quer que eu exploda, vai ter que se esforçar mais.
O Coringa apenas sorriu, de um jeito vagamente felino. Ele largou o pote vazio ao lado e entrelaçou os dedos sobre o colo.
-Oh, mas eu não quero que você exploda, passarinho - zombou o louco com um bufo divertido - eu quero que você tente me fazer entender como é viver nessa sua historinha triste, sem pai e com uma mãe adotiva doente, tendo que roubar... essas coisas, essas coisas que você acha que te fazem tão especial.
Jason virou o rosto devagar, os olhos semicerrados e a mandíbula travada. O Coringa estava fazendo de novo. Aquilo. Aquela coisa que ele fazia com as palavras. Que não era exatamente provocação, nem exatamente mentira. Era uma mistura insidiosa dos dois. Uma navalha afiada escondida numa frase aparentemente banal.
-Você realmente tem muito tempo livre - disse o garoto, seco.
-Estou preso em casa até segunda ordem - bufou o louco, já preparando outra mentira - não me culpe por estar quase enlouquecendo, eu sou muito sensível à solidão.
-Você devia tentar escrever um livro - disse o garoto por fim, se levantando devagar - tem talento para inventar merda, é impossível conversar com você.
O Coringa observou Jason se levantar com aquele meio sorriso torto nos lábios, como se tivesse acabado de vencer um jogo que o garoto nem sabia que estava jogando.
-Não fala comigo de novo - disse o adolescente, antes de desaparecer na cozinha.
O Coringa permaneceu onde estava, a expressão neutra. Não sorriu dessa vez. Só deixou a cabeça cair para trás e encarou o teto por um momento, como se o apartamento também tivesse ficado silencioso demais para seu gosto.
Depois, pegou o pote de cereal vazio, girou a colher com os dedos e sussurrou para ninguém:
-E lá se vai o entretenimento da tarde.
Notes:
Obrigado a quem está lendo até aqui :) Muito obrigado por ter dado uma chance para essa história.
Chapter 34: The Gotham We Have (Parte 34)
Notes:
Dentro do prazo novamente, é um recorde ! Bem, sem delongas, o capítulo da semana, desculpem alguns erros de digitação, estou tentando não atrasar.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A porta do apartamento se abriu com um rangido baixo. Bruce entrou, trazendo consigo o cheiro da chuva fina que ainda caía lá fora no final da tarde, e o peso de um dia que parecia nunca acabar. Ele fechou a porta sem pressa, a testa franzida, os ombros tensos. O chá com Alfred ainda girando em sua cabeça, bem no fundo de sua consciência.
O moreno se sentia alguns anos mais velho do que realmente era. O moreno olhou em volta por um momento, o Coringa estava deitado no sofá, com Bud enroscado aos pés e a televisão passando um documentário de tubarões em volume quase mudo. Jason estava jogado na poltrona, com uma expressão entediada misturada com pura resignação. O moreno jogava que o ex-terrorista tinha escolhido o programa de televisão apenas para irritar o adolescente.
Bruce suspirou por um momento, como quem testa o ar do ambiente. Não foi preciso mais nada, o palhaço já o acompanhava pelo canto dos olhos. Assim que viu Bruce cruzar a sala, o Coringa imediatamente se ergueu, como um predador farejando sangue fresco.
-Olha só quem voltou - cantarolou ele, saltando para fora do sofá como uma criança hiperativa - trouxe biscoitos? Ou só mais culpa?
Bruce passou direto por ele, largando as chaves no balcão da cozinha sem olhar para trás.
-Não, só cansaço - respondeu o moreno com a voz baixa, cansada.
O Coringa, no entanto, não era do tipo que respeitava limites invisíveis. Ou qualquer limite, na verdade. Ele se aproximou, rápido, e antes que Bruce percebesse, se pendurou nos ombros deles pesadamente por trás.
Bruce nem parou. Apenas soltou um suspiro exausto e continuou andando de volta para a sala, arrastando o Coringa pendurado, com os pés arrastando ruidosamente no chão do apartamento. Jason ergueu os olhos da poltrona, viu a cena absurda, e apenas soltou um:
-Vocês são tão... esquisitos.
-É para isso que Brucie levanta ferro todas as manhãs, pirralho - rebateu o Coringa.
Bruce com um suspiro pesado se desvencilhou do outro homem e se deixou cair no sofá. O couro rangeu sob seu peso, e por um momento ele simplesmente fechou os olhos, apoiando os cotovelos nos joelhos e esfregando o rosto com as mãos. O ex-bilionário suspirou, deixou a cabeça cair para trás contra o encosto do sofá e fechou os olhos por um segundo. Ele estava emocionalmente exausto depois da sua conversa com Alfred, o ex-bilionário só queria se trancar por um momento em sua própria cabeça.
O ex-terrorista calmamente se sentou ao lado do moreno e colocou uma mão em sua perna.
-Você quer conversar sobre isso ? - perguntou o louco, sua voz era calma, não havia sarcasmo pingando.
-Não - falou o moreno simplesmente, deixando que o silêncio pesasse por um segundo. Ele estava cansado, e no momento não queria falar sobre isso.
-Tudo bem - respondeu o palhaço, e por um momento ele parecia uma pessoa completamente normal, apenas parecia.
No momento seguinte, o ex-terrorista ergueu um dos pés lentamente, até encostar a ponta da meia suja de andar descalço pela casa, bem no meio da bochecha de Bruce. Sem nem abrir os olhos, Bruce levantou uma das mãos e deu um tapa seco na perna do Coringa, afastando o pé do rosto com um estalo leve.
-Para - disse ele, a voz grave, carregada de uma paciência à beira do colapso.
-Não - disse o loiro passando a língua no canto dos lábios, sua voz cheia de zombaria. Ele estava desafiando o outro homem a fazer alguma coisa a respeito.
O moreno com um suspiro puxou o pé do loiro antes de torcê-lo levemente para o lado, não com a intenção de machucar, mas como quem mostra que tem um ponto. O ex-terrorista sorriu, um sorriso que poderia ser interpretado como desafio, mas que o moreno sabia interpretar como um sorriso de diversão genuíno.
-Sabe querido, acho que você está com mais uma ruga no meio da testa - falou o louco se curvando para alisar com o polegar o vinco entre as sobrancelhas do outro homem, antes de passar a língua no lábio inferior - você precisa relaxar, vai acabar explodindo assim.
Bruce soltou um leve bufar, mas não afastou a mão do Coringa. O toque era leve, quase ridículo, mas havia algo sincero ali, uma tentativa estranha e torta, mas sincera, de quebrar o peso que pendia sobre ele.
-Não tenho tempo - disse Bruce, finalmente, num murmúrio quase inaudível.
O silêncio se instalou entre eles por um momento, não desconfortável, mas cheio de significados. A mão do ex-bilionário ainda permanecia no pé do palhaço, que agora descansava em seu colo, mas agora seu aperto era mais gentil, e ele parecia acariciar distraidamente a junta do tornozelo do outro homem.
O Coringa ficou quieto, deixando a mão no rosto de Bruce por mais alguns segundos antes de retirar com uma lentidão preguiçosa. Ele se recostou no sofá, colocando o outro pé no colo do moreno, como um lembrete físico de que estava ali, mesmo quando Bruce tentava se esconder dentro da própria cabeça.
-Já que você está em casa, e essa vai ser uma noite adorável - zombou o louco olhando para o teto - temos que pensar em como nos comunicar com adolescentes, eu tenho lido alguns livros, mas minhas tentativas de comunicação não foram muito esclarecedoras.
-Você pode parar de falar como se eu não estivesse na sala ? - rosnou Jason desviando o olhar do documentário desinteressante, antes de olhar para o louco.
-Já começamos por aqui - zombou o palhaço lançando um olhar para o garoto antes de olhar para o moreno - ele interrompe a conversa dos adultos.
Bruce abriu os olhos, fixando Jason com aquela expressão exausta de quem não tem energia nem para começar uma discussão. Ele soltou um suspiro, longo e arrastado, e passou a mão pela própria testa antes de encarar o Coringa de lado.
-Você sabe que adolescentes são basicamente cães de rua, não sabe, Brucie? - comentou o ex-terrorista, olhando para o teto como se estivesse refletindo sobre uma grande verdade universal - precisam de comida, limites flexíveis e ameaças de morte ocasionais para aprenderem a não morder quem está tentando alimentá-los.
Jason estreitou os olhos. Ele não estava confortável com a comparação.
-Você pode parar de falar ? - disse o moreno - não estou com paciência para isso agora.
-Você é muito chato, Brucie - o loiro reclamou com um falso bufo entediado antes de passar a língua no lábio inferior - cuidado para não surtar, agora temos um adolescente para criar além do Budie.
Jason bufou audivelmente, cruzando os braços e afundando mais na poltrona, enquanto Bruce fechava os olhos de novo, pressionando os dedos contra as têmporas numa tentativa silenciosa de não perder a pouca paciência que lhe restava.
Jason franziu o cenho. Queria dizer algo. Queria retrucar. Mas, no fundo, sabia que o Coringa só estava fazendo o que ele sempre fazia: jogando palavras como granadas de mão, esperando que alguma explodisse.
-Você sabe que ninguém iria te julgar se abandonasse ele no parque, certo ? - falou o adolescente para o ex-bilionário, com um falso tom conspiratório.
Bruce abriu um dos olhos, lançando um olhar firme para Jason, aquele tipo de olhar que não precisava de palavras para dizer "não provoque". Jason, claro, apenas deu de ombros, como quem já estava comprometido com a própria insolência até o fim. O Coringa, é claro, achou graça. O ex-terrorista bufou divertido olhando para o adolescente como quem olha um animal menor se debater em suas garras.
-Se você responder alguma coisa vou te jogar da janela - falou Bruce prevendo o que o ex-terrorista faria.
-Você não vai, é minha vez de cozinhar - zombou o louco.
-Não estou com fome - murmurou Bruce, sem abrir os olhos.
-Eu também não - retrucou Jason rapidamente, cruzando ainda mais forte os braços.
O Coringa soltou um falso suspiro dramático.
-Ingratos - disse ele, empurrando de leve o joelho de Bruce com a ponta do pé - e eu aqui me sacrificando por vocês.
Por um momento, ninguém falou. Não porque tinham encontrado paz, mas porque, às vezes, o cansaço era mais forte que qualquer necessidade de brigar. Jason, ainda encolhido na poltrona, soltou um resmungo quase inaudível:
-Podiam pelo menos mudar o canal... esses tubarões já mataram mais uns dez.
O Coringa bufou antes de entoar zombeteiro:
-Drama adolescente, eles estão apenas vivendo a natureza deles.
Bruce estendeu a mão para o controle remoto, mas, no último segundo, parou. O olhar pesado pousou na tela da televisão, onde um tubarão solitário circulava a presa com uma paciência cruel, esperando o momento exato para atacar.
Não era um programa escolhido ao acaso. O moreno franziu a testa, sentindo a ironia amarga daquele cenário. O Coringa nunca fazia nada sem um motivo escondido, mesmo nas escolhas mais banais. Tubarões caçando. Predadores naturais. Ele sabia que o ex-terrorista era como um animal selvagem que escolheu ficar atrás do cercado.
Bruce observou os tubarões nadando na tela, seus corpos poderosos e imponentes cortando a água com uma graça quase cruel. O ex-terrorista estava em um aquário, mas o moreno não se enganava, o Coringa não se tornou um peixinho dourado por estar preso ali. Era um tubarão em sua essência. Mesmo quando estava contido, mesmo quando se via "submetido" às regras de um espaço limitado, seu instinto de predador nunca desaparecia.
O Coringa quebrou o silêncio confortável, ou talvez não tão confortável assim, inclinando-se levemente para frente. Sua testa tocou o ombro de Bruce com uma suavidade inesperada, como se o gesto fosse de alguma forma, apesar de todo o caos que envolvia sua presença, um ato de carinho. Seus pés ainda descansavam sobre o colo do moreno, e ele deixou seu peso repousar mais uma vez sobre o outro homem.
Bruce, que por um momento estava imerso na tensão do ambiente, sentiu o toque inesperado, o calor do corpo do Coringa ali tão próximo, e suspirou levando a mão até o topo da cabeça loira carinhosamente.
Jason, ainda jogado na poltrona, virou o olhar em direção ao casal com um olhar desconfortável. Ele resmungou baixo, não querendo ser óbvio demais, mas impossível de ignorar. A tensão na sala cresceu, e ele não conseguia disfarçar a sensação de desconforto. Eles estavam tão próximos, quase um emaranhado de pele e gestos, e Jason sentia o estômago se revirando com o que considerava um nível muito alto de intimidade. Não era algo que ele estava acostumado a ver, nem algo que ele soubesse como lidar.
-Vocês podem parar com isso ? - disse o adolescente sem paciência, virando sua atenção para o documentário dos tubarões como se fosse a coisa mais interessante do mundo naquele momento.
-Não - zombou o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios - é minha linguagem do amor, as vezes sou excessivamente grudento.
-Pelo menos vão para o quarto, porra - rosnou o adolescente sem desviar os olhos da televisão, seu rosto mostrava seu desconforto - eu não sou obrigado a ver isso.
Bruce não se incomodou com o resmungo de Jason. A verdade é que ele estava muito além de se importar com o desconforto do adolescente, especialmente em um momento como aquele. A tensão entre ele e o Coringa não era algo que ele soubesse como explicar, e ele não estava tentando. Havia algo profundamente familiar na situação, uma espécie de dança estranha que os dois estavam repetindo sem realmente perceberem.
-Sabe Jason, quando papai ama a mamãe, tipo, muito mesmo - zombou o louco como se estivesse explicando para uma criança de 4 anos - eles ficam emaranhados na sala, em silêncio, apenas escutando a respiração um do outro depois de um longo dia de trabalho afastados um do outro.
Bruce suspirou novamente, um som baixo e abafado, fechando os olhos. Ele sentia o peso do dia, o cansaço de tudo que estava acontecendo, mas havia algo na tensão do Coringa que ele não conseguia simplesmente ignorar. Mesmo enquanto o palhaço continuava suas provocações, havia algo ali que o fazia não afastá-lo.
-Você está sendo ridículo - disse Bruce, com a voz cansada - para de provocar o garoto, não quero mais ouvir a sua voz.
O Coringa, claro, não se conteve. Seu sorriso se alargou, se tornando mais perverso à medida que via a frustração do ex-bilionário crescendo. Ele adorava brincar com limites, especialmente os de Bruce, que sempre parecia se segurar por tão pouco. O palhaço se inclinou um pouco mais para frente, como se quisesse testar até onde a paciência do moreno poderia ir.
-Oh Brucie, você está me mandando calar a boca ? - falou o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios entre uma risada contida.
-Cala a boca - disse o moreno em um tom sério, sua mão no cabelo do palhaço apertando por um momento, como um aviso.
-Eu gosto quando você fala assim - disse o ex-terrorista contra o ouvido do outro homem, mordiscando de leve - mas e se eu não quiser calar a boca ?
Uma sombra passou pelos olhos do moreno antes que ele virasse os olhos lentamente para o outro homem, o Coringa estava flertando. Porra, o moreno teve vontade de jogá-lo no chão com força, morder seu pescoço e puxar seus cabelos, mas respirou fundo. Não eram apenas eles no apartamento agora.
A tensão do ambiente foi cortado por Jason que bufou depois de um momento:
-Espero que o meu quarto provisório fique pronto logo, não aguento mais a decoração desta sala de estar, parece completamente sinistro, mas combina com a estética do quarto de vocês.
-Você entrou no nosso quarto ? - perguntou o moreno
-Eu estava entediado aqui nesse apartamento - suspirou o adolescente - mas enfim, os desenhos me dão calafrios.
-Vai nos dar dicas de decoração de interiores ? - zombou o palhaço - não sabia que tinha pedido.
Jason revirou os olhos, ignorando a provocação do Coringa. Ele não tinha paciência para mais uma das piadas do ex-terrorista, especialmente não agora. Os tubarões na TV estavam mais interessantes, mesmo que estivessem repetindo os mesmos movimentos predatórios. O adolescente queria se distanciar da dinâmica estranha entre Bruce e o Coringa, mas, ao mesmo tempo, não conseguia afastar a sensação de desconforto que crescia a cada palavra trocada entre eles.
Bruce apenas suspirou, cansado demais para discutir. Ele soltou o cabelo do Coringa devagar, sentindo os dedos formigarem pela vontade reprimida. O ex-bilionário soltou um suspiro pesado e passou a mão pelos olhos, massageando as têmporas com dedos duros de cansaço.
-Acho que a gente devia mudar de programação, esse documentário é uma merda - falou o moreno antes de olhar para o adolescente - que tipo de filme você gosta Jason ?
Jason pensou por um momento, olhando para a tela como se ainda decidisse se valia a pena responder. No fim, encolheu os ombros de um jeito meio indiferente.
–Não sei... ação, suspense - falou o adolescente - que tenha explosões, ou qualquer coisa que não tenha bicho mordendo gente a cada cinco minutos.
O Coringa soltou uma gargalhada curta, rouca, como se aquilo fosse a coisa mais divertida que ouvira o dia inteiro.
-Então sem dramas existenciais - zombou ele, esticando-se no sofá antes de passar a língua no canto dos lábios - péssima notícia para o Brucie aqui.
Bruce lançou ao palhaço um olhar cortante, mas não respondeu. Ele apenas pegou o controle e começou a percorrer os canais, pulando cuidadosamente qualquer coisa que pudesse agradar um adolescente como Jason.
-Explosões, gente pulando de prédio, perseguições de carro - sugeriu Jason com uma ponta de esperança na voz, como se estivesse descrevendo seu paraíso pessoal.
O palhaço revirou os olhos dramaticamente, deixando um braço pender para fora do sofá.
-Tão previsível ... - murmurou ele - adolescente revoltado querendo catar sua dose diária de testosterona. Bruce apertou um botão e o novo filme começou: um festival de tiros, explosões, e motocicletas atravessando paredes. Jason sorriu de canto, satisfeito.
O filme continuava sua exibição cheia de clichês, com personagens que, de maneira previsível, seguiam o caminho do vilão que havia sido "moldado pelas circunstâncias". As explosões e tiros tornavam tudo ainda mais enfadonho para o Coringa, que se esticava no sofá como se estivesse sendo forçado a assistir a uma peça de teatro patética. Ele lançou um olhar desdenhoso para a tela, os lábios curvados em uma expressão de desprezo.
No filme, o vilão, claramente inspirado naquelas figuras simplistas que o público tanto adora, era retratado como um monstro que havia se transformado devido a tragédias em sua vida. Mas, para o Coringa, essa visão era uma farsa. Uma máscara conveniente que as massas compravam para poder justificar a violência de forma palatável. Ele olhou para o personagem na tela, um psicopata "justificado" por um passado doloroso, e balançou a cabeça.
A realidade era mais assustadora do que qualquer drama romântico. Não havia um fundo de tragédia que tornasse a crueldade moralmente tolerável. Não havia uma justificativa que pudesse suavizar o prazer que ele sentia. O prazer de destruir sem motivo, de espalhar caos, não porque a vida era injusta, mas porque a verdadeira diversão era viver sem as amarras da moralidade, sem as desculpas esfarrapadas. O Coringa não se escondia atrás de dor. Ele simplesmente... era.
O ex-terrorista riu baixinho para si mesmo. O público amava esses personagens "humanizados", mas ele sabia que, no fundo, eles não podiam sequer entender a verdadeira natureza da violência, porque para eles a violência é justificada quando vem do sofrimento. Mas a violência não precisa de justificativa.
O Coringa observava a tela com um sorriso torto, os olhos refletindo uma mistura de ceticismo e divertimento. Ele observava as cenas com uma calma incomodante, os olhos quase distraídos, como se algo nele se divertisse com a maneira como o público queria ser enganado. Ele sabia que o público sempre procurava uma explicação. Eles queriam um motivo para a crueldade, queriam que o sofrimento fosse algo que os tornasse mais humanos, mais compreensíveis. Mas o Coringa não acreditava nisso. Ele nunca acreditou.
Porque você não se torna um monstro. Você já é um monstro. O sofrimento não molda, ele só destrói os véus da sua humanidade. Você não aprende com a dor. Você só percebe o que já estava em você, o que já era inevitável. O sofrimento não transforma, ele só te revela. Todos somos potenciais assassinos nas circunstâncias certas.
A tela do filme continuava com seus clichês de ação e explosões, mas para o Coringa, tudo parecia vazio, desprovido de qualquer verdade real. Era apenas uma distração, uma mentira vendida para as massas que precisavam acreditar que a violência tinha uma explicação, uma razão para existir. Mas a realidade era bem mais simples. A violência, o mal, o caos... todos esses conceitos eram parte da natureza humana, partes do que as pessoas realmente eram quando se despiam das suas máscaras.
De repente o moreno afastou os pés do ex-terrorista de seu colo e se levantou, dizendo baixinho que iria para o banheiro. O que ex-terrorista podia ver, Bruce estava cansado e possivelmente com sono, nem mesmo o filme idiota conseguiu afastar as coisas que rodavam a cabeça do morcego.
O loiro tentou voltar sua atenção para a televisão, mas ele não conseguia. Se antes o filme era idiota e desinteressante, agora era apenas um ruído de fundo na sala. O palhaço não estava prestando atenção.
Ele se levantou depois de alguns minutos, com seu sorriso torto e o olhar carregado de diversão, antes de caminhar silenciosamente até o corredor.
Quando o palhaço chegou à porta do banheiro, ele a empurrou sem fazer barulho, seus olhos brilhando com uma mistura de diversão e uma ponta de impaciência.
-Ei, Brucie - a voz dele soou rouca e cheia de sarcasmo, antes que o louco passasse a língua no canto dos lábios distraidamente para fazer uma pausa breve - achei que você tivesse morrido aí dentro.
Bruce estava de pé diante da pia, os ombros caídos e o rosto cansado. Ele ouviu o som da porta se abrindo e, em um movimento quase automático, se virou para ver quem era. Quando seus olhos se encontraram com os de Coringa, não havia palavras imediatas. Apenas uma intensidade silenciosa que crescia entre eles.
O Coringa fechou a porta atrás de si com um suspiro teatral. Ele não disse nada de imediato, apenas observava o moreno com um olhar que parecia observador.
Bruce, em silêncio, se aproximou do Coringa rapidamente, agarrando os cabelos loiros do palhaço com força, forçando-o contra a porta com um gesto rápido, mas cheio de intensidade. O Coringa, surpreso e ao mesmo tempo divertido, apenas riu baixinho, como quem acha graça de uma travessura.
Seus lábios se encontraram em um beijo feroz na sequência, uma necessidade absurda de se conectar. O palhaço suspirou contra os lábios do ex-bilionário roçando seus narizes juntos por um momento antes de agarrar a gola da camisa social do moreno com força.
O beijo era faminto, irregular e molhado, cheio de dentes batendo e carne sendo mordida. Quando finalmente eles se separaram minimamente para respirar, o moreno desceu a boca para morder a pele do pescoço do outro homem, fazendo o palhaço o puxar para ainda mais perto, seus dedos brancos no colarinho do ex-bilionário.
O Coringa soltou uma risada rouca, baixa, o som vibrando contra a boca de Bruce quando esse subiu novamente para tomar seus lábios predatoriamente, mordendo com força.
O som abafado do filme de ação continuava vindo da sala, tiros e explosões preenchendo o ambiente. Eles não podiam fazer muito barulho, a última coisa que Bruce queria era ter que lidar com isso, com Jason escutando qualquer coisa.
O moreno se afastou um centímetro do outro homem, respirando pesado, seus narizes se tocando levemente.
-Jason não pode ouvir a gente - falou o moreno em um tom baixo, os olhos ainda fechados, com os lábios quase roçando nos do palhaço.
Bruce mal tinha terminado de falar quando o loiro fez um som afirmativo e o beijou novamente puxando-o pelo colarinho. O ex-bilionário instintivamente puxou os fios loiros com mais força, puxando-o para si, fazendo o louco gemer contra sua boca.
O moreno apoiou uma das mãos na porta atrás da cabeça do ex-terrorista, enquanto a outra mão permanecia nos cabelos loiros, puxando-os para si com força. Seus corpos estavam muito próximos, o ar viciado entre eles era quente e espesso. O beijo desleixado e cheio de mordidas, dentes raspando e puxando pele.
O ex-bilionário se separou por um momento, abrindo os olhos para olhar para o palhaço, os olhos semicerrados e os lábios avermelhados e úmidos. O moreno migrou a mão do cabelo do ex-terrorista para o rosto, traçando as cicatrizes familiares na bochecha do outro homem lentamente antes de se aproximar novamente, dessa vez mais calmo, menos faminto e mais suave, seus lábios mal tocando os lábios do ex-terrorista com selinhos leves.
O palhaço suspirou contra os lábios do moreno, ele nunca deixava de achar quente o quanto Bruce conseguia em um segundo, mudar completamente a dinâmica.
-Eu queria fazer isso desde o momento que você me desafiou a te fazer calar a boca - falou o moreno baixinho, contra os lábios do outro.
-Você gosta que eu te desafie - zombou o palhaço.
-Gosto - falou o ex-bilionário em um rosnado baixo, sua boca migrando para a orelha do loiro - gosto de ouvir você tentar.
O ex-terrorista olhou para o moreno com o canto do olho, passando a língua no canto dos lábios, sentindo a respiração quente do outro homem contra sua orelha. O ex-bilionário já estava duro, sua ereção roçando a coxa do loiro dolorosamente.
-A gente parece dois adolescentes de merda se pegando na porra de um banheiro - zombou o ex-terrorista - só que no caso, esse é o nosso banheiro e não somos adolescentes de merda.
-Você nunca cala a boca - rosnou o moreno mordendo os lábios do outro homem - eu devia costurar sua boca, ou cortar a sua língua.
-Se você fizesse isso eu perderia alguns dos meus melhores atributos - sussurrou o louco contra os lábios do moreno - ninguém é melhor do que eu na doce arte de chupar um pau.
Com essas palavras o ex-terrorista mordeu de leve o queixo do moreno, suas mãos apertando de leve os braços tonificados do outro homem antes de migrarem para o cós das calças do ex-bilionário. O Coringa sorriu maliciosamente, seus olhos fixos nos do moreno enquanto abria o botão com um movimento lento.
Bruce fechou os olhos, sentindo o ex-terrorista apalpar o volume no meio de suas pernas por cima da boxer fina antes de sentir a respiração quente contra o tecido. A mão do ex-bilionário apoiada contra a porta à sua frente se fechou em punho, enquanto a outra acariciou os cabelos loiros do homem abaixado entre suas pernas.
No momento seguinte Bruce apoiou a parte de cima da cabeça contra a madeira da porta, olhando para baixo com os olhos semicerrados. Os olhos do ex-bilionário se encontraram com os do ex-terrorista. Eles ficaram em silêncio, apenas seus olhos travados um no outro.
O moreno procurou naqueles olhos alguma incerteza, ele sabia que esse tipo de intimidade era complicada para o palhaço, por mais que o outro tentasse dizer o contrário. Bruce não encontrou nenhuma hesitação quando o loiro abaixou a boxer e colocou a ponta do membro entre os lábios. Seus olhos ainda fixos no do ex-bilionário.
Bruce suspirou tremulamente sentindo os lábios molhados do loiro percorrerem seu comprimento levemente, como uma carícia, antes de ser engolido. O moreno arfou, seus dedos nos cabelos do loiro se apertando por um momento. Ele sentiu a garganta do ex-terrorista se fechar ao redor do membro em um movimento fluido. Bruce cerrou os dentes com força e engoliu um suspiro.
O ex-bilionário sabia que não iria durar muito, mas ele queria que durasse. Porra, Bruce queria que durasse. Como quem lê seus pensamentos, o palhaço parou os movimentos de sucção e descansou a glande do moreno em seus lábios por um momento antes de lamber até a base lentamente. O Coringa estava brincando com ele.
Bruce sentia que estava quase lá, ele sentiu a língua do ex-terrorista percorrer suas bolas antes de chupá-las, seus olhos ainda fixos no moreno. A mão do ex-bilionário era trêmula acariciando levemente a pele do pescoço do palhaço, enquanto a outra se fechava com força contra a madeira da porta.
De repente, o palhaço se afastou um centímetro, o sorriso malicioso de merda ainda pingando em seus lábios quando ele envolveu a mão ao redor do pênis do moreno, um aperto firme, mas não forte. A mão do ex-terrorista não se moveu, ele apenas ficou ali por um segundo antes que ele se levantasse. Os olhos do moreno acompanharam os do palhaço quando ele se endireitou na sua frente. A mão do loiro continuava ali, imóvel.
O sorriso de escárnio e zombaria, nunca abandonava os lábios cheios de cicatrizes do ex-terrorista. O louco deu um passo para frente, para longe da parede, colocando seu corpo no do ex-bilionário. O membro ereto do moreno ainda em sua mão agora roçava as calças do loiro suavemente. Bruce se segurou para não choramingar.
O loiro engoliu uma risada, sua respiração pesada contra a bochecha do moreno
-Como você quer gozar, querido ? - zombou o loiro, sem tirar os olhos de Bruce.
-Você é um desgraçado - falou o moreno entre os dentes, sufocando um gemido antes de puxar a cintura do loiro contra si com força - não me provoca.
-Eu jamais faria isso - zombou o loiro passando a língua no lábio inferior.
-É mesmo ? - devolveu o ex-bilionário levantando o outro homem, colocando as coxas do palhaço ao redor de sua cintura com facilidade enquanto dava dois passos para trás no espaço do banheiro.
O moreno segurou as coxas do ex-terrorista enquanto beijava seu pescoço exposto pela gola da camiseta. No momento seguinte, Bruce se sentou no vaso sanitário, com o outro homem sentado contra suas pernas, a calça de moletom do palhaço raspando contra o membro ereto e sensível do moreno.
Bruce em um movimento medido em quando unia sua boca do loiro, levou uma das mãos por dentro da calça do palhaço para acariciar sua bunda levemente, antes de apertá-la. O ex-terrorista tremeu enquanto suspirava contra os lábios do outro homem.
-Está tudo bem ? - perguntou o moreno, seus lábios ainda roçando os do loiro, enquanto uma das mãos retirava uma mecha de cabelo do rosto do palhaço.
-Tudo bem o que ? Transar ou transar escondido em um banheiro ?
O moreno ficou parado, sua expressão suave, enquanto acariciava o arco da orelha do outro homem. Porque Bruce era assim, e porra, o ex-terrorista queria mordê-lo por ser tão doce e carinhoso. E foi isso que ele fez.
O loiro uniu sua boca com a do ex-bilionário, mordendo seus lábios, uma permissão sem palavras para que eles seguissem. Bruce, entendendo o recado mudo do loiro, apertou levemente sua coxa por dentro da calça antes de devolver o beijo.
O ex-terrorista fazia pressão no membro desnudo do moreno ereto e esmagado contra o peso do loiro em seu colo. Bruce arfava, a fricção e a pressão fazendo seu sangue correr mais rápido. O ex-bilionário levou o dedo anelar da mão que estava na coxa até a entrada do loiro, massageando com movimentos circulares a pele enrugada. O palhaço arfou contra o seus lábios, os braços descansando em seus ombros levemente.
Bruce cutucou levemente a entrada, fazendo seu dedo adentrar lentamente a cavidade enquanto beijava o ex-terrorista, engolindo seus gemidos em beijos desleixados e profundos.
O ex-bilionário ainda podia ouvir os sons das explosões ao fundo, os sons dos diálogos do filme que se desenrolava na sala. Em um mundo à parte do mundo que havia naquele banheiro naquele momento.
O moreno abaixou as calças de moletom do loiro até as coxas junto com as boxes, deixando que seu membro ereto tocasse a pele aquecida do Coringa. Bruce sentiu um arrepio percorrer sua pele suada de tesão, enquanto empurrava devagar o segundo dedo para dentro do loiro. Bruce abraçou o corpo do palhaço com o outro braço, segurando suas costas com força, silenciando seus suspiros com beijos intensos e longos.
No momento seguinte, o ex-bilionário deslizou seu membro pela abertura do outro homem em um movimento longo, fazendo o outro homem estremecer e choramingar contra seus lábios antes de ser silenciado por outro beijo. O membro agora duro do palhaço pendia contra a camisa de botão de Bruce, esmagado entre os dois corpos unidos.
O som de tecido contra tecido, carne contra carne, gemidos entrecortados e suspiros enchiam o banheiro em uma atmosfera quente e suada. O moreno separou suas bocas por um momento, mordendo o lábio inferior do loiro antes de suspirar. Ele não ia aguentar muito mais disso, ele podia sentir que estava quase lá.
O moreno notou quando o ex-terrorista afastou o rosto, escondendo-o na dobra de seu pescoço. Por um momento, Bruce ficou preocupado, isso era uma quebra de expectativa, o Coringa precisava ver seu rosto durante o sexo, era algo não dito entre eles, mas que ambos sabiam.
-Está tudo bem ? - perguntou o moreno em um tom baixo, acariciando a base do pescoço do outro homem. Bruce podia ver que o louco estava trêmulo, e que seu pênis estava duro, esmagado entre os dois de forma quase dolorosa.
-Porra, Brucie - falou o loiro, seu tom arrastado e rouco contra a pele do pescoço do moreno - só…me faz gozar logo, eu acho que vou explodir.
Bruce não sabia se ria da reação do palhaço, ele optou por manter um sorriso de canto de boca antes de levar a outra mão no espaço entre os corpos de ambos para segurar o membro do ex-terrorista. Bruce o esfregou entre os dedos, fazendo o loiro abraçar seu pescoço com mais força, gemendo no pé de seu ouvido. Porra, ia gozar em segundos se o Coringa não parasse de gemer baixinho de trêmulo no pé do seu ouvido.
Como Bruce previu, não foi preciso muito mais do que isso e algumas estocadas para que ele chegasse no clímax. O moreno apertou de leve o membro do ex-terrorista em sua mão enquanto se desfazia com os dentes cerrados. Bruce ficou parado por um momento, atordoado, com o Coringa ainda no seu colo.
-Porra, você é muito fraquinho, Brucie - zombou o loiro, rouco e trêmulo contra seu ouvido. O moreno sabia que era uma zombaria, Bruce não era precoce de jeito nenhum, era apenas uma forma do ex-terrorista provocá-lo.
O moreno se recuperou de seu orgasmo, mas ainda não se retirou de dentro do ex-terrorista. Afinal, o loiro ainda não tinha gozado, e se dependesse de Bruce, bem, eles ainda iriam brincar um pouco.
Bruce esfregou sua mão lentamente ao longo do membro do ex-terrorista, sem pressa, antes de segurar suas bolas com a outra mão, brincando distraidamente, para logo em seguida intensificar o aperto. O loiro gemeu baixinho enquanto Bruce bombeava seu pênis em um movimento constante. O palhaço também não durou muito, foi preciso apenas mais alguns puxões para que o loiro chegasse, sujando sua camiseta e a de Bruce com gozo.
Os dois ficaram parados por um momento. O moreno colocou a mão na nuca do ex-terrorista que respirava profundamente contra seu pescoço, ainda se recuperando do orgasmo. O moreno enterrou o nariz em seu cabelo suado antes de beijar os fios. Ele sabia que o loiro queria sua dose de carinho pós-sexo.
Depois de cerca de um minuto, o loiro se levantou e arrumou suas calças com uma careta antes de olhar para o moreno que fazia o mesmo. O som da televisão ainda era um barulho de fundo vindo da sala.
-Você tem sorte de não pegar uma doença - zomba o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios.
-Você não tem nenhuma doença transmissível - falou o moreno em um tom neutro, terminando de arrumar as calças.
-Você não sabe disso - provoca o loiro com uma risada contida - talvez a gente tenha aids.
-A gente não tem aids - disse Bruce revirando os olhos.
-Você tem minha ficha, né ?- provocou o loiro - mas ela está desatualizada, faz alguns meses que não faço nenhum exame de sangue, então, como você teria certeza ?
Bruce não respondeu de imediato. Apenas lançou ao Coringa aquele olhar cansado, mas afiado, o tipo de olhar que dizia “eu sei exatamente o que você está fazendo” . O silêncio entre eles pesou por um segundo, até que o moreno arqueou uma sobrancelha, impassível.
-Está sugerindo que está dormindo com outra pessoa? – repetiu, como quem devolve a provocação só para ver até onde o outro iria.
O Coringa sorriu, aquele sorriso enviesado que nunca anunciava boas intenções. Ele deu um passo mais perto, o corpo relaxado, mas os olhos atentos, sempre dançando entre o deboche e o desejo.
-Eu? Quem sabe? - sussurrou, arrastando as palavras com malícia proposital, antes de lamber devagar o lábio inferior.
Bruce cruzou os braços e suspirou, exausto, e inclinou levemente a cabeça.
-Se você estiver, eu só desejo boa sorte para a pessoa - disse o moreno em um tom seco, mas sem peso real - e aconselho a procurar um bom plano de saúde e ajuda psicológica.
O Coringa riu, aquela risada baixa e vibrante, como se as palavras de Bruce fossem uma carícia ao seu ego ferido e inflado ao mesmo tempo. Ele adorava brincar com fogo, mesmo sabendo que Bruce sempre sabia onde começava a farsa e onde terminava o teatro.
-Tão confiante, Brucie... - murmurou, arrastando o nome como quem saboreia uma fruta madura - continue assim, quem não procura não acha.
Bruce apenas o encarou por mais um segundo. Seus olhos eram poços de paciência contida, uma paciência que vinha não da ignorância, mas da familiaridade. Ele sabia exatamente o que o Coringa queria, sua atenção, controle emocional, e uma faísca da sua raiva. Mas Bruce não era mais o mesmo. E o loiro, por mais que tentasse, não conseguia arrancar dele o que queria da forma fácil.
O ex-bilionário sabia que o palhaço não estava dormindo com ninguém, e o Coringa também sabia que o moreno sabia. O palhaço apesar do exterior muito descontraído e sem o menor filtro, era emocionalmente muito fechado. O loiro nunca calava a boca, mas era difícil entender qualquer coisa sobre ele, Coringa era muito cuidadoso com suas emoções reais. Então sim, o moreno sabia, o loiro só estava sendo irritante.
-Você é mentiroso de merda - falou o moreno depois de um momento - você não conseguiria dormir com outra pessoa nem se tentasse, iria acabar quebrando o pescoço no segundo que ela te olhasse do jeito errado, depois esquartejaria e colocaria na lata de lixo.
-É quase fofo que você me conheça tão bem - falou o ex-terrorista, um tom provocativo, mas que era mais suave.
Bruce não respondeu de imediato. Apenas observou o loiro por um instante mais longo do que o necessário, como quem procura rachaduras. Ele conhecia aquela camada de deboche, aquela armadura de sarcasmo e desdém e sabia que o loiro só a retirava em dois momentos quando estava tendo uma crise psicótica, ou para agir como um verdadeiro sociopata raivoso, ou para se despedaçar em lágrimas como uma criança.
-Claro que conheço - falou o moreno se aproximando do palhaço, seus olhos fixos nos dele - eu sei que você não me trairia, nunca.
-Porque ?
-Porque você me ama - falou Bruce simplesmente, levantando a mão para acariciar o bochecha cicatrizada com os nós dos dedos.
Bruce deixou a mão repousar de leve na lateral do rosto do loiro, o polegar roçando de forma quase imperceptível a cicatriz que cortava a bochecha até perto da orelha.
-Só amei duas pessoas nessa vida - falou o louco em um tom baixo, perigosamente sério. Seus olhos desviados para algum lugar longe dos do moreno, enquanto o outro homem ainda acariciava seu rosto calmamente.
-Eu sei - disse o moreno.
-Obrigado, por ter aparecido naquele dia - falou o loiro, lambendo o canto dos lábios antes de voltar a encarar o moreno - por ter quebrado a minha cara e meu braço naquele assalto a banco, foi mágico, senti borboletas no estômago enquanto você chutava a minha cabeça.
Bruce soltou uma risada breve, sem humor, abaixando a cabeça por um instante antes de encará-lo novamente com aquele olhar que parecia ver através das camadas, como se conseguisse decifrar até o silêncio.
-Vem aqui - falou o moreno com um suspiro antes de dar um selinho casto no loiro.
A atitude fez o Coringa engolir um riso, seus olhos brilhando com uma zombaria mal formada.
-Você está ficando mole, Brucie - disse o louco com um sorriso de escárnio - eu aqui tentando te provocar para levar um soco e você me puxando para uma cena digna de filme de garotas.
Bruce não se abalou com a provocação. Apenas ergueu uma sobrancelha, como quem observa uma criança tentando provocar o adulto com um graveto. O moreno o fitou por um segundo, olhos semicerrados, mas havia algo brando ali. Não era exatamente paciência, mas aceitação. Não de quem se rende, mas de quem já viu todos os lados daquela alma retorcida e, mesmo assim, ficou.
-Você é uma garota, você faz questão de dizer isso - zombou Bruce tentando conter o riso.
O Coringa piscou, surpreso por um instante, antes de arquear uma sobrancelha e soltar um risinho, como se fosse uma plateia interna aplaudindo a audácia de Bruce.
-Mas é minha garota - disse o moreno por fim.
O Coringa olhou para Bruce, um sorriso sinuoso se formando nos cantos dos lábios, os olhos brilhando com uma mistura de desdém e divertimento. A resposta estava prestes a sair, mas ele se conteve por um segundo, percebendo a calma do moreno. Bruce não estava ali apenas para brincar com ele, não só para continuar aquele jogo de provocações. Algo mais estava em jogo, uma conexão que o loiro, por mais que tentasse negar, não conseguia ignorar.
-Eu sou sua garota, é? - disse o loiro, agora com um tom mais pensativo, como se estivesse ponderando a ideia. Seus olhos brilhavam levemente com algo que parecia ternura, mesmo misturada com cinismo.
-Ok, chega, Você vai me fazer vomitar com essa merda de afeto - falou o loiro por fim, fazendo uma falsa careta de nojo.
Bruce sorriu de canto, aquele tipo de sorriso raro que só aparecia quando o loiro deixava cair, mesmo que por um segundo, aquela máscara feita de farpas e sarcasmo. Ele sabia que o Coringa só fazia esse tipo de piada quando queria desviar de um momento de vulnerabilidade, quando o coração apertava forte demais no peito e, admitir isso doía mais do que levar uma surra.
-Você começou - respondeu o moreno com leveza, como quem aceita a provocação sem se deixar afetar.
O Coringa bufou, um som mais suave do que o usual, como se não tivesse mais energia para se opor. A risada forçada morreu em seus lábios, e ele ficou em silêncio por um momento, olhando fixamente para Bruce. O olhar dele não era de zombaria, nem de malícia. Era quase... cansado.
Bruce, por sua vez, não o desafiou mais. Não o provocou. Ele apenas permaneceu ali, o olhar fixo no loiro, os olhos tão suaves quanto uma carícia, mas igualmente firmes. Era uma paciência inabalável, uma compreensão silenciosa que se estendia por toda a vida deles. O moreno sabia que o Coringa precisava daquilo, um pouco de gentileza, mesmo que disfarçada de brincadeira.
O Coringa continuou olhando para Bruce, os olhos aquecidos pela presença do moreno, mas sua expressão ainda assim impassível, como uma máscara que ele mantinha com dificuldade. O silêncio se estendeu entre eles, denso, pesado, mas ao mesmo tempo confortável. Bruce, com seu olhar constante e paciente, não se importava com os jogos mentais do palhaço.
-Acho melhor a gente voltar para a sala - disse o loiro em um suspiro antes de passar a língua no lábio inferior - o passarinho vai pensar que eu te matei e estou fatiando o corpo.
Bruce não respondeu de imediato, apenas observou o loiro com um sorriso quase imperceptível, como se soubesse exatamente o que o Coringa estava tentando esconder sob aquela máscara de sarcasmo. O palhaço sempre gostou de jogar com as emoções dos outros, mas não gostava quando as dele eram reveladas.
-Eu vou primeiro - falou Bruce se virando para a porta - fica aqui por alguns minutos a mais.
-Ele não é uma criança, Brucie - zombou o louco arqueando uma sobrancelha - ele sabe juntar 2 + 2, nós dois sumimos, é obvio que estavamos fodendo.
-Chuck o deixou aqui porque o Batman prometeu ajudá-lo, Jason está passando por um momento difícil - falou Bruce com um tom calmo - não vamos tornar isso mais esquisito para ele.
O Coringa ficou em silêncio por um momento, seus olhos agora fixos em Bruce com um brilho diferente.
-Eu sei o que você está fazendo, Brucie - disse o loiro, a voz agora com um tom mais grave, sem o usual deboche. Ele se encostou na parede, com os braços cruzados, observando Bruce como se estivesse tentando entender a decisão do moreno.
Bruce parou na porta, o corpo ainda virado para o loiro, mas sem olhar diretamente para ele. Não era necessário, ele já conhecia cada nuance daquele olhar. Cada silenciar, cada movimento.
-Você se importa com o que aquele pirralho pensa de você - zombou o loiro - está apegado e não faz nem um mês que ele está aqui, isso é fofo.
-Cala a boca - disse o moreno com um suspiro abrindo a porta - espera aqui uns cinco minutos, depois pode sair.
-Sempre me dando ordens…
Notes:
Então era semana era isso :) Obrigado a todo mundo que acompanha até aqui.
Chapter 35: The Gotham We Have (Parte 35)
Notes:
Gente, na próxima semana infelizmente não vou conseguir postar. Eu ando com muitas coisas para resolver na minha vida pessoal, mas não estou sumindo, no máximo umas duas semanas, nada demais. A verdade é que preciso respirar um pouco.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A luz fraca do monitor iluminava o rosto de Bruce em tons azulados, destacando as olheiras profundas e a expressão concentrada. O quarto estava quase em completo silêncio, salvo pelo som ocasional das teclas e da respiração tranquila do Coringa, deitado na cama atrás dele, parcialmente coberto por um cobertor desajeitado, um dos joelhos dobrado e o rosto virado para a parede.
O relógio marcava 3h43 da madrugada. Bruce sabia que não era um bom momento para alimentar suas paranoias, mas ele não conseguia tirar da cabeça o que o ex-terrorista havia dito, sobre Andy ter falado que Grayson havia colocado as câmeras e as escutas. O ex-bilionário tentava pensar no que o ex-psiquiatra ganharia contando uma mentira desse tipo. Bruce não sabia o que pensar.
Além disso, ele ainda tinha que resolver a questão relacionada com Talia, mas até o momento, ele não havia conseguido encontrá-la, nem mesmo um único rastro.Talia sempre foi muito boa em sumir quando queria.
E misturado com todos os problemas, havia o crescente caso do contador de histórias espreitando pelas bordas. A caneca de café esquecida ao lado já não fumegava. Seus olhos estavam vermelhos de cansaço, mas a mente seguia afiada, inquieta. Uma parte dele precisava que fizesse sentido. Agora.
Bruce voltou aos documentos. A mesma sequência aparecia mais de uma vez:
Awanig → Hong Kong → Belize → Eclar.
Ele franziu a testa. Passara por esse nome diversas vezes durante a noite. “Eclar”. Algo o incomodava. A sonoridade era esquisita. Quase como um erro de digitação. Uma palavra que não se sustentava em si. Mas o moreno seguiu em frente. Abriu outro arquivo, desta vez do registro fiscal de 1998. A empresa Eclar, então sediada em Belize, havia fechado no ano seguinte e ressurgido em 2003 sob outro nome, só para desaparecer de novo em 2006. A linha do tempo batia. Com o desaparecimento da A. Crale Imports. O nome apareceu como um sussurro em sua mente.
Ele parou por um momento, os olhos fixos no ponto onde o nome se repetia em diferentes contextos. “Crale”. Eclar. Crale. Eclar. O eco das palavras ficava mais alto quando ele as ouvia mentalmente. Havia algo ali. Um padrão que seu cérebro parecia recusar.
“Eclar... Eclar...”
Ele resmungou, mais para si mesmo do que para qualquer outro. De repente, uma lembrança, ele mesmo criança reorganizando um quebra-cabeça de palavras, irritado porque "estava fácil demais". Ele trocava letras por impulso, formando outra palavra a partir da original. Bruce olhou de novo para "Eclar", pegou uma caneta, e escreveu em um canto do papel. Depois, pausou, tirou as letras e as embaralhou devagar.
C R A L E
Eram anagramas, mas porque ? O moreno sabia que o anagrama por si só era apenas a superfície. Agora ele precisava descobrir por que alguém quis apagar “Crale” e revivê-lo sob outro nome. E o que, exatamente, se escondia dentro daquele contêiner desaparecido desde 2006. A ponta da caneta tamborilava contra o caderno aberto enquanto Bruce analisava a palavra redesenhada com olhos semicerrados.
Bruce se recostou na cadeira, os olhos ardendo, as costas doendo. A palavra ecoava em sua mente como uma risada abafada. O som da cama rangendo atrás dele quebrou sua linha de raciocínio. O Coringa se mexera, soltando um murmúrio sonolento antes de tossir levemente.
-Tá acordado, Brucie...? - veio a voz rouca, ainda embargada de sono.
Bruce não respondeu imediatamente. Apagou a tela do monitor antes de virar-se, como se as palavras digitadas ali pudessem escorrer pelos olhos do outro homem. O loiro havia se virado parcialmente na cama, uma mecha de cabelo colada na bochecha.
-Não consegui dormir - suspirou o moreno.
-Ainda não conseguiu nada sobre Tália ? - indagou o ex-terrorista, mas ele não parecia realmente curioso com isso.
-Não, mas não é sobre isso que estou pensando agora.
-Você não devia pensar em nada, devia dormir um pouco - resmungou o loiro - eu que vou ter que te aguentar de mau humor.
Bruce soltou um suspiro leve, quase imperceptível. A preocupação estava colada à sua pele como suor frio. Ele esfregou os olhos com a ponta dos dedos, tentando afastar o cansaço, mas tudo doía, o corpo, os olhos, a consciência.
-Só preciso terminar isso - murmurou.
-Você sempre diz isso - o Coringa replicou, arrastando a voz com desdém sonolento - e sempre acha mais alguma coisa pra terminar.
Bruce não respondeu. Voltou a encarar o monitor, mesmo com a tela apagada, como se os dados ainda estivessem ali, projetados na escuridão.
O moreno pensava no que foi dito pelo ex-terrorista, sobre Andy ter dito que o aspirante a jornalista investigativo havia instalado as câmeras e escutas em seu apartamento. Bruce sabia que tinha que ser cuidadoso, que havia muitas coisas em jogo, muitas coisas que o ex-bilionário ainda não entendia.
O quarto estava mergulhado em silêncio outra vez, interrompido apenas pela respiração ritmada do Coringa. Ele sabia que cedo ou tarde teria que ir conversar com Matthew, perguntar sobre Richard. O moreno não conseguia tirar isso da cabeça.
Ele sabia que Andy não falava nada de graça. Cada palavra era escolhida, calculada. Se colocou Grayson no meio da equação, não foi por engano, mas porque ? O que o ex-psiquiatra ganhava com isso ? Bruce pressionou as têmporas, sentindo a pulsação insistente de um começo de dor de cabeça. A pergunta girava em círculos dentro dele, como um animal preso em jaula apertada.
Bruce se levantou lentamente, as articulações protestando com o movimento. Caminhou até o criado mudo e pegou o celular, apenas para olhar a tela depois deixá-la escurecer. Ele olhou para a cama. O Coringa agora dormia profundamente, a respiração pesada, o rosto parcialmente enterrado no travesseiro. Parecia uma cena de paz, ou o mais próximo de paz que aquele quarto poderia oferecer. Bruce odiava ter que levar a presença de Andy para dentro daquele lugar. Mas o mundo não oferecia escolha. Nem descanso.
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O sol da manhã filtrava-se pelas janelas sujas da delegacia tingindo as paredes de um amarelo pálido. As cafeteiras ferviam em protesto nos cantos da sala, e o cheiro de papel velho, café queimado e frustração pairava no ar. Chuck caminhava apressado até a sala dos fundos, onde Sarah o esperava com os braços cruzados e a testa franzida. Ele precisava falar com ela sem que outras pessoas pudessem notar. Principalmente se tratando do que se tratava.
-Você está exagerando, não? - ela perguntou assim que ele entrou, baixando o tom de voz - se a gente for investigar cada coisa que sumiu no fundo desse rio, vai precisar de um submarino e três encarnações.
-Eu sei disso Sarah - falou o tenente, seus olhos eram cansados - mas não sei como conduzir isso de outra forma, eu sinto um cerco se fechando que está me deixando sem ter para onde correr.
-Vamos contar para o Castro ? - perguntou a agente, seu tom era calmo - sei que não confia nele, mas não sei se conseguimos fazer isso sem que ele fique sabendo.
-Não vamos contar - disse o tenente simplesmente.
Sarah ficou em silêncio por um momento, olhando para o chão. Depois soltou um suspiro lento.
-Está bem - disse a mulher depois de um momento - digamos que eu entre nessa, como você pretende achar um contêiner no fundo do rio Gotham sem chamar atenção?
Chuck ficou em silêncio por um momento antes de dizer:
-Tem uma área perto dos estaleiros abandonados, onde os fluxos de corrente ficam mais lentos, se jogaram o contêiner, é o ponto mais provável de ele ter ficado preso, eu consigo um drone com sonar com um pessoal da Marinha que ainda me deve uns favores. A gente só precisa de um barco, e de alguém que não faça perguntas.
Sarah cruzou os braços fitando o tenente antes de dizer:
-Você sabe que está colocando seu cargo em cheque.
-Eu sei - falou Chuck, seu tom tenso - mas seria muito egoísta achar que o meu cargo é a coisa mais preciosa em jogo, não depois de tudo de aconteceu, depois de todas as pessoas que morreram.
Sarah mordeu o canto da boca, pensativa. O silêncio entre eles foi preenchido apenas pelo ruído abafado das conversas no corredor e o som constante da impressora da recepção, cuspindo relatórios com desdém mecânico.
-E o mergulhador? - perguntou ela, por fim, com um olhar que indicava que já tinha tomado a decisão de ir junto.
Chuck assentiu lentamente, puxando um pedaço dobrado de papel do bolso interno da jaqueta.
-Velho conhecido dos tempos de investigação ambiental, ele trabalhou com buscas em águas profundas antes de se aposentar, tinha um apreço muito grande por Jim, o nome dele é Salgado - falou o tenente - se o convencermos que estamos lidando com provas de um crime federal, ele fecha a boca e mergulha, vou pedir para Jim ser o nosso intermediário com Salgado.
-Jim está se envolvendo nisso então - refletiu a agente, pensando no ex-comissário e em toda a investigação que eles moveram no ano passado no caso do Contador de histórias.
-Aposentadoria nunca combinou com ele.
Sarah o encarou mais uma vez, com o semblante sério.
-E se a gente encontrar esse contêiner... o que você espera ver lá dentro, Chuck?
Ele demorou a responder. Seus olhos vagaram pela sala, como se buscassem uma imagem concreta daquilo que nem ele sabia nomear.
-Eu não sei - respondeu o tenente por fim, com a voz baixa - mas tem uma linha levando até esse ponto, ninguém encobre um contêiner no fundo do rio por acidente.
Sarah respirou fundo, processando as palavras.
-Então a gente tá se jogando num tiro no escuro?
-Não, a gente tá tentando acender uma luz nesse caso - disse ele - e se for só ferro velho, ótimo, melhor isso do que continuar sendo puxado por um fantasma sem rosto.
Sarah baixou os olhos, mexendo nos próprios dedos como quem tentava organizar os riscos mentalmente. Quando voltou a encará-lo, seus olhos estavam firmes.
-Tudo bem - disse ela - a gente faz isso, mas tem que ser rápido, discreto, e sem deixar rastros.
Chuck assentiu com um leve movimento de cabeça.
-Eu cuido do drone e falo com Jim ainda hoje, a gente se encontra às 22h no cais antigo, aquele perto dos guindastes afundados - disse o tenente - eu preciso que você leve os registros náuticos dos lugares onde tom mais corrente, bancos de areia, qualquer coisa.
-Entendido, deixe comigo - falou a agente quase saindo pela porta.
-Sarah - entoou o tenente fazendo a agente parar por um momento - obrigado.
Ela virou o rosto apenas o suficiente para que ele visse o esboço de um sorriso contido.
-Ainda não me agradece, a gente nem começou - disse ela antes de desaparecer pelo corredor, os passos firmes ecoando entre as paredes descascadas da delegacia.
Chuck ficou ali por alguns segundos, respirando fundo. Depois tirou o celular do bolso e, com os dedos hesitantes, procurou o nome de Jim na agenda. O número ainda estava salvo como “Comissário Gordon”. Ele hesitou por um instante antes de apertar o botão de chamada.
-Alô? - a voz do outro lado era rouca, carregada de sono ou nicotina - Chuck?
-Jim... preciso de um favor, grande, e rápido - disse o tenente - lembra do Salgado?
Uma pausa longa. Chuck quase podia ouvir Jim tomando um gole de café forte.
-Sim - respondeu o ex-comissário depois de um momento - do que se trata ?
-Não acho seguro tratar por telefone - disse o tenente em um tom baixo - posso ir até a sua casa depois das seis ?
-Estarei esperando.
Chuck guardou o telefone e saiu da sala com um só pensamento martelando entre as têmporas, tudo culminava pera aquele maldito conteiner. No corredor, os ruídos da delegacia soavam mais distantes do que nunca, como se o mundo real estivesse sendo lentamente engolido por um véu mais escuro e denso. Chuck caminhou sem olhar para os lados, sentindo os olhares curiosos dos novatos e o desdém dos veteranos. Ninguém confiava inteiramente em ninguém naquele lugar, e isso fazia parte do problema.
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Demorou cerca de uma semana para Bruce mostrar para Jason o seu quarto. O adolescente o seguiu em silêncio. O quarto era simples, uma cama de solteiro, uma estante vazia, uma cômoda com marcas de tinta nas laterais. Uma janela com vista para o beco lateral deixava entrar a luz das lâmpadas urbanas. As paredes estavam limpas, mas nuas.
-A gente pode mudar algumas coisas se quiser - disse Bruce em um tom neutro - pintar as paredes, trocar os móveis, até escolher as cortinas, o quarto era um depósito de coisas, demorou para conseguir tirar tudo daqui.
Jason olhou para ele com um misto de surpresa e desconfiança.
-Cortinas?
-É - Bruce deu de ombros, como se fosse óbvio - você pode escolher, se quiser deixar o quarto com a sua cara, me diz o que precisa.
Do corredor, o Coringa disse se escorando no batente da porta:
-Rosa-choque com babadinhos, aposto! Ou melhor, estampa de caveiras chorando sangue, vai combinar com o humor do adolescente.
-Não provoca - rosnou o moreno sem se virar para o ex-terrorista.
Bruce demorou um tempo para conseguir desocupar o quarto onde estavam suas coisas da época de vigilante. Não seria tão complicado se Jason não estivesse na casa, então o moreno teve que ser cuidadoso, ele não podia revelar seu segredo para o adolescente. O ex-bilionário já achava que tinha muita gente que sabia da sua identidade nessa altura do campeonato. O moreno não queria correr o risco de acrescentar outra pessoa a lista.
Jason franziu a testa, como se estivesse tentando decifrar não só o quarto, mas também Bruce.
-Tá - respondeu por fim o adolescente, jogando a mochila no chão com um baque surdo - então agora eu tenho um quarto, legal.
Bruce assentiu, com as mãos nos bolsos. Ele estava um pouco nervoso, isso era ridículo, mas ele nunca foi exatamente bom com esse tipo de coisa.
-Se quiser pendurar algum pôster, ou... sei lá, montar uma prateleira com livros, posso ajudar - ofereceu o moreno.
-Não precisa, eu me viro - murmurou Jason, já inspecionando a estante vazia com o olhar de quem avalia saídas de emergência.
O Coringa ainda encostado no batente, tomou um gole do café que equilibrava entre os dedos.
-Você se vira com o quê, exatamente? Planejando fugir pela janela? Porque aviso logo, o telhado desaba se pisar no lugar errado - o loiro lambeu o canto dos lábios fazendo uma pequena pausa - a gente descobriu isso do jeito divertido.
-Cala a porra da boca - avisou Bruce se virando para o louco - eu vou te jogar pela janela.
-Você não faria isso, muito menos na frente da “criança” - zombou o loiro - ele vai ligar para a assistência social e dizer que está vivendo em um lar abusivo.
Bruce cruzou os braços, os olhos estreitos cravados no Coringa.
-Sai daqui, vai - disse, num tom que misturava exaustão e um fio de ameaça real - deixa a gente em paz por cinco minutos, só isso, cinco.
O Coringa ergueu as mãos como se tivesse sido pego em flagrante roubando doces.
-Tá bom, tá bom! Vou fingir que tenho alguma decência - murmurou, girando nos calcanhares e desaparecendo corredor adentro, ainda rindo baixo.
Jason observou tudo com um olhar opaco, difícil de decifrar. Quando o Coringa sumiu de vista, ele voltou a encarar Bruce.
-Ele sempre foi assim?
Bruce suspirou, coçando a testa distraidamente
-Sempre foi… pior - admitiu o ex-bilionário - agora ele está menos insuportável do que quando o conheci.
-E porque exatamente vocês estão juntos se você não o suporta ? - perguntou o adolescente - é o meio contraditório.
-Eu o amo - disse o moreno facilmente - eu já estou em bons termos quanto a isso, e o amo exatamente assim.
Jason balançou a cabeça levemente, mas não comentou. Caminhou até a janela, empurrou-a com cuidado e olhou lá pra fora. O beco estava vazio, exceto por um gato vasculhando um saco de lixo. A cidade parecia mais distante vista dali, menos ameaçadora, como se estivesse sob vidro.
-Você falou que o quarto era depósito - disse Jason, sem tirar os olhos da rua - tinha o quê aqui dentro?
Bruce hesitou. Odiava mentir, mas também odiava o risco. A verdade era que aquele quarto guardava parte da vida dele que Jason nunca poderia ver. O uniforme antigo, os arquivos digitais, ferramentas de vigilância, manuais de investigação. Tudo agora escondido em caixas trancadas no fundo do armário do quarto dele e do Coringa, e outras na casa de Alfred.
-Coisas velhas, lembranças, equipamento de treino - respondeu o moreno - alguns entulhos de quando a gente se mudou pra cá.
Jason não pareceu convencido, mas deu de ombros.
-Tá, tanto faz.
Bruce se aproximou devagar, parando ao lado da porta.
-A gente não é perfeito, Jason - falou o ex-bilionário, seu tom era calmo - nem de perto, mas você é bem vindo para ficar o tempo que precisar.
O garoto não respondeu. Ainda de costas, assentiu uma única vez, quase imperceptível. O moreno respeitou o silêncio e saiu do quarto com passos leves, fechando a porta com cuidado. Assim que o som da madeira se encaixando ecoou, Jason se virou, encarando a porta fechada.
Jason olhou de novo ao redor. Paredes nuas, estante vazia, cama fria. Era um começo. E, mesmo que não soubesse quanto tempo ficaria, tinha aprendido que começos às vezes eram mais importantes do que finais.
Ele se levantou, caminhou até a cômoda, abriu uma gaveta e fechou de novo. Pegou a mochila do chão e, com cuidado, começou a esvaziá-la. Algumas camisetas, um livro surrado, uma foto dobrada que ele enfiou logo no fundo de uma gaveta sem olhar. Por último, tirou um caderno. Estava cheio de anotações que ninguém ali conhecia. Nomes, datas, esquemas. Rabiscou mais uma linha no final da página:
“Talvez ele saiba mais do que parece.”
Jason fechou o caderno, guardou-o debaixo do travesseiro e se deitou, olhos no teto. Bruce parecia saber mais do que deixava transparecer. Havia alguma coisa muito estranha. Ele sentia que todos estavam escondendo alguma coisa dele, Bruce, Batman, a polícia. Jason só queria encontrar sua mãe.
O adolescente ainda não sabia exatamente o que ele perguntaria para sua mãe quando a encontrasse, quando finalmente a conhecesse. Ele já havia ensaiado algumas coisas, frases soltas, perguntas diretas. “Por que me deixou?”, talvez. Ou “Você sabia onde eu estava esse tempo todo?”. Às vezes imaginava que ela teria uma resposta nobre, cheia de remorso, uma história trágica com desculpas plausíveis. Ele precisava de respostas.
Jason apertou os olhos no escuro, tentando segurar a raiva que queimava ali, silenciosa, como brasas embaixo da pele. Não era só sobre ela. Era sobre tudo. Sobre ter sido deixado com uma mulher doente, que não teve tempo para ser mãe de verdade, sobre perder sua infância em hospitais, não ter festas de aniversário e nem passeios no parque. Sobre ter aprendido a se virar sozinho antes mesmo de entender o que isso significava. Sobre sempre ter que desconfiar primeiro, baixar a guarda depois. Sobre ter crescido num mundo onde ninguém vinha resgatar ninguém.
Jason virou de lado, enfiando o rosto no travesseiro como se isso fosse capaz de conter a avalanche de pensamentos. Não era. Sabia que aquilo não ia passar com uma boa noite de sono. Sabia que nenhuma cama limpa podia apagar os anos de sujeira acumulada nas lembranças.
Do outro lado da casa, ele ouviu uma risada abafada, o Coringa, provavelmente zombando de alguma coisa estúpida. Jason fechou os punhos dentro do cobertor. Aquela casa era uma bomba-relógio. Bruce era… estranho. Calmo demais, paciente demais, e com aquele jeito de quem sabe tudo, mas escolhe o que dizer. O Coringa, por outro lado, era imprevisível, Jason tinha a estranha sensação que o ex-terrorista era muito mais perigoso do que o adolescente havia suposto no começo. Ele não parecia um ex-criminoso qualquer. Ele não gostava de morar com pessoas que ele não conhecia exatamente do que eram capazes. Ele já morava com Bruce e o palhaço a mais ou menos três semanas nessa altura, mas ainda sentia que não sabia nada sobre eles, não realmente.
Jason não dormiu naquela noite. Virou de lado várias vezes, mudou o travesseiro de posição, tentou contar de trás pra frente. Nada adiantava. A casa parecia quieta demais, mas Jason sabia por instinto, por vivência, que o silêncio também podia ser um tipo de ameaça. E naquela casa, com aquelas pessoas, tudo parecia carregado de tensão, mesmo quando ninguém falava nada.
Na madrugada, se levantou devagar, pisando com cuidado no assoalho velho que rangia como se gritasse seus passos. Não acendeu a luz. Sabia o caminho até a porta e se guiou pela fresta de luz que vinha debaixo da porta da cozinha.
-Ele não confia em mim - era Bruce quem falava, em tom baixo - e com razão, eu também não confiaria.
Jason parou na entrada, sem ser visto. A luz da cozinha estava acesa, e ele conseguia ver Bruce encostado no balcão, com uma xícara na mão. O Coringa estava em cima da mesa, as pernas se agitando levemente no ar, Bud aos seus pés no chão da cozinha.
–Você está pensando demais nisso, querido - respondeu o Coringa, esticando uma perna como se estivesse entediado – ele é um garoto de rua, desconfiar é o que ele faz.
Bruce bufou, apoiando a xícara no balcão.
–Tem raiva nele, um tipo de raiva que eu reconheço.
-Você reconhece porque já a viu no espelho – retrucou o Coringa passando a língua no lábio inferior, inclinando-se levemente, olhos fixos no moreno – ele se parece com você, mais do que você está pronto para admitir.
Bruce ficou em silêncio por um momento. Jason, do outro lado da porta, sentiu um nó se formar no estômago.
-Eu não sei se consigo fazer isso direito - murmurou o moreno - ser uma figura segura, um ponto de apoio, eu nem sei o que estou fazendo.
O silêncio se instalou por um momento, mas não havia tempo para silêncios, não naquela madrugada.
-Acha que ele vai tentar fugir? – perguntou Bruce, baixinho.
-Provavelmente - respondeu o loiro - e quando fugir, alguém vai ter que ir buscar.
Jason sentiu o estômago virar. Ele não queria fugir. Queria respostas. Mas fugir era o único plano que sempre funcionava quando tudo dava errado.
-Não quero ter que ir atrás dele como eu fui atrás de você – disse Bruce, a voz tão suave que quase se perdeu no barulho do relógio na parede.
O Coringa parou de balançar as pernas. Jason viu quando ele desceu da mesa com um movimento silencioso. Ele foi até Bruce, parando perto o suficiente para que os dois dividissem a mesma respiração.
-Não vai acontecer - disse o loiro, seu tom não tinha um pingo de zombaria, ele parecia estranhamente sério.
Bruce olhou para ele de lado, como se buscasse alguma confirmação que não fosse apenas verbal. O Coringa sustentou o olhar por um tempo longo demais, depois passou os braços pelos ombros do moreno e encostou seu nariz no dele
-Você se preocupa demais - murmurou, como se a ideia fosse ridícula, mas também inevitável - ele é só um adolescente, vai ser mais fácil dessa vez, o que ele pode fazer ? Bater a porta do quarto, dizer que te odeia e escutar rock raivoso ?
Bruce não respondeu de imediato. Passou os braços em torno do Coringa num gesto automático, o olhar perdido se desviando para algum ponto da parede
Jason recuou um passo no escuro, de volta ao corredor. Não queria ouvir mais. Aquilo não era pra ele. Não sabia o que o deixava mais inquieto, ver Bruce sob essa luz, ouvir o Coringa falando com calma, ou saber que era o assunto da conversa. Tudo aquilo formava um novelo difícil de desembaraçar.
Ele voltou para o quarto em silêncio, fechando a porta sem fazer barulho. Deitou-se de novo, os olhos fixos no teto. Estava cansado demais para dormir, ansioso demais para descansar. Mas havia uma coisa que ele agora sabia com certeza: eles estavam preocupados com ele. E isso era estranho. A preocupação nunca tinha sido um elemento recorrente em sua vida. Quase não sabia o que fazer com aquilo.
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Na manhã seguinte, o cheiro de café fresco se espalhava pela casa, misturado com o leve aroma de torradas queimadas. A luz entrava com preguiça pelas janelas da cozinha, iluminando os móveis gastos e a figura desgrenhada do Coringa, que, de moletom e pés descalços, mexia o café com uma colher de cabo torto.
Jason entrou na cozinha com a cara amarrada. Não tinha dormido, ou, se tinha, não foi o bastante para aliviar o peso nos ombros. O cabelo bagunçado, a camiseta amarrotada e o olhar cortante deixavam claro que o humor estava no fundo do poço.
-Tem cereal - disse o palhaço apontando com a colher para a mesa - ou você pode comer esse pão preto que Bruce acidentalmente torrou para mim até a crosta da existência.
Jason resmungou alguma coisa que o loiro não se deu ao trabalho de entender. Ele se jogou na cadeira com a mesma energia de um saco de batatas.
-Bruce foi trabalhar? - perguntou, de olhos baixos.
-É o que os adultos fazem - disse o loiro dando de ombros antes de beber um gole do café forte - eles gastam suas horas, trocando por alguns papéis coloridos.
Jason apenas bufou, pegando o copo de suco já servido. Bebeu em silêncio, mas o loiro observava cada movimento com aquele olhar afiado que via mais do que devia.
-E aí? Precisa de alguma coisa pra escola? - perguntou o Coringa casualmente, apoiando o quadril no balcão e cruzando os braços.
Jason ergueu os olhos devagar, como se a pergunta fosse ofensiva por si só.
-Escola? - repetiu, com desprezo - você tá brincando? Eu não vou perder tempo numa escola idiota enquanto a minha mãe tá por aí, sei lá onde, esperando que eu encontre ela.
-Hm - murmurou o Coringa, como se estivesse considerando uma receita arriscada - entendo, missão pessoal, vingança familiar, abandono maternal, tudo bem dramático.
-Não é drama - rebateu Jason, mais ríspido do que pretendia - eu não tenho tempo pra essas besteiras.
O Coringa não rebateu. Apenas caminhou até a torradeira, pegou uma fatia de pão queimada e deu uma mordida, como se nada estivesse errado no mundo.
-Tudo bem - disse com a boca cheia - então a gente vai depois do café.
Jason franziu a testa, confuso por um momento.
-Ir… para onde?
O Coringa sorriu cínico, limpando os cantos da boca com as costas da mão.
-Procurar sua mãe, ué - disse o loiro antes de passar a língua nos cantos dos lábios, fazendo uma pausa - você acha mesmo que eu ia deixar você vagar sozinho por essa cidade idiota? A gente compra seu material da escola e depois começa, eu te levo para tomar sorvete.
Jason hesitou. Aquilo não fazia sentido. O Coringa não era confiável
-E o que você ganha com isso ? - disse Jason estreitando os olhos.
-Olha pirralho, eu estou entediado nesse apartamento, se você tem um objetivo, ótimo - falou o loiro, seu tom um pouco sem os contornos divertidos - mas você vai fazer isso comigo, porque se você morrer, Bruce vai chorar e se culpar, e eu odeio essa merda emocional, então vamos nos poupar disso.
Jason mordeu o interior da bochecha. Tinha milhões de motivos para recusar. Mas também estava cansado, ele sentia que o Batman não iria aparecer, já faziam três semanas.
-Tá - disse por fim o adolescente - mas não me trata como uma criança.
-Sem promessas - respondeu o Coringa com um sorriso torto.
O silêncio voltou à cozinha por alguns instantes, quebrado apenas pelo barulho da colher batendo no fundo da caneca e pelo rangido discreto da cadeira de Jason, que se recostava, ainda tentando digerir a ideia de que sairia pela cidade... com ele . Não que o Coringa o assustasse realmente, o cara só era esquisito.
O ex-terrorista limpou a boca com a manga do moletom e puxou o capuz sobre os cabelos loiros sujos com um gesto de desdém, antes de coçar as cicatrizes em uma das bochechas.
-Você vem, passarinho ? - perguntou o louco caminhando para fora da cozinha.
Jason não respondeu de imediato. Ficou ali, encarando o fundo do copo como se esperasse encontrar alguma resposta no suco de laranja aguado. “Passarinho”. Ele se levantou devagar, arrastando os pés. Pegou o moletom surrado no encosto da cadeira e o vestiu com um suspiro. Quando atravessou a cozinha, o Coringa já estava calçando um par de tênis velhos chutando a porta com o calcanhar como quem fazia isso há anos.
-Você anda sempre assim? - perguntou Jason, olhando para a combinação de calça de moletom, camiseta de banda velha e um casaco de moletom cinza, com o capuz puxado sobre a cabeça.
O Coringa olhou para ele, sem parar de calçar os tênis, e fez um gesto largo com as mãos, como se o estilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
-O que, você acha que tem um código de vestimenta quando você é um desajustado social? - ele perguntou, com um sorriso torto - além disso, é um bom jeito de se misturar.
-E por onde a gente começa exatamente ? - perguntou o adolescente considerando por um momento.
-Nada demais, acho que começamos indo até a papelaria, depois uma parada para o sorvete, e por fim…um taco de beisebol, gasolina e possivelmente fica isolante, esse último sempre serve para quase tudo.
Jason olhou para o Coringa com uma mistura de confusão e incredulidade, mas ao mesmo tempo uma ponta de curiosidade. Não fazia sentido nenhum, mas ele sabia que o loiro sempre tinha uma lógica torta para tudo, e, por estranho que fosse, essa era uma das poucas vezes que parecia estar genuinamente disposto a ajudar, ou ao menos a acompanhar. Ele preferia mil vezes estar sozinho, mas a ideia de se arriscar sozinho pela cidade em busca de respostas o incomodava mais do que o próprio Coringa.
-Você está falando sério? - Jason perguntou, ainda com um olhar de desconfiança.
O Coringa estalou a língua, pensativo, enquanto tirava um molho de chaves do bolso e balançava no ar, como se estivesse prestes a sortear o destino de um condenado.
-Tão sério quanto consigo ser antes das nove da manhã - respondeu, dando um passo para fora com um aceno dramático.
Jason ainda encarava o Coringa com ceticismo quando viu o loiro sair pela porta da frente sem sequer pegar uma chave.
-Ué… cadê o carro? - disse o adolescente franzindo o cenho.
O Coringa deu uma risadinha, ajustando o capuz sobre o rosto e respondendo com um tom casual:
-Que carro?
-Você falou que a gente ia sair - Jason retrucou, agora parando no topo da escada da entrada - você não tem carro?
-Tenho sim - respondeu o palhaço, andando pela calçada como se estivesse indo ao mercado - só preciso encontrar ele.
Jason desceu os degraus devagar, desconfiado, seguindo o loiro.
-Como assim ?
-Ah, pirralho, para um ladrãozinho você está sendo muito certinho - respondeu o Coringa sem olhar para trás
Jason parou de andar por um instante, e seus olhos se arregalaram ao ver o Coringa se aproximar de um carro qualquer estacionado. Ele olhou em volta, como quem checa se tem polícia, depois se abaixou com agilidade surpreendente para alguém se recuperando de tiros.
O adolescente ainda estava processando quando ouviu o inconfundível clic metálico. O Coringa levantou a cabeça com um sorriso satisfeito, a porta do carro aberta como se fosse sua por direito divino.
-Bingo - murmurou o palhaço, entrando no banco do motorista com a naturalidade de quem estava em casa.
-Você acabou de... arrombar um carro - Jason disse, parado na calçada como se ainda pudesse fingir que aquilo não estava acontecendo.
-Não arrombei, eu só... libertei ele das amarras capitalistas - respondeu o Coringa, ligando os fios sob o volante com movimentos rápidos e precisos.
O motor roncou com vida própria. Jason olhou mais uma vez para os lados, rezando para que algum vizinho ainda estivesse dormindo. Então, soltou um palavrão baixo, subiu no carro e bateu a porta.
Jason se agarrou no encosto do banco. O carro guinchou ao dobrar a esquina e, por um segundo, o adolescente pensou se algum dia voltaria vivo para casa.
-Tá, então qual o plano real? - perguntou, franzindo o cenho - porque se isso for só uma versão esquisita de um “dia divertido com o tio doido”, eu juro que pulo fora.
O Coringa dirigia com uma das mãos no volante e a outra mexendo num rádio antigo que só chiava.
-Primeiro, pegamos seu material, porque ninguém vai acreditar que você largou a escola sem nem tentar comprar um caderno, segundo, passamos num lugar especial meu - disse ele com um sorriso enviesado, antes de passar a língua no canto dos lábios - e terceiro, começamos a nossa caçada e voltamos antes de Brucie chegue em casa.
Jason segurou o encosto do banco com mais força quando o carro passou por um buraco com violência, sacudindo os dois para frente. Ele bateu a cabeça levemente no vidro e soltou um gemido baixo de dor.
-Você dirige como um maluco! - reclamou, olhando feio para o Coringa - você sabe o que são faixas, né? Aquelas linhas no chão? Elas existem por um motivo!
-Eu sei o que são faixas, pirralho - respondeu ele, acelerando ao fazer uma curva tão fechada que quase subiu na calçada, girando o volante com uma mão só enquanto com a outra dava tapinhas rítmicos no painel, como se estivesse num passeio de domingo.
-Faixas são uma sugestão, garoto - disse o ex-terrorista olhando para o adolescente antes de cortar dois carros pela contramão como se estivesse jogando videogame - e convenhamos, Gotham nunca teve bons urbanistas
-Você não pode fazer isso - gritou Jason, agarrado na porta, olhos arregalados.
-Posso sim - respondeu o loiro, passando a língua no canto dos lábios - olha só como dá!
Ele fez outra curva fechada, quase atingindo uma caçamba de entulho. Jason praguejou alto.
-Pelo amor de Deus, você tem carteira de motorista?
-A carteira de motorista é uma convenção social, uma invenção de um sistema repressivo - disse o louco com um sorriso largo, quase se divertindo com a expressão horrorizada de Jason - eu dirijo muito bem.
O loiro olhou rapidamente para o retrovisor e então fez uma ultrapassagem pela direita, ignorando completamente o semáforo vermelho à frente. O motor do carro rugiu, e o carro derrapou ligeiramente na esquina.
Jason estava quase sem palavras. Ele se segurava como se estivesse numa montanha-russa fora de controle, com a respiração acelerada e as mãos suando. O Coringa parecia um garoto com brinquedo novo, completamente sem noção do perigo.
Jason ficou em silêncio por um momento, os olhos fixos no Coringa que parecia estar se divertindo com cada manobra arriscada, como se estivesse pilotando um carro de corrida em um jogo de videogame. O adolescente estava agarrado ao banco, tentando não se esborrachar na porta com cada curva fechada, e sua mente estava a mil, tentando acompanhar a sequência de infrações e imprudências que o Coringa cometia com uma calma desafiadora.
-Você está indo na contramão! - Jason gritou, os dedos brancos de tanto apertar o encosto do banco - e passou um sinal vermelho! Você tem noção de que está infringindo todas as regras de trânsito possíveis?
O Coringa apenas deu um sorriso largo, os olhos brilhando com um entusiasmo quase malicioso enquanto desviava de outro carro na rua.
-Para! Você vai matar a gente! - Jason gritou, agora sentindo o coração disparar, ele estava quase tendo um ataque de pânico - você acabou de… ultrapassar um ônibus! Você não pode fazer isso! E essa rua tem faixa exclusiva para ônibus!
-Relaxa, garoto, eu sou um mestre nisso…ou quase - passando a língua no canto dos lábios - E os outros motoristas? Apenas figurantes!
O ex-terrorista olhou para o retrovisor e deu uma risadinha, ele estava se divertindo. Jason já não sabia mais como reagir. O adolescente estava completamente desesperado, vendo o Coringa passar por sinais de pare, atravessar cruzamentos e até andar na faixa de pedestres como se não existisse mais ninguém na cidade. O carro fez mais uma curva fechada, dessa vez tão forte que ele foi lançado para frente, batendo a cabeça no vidro. Por um segundo, o carro derrapou, e Jason pensou que finalmente iriam capotar.
O Coringa, no entanto, apenas deu uma risadinha satisfeita e, de repente, freou de forma brusca no canto da rua, fazendo Jason quase bater a testa no painel, parando o carro. Ele desligou o motor e se recostou no banco, relaxado como se tivesse acabado de voltar de um passeio.
Jason ainda estava atordoado com a frenética sequência de manobras, seu coração batendo acelerado enquanto tentava se recompor. Ele se endireitou no banco, massageando a testa dolorida e se manteve em silêncio por um momento, ainda tenso. O Coringa parecia estar levando aquilo com uma indiferença total, mas Jason não conseguia deixar de sentir o peso de estar em uma situação completamente fora de controle.
-Bem - disse o loiro passando a língua no lábio inferior enquanto abria a porta do carro - como eu disse, eu dirijo muito bem.
Jason olhou para ele com incredulidade, completamente sem palavras. Seu estômago estava ainda revirando, e ele estava tendo dificuldades para processar o que acabara de acontecer. Como alguém podia dirigir daquele jeito e ainda agir como se fosse o mais normal dos passeios? Ele se forçou a respirar fundo, tentando se acalmar.
-O que… o que você está fazendo? - Jason perguntou, a voz tensa, tentando esconder o pânico que ainda corria pelas suas veias. Ele não entendia como o Coringa estava tão… confortável. Tão relaxado. O loiro já estava saindo do carro e, ao notar que o adolescente ainda estava no banco, virou-se com um sorriso travesso antes de dizer:
-Vem, vamos pegar seus cadernos.
Jason hesitou por um momento, ainda com o cinto de segurança afivelado, sem saber se o seguia ou não. Ele queria descer, dar meia-volta, voltar para casa… mas, por algum motivo, a ideia de sair daquela loucura e encarar a realidade sozinho parecia mais aterrorizante. Ele sabia que, por mais insano que fosse, ao menos com o Coringa ali, ele estava envolvido de alguma forma. Mesmo que fosse um risco, era um risco com alguém que, de algum jeito, já tinha provado ser mais imprevisível que qualquer outra coisa que ele já tivesse visto.
Com um suspiro resignado, ele abriu a porta do carro e seguiu o palhaço
-Eu não sei como você consegue ser tão tranquilo depois disso tudo - Jason resmungou, caminhando ao lado dele - eu estou a ponto de ter um colapso nervoso e você age como se tivesse acabado de sair para comprar pão.
-Tudo é mais simples quando você para de se preocupar com o que não pode controlar - disse o louco dando de ombros.
A resposta fez o adolescente bufar, chutando uma pedrinha da calçada, ainda tenso.
Eles entraram numa papelaria velha e meio desbotada, com um letreiro piscando de forma intermitente. Jason olhou em volta, surpreso por o Coringa tê-lo levado a um lugar tão… comum. Esperava uma fábrica abandonada, uma van escura, qualquer coisa menos isso. O Coringa foi direto ao balcão, pegou uma cestinha e começou a jogar cadernos e lápis dentro como se estivesse num jogo cronometrado.
-Azul ou vermelho? - perguntou, sacudindo dois estojos com cara de quem realmente queria saber.
Jason piscou, confuso.
-Tanto faz.
-É tudo sobre a estética - respondeu o palhaço, pegando o vermelho - sabe ? se vamos forjar uma tentativa de normalidade, temos que fazer isso com estilo.
Jason o observou por um tempo, e depois, quase sem pensar, perguntou:
-Por que você tá fazendo isso?
O Coringa parou por um segundo, fitando um bloco de anotações colorido com mais atenção do que o necessário. Depois, virou-se com um sorriso que não alcançava totalmente os olhos.
-Porque Brucie quer isso, não me entenda errado, não que eu me importe com o que ele quer, claro - completou o loiro, voltando a encher a cestinha com réguas e canetas coloridas, com um exagero teatral - mas... você sabe como é, quanto você ama uma pessoa, você faz alguns sacrifícios.
Jason franziu o cenho, parando ao lado dele. Aquela resposta tinha um peso estranho. O tom brincalhão do Coringa não combinava com o jeito como ele segurava o estojo de lápis, nem com o modo como seus olhos pareciam fixos em um ponto muito distante dali.
-Sacrifícios - repetiu Jason, num tom mais baixo, como se testasse a palavra.
-É - respondeu o Coringa, agora pegando um apontador com formato de bichinho e girando-o nos dedos - e você, garoto? Vai continuar me olhando como se eu fosse te esfaquear com uma lapiseira ou vai escolher um fichário decente?
Jason hesitou, mas acabou pegando um fichário preto com uma capa minimalista e, pela primeira vez, o Coringa assentiu, como se ele tivesse passado em algum tipo de teste secreto.
-Bom gosto, eu achei que você ia escolher aquele com a estampa de dinossauro.
-Eu não tenho 5 anos.
-Debatível - retrucou o Coringa, jogando o apontador na cesta.
Jason cruzou os braços, olhando para ele. Aquilo tudo era estranho. Muito estranho. E, mesmo assim, havia algo desconcertantemente genuíno no modo como o palhaço estava tentando... fazer as coisas funcionarem.
-E se o Bruce não quisesse que você fizesse isso?
O Coringa parou por um segundo, deixando um pacote de canetas cair devagar na cestinha. Seu sorriso sumiu por um instante antes que ele dissesse:
-Eu provavelmente esmagaria a sua cabeça até ela vazar.
Jason empalideceu, mas o Coringa já estava sorrindo de novo, pegando mais um bloco de anotações com estampa de unicórnios como se nada tivesse acontecido.
-Tô brincando, passarinho - disse num tom leve, apesar da intensidade ainda pairando no ar.
Jason não respondeu. Limitou-se a desviar o olhar, tentando ignorar o arrepio que subiu por sua nuca. Ele se perguntou, não pela primeira vez naquele dia, o que exatamente estava fazendo ali.
-Eu não vou te matar, se é isso que tá te deixando nervoso - disse o Coringa, num tom mais baixo, quase casual, enquanto escolhia uma cola em bastão com glitter - pelo menos não hoje, Brucie não ia gostar, e eu... bem, não quero deixar ele chateado.
Jason bufou, passando a mão pelo cabelo. A naturalidade com que o Coringa falava sobre matar alguém era, no mínimo, perturbadora. Mas havia algo de ainda mais perturbador em como, de um jeito retorcido, ele realmente parecia estar tentando... agradar Bruce, parecia considerar as emoções do outro homem de alguma forma, mesmo que diferente da maioria das pessoas.
-A maioria das pessoas só vê o que quer ver - disse o louco depois de um momento de silêncio, girando uma caneta entre os dedos, depois apontando para Jason com ela como se fosse uma faca - você dá pra elas uma historinha bonita o suficiente, e pronto elas engolem igualzinho a um comprimido amargo com cobertura doce.
Jason franziu o cenho, absorvendo aquelas palavras com uma sensação desconfortável. O silêncio que seguiu foi estranho. Denso. Jason sentiu como se estivesse flutuando em algum lugar entre o absurdo e o trágico, como se tudo aquilo, fichários, brincadeiras, ameaças veladas, fizesse parte de algo maior e impossível de compreender completamente.
-Você se sente mal por alguma coisa? - perguntou ele de repente, surpreso até consigo mesmo.
O Coringa parou. Dessa vez de verdade. Ficou imóvel diante da prateleira de post-its coloridos, o corpo tenso por uma fração de segundo.
-Não da forma como você sente - respondeu o loiro depois de um momento - para você se sentir mal você precisa sentir culpa ou arrependimento.
Jason sentiu um nó se formar na garganta. Ele não sabia se o Coringa estava falando sério ou se era apenas mais uma de suas excentricidades. Mas, de algum modo, o jeito como ele falava parecia muito mais perigoso do que qualquer ameaça direta. Era uma ideia completamente nova, uma visão do mundo onde nada se importava, onde ninguém precisava se desculpar ou justificar suas ações.
-Mas você se importa, tipo, com o que Bruce sente, certo? Se não, você não estaria aqui - disse o adolescente.
-Claro, eu amo Brucie, mesmo que seja do meu jeito - disse o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios antes de dar de ombro - Brucie tem uma maneira muito... peculiar de me fazer querer fazer as coisas, sabe ?
Jason ficou em silêncio, processando as palavras. O Coringa estava sempre tão imprevisível, sempre tão envolto em sua própria insanidade, que a ideia de ele estar tentando explicar "amor" parecia absurda. Mas havia uma camada de algo mais na voz dele. Algo que Jason não sabia identificar, mas que lhe causava uma sensação estranha.
-Para que todas essas coisas ? - perguntou Jason tentando dissipar toda a tensão - isso parece materiais de criança na pré-escola.
-Quem disse que é tudo para você ? - zombou o palhaço - estou quase sem giz de cera.
Jason mordeu o lábio inferior, lutando contra a vontade de rir. Não porque achasse engraçado, mas porque rir parecia ser a única defesa possível contra o completo absurdo de tudo aquilo. E, de algum jeito, rir com o Coringa parecia menos perigoso do que contrariá-lo.
-Todo mundo precisa de um lugar onde possa existir do jeito que é - murmurou o Coringa, como se lesse os pensamentos dele - e giz de cera é ótimo pra fazer camadas.
Jason o observou em silêncio, notando pela primeira vez como os olhos do Coringa ficavam ligeiramente distantes quando falava daquilo. Como se ele não estivesse mais ali, mas em algum outro lugar, algum que ninguém mais podia acessar.
Eles pagaram as compras e saíram da loja. O céu estava acinzentado, típico de Gotham, mas havia uma brisa suave, quase agradável. O Coringa parecia satisfeito, com a sacola balançando em uma das mãos.
-Bem, vamos para a segundo parada, sorvete - disse o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios sem olhar para o adolescente.
Jason hesitou por um segundo antes de seguir o palhaço. Havia algo naquele momento que o prendia, apesar de tudo. Algo na forma como o Coringa oscilava entre o aterrador e o... quase humano. Era impossível prever o que viria a seguir, mas, por ora, o mundo parecia suspenso naquele intervalo entre o grotesco e o trivial.
Eles caminharam por algumas quadras até chegar a uma sorveteria pequena, o sino da porta tilintou com um som agudo demais. Havia poucas pessoas lá dentro, uma mãe cansada com duas crianças manchadas de chocolate, um velho lendo jornal e o atendente entediado demais para ligar para quem acabara de entrar.
Havia algo estranhamente suave no jeito que o Coringa se comportava ali. Ele não estava performando, não exatamente. Era como se aquela parte dele, a parte que gostava de giz de cera e doces coloridos, estivesse simplesmente à superfície, exposta por alguns momentos antes de ser encoberta novamente pelo caos habitual.
-Então - disse o Coringa, se virando para Jason com um sorriso exagerado - qual é o seu sabor de trauma favorito? Chocolate com abandono paterno? Morango com lapsos de identidade?
Jason revirou os olhos, mas não respondeu. Aproximou-se do balcão e olhou os sabores como se aquilo fosse uma decisão de vida ou morte.
-Eu vou querer napolitano - disse, depois de um tempo.
O Coringa arqueou uma sobrancelha, surpreso, antes de passar a língua nos cantos dos lábios dizendo:
-É uma escolha diplomática, três sabores, nenhum compromisso, você seria um ótimo político.
Jason pegou o sorvete e foi se sentar perto da janela, enquanto o Coringa escolhia o mais ridiculamente colorido e doce possível, algo azul com glitter comestível, provavelmente chamado "Explosão Cósmica", ele não saberia ao certo. O adolescente fez uma careta antes de dizer:
-Bruce não devia deixar você comer tanto açúcar.
-Não dê ideias ao Brucie - zombou o loiro.
Jason apoiou o cotovelo na mesa e olhou pela janela. As pessoas passavam apressadas na calçada, completamente alheias à bizarrice daquela cena. Jason não sabia se o palhaço estava brincando. Na verdade, nunca sabia. Mas havia algo naquilo que parecia... real. Dolorosamente real. Uma parte do Coringa que ele não sabia que existia e que, ao mesmo tempo, não queria saber demais.
-Depois do sorvete, vamos para a terceira parte da nossa pequena excursão - disse o loiro antes de chupar a colher de plástico com um estalo - encontrar a mamãezinha.
Notes:
Obrigado a todos que vem acompanhando até aqui. Comentem para me deixar feliz :) e para mim sabe que tem alguém esperando por uma atualização (isso me motiva bastante a vencer a preguiça kkkkk).
Chapter 36: The Gotham We Have (Parte 36)
Notes:
Quase um mês de hiato e eu volto com um capítulo chato e curto. Bem, infelizmente eu tive muitos problemas nas últimas semanas. Não vou entrar em detalhes, mas é relacionado com a minha esposa (o problema não é ela, e sim pessoas idiotas que acham que podem falar todo tipo de merda). Enfim, eu acabei ficando um pouco envolvido nisso, e sumi por mais tempo do que era previsto. Sem mais delongas, o capítulo.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Às 22h em ponto, o cais antigo estava mergulhado em sombras. As luzes da cidade pareciam não alcançar aquele pedaço de Gotham, esquecido entre guindastes enferrujados e contêineres abandonados, empilhados como esqueletos metálicos. O vento que soprava do leste era cortante, salgado e denso com o cheiro de ferrugem, óleo queimado e promessas quebradas. As águas escuras do rio batiam com lentidão contra os pilares de concreto, como se tentassem esconder, mais uma vez, o que guardavam.
Sarah chegou primeiro, a silhueta ereta contra o breu, os ombros encobertos por um casaco impermeável pesado. Carregava uma mochila preta com fechos reforçados e uma lanterna que oscilava em sua mão enluvada. Parou junto ao cais, o olhar atento escaneando os arredores com a precisão de quem aprendeu que cada canto escuro de Gotham podia conter uma armadilha.
Pouco depois, os passos de Chuck ecoaram sobre as tábuas úmidas do convés de madeira. Ele vinha acompanhado de um homem magro, cuja barba grisalha mal escondia os ossos proeminentes do rosto. Os olhos fundos e opacos denunciavam alguém que havia passado tempo demais olhando para baixo, para o fundo das coisas. Salgado.
-Vá direto ao ponto, Chuck - disse Salgado, enquanto olhava para o rio como quem encara um velho inimigo - Gordon disse que era urgente.
Chuck abriu a pasta e entregou uma folha plastificada com a imagem aérea da zona portuária. Três pontos vermelhos marcavam o setor próximo aos guindastes afundados.
Salgado analisou por um momento, depois virou-se para o barco encostado a poucos metros. Subiram a bordo em silêncio. Nenhum dos três estava ali para falar mais do que o necessário.
O drone com sonar subiu, suas hélices rangendo como se também estivessem nervosas. À meia-noite, a luz verde acendeu. Salgado lançou o equipamento na água e se sentou ao lado de Chuck no convés improvisado do barco de pesca alugado.
Os minutos se arrastaram. O sonar mapeava lentamente, revelando fragmentos do leito, pedras irregulares, pedaços de metal corroído, garrafas antigas, fantasmas de naufrágios esquecidos. Até que, às 00h37, surgiu um retângulo limpo, simétrico, com bordas bem definidas, preso entre duas elevações submersas. Perfeitamente calado no silêncio das profundezas.
-Ali - disse Salgado, a voz seca - é grande, e está lacrado
Chuck não respondeu. Só olhou para Sarah, que balançou a cabeça, sem esconder o arrepio.
-Vamos precisar descer até lá - disse ela.
-Eu desço - respondeu Salgado, já puxando o equipamento de mergulho - mas quero uma coisa clara, se eu vir algo que me pareça grande demais, eu saio, e vocês não me conhecem.
Chuck assentiu. O acordo era esse desde o começo, Salgado estava fazendo o trabalho por consideração a Gordon.
A água engoliu Salgado em silêncio. Sarah cronometrava cada segundo no relógio preso ao pulso, os olhos fixos na superfície preta, imóvel como óleo. Os minutos passaram lentos demais. Salgado emergiu com o rosto branco como cera, a respiração entrecortada tempo depois.
-Está muito escuro lá embaixo - disse o mergulhador - precisaremos de uma equipe para ter certeza, mas me parecem cadáveres.
Chuck ficou paralisado. Sarah se aproximou com cuidado, como se qualquer ruído pudesse quebrar a linha frágil entre a revelação e o pânico.
-Você tem certeza? - perguntou a agente em um tom grave.
-Não se pode ter certeza, mas acredito que sejam restos de corpos, não tenho como dizer com exatidão quantos deles.
O tenente e a agente se olharam por alguns momentos em completo silêncio. Eram cúmplices nisso, era o cargo de ambos em risco nesta operação
-Você consegue fazer um segundo, mergulho com câmera? - perguntou Chuck voltando a olhar para o velho mergulhador
Salgado hesitou, como quem considera por um momento recusar, mas depois assentiu.
-Cinco minutos, mas é a última vez - respondeu ele na defensiva - depois disso, eu sumo e vocês não tocam no meu nome nem se o inferno abrir.
Salgado se preparou de novo. A câmera presa ao peito piscava um pequeno LED vermelho. Quando mergulhou pela segunda vez, a água engoliu o homem e a câmera como uma testemunha muda.
Chuck ficou parado na proa do barco, o vento puxando sua jaqueta para trás. Lá embaixo, havia algo enterrado. Algo que alguém quis muito que fosse esquecido. Alguém enterrara o passado ali, e Gotham estava prestes a escavá-lo com as próprias unhas.
—---------
Bruce chegou em casa em algum momento depois das nove horas da noite, ele tinha muitas coisas para arrumar na promotoria. Ele notou que o apartamento parecia silencioso demais, não havia nenhum barulho vindo da televisão, alguma coisa se agitou no fundo de seu estômago.
Ele fechou a porta com cuidado, depositando as chaves sobre a mesinha do corredor. O eco do som metálico no espaço vazio fez seus ombros enrijecerem.O sofá estava vazio, a manta que Jason costumava deixar jogada sobre o braço do estofado estava no chão. O copo de refrigerante pela metade na mesinha de centro ainda tinha gelo derretendo.
-Jason? - chamou, a voz baixa, tentando manter um tom calmo, quase casual.
Nada. Nem um ruído.
Bruce atravessou a sala com passos lentos, os olhos varrendo cada canto, e reparou que o tênis surrado de Jason não estava junto à porta.
A cozinha estava intacta. A luz apagada. O prato do jantar ainda estava na pia, intocado. O estômago de Bruce deu outro nó.
-Jay ?
O silêncio o pressionava como um peso invisível. O ar estava carregado, ou talvez fosse só a sua paranoia. Mas a mente de Bruce já começava a preencher os espaços vazios com imagens sombrias. O mal-estar virou um nó apertado no estômago. Bruce atravessou a sala com passos rápidos. Sua mão agora em sua mão tremia de leve, um reflexo que ele não conseguia conter.
A lógica tentava lhe dizer que não era nada. Que adolescentes eram imprevisíveis. Que Jason podia ter saído. Mas algo mais fundo, mais visceral, gritava contra essa lógica. Um alarme silencioso.
“Você deixou um garoto problemático com um sociopata.”
Foi essa a frase que finalmente perfurou o pensamento. Jason estava lá há menos de um mês. Era explosivo, desconfiado, como um animal ferido testando os limites da jaula. O Coringa, por outro lado… bem, Bruce o conhecia. Conhecia sua paciência corrosiva, seu prazer em provocar, em desmontar os outros em silêncio. Nos tempos, o comportamento dele tinha sido… aceitável. Controlado. Quase estável. Mas Bruce sabia que estabilidade era uma máscara frágil e, pior ainda, que era ele quem escolhia o quanto a usava.
-Droga - sussurrou o moreno, caminhando pelo corredor e abrindo a porta do quarto de Jason com um movimento seco.
O cômodo estava escuro, com as persianas fechadas. Jason estava ali, deitado na cama, encostado na parede, pernas cruzadas, uma lanterna acesa ao lado e um velho walkman no colo. Fones grandes cobriam as orelhas. Ele ergueu os olhos, surpreso, os músculos retesando no susto com a porta sendo escancarada.
Bruce atravessou o quarto em dois passos e o agarrou pelos ombros.
-Por que não respondeu quando eu chamei?
Jason arregalou os olhos, puxando os fones, antes de entoar:
-O quê? Caralho, eu só... estava ouvindo música.
O adolescente olhou para os ombros, depois para as mãos de Bruce
-Me solta, porra - disse o adolescente com um tom seco tentando empurrar o ex-bilionário para longe - o que há de errado com você ?
Bruce piscou, como se tivesse sido trazido de volta à realidade. Soltou Jason, um pouco hesitante. Deu um passo para trás. O adolescente ajeitou a camiseta amarrotada e apontou para o walkman, irritado.
-Eu estava aqui o tempo inteiro.
Bruce passou a mão no rosto, a respiração ainda descompassada. Sentia o suor frio escorrendo pelas costas. Cada célula do seu corpo havia se preparado para encontrar outra coisa atrás daquela porta. Outra cena. Uma irreversível.
-Onde está o Jay ? - perguntou o moreno
-Eu lá vou saber ? Achei que ele fosse um adulto funcional, ele saiu, não sei onde - respondeu Jason se sentando na cama ainda irritado.
Bruce olhou para ele por um momento, tentando avaliar quanto disso era bravata e quanto era verdade. Jason parecia irritado, mas inteiro. Nenhum sinal de medo. Nenhuma tensão que sugerisse ameaça ou manipulação. Jason parecia perfeitamente inteiro, o mesmo de sempre.
Bruce inspirou profundamente, tentando acalmar o coração que batia rápido demais dentro do peito. Seu olhar ainda não deixava o garoto, como se ele precisasse confirmar a cada segundo que Jason realmente estava ali, realmente estava bem. O quarto, embora bagunçado, não exalava o menor sinal de conflito. Nada quebrado. Nenhuma sombra espreitando nas paredes.
O moreno desviou o olhar, encarando a lanterna acesa no chão por um segundo, antes de dizer num tom mais baixo, mas firme:
-A porta estava destrancada, o copo na sala ainda estava suando, tênis fora do lugar, prato na pia, tudo indicando pressa, e você... você não respondeu.
Jason bufou, ainda visivelmente irritado.
-Eu estava ouvindo música, porra! Você nunca ouviu falar de Ramones no volume máximo?
-E se alguma coisa tivesse acontecido?
-Mas não aconteceu - rebateu o garoto, os olhos estreitando - o que poderia acontecer ?
O moreno não disse nada. O que Bruce diria ? Não era como se ele pudesse dizer que tinha medo do que o Coringa poderia fazer com o adolescente. Não, Bruce não podia fazer isso.
Bruce ficou parado por mais um segundo. Respirou fundo. O suficiente para recuperar parte da compostura, ou pelo menos a ilusão dela.
O moreno foi para a sala sem dizer uma palavras, o relógio na parede marcava 01h23, quando o palhaço deu sinais de vida.
A luz da sala estava acesa, mas só uma, a do abajur, projetando sombras duras nas paredes. Bruce estava sentado no sofá, o corpo inclinado para frente, cotovelos sobre os joelhos, as mãos entrelaçadas. O maxilar travado, os olhos fixos na porta como quem esperava um fantasma.
Ele ouviu os passos primeiro. A chave girando na fechadura. O som da maçaneta. A porta se abriu devagar. O Coringa entrou como se fosse um adolescente voltando tarde demais, ou como se fosse normal chegar em casa uma da manhã com o cheiro de gasolina e vento preso na jaqueta.
Bruce não se levantou. O Coringa parou no batente, surpreso ao vê-lo ali, imóvel, como uma pedra.
-Brucie - disse com um sorriso hesitante, passando a língua no canto dos lábios com uma calma cirúrgica - não me diga que você ficou acordado me esperando? Que coisa romântica …
-Senta - a voz de Bruce cortou o ar como uma lâmina.
O sorriso do Coringa não vacilou. Ele olhou em volta, largou a jaqueta na poltrona e se jogou no sofá oposto, pernas cruzadas, descontraído, pelo menos por fora.
-Uau - entoou o loiro olhando para o ex-bilionário por um momento - você está com aquela cara de "enterrei mais um corpo e agora preciso de um chá". Vai me contar o que houve, ou...?
Bruce se endireitou e se levantou. Tirou o celular do bolso e atirou no sofá ao lado do Coringa. A tela ainda acesa. Um nome na parte superior da conversa: Chuck . A última mensagem dizia:
"Recebemos seis denúncias de um carro roubado sendo dirigido feito um míssil pela contramão, zona leste. Você sabe de quem eu estou falando. O garoto tava com ele?"
-Ok, talvez eu tenha feito algumas coisas questionáveis hoje à tarde, mas Jason parecia estar se divertindo, você está se preocupando a toa, querido - falou o louco com um meio sorriso.
-Me preocupando a toa ? - rosnou o moreno - você saiu por aí com um adolescente em um carro roubado brincando de GTA nas ruas de Gotham e eu estou me preocupando a toa ?
-Eu sou um ótimo motorista - retrucou o loiro.
-Você não tem carteira de motorista - a voz de Bruce foi cortante, seca, com um tom tão carregado que parecia encher a sala inteira.
O Coringa deu de ombros, como se fosse só um detalhe técnico.
-Carteiras são uma invenção do Estado, você sabe que isso é bobagem.
-Você cruzou a cidade com um garoto que mal confia em mim, em um carro que não era seu, furando sinal vermelho como se a porra da vida fosse uma cena deletada de um filme ruim - rosnou o ex-bilionário irritado - e se você tivesse batido? Se a polícia tivesse pegado vocês? E se Jason tivesse se machucado?
O Coringa não respondeu. Seu olhar mudou, só por um segundo. Aquela fagulha de irritação que surgia quando Bruce acertava um nervo exposto.
-Mas nada aconteceu - falou o loiro passando a língua no lábio inferior.
-E se tivesse acontecido ? - questionou o moreno novamente, seu sangue fervendo enquanto ele pegava o ex-terrorista pela camiseta - você não pensa que poderia ter se machucado ? Que Jason poderia ter se machucado ?
-Mas n-
O palhaço foi cortado pelo ex-bilionário dizendo entre os dentes:
-Cala a porra da boca, você é um irresponsável, você não pensa nas consequências das coisas que você faz, se você abrir a boca para falar mais alguma coisa eu vou quebrar os seus dentes.
O silêncio que caiu logo depois foi denso, denso o suficiente para afogar um grito.
Bruce ainda segurava o Coringa pela gola, os olhos faiscando de uma raiva que vinha de muito mais fundo que o acidente, que o carro, que o caos. Era o acúmulo. Era o peso de tentar sustentar um lar sobre um fio de navalha.
-Você terminou? - disse o loiro com um tom que era algo entre zombaria e cansaço.
Bruce soltou a camiseta dele com um empurrão seco, como se tocá-lo queimasse. Ele se afastou dois passos, respirando pesado, como quem tinha acabado de sair de uma luta que não era física, mas doía igual.
-Você não é uma criança mas age como uma, e eu cansei, cansei de ade fingir que cada vez que você atravessa a porra da linha é só uma recaída idiota, porque você não se importa com nada de verdade, nem mesmo com si mesmo - disse o moreno, com a voz baixa, controlada com esforço - você é um maldito egoísta de merda, o que você acha que eu sou ?
O Coringa ficou ali, parado, o peito subindo e descendo devagar, como se estivesse absorvendo o golpe. A testa franzida, os olhos agora estreitos, sérios, opacos, sem o brilho caótico de costume. A teatralidade evaporou. O sarcasmo morreu na língua. Quando ele respondeu, foi quase em um tom sério. Bruce não costumava ficar tão irritado assim por coisas tão triviais.
-O que aconteceu ? - perguntou o ex-terrorista.
-Você precisa de mais ? - rosnou o moreno empurrando o loiro, irritado - estou cansado da sua merda, para de foder com tudo, entendeu ?
O Coringa desviou o olhar, engolindo o nó que apertava sua garganta. Depois, num impulso estranho, ele puxou uma das mãos de Bruce, segurando com força.
-Eu não quero perder você, não de verdade - disse o moreno olhando o ex-terrorista segurar a sua mão, a voz de Bruce voz saiu baixa, rouca, como se fosse uma confissão sussurrada no escuro - então, não faz isso comigo.
A luz do abajur piscou por um segundo, como se o próprio quarto respirasse junto com eles. O relógio na parede marcava agora 01h29. No silêncio que ficou, havia um fio tênue de esperança, embutido em meio ao caos, naquilo que ainda restava entre eles.
-Onde você estava até essa hora ? - perguntou o moreno depois de um momento de silêncio, como se estivesse evitando o assunto - quando cheguei a casa estava aberta, chamei por Jason e ele não respondeu, achei que tinha acontecido alguma coisa.
-Eu só não estava em um bom momento, você não estava em casa então…- o loiro deu de ombros antes de passar a língua nos cantos dos lábios - eu precisava de um ar ou ia surtar.
Bruce ergueu os olhos e encontrou os do Coringa, buscando ali a verdade que se escondia por trás da máscara.
-Você podia ter me ligado - falou o moreno, seu tom agora era neutro.
-Não achei que valia a pena.
-Está realmente ruim ? - perguntou o ex-bilionário estreitando os olhos - você sabe que está apenas adiando sua ida ao psiquiatra, você sabe que faz parte da sua condicional, se não fizer acompanhamento vai ser internado em Arkham, e não vou conseguir te tirar de lá.
-Não estou preparado para que tudo fique cinza novamente e com gosto de cimento - admitiu o ex-terrorista - você sabe que vivi um inferno enquanto estava medicado.
Bruce manteve o olhar firme, mas a raiva deu lugar a uma preocupação mais contida, quase cansada. Ele sabia que o Coringa não estava apenas de birra, nem numa fase ruim qualquer, aquilo era muito mais do que isso. Ele conhecia bem, as vozes abafadas, as sombras que dançavam no limite da sanidade, a prisão invisível que os remédios impunham.
-Eu sei disso - suspirou o moreno - mas você não tem realmente uma escolha.
-Eu queria mudar de psiquiatra - falou o ex-terrorista.
-De novo - questionou o moreno com uma sobrancelha arqueada - você já teve 3 só no ano passado.
-Estou procurando por um que não queira me dopar - disse o ex-terrorista por fim antes de lamber o canto dos lábios.
Bruce permaneceu em silêncio por um instante, digerindo cada palavra que saía daquela boca que, apesar de tudo, ele ainda tentava salvar do abismo. A luz do abajur oscilava, projetando sombras longas e irregulares.
-Não é só questão de dopar você - respondeu Bruce, devagar, tentando encontrar um equilíbrio - é que você precisa de ajuda, e os remédios... eles seguram suas crises, a mania, as explosões, mas eu sei que eles também te deixam numa espécie de prisão escura, e a gente ainda não encontrou o jeito certo de tratar isso.
-Você fala como se não tivesse jogado meus remédios na privada - falou o ex-terrorista com um sorriso de escárnio.
-Eu estava frustrado - falou o moreno com um suspiro - você sabe, te dei uma superdose porque me atrapalhei e você teve uma intoxicação e isso me assustou.
O silêncio se instalou entre os dois, pesado e quase sufocante, interrompido apenas pelo tique-taque do relógio na parede.
-A gente vai dar um jeito nisso - falou o moreno por fim - e não some, se você sentir que precisa de ajuda, me liga, não importa o horário, eu vou até onde você estiver.
-Você é tão fofo, Brucie - sorriu o ex-terrorista - se não fossemos casados eu me casaria com você.
Bruce revirou os olhos, mas não conseguiu esconder o sorriso que ameaçava escapar.
-Tá bom, tá bom, já ouvi essa umas mil vezes - respondeu, puxando o Coringa para um abraço - só não some, ok? Porque eu não lido bem com a ideia de não saber onde você está.
O Coringa deixou-se abraçar, os ombros relaxando devagar como se aquele gesto fosse uma trégua após uma batalha longa demais. O queixo encostado no ombro do moreno, ele suspirou, um som baixo, contido, quase humano. Bruce não disse nada. O aperto em torno do Coringa apertou um pouco mais, como se ele quisesse colar os pedaços soltos do outro com os próprios braços. A raiva ainda morava em algum canto dentro dele, mas a preocupação sempre vencia. Sempre.
-Porque você está sendo tão…chato, amor ? - perguntou o loiro com um tom que vazava uma zombaria contida - muitos papéis na promotoria ? Nosso querido cavaleiro branco está pegando no seu pé ?
-Tem muita coisa acontecendo - suspirou o ex-bilionário se afastando um pouco - muitas coisas que não sei como administrar.
-Tália ? - perguntou o ex-terrorista arqueando uma sobrancelha com um tom de cumplicidade.
-Não apenas ela - admitiu o moreno em um tom cansado - tem muita coisa acontecendo e você quase matou um garoto hoje, eu tô cansado, cansado de te puxar de volta toda vez que você resolve testar a borda do abismo.
O palhaço suspirou, recostando a cabeça no ombro do moreno.
-Eu não estou tentando me matar, se é isso que você acha - disse o ex-terrorista ainda se lamber o canto dos lábios - eu só estava me divertindo, comprei mais canetinhas coloridas, giz de cera e tomei um sorvete com o moleque, não foi nada demais, não estou tentando fazer nada perigoso.
A cabeça de Bruce estava a mil, em um turbilhão de vozes sobrepostas. Ele não conseguia desligar. Não havia paz quando cada pensamento arranhava a consciência. O caso do Contador de Histórias, a desconfiança em relação a Grayson, o nome “Crale” reaparecendo sob o disfarce de um anagrama. E agora, o Coringa. De novo. Sempre ele.
Por um momento, Bruce fechou os olhos. Tentou forçar sua mente a se calar. Mas o silêncio não vinha, só o ruído. Um ruído constante, surdo, feito de lembranças, suspeitas, e o tipo de preocupação que não dorme. Ele pensava em Talia. Em como ela simplesmente desapareceu do mapa sem deixar nenhum rastro. O moreno começara a achar que ela não sumiu sozinha, havia mais coisa nisso que ele não conseguia enxergar. Ele sentia que estava jogando um jogo, um jogo no qual não tinha todas as peças. Isso o deixava frustrado.
E havia Andy. Sempre Andy. A sombra do psiquiatra rondava seus pensamentos com passos suaves demais para serem ouvidos, mas pesados o suficiente para deixar marcas. Bruce não podia confiar, e não sabia se queria. A ideia de Richard estar envolvido com qualquer parte daquela trama o corroía por dentro. E se Andy estivesse certo? E se Grayson estivesse mesmo comprometido? Se tivesse sido ele que colocou as câmeras ? E se tudo estivesse desmoronando bem debaixo do seu nariz? Bruce se sentia no limite, era muitas coisa para lidar no momento.
O nome “Crale” pulsava em sua mente como um dente infeccionado. Era como se tudo voltasse para isso. O anagrama. O contêiner. A empresa que desapareceu e ressurgiu, só para desaparecer de novo. Ele estava cansado, jogando um jogo que não havia regras e nem todas as peças estavam no tabuleiro.
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A delegacia de polícia de Gotham estava quase vazia naquela madrugada. A maioria dos agentes já tinha ido embora para suas casas, fugindo do peso sufocante daquela cidade que parecia sugar tudo o que eles tinham de bom e deixar só cinzas. O ar era denso, pesado, carregado de uma tensão que parecia pairar nos corredores silenciosos. Luzes fluorescentes tremeluziam, projetando sombras irregulares nas paredes amarelas e descascadas, enquanto o barulho distante do tráfego e das sirenes ocasionalmente cortava o silêncio como um grito desesperado.
No escritório do tenente, uma sala modesta mas funcional, iluminada apenas pelo brilho azulado de um computador ligado, Chuck estava sentado à mesa, com os olhos fixos em uma pilha de documentos, fotografias e arquivos digitais abertos na tela. A luz da tela refletia em seus olhos cansados, profundos, marcados por noites mal dormidas e decisões que o corroíam por dentro.
Na frente dele, espalhados com descuido, estavam os registros do container que ninguém ousava mencionar publicamente, fotos em alta resolução que mostravam o interior frio e vazio do container, documentos de transporte da Crale Imports, listas com nomes e registros de pessoas ligadas à rede que, na verdade, era uma teia de silêncio, corrupção e crimes sombrios. Ele tinha passado as últimas horas debruçado em cima disso, sem saber como fazer para digerir tudo que estava acontecendo.
Aquelas imagens e documentos não eram apenas provas, eram um grito sufocado, um pedido de justiça que ninguém queria ouvir. Chuck sabia disso. Sentia o peso daqueles corpos que jaziam no container, vítimas da negligência, da violência e do silêncio das instituições. E o sistema, que ele um dia jurou proteger, se mostrava inerte, corrupto, apático.
Sarah entrou na sala devagar, com a expressão preocupada estampada no rosto. Ela segurava uma xícara de café que já estava fria, mas não tinha coragem de se aproximar para tomar um gole. O olhar dela encontrou Chuck, que não desviava o olhar das provas que consumiam sua mente.
-Chuck - começou ela, com a voz baixa, quase um sussurro, ainda chocada com o que foi descoberto horas atrás - você já pensou nas consequências? Se você vazar isso agora, vamos ser investigados e possivelmente afastados por ter feito uma operação clandestina e investigando um caso por baixo do nariz de nosso superior e,e ainda assim, pode ser que nada mude.
Ele levantou os olhos, cansados, e encarou Sarah com uma mistura de tristeza e determinação.
-Já pensei demais, Sarah - ele fez uma pausa, as mãos fechando-se em punhos - tudo que fiz nas últimas horas foi pensar, e essa cidade… essa polícia que jurou proteger a justiça, está coberta de lama, e eles nunca vão punir os verdadeiros culpados.
Sarah deu um passo à frente, aproximando-se da mesa.
-Você sabe que não é só a polícia que vai afundar com isso, a cidade vai entrar em caos, você está jogando gasolina em um fogo que pode queimar tudo, inclusive a gente.
O tenente desviou o olhar, passando os dedos pelo rosto cansado. Ele sentia o peso da responsabilidade como um peso esmagador no peito. Aquele era um momento que poderia mudar tudo, ou destruir tudo.
No silêncio que se instalou, a única coisa que se ouvia era o som distante da chuva fina batendo nas janelas empoeiradas da delegacia. Gotham parecia chorar junto com ele.
Foi então que a porta da sala se abriu com um rangido lento e pesado. Jim Gordon entrou, seus passos lentos, o corpo curvado pelo peso dos anos. Os cabelos meio grisalhos mal disfarçavam o desgaste de quem havia passado a vida inteira enfrentando a escuridão da cidade. Seu rosto estava começando a ficar marcado por rugas e olheiras profundas, mas seus olhos ainda carregavam aquela centelha indomável de quem não desistia.
Gordon olhou para Chuck e depois para Sarah, a expressão séria, quase um desafio.
-Você mandou me chamar para me atualizar dos acontecimentos - começou Gordon, com a voz rouca e grave - bem, independente do que seja, às vezes uma cidade precisa sangrar para poder se curar.
As palavras dele caíram no ar como um trovão silencioso. Chuck sentiu um arrepio percorrer a espinha. Era exatamente aquilo que ele pensava, mas ouvir alguém com o peso de Gordon dizer aquilo era quase um alívio e um sinal de que não estava sozinho.
-A corrupção está entranhada aqui - continuou Gordon, se aproximando da mesa - e os culpados se escondem atrás de nomes e cargos que ninguém ousa questionar.
Sarah cruzou os braços, encarando o ex-comissário. Gordon deu um suspiro pesado antes de entoar:
-O que foi que vocês descobriram ?
-Lembra que pedi para você me contatar com Salgado ? - começou o tenente - descobrimos que provavelmente o contêiner desaparecido estava no fundo do rio de Gotham, e quando fomos averiguar, bem…encontramos o que parecia vestígios humanos no interior.
-Tudo leva a crer que, pelo que já temos desse caso, se trate de um descarte de pessoas traficadas - completou Sarah com a voz tensa - não sei exatamente onde estamos pisando, mas alguma coisa precisa ser feita.
-O comissário Castro sabe disso ? - perguntou Gordon franzindo a testa - digo, da operação do container e da reabertura completa do caso do contador de histórias e novas pistas
Chuck trocou um olhar rápido com Sarah antes de responder, a voz baixa, quase um sussurro carregado de cautela.
-Não, você sabe que não confio no Castro, você também não confiava nele - disse o tenente - ele não sabe de nada disso.
Gordon assentiu lentamente, seu semblante endurecendo ainda mais. Ele passou a mão pela barba por fazer, como se ponderasse algo que já sabia ser inevitável.
-Então você já fez sua escolha - disse, sem julgamento, apenas constatação.
Chuck inclinou-se na cadeira, os olhos fixos nas fotos sobre a mesa. Sua voz saiu firme, mas marcada pelo desgaste.
-Eu não sei se é a escolha certa, mas sei que continuar em silêncio seria a errada.
Sarah se afastou um pouco, andando de um lado para o outro da sala, inquieta. A xícara de café em sua mão tremia levemente, esquecida, enquanto ela absorvia o peso da decisão prestes a ser tomada.
-Não há volta depois disso - murmurou ela, quase para si mesma.
Gordon assentiu lentamente, seu olhar perdido nas paredes descascadas como se procurasse, em vão, por alguma parte daquela delegacia que ainda lembrasse justiça.
-Então vocês me chamaram porque decidiram cruzar a linha - disse, enfim, sem surpresa, como quem já sabia que seria assim desde o início.
Chuck não respondeu de imediato. Apenas afastou o monitor, revelando uma pasta preta, sem identificação, que ele empurrou para o centro da mesa. Sarah desviou o olhar como se aquilo queimasse. Era o compilado de tudo: a operação ilegal no rio, a quebra de protocolo, o uso de recursos da polícia sem autorização superior. Um dossiê que, se descoberto, derrubaria os três e jogaria seus nomes na lama, ou pior.
-A linha já foi cruzada - disse o tenente, encarando o ex-comissário - a partir do momento em que abrimos aquele container.
Sarah, ainda de pé, deixou a xícara de café na prateleira. Suas mãos tremiam levemente.
-Não era pra termos ido até lá - murmurou a agente - usamos um barco da patrulha, desativamos o rastreador, falsificamos os registros da movimentação, se isso vier à tona, é um suicídio institucional.
Gordon inspirou fundo, as mãos nos bolsos do sobretudo surrado. Caminhou até a janela da sala e observou a cidade escura, além do vidro sujo, onde o nevoeiro se misturava à garoa como uma névoa densa de segredos.
-Se fizerem isso - disse, com a voz baixa e pausada - vocês não só perdem seus distintivos. Vocês perdem a proteção do sistema, vão ser tratados como inimigos, e Gotham não é gentil com quem desafia seus donos.
Chuck olhou para os próprios punhos, cerrados sobre a mesa. A veia em sua testa pulsava.
-Então que venham - disse o tenente com uma fúria contida - eu não tenho mais estômago para servir esse sistema.
Sarah finalmente se sentou, como se o peso da decisão fosse demais para segurar em pé.
-Se você vazar isso agora, não vai ter como controlar o que acontece depois - disse a mulher - precisamos considerar isso com cuidado.
Gordon voltou-se para o tenente, com uma expressão grave.
-Você sabe que depois disso, sua carreira acaba, Chuck - entoou o ex-comissário - eles vão usar você como bode expiatório, e se eu estiver certo, os nomes por trás disso não são pequenos, estamos falando de gente grande, você está pronto para isso ?
Chuck não respondeu. Apenas pegou o celular, com a mão firme, como quem já havia feito essa escolha há dias, talvez semanas e não apenas algumas horas. O tenente discou os números calmamente. Na terceira chamada, uma voz jovem atendeu, carregando um misto de surpresa e cautela:
-Alô?
Chuck engoliu seco. A cidade parecia prender a respiração com ele.
-Richard Grayson? Aqui é o Tenente Charles…eu tenho informações que podem interessar, precisamos conversar pessoalmente.
Do outro lado da linha, silêncio. Um leve som de passos. Talvez Dick já estivesse gravando.
-Como consegui o meu número ? - perguntou o aspirante a jornalista investigativo.
-Isso não vem ao caso agora - cortou o tenente - podemos nos encontrar pessoalmente ?
Um breve silêncio se instalou. Do outro lado da linha, Richard hesitou. O tenente não parecia confiar nele outrora, muito pelo contrário. Todo esse papo era muito estranho, já que anteriormente, o tenente chegou a supor que Dick trabalhava para o contador de histórias, mesmo que de forma indireta.
Do outro lado da linha, a voz de Dick soou mais fria do que o habitual, carregada de desconfiança.
-Se isso for uma armação, tenente… - disse ele, pausando, como se ponderasse cada palavra - juro por tudo que tenho que vou derrubar você com isso.
Chuck fechou os olhos por um instante, sentindo o cansaço pesar nas pálpebras. A cada nova respiração, parecia que algo dentro dele se partia mais um pouco.
-Não é uma armadilha, Grayson - assegurou o tenente - eu não confio em muita gente, e você sabe disso, você quer a verdade e eu também, e agora eu tenho coisas que não posso simplesmente entregar para alguém do sistema.
Silêncio. Do lado de Sarah, ela olhava fixamente para Chuck, como se não conseguisse acreditar que ele estava mesmo seguindo com aquilo. Gordon, junto à janela, continuava imóvel, com os olhos presos no vazio da cidade, ouvindo tudo. Dick finalmente respondeu depois de mais um momento de hesitação:
-Onde?
Chuck pensou por um segundo. O lugar precisava ser discreto, longe de olhares e ouvidos. Ele não podia correr o risco de ser interceptado, nem Dick.
Tem um galpão abandonado no distrito naval, entre os armazéns 18 e 19. Entrada lateral. Amanhã, às 3 da manhã. Vá sozinho.
-E se eu não for?
-Então você continua escrevendo matérias sem relevância de verdade.
A linha caiu. Chuck largou o celular sobre a mesa, exausto. Sarah passou a mão pelos cabelos, inquieta.
-Você vai mesmo encontrá-lo?
O tenente assentiu devagar, encarando os próprios pés por um instante antes de erguer os olhos para ela. Gordon se afastou da janela e pegou a pasta preta da mesa, folheando alguns documentos com o cenho franzido. Ele não dizia nada, mas havia algo no olhar dele, um reconhecimento silencioso de que talvez não houvesse mais retorno, mesmo para ele.
-Eu vou com você - disse Gordon, finalmente.
Chuck balançou a cabeça.
-Não, se for um jogo sujo, e Grayson não for confiável só um de nós deve se queimar, e se ele for quem diz ser… então talvez seja a única chance de manter essa história viva.
Sarah se levantou com um gesto brusco.
-Você não vai sozinho - disse a agente - pelo menos me deixa ficar nas proximidades, com o rádio ligado, caso algo dê errado, e-
-Não - interrompeu Chuck, firme, embora com a voz baixa - se der errado, você precisa sumir com tudo, com as provas, os documentos, tudo, e seguir de outro jeito.
O silêncio voltou a reinar no cômodo. A chuva agora se intensificava lá fora, tamborilando com força nas janelas sujas. Gotham, como sempre, chorava em segredo.
-Você já sabe o que está em jogo - disse Gordon, olhando para Chuck e depois para Sarah - essa cidade não vai facilitar a vida de ninguém que queira limpá-la.
Chuck assentiu, sentindo o peso da responsabilidade apertar ainda mais seu peito. Ele pegou a pasta preta e a guardou dentro da gaveta da mesa, trancando-a com cuidado. Não havia volta agora.
Notes:
Comente para me deixar feliz :) Gosto de saber que tem alguém acompanhando.
Chapter 37: The Gotham We Have (Parte 37)
Notes:
Estou adiantado, fiquei meio mal pelo capítulo curto da semana passada e resolvi compensar :) Não sei se alguém ainda acompanha isso kkkk enfim, fiquem com o capítulo dessa semana.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O distrito naval de Gotham parecia um cemitério esquecido naquela madrugada, mais morto e silencioso do que nunca. A neblina rastejava entre os contêineres como um predador invisível, densa, sufocante, quase viva. O ar pesado trazia um cheiro de maresia podre, ferrugem e morte. A chuva fina cessara, mas um silêncio opressor tomava conta, quebrado apenas pelo gotejar lento e imprevisível da água vazando de algum cano furado.
Chuck chegou pouco depois das três da manhã. O capuz do casaco pesado escondia seu rosto, mas dava para sentir a rigidez na postura, alguém que cruzou uma linha sem volta, disposto a sacrificar tudo, inclusive a própria carreira. Sob o braço, uma pasta preta parecia pesar mais do que ele próprio. Cada passo no concreto molhado fazia um som oco, o eco de uma decisão que poderia destruí-lo.
O galpão entre os armazéns 18 e 19 estava imerso em trevas, salvo por uma lâmpada oscilante do lado de fora que desenhava sombras tremulantes, ameaçadoras. A porta lateral rangeu alto demais, um som gritante de traição no silêncio da noite, mas não havia jeito de evitar.
Ele entrou, os olhos ajustando-se vagarosamente à penumbra. O rangido das vigas metálicas acompanhava o vento cortante, como um aviso macabro. Um rato, inquieto, sumiu entre caixas empilhadas, deixando um rastro de incerteza.
No centro do galpão, Chuck largou a pasta sobre um engradado virado, o som abafado como um golpe no peito. Ficou ali, imóvel, respirando fundo como se tentasse prender os pulmões, impedir que a angústia o esmagasse de vez. O tempo parecia congelar, cada segundo esticando-se num fio tênue de suspense.
Foi então que ele ouviu. Passos leves, medidos, vindo das sombras como uma sentença. Dick Grayson saiu do escuro como uma pergunta que não tinha resposta. Estava com um sobretudo marrom, encharcado até a barra, as mãos dentro dos bolsos. Trazia uma mochila simples nas costas. Os olhos estavam alertas, mas sem nervosismo. Apenas a firme desconfiança de quem sabia que tudo em Gotham era uma armadilha em potencial.
-Chegou - disse Chuck.
-Você não parecia o tipo que marcava encontros clandestinos com jornalistas - respondeu Dick, a voz calma - mudou de ideia sobre mim?
-Não - disse o tenente, sem piscar - ainda não confio em você.
-Ótimo - respondeu o aspirante a jornalista investigativo - porque o sentimento é mútuo.
O silêncio que caiu entre eles era uma luta de pesos, uma guerra muda onde nenhum dos dois cederia um centímetro.
Chuck apontou com o queixo para a pasta em silêncio.
-Isso é tudo - começou ele - o que descobrimos no fundo do rio, o que ninguém quer tornar público.
Dick não se moveu de imediato. Apenas observou Chuck como se tentasse decifrá-lo. Então deu dois passos, abriu a pasta e começou a folhear. Quando viu as fotos, parou. O rosto não demonstrou horror, apenas algo mais frio. Determinação. Raiva contida.
-Você sabe o que isso significa? - disse o aspirante a jornalista - isso aqui não é só denúncia, estamos assinando nossa sentença de morte.
-Talvez seja - respondeu Chuck, com um encolher de ombros.
-Por que confiar em mim?
Chuck olhou para o teto vazando. A chuva formava pequenos espelhos d’água no chão.
-Porque preciso de alguém de dentro da máquina - disse, a voz quase falhando - e você é a única pessoa que eu acredito que pode publicar isso.
Dick fechou a pasta e a colocou debaixo do braço. Ele ficou em silêncio por um momento antes de entoar:
-Você ainda acha que eu trabalho para o Contador de Histórias?
-Talvez - respondeu o tenente em um tom neutro - mas se for, pelo menos agora a história vai ser pública antes de ser manipulada.
Dick arqueou uma sobrancelha e começou a recuar, já de costas para a saída.
-Se eu publicar isso, você sabe o que vem depois, né? - falou o aspirante a jornalista investigativo parando de caminhar por um momento.
-Já estou enterrado até o pescoço - admitiu Chuck - não posso dar para trás agora.
Dick assentiu, sem palavras. Então, antes de sair, olhou por cima do ombro.
-Você pode não confiar em mim ainda, tenente… mas depois disso, ninguém mais vai confiar em você também, nem mesmo a polícia.
A porta se fechou com um estalo seco. O som ecoou pelas vigas como um tambor funerário. Chuck ficou ali, sozinho no meio do galpão, com os olhos voltados para o escuro. A cidade, lá fora, ainda dormia. Mas ele sabia que, em poucas horas, Gotham acordaria diferente. E talvez, só talvez, alguém finalmente ouvisse.
O som da porta ainda reverberava pelas paredes metálicas quando Chuck se moveu. Apenas um passo. Depois outro. Como se cada movimento fosse custar mais do que o anterior. O engradado onde deixara a pasta ainda estava ali, mas agora parecia vazio. Como ele. Como tudo.
Ele passou as mãos no rosto, encharcado de suor frio, não da chuva. Seu corpo tremia levemente, como se o peso da escolha estivesse finalmente encontrando seu espaço nos ossos.
“É isso.”
“Acabou.”
“Eu quebrei o código.”
Por anos, ele se prendeu àquilo. À ideia de integridade. De lutar dentro do sistema. Mas agora o sistema estava apodrecido. E ele tinha cuspido bem no centro da máquina. Um trovão estalou ao longe, como um aviso atrasado. Chuck olhou para o teto, a água ainda pingando ritmada, cruel, como uma contagem regressiva. Estava sozinho, sim, mas o silêncio não era vazio. Era cheio de presenças invisíveis. Sussurros que vinham do nada. Olhares que ele não podia ver, mas sentia. Talvez já soubessem. Talvez já estivessem a caminho.
Chuck caminhou até a lateral do galpão e se encostou em uma coluna de ferro. De lá, podia ver parte da doca. Uma lanterna piscou no fundo da escuridão. Alguém. Ou alguma coisa. Seu coração deu um salto, mas a luz apagou tão rápido quanto surgiu. Nenhum som. Nenhuma aproximação. Apenas paranoia, ou talvez não.
Ele pensou em fugir. Pensou em queimar tudo e desaparecer. Pensou em pegar o carro e dirigir sem rumo, atravessar o estado, sumir na noite. Mas era tarde demais. O conteúdo daquela pasta agora tinha outro dono. Um garoto que ele mal conhecia, mas que talvez fosse o único disposto a cavar fundo o suficiente para expor o que Gotham tanto escondia.
Chuck sabia do que se tratava aquilo. O que tinham encontrado no rio não era só um cadáver. Era um erro enterrado. Um erro com nomes importantes. Com conexões. Com poder. E agora, esse erro estava prestes a se tornar manchete.
Ele tirou o celular do bolso. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Ninguém procurando por ele. Ainda. Mas viria. E quando viesse, não ia ser sutil.
O tenente guardou o telefone, engoliu em seco e saiu do galpão pela mesma porta enferrujada. O barulho mais uma vez gritou na noite. O vento pareceu mais cortante. O frio mais fundo. Os passos dele ecoavam sozinhos enquanto se afastava, como se a própria cidade estivesse memorizando o som para não esquecer.
Ao longe, um navio buzinou em alguma parte do porto. Um som grave, longo. De despedida. Ou aviso. Chuck não olhou para trás. Ele sabia que depois daquela noite, não haveria retorno.
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Dick estava sentado à escrivaninha do apartamento minúsculo, no último andar de um prédio velho perto do campus. A janela estava trancada, as cortinas fechadas. O único som era o tique-taque do relógio de parede e a respiração curta dele.
O monitor piscava à sua frente. O cursor brilhava em branco sobre o documento intitulado: "A Cidade dos Filhos Perdidos". Um rascunho de matéria. Tão perto de ser publicado. Tão perto de destruir tudo.
As palavras não vinham mais como antes. A mão tremia levemente sobre o teclado. Cada frase que ele digitava parecia um risco de morte. Cada linha era um passo em direção ao abismo.
“Entre 2004 e 2008, registros financeiros apontam que a Crale Imports movimentou cargas não declaradas nos portos de Gotham…”
Ele apagou a última frase. Reescreveu. Apagou de novo. De repente, levantou os olhos como se tivesse ouvido algo. Mas não havia nada, apenas silêncio. Mas ele sabia. Alguém estava observando. Desde que encontrou Chuck naquela madrugada, Dick não conseguia dormir. Cada sombra na rua parecia segui-lo. Cada barulho no corredor, um passo lento vindo atrás. Ele mudou três vezes a senha do e-mail. Trocou o celular. Tapou a webcam com fita. Mas nada disso tirava a sensação. Cochilava em lapsos curtos e acordava suando, com a sensação de que alguém havia estado no quarto. Que alguém havia lido o que ele estava escrevendo.
Ele começou a testar. Escrevia trechos diferentes. Códigos. Palavras fora de contexto. E esperava para ver se algo acontecia. Alguém batendo à porta. Um carro parado tempo demais lá fora. Um e-mail que não devia ter chegado. Uma mensagem de erro no servidor. Nada. Não havia nada de novo.
Mas ele sentia, eles estavam olhando. Sempre estavam, e eles o achariam.
O apartamento de Dick era pequeno, sufocante e excessivamente silencioso. As paredes finas deixavam escapar os sons distantes da cidade, buzinas, sirenes, vozes cortadas, mas dentro daquele cubículo, tudo era estático, como se o tempo tivesse estagnado junto com ele.
Na tarde seguinte, ele encontrou Stella por acaso no campus. Ela estava saindo da biblioteca com os cabelos presos num coque e uma sacola cheia de livros de teoria crítica. Quando o viu, sorriu, mas o sorriso sumiu rápido ao ver o estado dele.
-Dick? Cara, você... você tá horrível.
-Valeu - respondeu ele, com um meio sorriso forçado.
Ela parou à frente dele, procurando nos olhos alguma fagulha que pudesse denunciar o que estava acontecendo
-Você sumiu, faz semanas que não responde nada, achei que tivesse surtado de vez com a sua obsessão pelo Batman
Ele tentou rir, mas não conseguiu. O maxilar travado, a mente em outro lugar.
-Estou só... resolvendo umas coisas - murmurou o aspirante a jornalista cansado.
-Dick... o que tá acontecendo? - perguntou a garota com um semblante preocupado - cara, não importa o que seja, você pode me contar.
-Nada, eu só ando cansado - mentiu Richard - sem dormir direito.
Ela hesitou por um momento antes de entoar:
-Você não tá usando alguma coisa, né?
-Não.
-Então fala comigo - disse Stella.
Ele queria falar sobre isso, ele ansiava, gritava dentro de sua própria cabeça, ele queria falar. Dick queria, aas não podia. Se dissesse uma palavra, ela estaria dentro também, e ele sabia que, uma vez dentro, não havia saída.
-Não é nada - disse Dick, firme - de verdade, só estresse do estágio.
Ele se despediu com um aceno e saiu antes que ela pudesse insistir mais.
Mais tarde naquela manhã, Roy o chamou para tomar um café no bar do campus.
Dick aceitou por inércia. Sentaram num canto afastado, perto da vitrine suja. Roy o encarou com aquela expressão típica de quem está prestes a fazer uma intervenção.
-Você tá se afundando em alguma coisa que não quer me contar - disse Roy, direto - e tudo bem, eu não sou sua figura materna para te dar broncas, mas você precisa dormir, e parar com a paranoia.
-E se eu dissesse que minha paranoia é a única coisa mantendo minha cabeça presa ao pescoço? - disse o Grayson com um suspiro.
Roy não respondeu. Só abaixou o olhar para a xícara.
-Isso é sobre a investigação do Batman ser o Bruce Wayne, de novo? Porque eu te disse que estávamos juntos nisso.
-Não, não é sobre isso - falou o aspirante a jornalista investigativo.
Roy ergueu os olhos, surpreso com a resposta.
-Então é o quê?
Dick não respondeu. Os dedos tamborilavam contra a mesa de fórmica. Ele olhava fixamente para o vidro embaçado da vitrine, como se esperasse ver algum vulto do lado de fora. Um carro parado. Um rosto familiar. Algo que confirmasse o que ele já sabia: estavam vigiando ele.
-Dick… - começou Roy de novo, mais baixo - você está começando a me assustar, cara, e olha que isso não é fácil.
-Relaxa - disse Dick, levantando-se - eu só tô cansado, passei da conta, dormir resolve.
Era mentira. Dormir era justamente o que ele não conseguia. Cada vez que fechava os olhos, o container voltava. As fotos. Os corpos. As planilhas frias. As vozes dos mortos que ninguém ouvia. Gotham era feita de gritos abafados, e agora eles gritavam dentro dele.
Roy quis dizer algo, mas engoliu as palavras. Dick já estava longe, saindo do bar, as mãos nos bolsos, os ombros tensos. Um homem de vinte e poucos anos com o peso de um cemitério nas costas.
De volta ao apartamento, Dick trancou a porta, empurrou a cômoda contra ela, e se sentou de novo diante do laptop. Estava de noite. Lá fora, a chuva retornara, fraca mas insistente. Ele rolou até o final do texto e começou a digitar a última frase.
“Se essa cidade não escuta os vivos, talvez escute os mortos.”
Sua mão pairou sobre a tecla de enter, mas ele não pressionou. Algo se moveu no reflexo da janela. Ele se virou bruscamente. Nada. Só o reflexo dele mesmo. E, por um instante, teve a estranha sensação de que o reflexo não estava sincronizado com seus movimentos.
Ele fechou o laptop de súbito. Levantou. Encostou na parede. Segurava a respiração. Alguém estava ali. Ou talvez fosse só a culpa. Talvez fosse o medo. Mas Dick sabia o que sabia. E alguém, em algum lugar de Gotham, também sabia que ele sabia.
Naquela noite ele tentou de novo, o vento batia contra as janelas do apartamento como dedos tentando entrar. Dick sentou-se à escrivaninha de novo. A pasta digital com os arquivos estava aberta. A matéria estava quase finalizada nesse momento. O cursor piscava no fim da página como uma pergunta
“Está pronto? ”
Ele arrastou o mouse até o botão de salvar, mas hesitou. Foi até a cozinha e pegou um copo d’água, seus paços meio trêmulos, sua respiração era levemente acelerada. Quando voltou, a tela do computador estava preta. Com o coração acelerado, ele moveu o mouse. A tela voltou. Nada havia mudado, mas ele sabia. Alguém esteve ali. Talvez nem tivesse tocado. Talvez só tivesse olhado.
Mesmo assim, ele verificou os documentos. Um por um. Linhas por linhas. As datas batiam. Estava tudo normal. Dick empurrou a cadeira para trás e se levantou. Foi até a porta. Conferiu a tranca. Depois a janela. Depois de novo a porta. E então viu.
Do outro lado da rua, encostado num poste, havia um homem de sobretudo. Imóvel. De costas para a luz. Rosto indefinido. Dick ficou parado, com o copo ainda na mão. O líquido tremia. Ele fechou os olhos com força, e quando olhou de novo, o homem havia sumido.
Ele não dormiu naquela noite. Nem escreveu. Ficou sentado em silêncio, encarando o documento aberto com a sensação de que a história não pertencia mais a ele. No final da página, escreveu uma nova frase.
“Talvez Gotham não precise de heróis. Só de alguém disposto a morrer contando a verdade.”
Salvou o arquivo, mas não publicou. Fechou o notebook e o levou até o fundo do armário e o escondeu sob uma pilha de roupas velhas. Depois, pegou uma câmera velha no fundo do mesmo armário e a ligou. O aspirante a jornalista investigativo olhou para si mesmo por um segundo longo demais no espelho do armário e em seguida começou a gravar
-Se você está vendo isso… é porque eu fui longe demais - disse Dick, a voz saiu mais baixa do que ele esperava, como se a coragem estivesse presa na garganta.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, apenas observando o reflexo de si mesmo no espelho. Os olhos fundos. A barba por fazer. O cansaço gravado em cada linha do rosto. Não parecia um jornalista. Não parecia ninguém.
-Eu não sei se isso vai chegar a alguém - continuou, a voz mais firme agora - mas se chegar... se esse vídeo escapar, alguém precisa saber o que está acontecendo, precisa continuar de onde eu parei.
Ele engoliu seco. O peso de cada palavra era quase físico, apertando-o para baixo como um peso invisível mas sólido.
-O que eu descobri... vai muito além do que eu imaginava…eu…eu não sei o que fazer…
O aspirante a jornalista investigativo parou a gravação de repente, sua voz estava presa na garganta. Ele rapidamente a excluiu, ele não sabia o que estava fazendo. Stella podia achar esse vídeo, Roy podia achar.
O estômago do Grayson embrulhou com o pensamento, ele não queria isso. Não para Roy, muito menos para Stella. Ele passou as duas mãos pelo rosto em desespero e escorregou até o chão por um momento, com os joelhos dobrados e as mãos ainda cobrindo o rosto, Dick não chorou. Mas também não estava inteiro.
Ele estava no limiar, naquele lugar entre o medo e a lucidez, onde as coisas já não fazem sentido, mas ainda são reais o suficiente para doer. A verdade. Era disso que ele tinha ido atrás. Não fama, não reconhecimento. Só a verdade. Porque alguém precisava olhar para o que Gotham se recusava a ver.
Mas agora ele entendia, a verdade cobra caro. E às vezes, ela olha de volta. No silêncio sufocante do apartamento, tudo parecia esperar por ele como se o mundo estivesse suspenso no mesmo fôlego que ele prendia no peito. E ali, sozinho, Dick começou a se perguntar se valia a pena. Se a cidade queria ser salva. Se alguém realmente escutaria.
Ele esperou cerca vinte minutos antes de se levantar. As pernas tremiam. O estômago doía. O aspirante a jornalista investigativo pegou novamente o notebook no fundo do armário, olhando para os lados por um momento. Na sequência, ele foi até a escrivaninha e abriu. A página ainda estava lá.
"A Cidade dos Filhos Perdidos"
Ele leu tudo de novo, como quem lê um testamento próprio. Cada parágrafo carregava o peso de um caixão. No fim do texto, abaixo da última frase, ele escreveu uma última linha:
“Se esse arquivo for encontrado sem publicação, por favor, divulgue-o. A verdade é maior do que eu.”
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Era cerca de cinco da manhã, o ex-bilionário logo teria que enfrentar o dia na promotoria, mas não estava pronto para sair da frente do caso do desaparecimento de Tália. As últimas semanas tem sido um vendaval, Bruce estava sentado de frente para a tela, camisa escura, mangas arregaçadas, com um café meio frio ao lado. Os olhos fundos, os dedos percorrendo arquivos da imigração, registros de entrada e saída no porto, passaportes duplicados, papéis com nomes falsos.
Ele não a via desde aquela noite estranha em que ela foi até o apartamento dele. Agora ele sabia que ela quem trouxe Jason para Gotham sob o nome de Malia Tete . Bruce não conseguia localizá-la, ela só sumiu, Talia sempre foi boa em sumir. Desde então, Bruce procurava. Sem ligações. Sem gadgets. Só com paciência, contatos antigos e uma cabeça que ainda funcionava como uma máquina.
Naquela noite, ele finalmente encontrou algo. Um contrato de aluguel em nome de uma mulher chamada Lia Thomp . Registrado dois meses atrás, num pequeno prédio de tijolos perto do mercado central, zona leste de Gotham. O que chamou atenção não foi o nome, era genérico o bastante. Foi o CPF vinculado à conta de energia, um número com os mesmos dígitos finais que Tália usava para abrir contas em nome falso em outros países. Um padrão silencioso.
Ele buscou no HD externo, puxando velhos arquivos que havia salvo dos tempos em que ainda tinha acesso à rede da Wayne Enterprises. Encriptado. Mas ali. Um padrão numérico que Tália. Ela nunca repetia nomes, nem documentos. Mas usava os mesmos códigos de acesso em números de contas, sempre os mesmos, escondidos em rotas de evasão da Liga das Sombras.
Bruce encostou-se na cadeira, os olhos fixos. A respiração desacelerou. Pela primeira vez em meses, ele tinha algo real. Um vestígio. Ele abriu o mapa da cidade e digitou o endereço. Era um sobrado simples, numa rua movimentada, comércio local, nada chamativo. A fachada pintada de bege. Ele tinha que investigar isso.
Naquele mesmo dia, ao entardecer, o ex-bilionário estacionou um carro velho alugado no fim da rua. Ele não poderia ir com o dele e acabar gerando suspeitas. A casa tinha dois andares, uma fachada bege, jardim simples. Uma bicicleta infantil encostada na grade. Um varal com roupas, nada demais.
Bruce observava com paciência de quem já passou uma década aprendendo a ler silêncio. Ele não buscava um rosto conhecido. Buscava hábitos. Padrões. Erros.
Às 18h12, uma mulher saiu para buscar algo no portão. Estava de moletom. Capuz. Rosto baixo, mas era possível ver que não era Tália. Era impossível ter certeza, mas o andar, o jeito contido, e o fato de ela não olhar diretamente para ninguém chamaram sua atenção. Mas não foi exatamente ela que prendeu a atenção, foi o que veio depois.
Quando a mulher entrou de novo, uma criança apareceu à porta. Devia ter no máximo três anos. Dois, talvez. O garoto era pequeno, mas havia algo em sua presença que parecia... contido. Não uma criança solta, caótica. Seus olhos escaneavam. Não curiosidade, mas por vigilância.
Ele segurava um pedaço de madeira, como quem imitava o mundo adulto, mas não para brincar. Estava em pé, observando o portão, como se guardasse a entrada. Quando a mulher voltou, ele recuou um passo. Calado. Sem birra. Sem barulho. Um comportamento atípico para a idade. A mulher o pegou no colo. Não disse nada. O menino apenas deitou a cabeça no ombro dela e os dois sumiram para dentro da casa.
Bruce ficou ali por mais quarenta minutos. Nenhum movimento estranho. Nenhuma luz acesa no andar de cima. Só a certeza incômoda que algo ali não se encaixava.
No caminho de volta, não tirava da mente os olhos daquele menino. O modo como ele se postava. Como se já tivesse sido treinado, mesmo sem saber disso.
De volta ao apartamento, o ex-bilionário escreveu três palavras num caderno de capa preta anexado com as fotos da casa.
“Criança. Homem. Padrão.”
Depois riscou a palavra “padrão”. Escreveu uma nova embaixo, com mais força:
“Treinado?”
Bruce não tinha certeza, mas a postura do garoto não era a de um garoto típico da idade, não havia aquele descompasso comum das crianças pequenas, a instabilidade dos passos, a leveza da desatenção infantil. O garoto observava como um guarda-costas em miniatura. Havia foco no olhar, fixação nos pontos de entrada e saída. Não era imaginação, Bruce reconhecia aquilo. Era o tipo de comportamento que não se aprende brincando. Alguém havia ensinado aquele menino a ficar atento.
Ele fechou o caderno e cruzou os braços sobre a mesa, mergulhando os olhos no chão como se a resposta estivesse gravada entre as ranhuras da madeira. Era isso que mais o incomodava, não ter certeza. Anos atrás, bastava ele ver uma cena para montar o quebra-cabeça inteiro. Agora, cada peça parecia vir com mil dúvidas grudadas.
Tália teria um filho... e não lhe diria? O moreno não sabia o que pensar, não era como se a mulher lhe devesse qualquer explicação sobre sua vida. Mas ainda assim, a dúvida era como um prego enfiado fundo entre os pensamentos. Não saía. Não cedia. Não fazia sentido, e ainda assim... fazia.
Bruce se levantou da cadeira, andou até a janela. Gotham lá fora era a mesma: suja, desatenta, fingindo que dormia enquanto observava por frestas. Ele conhecia aquele teatro. Já foi o protagonista. Já fora o monstro nos telhados. Agora, era só um homem cansado com mais perguntas do que respostas.
Tália sempre foi um enigma. Ela aparecia quando queria, sumia como fumaça. Nunca foi do tipo que deixava pontas soltas, nunca o tipo que voltava atrás. E se aquele garoto fosse só... outra coisa ? Um filho de outra pessoa ? Daquela mulher ? Um órfão sob a tutela de alguém? Ele não sabia. E isso o corroía. Se ela realmente tivesse um filho, seria algo que ela esconderia dele? Sim, se não confiasse mais nele, se achasse que ele não era mais o homem que deveria saber. E talvez ela estivesse certa.
Bruce voltou à mesa e abriu de novo o caderno. Passou o dedo pelas palavras riscadas, pelas anotações que já não diziam muito. Ele girou a caneta entre os dedos, pensativo. Então rabiscou uma linha nova:
“Filho de quem?”
Era tudo que tinha. Uma interrogação. Um palpite. E um velho instinto que insistia em lhe dizer que havia algo mais ali. Que aquela casa não era só um esconderijo. Era um campo minado, emocional, estratégico e moral.
O moreno saiu de seus pensamentos quando uma voz gritou do batente da porta:
-Vem comer, eu fiz macarrão com queijo e Jason está devorando a primeira tigela.
O ex-terrorista caminhou em sua direção e se sentou na cama com um bufo exagerado antes de dizer:
-O que tanto você faz nesse computador, Brucie ? - o loiro fez uma pausa para lamber o canto dos lábios - estamos tentando ter um jantar em família, então seja sociável e vá até aquela cozinha, sim querido ?
Bruce permaneceu imóvel por um instante, a caneta ainda presa entre os dedos, os olhos fixos no caderno como se ali estivesse o esboço de um passado que ele nunca viveu ou de um futuro que talvez já tivesse escapado por entre seus dedos.
-Já vai esfriar - insistiu o loiro, balançando as pernas como um adolescente entediado, mas com aquele brilho irônico nos olhos que Bruce conhecia bem demais. Havia deboche ali, claro, mas também uma espécie de alerta. Uma necessidade velada de arrastá-lo de volta à superfície. Bruce baixou a tela do notebook com calma e deslizou o caderno para debaixo de alguns papéis, como quem guarda um segredo dentro de outro segredo.
-Estou quase indo - respondeu, sem olhar diretamente para o ex-terrorista.
O Coringa franziu levemente o cenho, um gesto raro de quem percebia algo fora do lugar.
-Você está obcecado de novo - comentou, não como quem acusa, mas como quem reconhece um padrão antigo, um vício silencioso.
-Não é obsessão - rebateu Bruce, com mais firmeza do que pretendia - prometi para Jason que iria encontrar Tália.
O Coringa arqueou uma sobrancelha, deixando a perna balançar no ritmo de sua paciência curta.
-Hm, de novo, esse lance de encontrar Tália - repetiu o louco, como quem saboreia uma palavra amarga - e o que você vai fazer quando encontrá-la? Bater na porta? “Oi, lembra de mim? Destruí sua organização, roubei seu coração e depois fiz você sentir que não me importava ? ”
-Você pode parar com sua crise de ciúmes ?
-Você sabe que não sou ciumento - zombou o loiro.
Ele sorria, de um jeito que Bruce odiava, porque estava certo. Bruce cruzou os braços, recostando-se na cadeira. O corpo dizia cansaço, mas a mente ardia. Ele não tinha respostas. Só aquela sensação entalada no peito.
-Eu não estou atrás dela por causa de mim - disse o moreno por fim - ela que trouxe Jason de volta para Gotham, ela está trabalhando para o Contador de Histórias, nada disso é aleatório.
O Coringa observou Bruce por um longo segundo, o sorriso murchando ligeiramente, transformando-se em algo mais sério, mais íntimo. Depois se levantou da cama, caminhando até ele. Parou atrás da cadeira e pousou os dedos nos ombros tensos do moreno.
-Eu sei que você está tentando ajudar o garoto - disse o ex-terrorista - mas pega leve, eu vou colocar um pouco do macarrão com queijo no forno para você comer depois, tudo bem ?
Bruce não respondeu de imediato. Só inclinou levemente a cabeça, um gesto sutil, quase imperceptível, que o Coringa já aprendera a traduzir como “obrigado”.
O loiro se afastou da cadeira devagar, passos leves, quase sem fazer barulho. Na porta, ainda de costas, falou sem olhar:
-Só tente não sumir dentro da sua própria cabeça, tá? Nem você aguenta ficar lá por muito tempo.
Com essa frase, o ex-terrorista sumiu no corredor, provavelmente voltando para a cozinha. Bruce ficou mais um momento sozinho, o leve cheiro de queijo derretido escapando da cozinha e misturando-se ao ar carregado do apartamento. Ele abriu de novo o caderno. Não tinha conseguido evitar. O papel onde escreveu “Filho de quem?” ainda estava ali, sublinhado, rabiscado. Do lado, escreveu uma nova linha, mais baixa, quase um pensamento escondido:
“Se for dela... o que isso muda?”
E logo abaixo:
“Se for meu...?”
Bruce empurrou a cadeira para trás com um estalo seco no piso de madeira. Levantou-se e pegou a jaqueta que estava jogada sobre o encosto do sofá. Sabia que não conseguiria dormir. Não enquanto aquilo ainda pulsasse dentro dele como uma cicatriz viva. Ele precisava dar um tempo, ele precisava se desintoxicar desse caso por um momento.
Com isso em mente, o ex-bilionário saiu do quarto e foi em direção à cozinha, encontrando o Coringa, ainda retirando as coisas da mesa, Jason estava longe de ser visto. Ao ver o moreno em pé na entrada, o ex-terrorista falou em um tom de zombaria:
-Quer um café enquanto eu esquento o macarrão com queijo ? Jason comeu quase toda a primeira vasilha, que tinha bacon, você sabe como são adolescentes, em fase de crescimento.
-Não - respondeu o moreno, por fim, com a voz baixa - não quero café.
O Coringa girou nos calcanhares, fez uma careta com a testa antes de simplesmente dizer:
-Desde quando você recusa uma xícara de café, querido ? Está ficando doente ?
Bruce andou até o meio da cozinha e encostou o copo na pia, apoiando as mãos na bancada, a cabeça abaixada por um instante. O silêncio se estendeu entre eles. Não era confortável, mas não era agressivo. Era o silêncio de alguém que queria falar, mas ainda não sabia como organizar o impacto daquilo.
-Você já pensou que…sei lá, fodeu tudo e agora talvez tenha muito mais envolvido do que você achou que poderia haver ?
O loiro franziu a testa antes de passar a língua no canto dos lábios e dizer:
-Seja mais específico, você sabe, eu sempre fodo com tudo e não sou uma pessoa que sente culpa por isso, então é provável que eu não entenda.
-Bruce soltou um suspiro pesado, profundo, como se tivesse saído do fundo de um
-Eu talvez tenha deixado algo para trás... - começou o moreno, as mãos ainda apoiadas na bancada - algo que não pode mais ser desfeito, mas algo que eu não sei.
O ex-terrorista parou por um momento caminhando dois passos para perto do outro homem
-Não é muito tarde da noite para as reflexões filosóficas ? - disse o loiro antes de lamber o canto dos lábios.
Ele o observava de canto, Bruce sabia quando estava sendo medido. Aquela percepção quase instintiva que o loiro tinha, o modo como ele percebia rachaduras antes mesmo delas se abrirem.
-Você tá com aquele olhar - disse o Coringa quando o moreno não respondeu - o de quando você começa a juntar peças que não quer ver encaixadas.
Bruce o encarou por um segundo a mais do que deveria. Depois passou a mão pelo rosto, a barba por fazer raspando na palma. Aquilo não era só exaustão.
-Eu só estou cansado - suspirou o moreno, uma mentira - a promotoria, o caso do contador de histórias... Jason, só estou cansado.
O Coringa cruzou os braços devagar, apoiando o quadril na lateral da pia. Os olhos fixos em Bruce, mas agora sem ironia. Só aquele silêncio que ele usava quando sabia que a verdade estava no meio da frase, não no fim.
-Você já me mentiu melhor - comentou, por fim, com uma voz quase baixa demais pra ser deboche.
Bruce soltou um meio sorriso, sem humor antes de responder:
-Talvez eu esteja ficando enferrujado.
-Você quer me dizer o que tá acontecendo de verdade ou vamos continuar fingindo que é só sobre planilhas de contêiner e a mãe do menino problema? - disse o loiro, sua voz vazava zombaria, mas algo mais cru também, talvez preocupação.
Bruce apertou a bancada com mais força, os dedos brancos de tensão. Depois respondeu, pausado:
-Eu encontrei uma pista... que talvez me leve até Tália.
O Coringa arqueou levemente as sobrancelhas, mas não disse nada. Só assentiu, devagar. Esperava mais. Bruce sabia. E não podia dar.
-Isso tem a ver com Jason? - perguntou o palhaço, agora num tom mais neutro.
-Indiretamente talvez - Bruce balançou a cabeça - eu não sei, eu não sei mais o que pensar.
O loiro estreitou os olhos por um segundo, mas não forçou. Caminhou até o fogão, desligou o forno, pegou a travessa de macarrão e começou a montar um prato em silêncio.
-Eu vou sair amanhã cedo - disse Bruce, por fim - eu preciso verificar um endereço, ligue para Harvey para mim, avisando que vou me atrasar.
-Vai sozinho?
-Melhor assim - disse o ex-bilionário olhando para um ponto indefinido na cozinha. O Coringa virou-se na sua direção, segurando o prato.
-E se não for o que você espera? - entoou o palhaço depois de um momento de silêncio.
Bruce ergueu os olhos, finalmente encarando-o antes de suspirar:
-A essa altura... já não sei mais o que espero.
O loiro colocou o prato na frente dele, empurrou um garfo ao lado e se sentou na outra ponta da mesa, com a expressão mais contida do que Bruce gostaria de admitir que conhecia. E os dois ficaram ali. Um olhando para o outro. Ambos sentados à mesa como dois sobreviventes de guerras diferentes, fingindo que sabiam como ser pessoas normais.
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Na manhã seguinte, o céu sobre Gotham estava encoberto, um cinza espesso que parecia grudar nos prédios e nas decisões difíceis. Bruce saiu cedo. O carro velho, alugado, ainda tinha cheiro de plástico queimado e escapamento solto, mas passava despercebido, o que era exatamente o que ele queria.
No banco do passageiro, uma pasta fina com o contrato de aluguel, cópias de registros cruzados, um mapa do quarteirão e duas fotos borradas da mulher, ele não tinha conseguido averiguar nada sobre ela.
Ele chegou à mesma rua às 7h42. Estacionou a alguns metros da casa. Dessa vez, desceu. Estava de jeans escuro, camisa preta, boné cinza baixo o suficiente para quebrar o perfil. Caminhou pela calçada como um pai procurando um endereço errado, natural, mas atento. Parou em frente a um carrinho de cachorro-quente improvisado a duas casas de distância do sobrado. Comprou um café ruim. Era só a desculpa para ficar por ali.
A casa estava quase igual à noite anterior. Jardim simples, a bicicleta encostada na grade. Mas havia algo novo, um homem estava sentado nos degraus da varanda dos fundos, lendo o jornal. Boné escuro, óculos simples, roupas largas. Fingindo ser um morador comum, mas o jeito como dobrava o jornal entre as mãos não era casual. Bruce reconhecia essa pose. Era uma vigilância discreta. Ninguém comum lia jornal às oito da manhã na varanda de trás, virado para a rua de serviço.
Bruce anotou mentalmente a palavra segurança. Alguém ali sabia que precisava ser protegido. O ex-bilionário viu novamente a mulher, não havia nada demais nela, uma mulher comum na faixa dos trinta anos. Mas havia algo na forma como ela olhava por cima do ombro enquanto estendia roupas no varal, uma desconfiança. Havia algo errado.
A mulher estendia as roupas com precisão quase mecânica, dobrava os pregadores com uma eficiência que não era natural, nem relaxada. Seus olhos varriam o quarteirão disfarçadamente a cada dois ou três movimentos. Ela nunca olhava diretamente para nenhum vizinho, mas sempre sabia onde eles estavam. Aquela casa era uma base temporária. E ela estava protegendo alguma coisa.
Às 8h03, a criança apareceu. Mesma idade, mesmo cabelo escuro bagunçado. O garoto veio até a porta como se fosse chamado, mas não correu. Observava tudo com a mesma intensidade do dia anterior. Parou na soleira. Ficou ali, de pé. Bruce apertou o copo de café entre os dedos.
Dessa vez, havia algo diferente. Um detalhe sutil, mas presente. O menino carregava um pequeno boneco de pano nas mãos, parecia mal costurado, improvisado. Mas o que chamou a atenção de Bruce foi o símbolo bordado no peito do boneco. Três pontos, formando um triângulo invertido. Simples. Mas ele já tinha visto aquilo.
Era um símbolo usado em sinalizações internas da Liga das Sombras, um código visual para “abrigo seguro”. Quase ninguém fora do círculo interno sabia disso. Era o tipo de detalhe que escaparia para qualquer um… menos para ele. Tália estava deixando uma mensagem ? Era para ele ? Bruce não sabia.
A mulher terminou de pendurar as roupas. Pegou a criança no colo. O menino deitou a cabeça no ombro dela, e por um segundo seus olhos cruzaram com os de Bruce, mesmo à distância. Sem medo. Sem dúvida. Havia algo gelado naqueles olhos. Ele sabia que estava sendo observado.
Bruce virou as costas lentamente, como quem apenas decide ir embora do quarteirão errado. Caminhou até o carro, sem pressa. Entrou. Não ligou o motor de imediato. Olhou para o volante, o que sentia não era só tensão.
Ele precisava de DNA. Um fio de cabelo. Um pedaço de papel com saliva. Uma colher. Qualquer coisa. Se aquele menino fosse o que Bruce começava a acreditar que era, filho de Tália, talvez filho dele, isso seria complicado. Ele precisava de uma forma de se aproximar sem ser notado, de conseguir averiguar sua hipótese.
Ele respirou fundo, controlando o instinto de voltar e bater na porta. Tinha aprendido da maneira mais dura que respostas nunca vinham com pressa, vinham com método.
Bruce riscou uma nova palavra no canto do papel que tinha dentro do porta luvas:
“Babá estratégica - Missão: guarda e ocultação.”
O carro permanecia desligado, mas a mente de Bruce estava em rotação máxima. Se a criança era mesmo da Liga, e mais ainda, se era de Tália , isso queria dizer que havia um plano maior em curso. E se ele fosse dele , Bruce… não sabia o que isso faria com ele.
Porque naquele momento, enquanto segurava o café frio e observava pela janela, não era o Batman que estava ali. Era o homem. O homem que talvez tivesse um filho sem saber.
Bruce ficou ali por longos minutos, sem falar, sem se mover, com os dedos ainda enrolados no copo de isopor, agora morno, esquecido. O silêncio do carro parecia ecoar os lugares que ele evitava dentro de si, aqueles que nem mesmo anos de disciplina, combate e máscaras conseguiam calar.
Ele pensou em quantas vidas já havia salvado. Em quantas crianças já resgatou Mas e se ele tivesse deixado o próprio filho passar despercebido? E se aquele olhar tão frio, tão atento, não fosse só fruto do treinamento da Liga, mas uma ausência? Uma ausência dele? Uma ausência de um pai que não estava lá.
Bruce sempre achou que o pior tipo de erro era aquele que você só percebe tarde demais. Não os que deixavam cicatrizes, mas os que deixavam alguém sozinho. E talvez fosse isso que mais o assombrava, a possibilidade de Tália ter escondido a existência da criança não por capricho, mas por proteção. Dele. Porque ela sabia quais eram as prioridades dele. Gotham. O moreno havia deixado claro para a mulher implicitamente muitas vezes, e foi por isso que Tália foi embora…foi por isso que Selina foi embora também. Bruce não conseguia fazer nada dar certo.
Ele encostou a testa no volante, os olhos fechados, a respiração presa. Era um peso antigo, o tipo que ele carregava bem, silenciosamente. Mas que às vezes doía tanto que tornava o peito oco. Carros, sirenes ao longe, uma buzina impaciente. Gotham sempre parecia dizer que o tempo urgia, mas que a salvação... essa era opcional. Ele respirou fundo. Bruce abriu os olhos devagar, a testa ainda apoiada no couro frio. Ele se endireitou no banco.
O café frio, ele não terminaria de qualquer jeito, então deixou o copo no porta copos na porta do carro, como se se desfizesse de um hábito inútil. Estava vazio demais para fingir que o gosto amargo da bebida fazia alguma diferença.
O volante à frente dele parecia distante, não como objeto, mas como símbolo. Quantas vezes já estive nessa posição? Às portas de uma verdade. À beira de um novo abismo. E quantas vezes escolheu se jogar, achando que podia controlar a queda? Ele não era novo nesse jogo. Mas havia uma diferença agora, algo mais pessoal, e talvez fosse isso que o deixava tão imóvel, como na tortura do ano passado.
Ele afundou as costas no banco, o couro rangendo com o peso contido do corpo, mas muito mais com o peso de tudo que não se dizia em voz alta. Gotham, do lado de fora, seguia com sua rotina de ruído e urgência, mas o mundo dentro daquele carro era outra coisa, um espaço suspenso entre o que se sabia e o que não se podia ainda confirmar.
Naquele instante, Bruce não era o cruzado encapuzado, não era o estrategista, nem o promotor. Não havia planos definidos ainda, nem certeza de laços. Mas ele sabia o que tinha que fazer, esperar, observar, se aproximar com cuidado e esperar uma oportunidade para descobrir quem era aquele garoto. E ali, naquela manhã opaca de Gotham, Bruce percebeu que a dúvida pesava mais do que qualquer certeza que já teve.
A dúvida, aquela presença invisível mas constante, era mais implacável do que qualquer inimigo com quem já havia lutado. As certezas podiam ser enfrentadas, derrubadas, redesenhadas. A dúvida, não. A dúvida corroía. Silenciosa, paciente. Ela não vinha com explosões nem armadilhas. Vinha com o que não foi dito, o que não foi feito.
Bruce observou o retrovisor, como se esperasse que algum reflexo do passado surgisse ali, trazendo respostas. Mas tudo o que viu foi sua própria expressão endurecida pela exaustão. Não a física, mas a que o tempo imprime nos homens que abriram mão de si por uma causa.
Gotham era a causa. A sua causa, sempre fora. Ele acreditava nisso com convicção absoluta... até perceber que talvez essa mesma convicção tivesse um preço que ele nunca soube calcular. Havia muito mais do que naquele tempo em que esteve com Tália. Tinha muito mais em sua vida. Talvez Bruce nem seja mais a mesma pessoa, não exatamente. Não depois da tortura, não depois do Contador de Histórias, não depois de se casar com o Coringa.
Porque casar com o Coringa não foi uma escolha racional, foi um mergulho. Uma aposta insana, fora de qualquer plano traçado, fora de qualquer moralidade aceitável por quem o conheceu antes. Mas, ao mesmo tempo, foi a única coisa que Bruce fez por si em muito, muito tempo. Talvez a única coisa que não foi uma missão e justamente por isso, foi a única coisa que ainda lhe parecia real.
O ex-bilionário passou a mão pela nuca, o couro cabeludo ardendo como se pensamentos demais tentassem escapar pela pele. Não importa o quanto fingisse ter avançado, ele ainda era o homem feito de pendências.
“Se ele for meu…o que vou fazer com isso?”
Notes:
Comentem para me deixar feliz, eu gosto disso, me ajuda a superar a preguiça :)
Chapter 38: The Gotham We Have (Parte 38)
Notes:
Obrigado a todas pessoas que vem acompanhando até aqui. Um pouco atrasado eu sei, mas aqui vai o capítulo da semana :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Dois dias depois, 06h11 da manhã.
A cidade ainda estava meio adormecida, mas Dick já não dormia fazia dias. O metrô rangeu pelo trilho como um aviso. Ele desceu duas estações antes do que devia, caminhando sem olhar para trás. A mochila leve nas costas, capuz cobrindo o rosto, mãos nos bolsos, como se o próprio corpo quisesse desaparecer junto com ele.
Ele passou reto por cafés abertos, cybercafés maiores, e foi até uma lan house esquecida entre um posto de gasolina e uma loja de bebidas que estava fechada. O letreiro piscava torto: “WebGotham ” . Luz azul barata. Um lugar que não pedia nome, não fazia perguntas. O dono nem olhou duas vezes. E era por isso que ele escolheu ali.
Dick pegou o último terminal da fileira, ao lado da máquina de salgadinhos. Estava quebrada. A tela do computador tinha uma película suja, o teclado faltava uma tecla, o som chiava. Mas funcionava. Ele inseriu o pendrive e abriu os arquivos. A matéria estava lá.
“A Cidade dos Filhos Perdidos” .
O cursor piscava como se perguntasse de novo se ele estava pronto. Dick respirou fundo, mas o ar parecia mais denso. Gotham. Sempre tão difícil de engolir. O reflexo dele na tela estava pálido, com olheiras fundas e olhos que já não pareciam jovens. Havia algo no seu rosto que lembrava os retratos de veteranos. Não pela idade, mas pela experiência de quem viu demais e voltou pior. Ele checou tudo mais uma vez.
Dick sentiu o estômago revirar. Mesmo depois de tantos dias, mesmo depois de tanta raiva acumulada. Ele não ia mais editar, não ia revisar. Ia publicar.
Acessou o painel interno do blog da editoria onde estagiava. A senha ainda funcionava. Ninguém havia percebido sua ausência o suficiente para desligar os acessos. Estava prestes a clicar em “publicar” quando as mãos hesitaram. Olhou para o vidro embaçado da lan house, seu reflexo era pálido, os olhos fundos, a mandíbula tensa. Parecia alguém prestes a ser enterrado, não alguém prestes a expor a verdade.
Com as mãos trêmulas, acessou a rede do Gotham Times com um IP mascarado, gerado ali mesmo, com um programa pirata instalado no terminal. Depois, usou um segundo IP pela dark web, usando um servidor canadense. Não era perfeito, mas era rápido. Era uma garantia de não ser encontrado.
Ele sabia que, depois daquilo, não haveria mais volta. A tela piscou quando o aspirante a jornalista investigativo finalmente publicou a matéria. Dick tirou o fone de ouvido que nem estava usando. Levantou devagar, como se estivesse saindo de um velório.
Do lado de fora, a manhã estava cinza. Mas não havia o alívio de dever cumprido. Havia outra coisa. Uma sensação oca no estômago. Como se o mundo estivesse prestes a desabar. Como se alguma coisa invisível já estivesse vindo em sua direção.
Ele atravessou a rua com calma, mas seus olhos não paravam de correr pelos prédios. Janelas. Antenas. Carros estacionados. Sentia que cada sombra poderia ser um observador. Um franco-atirador. Um emissário da verdade que ninguém quer que se espalhe. Na esquina, sentou-se no banco sujo de uma parada de ônibus. Não para pegar ônibus, apenas para tentar lembrar quem era. Quem ele tinha sido antes de mergulhar nesse buraco.
As pessoas passavam. Vidas normais, indo para empregos normais. Alguém com um uniforme de lanchonete. Uma mãe puxando uma criança com pressa. Um casal discutindo algo banal demais para importar. E ele ali, com a sensação de ter jogado um fósforo aceso num galpão cheio de gasolina.
Richard abaixou a cabeça, fechou os olhos e sussurrou, quase sem som:
-Agora começa.
E, em algum lugar de Gotham, já tinha começado mesmo.
A manhã estava fria, úmida, sem forma. Um silêncio denso pairava sobre Gotham, como se a cidade estivesse segurando a respiração. Mas nada aconteceu. Nenhum carro preto virou a esquina. Nenhum telefone tocou. Ninguém gritou seu nome. O mundo seguiu como se nada tivesse sido dito. A cidade estava surda ou indiferente, ou os dois.
A paranoia era constante, mas silenciosa. Como febre que não quebra. Talvez ninguém tenha lido ainda. Talvez ninguém vá ler. Talvez a matéria vá sumir entre manchetes sobre trânsito e colunas de moda. Talvez ninguém se importe. Mas ele sabia. Ele sabia que disse a verdade. E às vezes, isso era o suficiente para se tornar um problema.
Grayson olhou para os próprios pés. Pensou na câmera velha que ainda estava no armário. Pensou no vídeo que não gravou. Pensou em Stella. Pensou em Roy. Pensou no container. Dick apoiou a testa nas mãos e os cotovelos nos joelhos. O mundo girava lento, mas dentro dele o ruído não parava. A matéria estava no ar.
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O segundo dia rondando a casa havia trazido pouco. Movimentos controlados, horários rígidos, vigilância quase profissional. Bruce dormira duas horas num hotel barato a duas quadras dali, mas seu corpo se movia como se não precisasse mais de sono. Era noite. Ele estava em pé, encostado na lateral do carro, sob um poste que falhava a cada trinta segundos.
Foi por volta de meio dia do segundo dia quando Talia apareceu. Capuz, moletom, sem maquiagem. Mas ele reconheceria aquele andar em qualquer parte do mundo. Ela apareceu sem olhar para os lados. Sozinha. Foi até o portão e encostou o rosto no gradil.
Lá dentro, a babá dormia no sofá e o menino brincava no tapete com peças de madeira. Tália não disse nada. Apenas ficou olhando. O bastante para Bruce saber, ela se importava.
E esse momento foi o bastante para ela errar. Ele a abordou sem som. Um movimento seco, preciso. Um braço em torno do dela, leve mas firme, puxando-a para trás do muro da casa vizinha. Ela não gritou. Nem tentou lutar. Apenas girou o rosto devagar.
-Eu devia saber que você não demoraria para aparecer - entoou a mulher.
Bruce não respondeu, os olhos dele estavam cravados nos dela como se cavassem fundo.
-O que você está tramando, Talia ? - rosnou o moreno - não tenho tempo para jogos, onde está o Contador de Histórias ?
-Eu não estou jogando - respondeu Tália, com a voz baixa, tensa, quase como um sussurro entre os dentes - e se tivesse, você já teria perdido.
Bruce apertou o braço dela com mais força, mas não respondeu. Ela não resistiu. Apenas virou o rosto para a casa.
-Você nunca vai conseguir pegá-lo, você está apenas andando em círculos - disse ela - está fazendo exatamente o que ele quer que você faça.
-O que está acontecendo ? Fala comigo - disse Bruce, seu tom era suplicante - porque você parece estar fugindo e se escondendo pela cidade ?
Tália respirou fundo. Não de medo, Bruce sabia reconhecer isso, mas como alguém que precisa escolher as palavras com cuidado porque cada uma delas pode custar caro.
-Estou me escondendo dele.
Bruce não moveu um músculo, mas por dentro, algo congelou. Ela não usava palavras assim à toa. “Dele”. O Contador de Histórias. Aquilo não era medo comum. Era medo de alguém que conhecia o predador e sabia o alcance de seus dentes.
-Você está sendo chantageada - disse ele, como uma constatação, não uma pergunta.
Talia abaixou os olhos por um segundo. E isso bastou.
-O que ele tem sobre você? - perguntou o moreno.
Ela mordeu o canto interno da boca, um gesto antigo que Bruce lembrava das poucas vezes em que a via realmente hesitar.
-Você não entenderia - disse ela por fim - e você não pode me ajudar.
-É claro que eu posso - respondeu o ex-bilionário ainda segurando o braço da mulher - você sabe que pode confiar em mim.
-Será que posso mesmo, Bruce ? - questionou Talia, sua voz era amarga - será que posso ?
-Do que você está falando ? - perguntou o ex-bilionário franzindo o cenho levemente, sua expressão era tensa.
-Você sempre escolheu Gotham - respondeu Tália, sem gritar, sem dramatizar - sempre, mesmo quando era comigo, e agora está me agarrando como se eu fosse uma criminosa, como se eu fosse só mais uma ameaça a ser neutralizada.
Bruce vacilou por um segundo, mas não soltou. Não podia. Havia mais ali, e ele sabia.
-Se você está em perigo, eu preciso saber - disse o moreno - se ele está ameaçando você ele não vai parar, acredite em mim, eu sei do que esse cara é capaz.
-Eu sei muito bem do que ele é capaz, não me julgue como uma idiota, eu sei bem onde estou pisando - rosnou a mulher puxando seu braço do aperto de Bruce - mas tem muito em jogo para mim, muito mais do que meus problemas com você.
-Talia - tentou o ex-bilionário - por favor, só me diga o que está acontecendo.
-Eu não posso, você não entende - disse ela com pesar.
Tália virou o rosto. Por um instante, o peso dos anos caiu sobre ela. A herdeira da Liga das Sombras, sempre impecável, sempre em controle, estava à beira de desmoronar. Mas não de fraqueza, e sim de exaustão. De carregar segredos demais, por tempo demais.
-Então me faz entender - disse Bruce, e havia sinceridade na voz, não comando, não acusação, somente alguém cansado de adivinhar o que deveria saber desde o início.
Ela hesitou. Os olhos voltaram brevemente para o interior da casa. O garoto ainda brincava. Alheio. Pequeno demais para saber o quanto seu mundo estava cercado de mentiras.
-Ele sabe coisas que não deveria - começou Tália, a voz agora mais contida - sobre mim, sobre a Liga, sobre você e sobre o garoto.
-Ele é meu filho? - Bruce interrompeu, de novo.
Dessa vez, ela não respondeu de imediato. O silêncio foi um sim que doeu mais do que qualquer palavra.
-O que ele quer? - perguntou o moreno, num fio de voz - o que o Contador de Histórias quer ?
-Quer o que qualquer narrador quer - respondeu a mulher - contar histórias, mas eu não sei o intuito, eu sou apenas mais uma peça no tabuleiro sendo mexida, ele disse que você viria, que iria perguntar do garoto.
-E mesmo assim você veio? - Bruce perguntou, a voz mais baixa agora, ferida por dentro, como se cada palavra fosse um espinho sendo puxado da carne.
Talia olhou para ele. Pela primeira vez, havia algo que parecia pesar genuíno nos olhos dela.
-Eu precisava ver ele, Damian… só mais uma vez - murmurou, encarando o portão - antes que tudo vá pelos ares.
-O que ele está te obrigando a fazer? - insistiu Bruce - qual é o plano?
Ela respirou fundo e fechou os olhos por um instante.
-Eu trouxe Jason de volta para Gotham porque ele me mandou, disse que era necessário, que a cidade precisava fechar ciclos inacabados, que Jason era um “capítulo mal escrito” - ela engoliu em seco desviando os olhos - não sei muito mais do que isso Bruce, como eu disse, sou só uma peça nessa tabuleiro, um pedaço da história que o Contador de Histórias está tentando contar, você não pode me ajudar.
Bruce levou alguns segundos antes de se mover. Mas então retirou um pequeno par de algemas de dentro do casaco. Tália viu, mas não resistiu.
-É isso? Vai me prender? - ela perguntou, sem raiva, apenas com uma resignação cansada.
-Você disse que é só uma peça… então me deixa tirar você do tabuleiro por um tempo - respondeu Bruce, enquanto prendia os pulsos dela com delicadeza quase íntima - vamos descobrir o que está acontecendo, mas você precisa me contar o que sabe, sobre o Contador de Histórias, sobre Jason, sobre tudo.
-O que vai acontecer comigo? - ela perguntou, por fim desviando o olhar para a casa.
-Se você cooperar, nada - entoou o ex-bilionário com um tom cansado - e você vai cooperar não vai, Talia ?
Talia não respondeu de imediato. O olhar dela ainda estava preso na casa, nos instantes de silêncio entre o mundo dela e o mundo de Bruce. Quando enfim virou o rosto, o que havia em seus olhos não era nem raiva nem medo.
-Vou - disse ela depois de um momento - mas não mim ou por você.
Bruce assentiu, mas o gesto não tinha vitória. Era pesado, como tudo que envolvia aquele menino.
-Vamos sair daqui - disse ele - se alguém estiver observando, já viu demais.
Ele a guiou até o “Batmóvel civil”, um carro anônimo, sem placas registradas que Bruce estava usando para essa operação. No silêncio do carro, enquanto Gotham se desenrolava ao redor deles como uma cicatriz viva, ele falou:
-O caso dos Mulks, você sabe de alguma coisa?
-Não - respondeu ela sem hesitar - nunca ouvi esse nome.
-Seu DNA foi encontrado junto com o de uma mulher desconhecida, em uma cena de crime de 3 anos atrás - entoou o moreno - um caso de violência doméstica, Amélia Mulks denunciou o marido, mas o DNA não é dela, é de outra mulher, dessa mulher desconhecida, ela e o filho de um mês estão desaparecidos.
-Eu não sei nada sobre isso - entoou Talia - não posso te ajudar, desculpe.
Bruce manteve os olhos na estrada, mas por dentro, algo se revirava. Ele conhecia Tália o bastante para saber que ela podia mentir com perfeição, mas também conhecia o tipo de mentira que ela escolhia não contar. E naquele caso, havia algo verdadeiro demais na maneira como ela dizia “não sei”. Era seca. Direta. Sem ornamento. Não era uma evasiva, era uma ausência real.
Ele respirou fundo antes de mudar de assunto:
-E o garoto ?
-O que você quer saber ? - disse ela olhando para a frente
-Quero saber porque - entoou o moreno olhando para a estrada - porque você não me disse.
-Não havia o que dizer - falou ela - não estávamos mais juntos, você estava com Selina, e eu achei que era melhor assim.
Bruce apertou o volante com mais força do que percebeu. As juntas dos dedos ficaram brancas por um instante. O nome de Selina ainda trazia ecos difíceis. Mas ele não rebateu. Não era o momento.
-Você decidiu isso sozinha? - perguntou, sem levantar o tom.
Tália não respondeu de imediato. O silêncio entre os dois ficou denso, espesso como o céu sobre Gotham nas noites sem estrelas.
-Eu decidi porque te conheço - disse por fim, a voz baixa - você não tinha espaço na sua vida pra mim, e eu não seria a segunda em sua vida, sua prioridade sempre foi Gotham.
O moreno desviou os olhos da estrada por um instante, apenas para encará-la de lado. Mas o rosto dela era puro aço. Não havia arrependimento ali — só uma tristeza antiga. Uma daquelas que não se curam, apenas se integram ao corpo como um osso quebrado mal calcificado.
-Ele tem seus olhos - disse Bruce, depois de um tempo - mas não é isso que me fez saber, foi o modo como ele se comporta, como observa, ele não é uma criança comum.
-Nunca foi - respondeu Talia - e não é por causa da genética, é por causa do mundo onde nasceu.
-Você treinou ele? - questionou o moreno.
Ela balançou a cabeça, negando antes de dizer:
-Ensinei o básico, quando ele começou a andar, mas depois... deixei que vivesse como um menino, eu não queria um soldado, não de novo, não como nós.
-Você fez a coisa certa - falou Bruce - em não treinar ele, às vezes é preciso dar um basta no ciclo de violência.
-Gostaria de ter a mesma certeza que você - respondeu a mulher.
-Ele sabe quem eu sou?
-Não - respondeu ela - sabe que tem um pai, mas não o nome
Bruce respirou fundo, desviando o carro para uma rua secundária tentando ao máximo chamar pouca atenção.
-Você planejava me contar um dia? - perguntou o moreno, suas mãos ainda fechadas fortemente ao redor do volante.
Talia fechou os olhos por um momento, como quem segura a dor entre os dentes antes de responder.
-Planejava, mas você estava ocupado demais salvando Gotham, e eu... eu fui ficando para depois, até que o depois não existia mais - disse ela com certo pesar - não vou dizer que sinto muito por ter escondido Damian, porque não sinto, mas estou feliz por você, de verdade.
Bruce não respondeu de imediato. As palavras dela ficaram pairando no interior abafado do carro, como poeira levantada num quarto trancado. “Não vou dizer que sinto muito.” Isso ele entendia. Esse tipo de convicção vinha de alguém que precisou sobreviver por conta própria, algo que ele mesmo conhecia bem demais.
O carro seguiu por mais algumas quadras antes de parar. Um dos acessos ocultos debaixo da cidade, um antigo abrigo de emergência projetado pela Wayne Enterprises antes da queda da fundação. Agora era apenas concreto e sombra, silencioso e seguro o bastante para interrogar alguém que sabia demais. Bruce desligou o motor e virou-se para ela em silêncio.
-Vai me torturar ? - perguntou a mulher olhando para a frente - talvez eu tenha te julgado mal e você tenha ficado maluco depois de casar com o Coringa, talvez a sociopatia daquele cara seja contagiosa.
-Eu não vou te torturar - disse o moreno simplesmente.
Talia soltou um suspiro curto, carregado de ironia amarga.
-Então o que vai fazer? Me manter aqui até eu dizer algo que nem eu entendo direito?
Bruce a observou por um momento antes de começar a sair do carro e instruindo a mulher a fazer o mesmo.
-Vou manter você segura - disse ele, por fim saindo do automóvel - pelo menos até eu entender o que diabos esse cara está tentando fazer.
-Você acha que me manter aqui muda alguma coisa? - rebateu Tália, com frieza também fechando a porta com um baque curto - ele não precisa de mim ativa para continuar o jogo, ele já escreveu o roteiro, Bruce.
-Você precisa me ajudar a descobrir quem ele é e o que ele quer - falou o moreno - é a nossa única chance de desenrolar esse novelo.
-Não é assim que ele funciona - murmurou ela - ele quer que você vá atrás das respostas, ele quer que você corra, quer que você veja a cidade se desmanchar tentando juntar os pedaços, e quando você perceber que já perdeu, ele vai publicar.
-Publicar o quê? - perguntou o moreno.
Ela ergueu os olhos, finalmente.
-A história de todos vocês.
—-------------
Era final da tarde na delegacia quando Castro chamou Chuck na sua sala, na antiga sala de Gordon. O tenente sabia do que se tratava, nessa altura não havia mais como esconder a operação, uma vez que a perícia foi acionada era impossível continuar escondendo isso. Uma hora o vazamento seria inevitável.
O sol se espalhava pálido pela persiana suja, criando faixas de luz no chão rachado. O cheiro de café velho e papel úmido ainda reinava ali, como se o tempo tivesse parado nos tempos de Jim. Chuck entrou sem pressa. Bateu duas vezes antes de abrir a porta. Castro estava encostado na beirada da mesa, sem blazer, mangas arregaçadas, os olhos fixos em um laudo impresso. Não havia outro lugar para começar.
-Senta, Chuck.
O tenente obedeceu. A cadeira de metal rangeu.
-A perícia me informou de um contêiner encontrado no rio de Gotham - começou o atual comissário - parece que ela foi acionada por você e pela agente Sarah Essen, me diga Chuck, o que você estava fazendo lá ? O que você estava investigando ? Não havia nenhuma operação oficial, isso não passou por mim.
Chuck cruzou as pernas devagar. As mãos firmes no colo, mas o olhar impassível. O tenente respondeu:
-Era o contêiner de 2006, aquele do caso do Contador de Histórias, o contêiner desaparecido.
-E você e agente Essen resolveram me deixar de fora disso e fazer as coisas por debaixo dos panos - constatou o comissário, seu tom era neutro - como vocês souberam onde procurar o contêiner, o caso do Contador de Histórias estava arquivado, não havia mais pistas.
-Matthew Cole - respondeu o tenente - e uma das charadas do Contador de Histórias: "Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?"
Castro passou a mão no rosto devagar, como se tentasse afastar a frustração junto com o cansaço que se acumulava nas têmporas. Ele não disse nada de imediato. Apenas olhou para o papel à sua frente, depois para Chuck.
-E vocês foram lá por causa disso?
-Valia a pena arriscar - Chuck deu de ombros - e estava certo, encontramos o contêiner desaparecido.
Castro puxou a cadeira devagar e se sentou, o laudo ainda entre os dedos. As linhas de expressão em sua testa se aprofundaram. Ele encarou o papel como se, relendo pela quinta vez, pudesse fazer com que aquilo deixasse de ser verdade.
-Treze corpos - disse por fim, a voz baixa, quase arranhada.
Castro segurou o papel com mais força, o punho fechando levemente. Por um instante, a raiva ameaçou ultrapassar o cansaço. Mas só por um instante.
-Você sabe o que isso significa, não sabe? - perguntou o comissário.
-Agora temos uma prova real, algo concreto sobre essa organização - falou o tenente - agora podemos provar que ela é muito maior do que pensávamos no ano passado, uma prova real, algo que vai além dessa cidade, e talvez até desse estado.
-Você está mexendo com um vespeiro - suspirou Castro - vai ser caçado por isso, tem muitas pessoas grandes ligadas nisso, só assim para encobrir uma organização como essa.
Chuck assentiu uma única vez, com a serenidade de quem já tinha aceitado o risco.
-Eu sei, e pra ser honesto, eu preferia que isso tivesse ficado escondido, mas não depois do que a gente viu lá, não depois de abrir aquele contêiner.
Castro esfregou os olhos, encostando-se na cadeira. O peso do cargo parecia dobrar sobre os ombros dele.
Castro se levantou da cadeira e caminhou até a janela. Gotham parecia murchar sob o fim da tarde, um amarelo envelhecido que descia sobre os prédios como poeira sobre um livro esquecido.
-A perícia já tem algo conclusivo? - perguntou, ainda de costas.
Chuck se mexeu na cadeira antes de responder:
-Nada que feche o quebra-cabeça, só estimativa de idade, compatibilidade entre alguns restos mortais, algumas arcadas preservadas, todas as vítimas entre seis e dez anos, todos.
-E nenhuma identificação?
-Ainda não - suspirou o tenente - o laboratório está tentando cruzar DNA com registros de desaparecidos daquela época, mas pode demorar devido ao estado de decomposição dos corpos.
-Então não sabemos quem são essas crianças - disse Castro, voltando o olhar para o tenente - e não sabemos quem fez isso com elas.
Chuck não respondeu de imediato. O silêncio dizia mais do que qualquer tentativa de encobrir o que ele estava pensando.
-Só sabemos onde estavam escondidas - completou, enfim - e sabemos que alguém fez questão de que aquilo permanecesse enterrado por muito tempo.
-E agora? - disse o atual comissário - o que quer fazer ?
-Agora temos que esperar - suspirou o tenente - ver onde os resultados da perícia vão nos levar.
-Eu odeio te dizer isso, tenente - disse Castro virando de costas - mas eu acho que talvez seja melhor deixar isso por enquanto, vamos ser caçados.
-Não há como - disse o tenente, sua voz era calma - eu achei que você diria algo parecido quando descobrisse, por causa disso, eu confidenciou os arquivos para que fossem publicados, não há como voltar atrás.
Castro virou-se bruscamente. O movimento não foi violento, mas foi rápido o bastante para deixar claro que algo o havia atingido como um soco.
-Como é que é? - perguntou, com a voz mais tensa agora, como se estivesse tentando manter o tom sob controle.
Chuck não recuou.
-O dossiê, o laudo preliminar, as imagens - disse o tenente, mentindo para não entregar Grayson - eu mandei tudo pra um servidor fora do país, redação jurídica neutra, IP anônimo, eles vão publicar a matéria, vão jogar isso no ventilador.
O comissário passou a mão pelo rosto outra vez, mas agora não era mais só frustração. Era medo. Não medo do que havia sido feito, mas do que ainda estava por vir.
-Você pirou - sussurrou Castro - você acabou de pôr um alvo no peito.
Castro andou de um lado pro outro da sala, como se procurasse uma saída que não existia.
-Você quer derrubar o que, Chuck? Uma rede nacional de tráfico de pessoas ? Você não tem ideia de quem pode estar envolvido nisso.
-Eu sei - interrompeu o tenente - e é por isso que a gente não pode recuar, não mais, é hora de nivelar o jogo.
Castro parou no meio da sala, encarando o chão como se tentasse encontrar nele uma resposta que não vinha. Ele esfregou o maxilar, depois olhou para Chuck, e ali, por trás da frustração, havia respeito. Um respeito irritado, mas real.
-Você não é o Gordon - disse, por fim, em tom baixo.
-Não quero ser - respondeu o tenente, seu tom era duro.
Castro se aproximou da mesa, pegou o laudo, observou os nomes ausentes, as idades estimadas, os espaços em branco que gritavam mais alto que qualquer palavra impressa.
-Já tem alguém acompanhando o cruzamento de DNA? - perguntou.
-Sim, dois técnicos de confiança, direto no laboratório da divisão forense, mas vai levar tempo, eles conseguiram material debaixo das unhas de algumas vítimas - disse Chuck, seu tom neutro - é DNA externo, pode ser uma pista, mas estamos falando de 2006, é possível que o DNA já esteja degradado devido ao tempo e as condições do ambiente no contêiner.
Castro assentiu devagar. E ficou de pé, de novo, como se fosse impossível descansar com aquele tipo de peso nas mãos.
-Você me colocou contra a parede, Chuck - disse o atual comissário se sentando na mesa - se isso explodir, vamos todos para baixo da terra, não é apenas nossas carreiras que estão em jogo aqui, então me mantenha informado e reze pra esse DNA falar alguma coisa, porque a gente precisa de um nome, um nome real, algo que respire, que caminhe, que a gente possa colocar atrás das grades.
Chuck se levantou devagar. Não havia arrogância em seu gesto, apenas um cansaço velho, como se ele já estivesse vivendo esse momento há anos.
-Um nome - repetiu, olhando para Castro - o que a gente encontrou naquele contêiner... não foi feito por um só rosto, aquilo foi feito por um sistema, você sabe disso, precisamos prender todos eles, desmantelar o sistema.
Castro não respondeu de imediato. Ficou ali, parado, os olhos fixos em algum ponto entre o laudo e o nada, como se o próprio cérebro estivesse tentando impedir que a gravidade das palavras de Chuck se enraizasse.
-Um sistema - repetiu ele por fim, em voz baixa - você tem ideia do que está dizendo? Com o que está querendo mexer ? Com quem está procurando guerra ?
Chuck assentiu, firme antes de responder:
-Tenho.
Castro permaneceu em silêncio por alguns segundos. Depois se levantou lentamente e fechou a porta da sala com mais força do que o necessário. A vibração do impacto pareceu atravessar o chão rachado.
-Escuta uma coisa, Chuck - disse ele, aproximando-se da mesa com passos pesados - você acha que me dá essa bomba e que eu vou bater palma? Você acha que é heróico colocar esse material na imprensa? Não é, você só está apontando uma arma para a própria cabeça, e agora para a minha também.
Castro deu um passo à frente, com os punhos cerrados ao lado do corpo.
-Você está colocando vidas em risco. Você entende isso? Você acha que esse pessoal vai cruzar os braços? Tem policiais envolvidos, promotores, políticos - disse ele - se essa matéria sair como você está dizendo... Chuck, muita gente vai morrer, você inclusive, e eu.
Castro passou a mão no rosto de novo. O suor na testa, o maxilar travado.
-E se eles começarem a matar testemunhas? Se começarem a eliminar qualquer um que possa ligar um nome ao esquema?
-A única proteção que a gente tem agora é a luz - respondeu Chuck - se tudo sair, se o mundo inteiro estiver olhando, a margem deles diminui.
Castro encostou-se na parede por um instante. O papel ainda em mãos, o peso da responsabilidade latejando entre os dedos.
-Não faz ideia de com quem você mexeu, Chuck.
-Não, mas eles também não sabem com quem estão lidando - disse o tenente - e agora... agora é tarde demais pra apagar.
O comissário ficou em silêncio por longos segundos. Depois assentiu, uma única vez, um gesto duro, antes de dizer em um suspiro:
-Que Deus nos ajude quando essa poeira levantar.
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Esse era o momento que Jason estava adiando. O adolescente estava cruzando os portões da escola com uma expressão de desprezo e gastura. Ele cruzava os braços com força dentro da blusa de moletom cinza, o capuz puxado até quase cobrir os olhos. Ao lado dele, estava o ex-terrorista de pé, com a mesma aparência de sempre, tênis velhos demais, jeans gastos e moletom escuro desbotado. O adolescente achava a escolha das roupas bem sinistras, principalmente quando você é um cara com cicatrizes enormes no rosto e olheiras claras debaixo dos olhos.
-Isso é ridículo - murmurou Jason, sem olhar pro lado.
-Que parte? A parte em que eu sou seu responsável legal ou a parte em que você precisa fazer parte dessa farsa comigo ? - zombou o louco antes de passar a língua no canto dos lábios.
-Eu não preciso dessa merda - rosnou Jason sem olhar para o outro homem - não é como se a escola tivesse algo a me ensinar ainda, não depois de tudo.
-Lá vai você - zombou o palhaço caminhando ao lado do adolescente - pirralhos como você se acham muito especiais.
-Eu sou especial - rebateu Jason, os dentes cerrados - eu sobrevivi a coisa que teria deixado qualquer outro maluco.
O palhaço bufou, como se já tivesse escutado essa mesma história centenas de vezes. E de fato, ele tinha. Todas as pessoas que passaram por alguma merda na vida tinham a estranha percepção de que são protagonistas de uma história que está sendo contada, quando isso não é verdade. A peça da vida não tem protagonistas.
-O mundo não tá te assistindo, moleque - disse o Coringa, o tom agora menos teatral, quase seco - e se estivesse, iria te esquecer antes do intervalo.
Jason apertou mais os braços contra o peito. O moletom parecia mais um escudo do que uma roupa.
-Então, por que a gente tá fingindo que isso aqui importa? - resmungou ele, os olhos fixos na entrada da escola pelo qual eles acabaram de passar.
O palhaço deu de ombros antes passar a língua no canto dos lábios:
-É uma boa pergunta, porque você está fingindo que isso importa, garoto ? - perguntou o loiro - eu estou porque Brucie quer, ele quer brincar de casinha, então tudo bem, eu vou brincar de casinha com ele até ele ficar de saco cheio disso.
O silêncio se instalou por um momento, Jason não sabia o que responder. Ele não tinha pensado nisso. Porque continuava fingindo que isso importava, porque não ia agora atrás da sua mãe ? Algo em Jason estava se sentindo confuso, havia algo diferente.
-Você acha que os adultos sabem o que tão fazendo? Que o diretor desse lugar tem noção de alguma coisa além de qual café deixa menos dor de estômago? - o loiro riu sozinho - isso aqui é só mais um teatro barato, e todos estamos nele então vá se acostumando.
-Que ótimo, então é isso - rosnou Jason, os olhos ainda fixos no chão, como se o concreto da entrada da escola fosse o único lugar seguro - vou passar os próximos meses num teatro com um professor idiota e um monte de playboys no meu encalço.
-É o ensino médio - disse o Coringa, com um meio sorriso, o tipo de sorriso que não sabia ser gentil - só falta a acne e o coração partido.
Jason bufou, mas não respondeu. Houve um silêncio breve enquanto os estudantes passavam por eles, alguns lançando olhares rápidos para as duas figuras com a presença deslocada. Jason caminhava um pouco mais rápido, como quem tenta se desvencilhar da própria sombra.
-Olha garoto - disse o louco antes de fazer uma pausa para lamber o canto dos lábios - eu sei que essa merda de lugar não te assusta, não de verdade, porque você veio das ruas e é mais durão que esses idiotas, se alguém te olhar atravessado, mete o soco, eu assino as advertências e nem conto para Brucie.
Jason parou de andar por um instante. Não virou o rosto, mas ficou ali, parado, como se digerisse o que acabara de ouvir. Seus olhos continuavam no chão, mas o maxilar cerrava com força. Não era exatamente raiva, era outra coisa, um tipo de confusão embrulhada em orgulho. Ele não sabia como lidar com alguém que não queria consertá-lo.
-Você é um péssimo responsável legal - murmurou o adolescente.
-Qual é, eu só quero saber dos detalhes se você quebrar a cara de algum desses caras - zombou o loiro - se você apanhar vou rir de você até a formatura.
-Bruce sabe que você fala essas merdas ? - Jason revirou os olhos.
Jason sentia algo estranho, algo no que o Coringa disse pareceu puxar algo dentro do peito dele, algo pequeno, mas mesmo assim, foi incômodo, irritante. Ele não disse nada. Apenas voltou a andar, passos duros, a mochila balançando nas costas com o peso mal distribuído. O Coringa o acompanhou, um pouco mais atrás agora. Não havia mais zombaria. Nem palavras.
Os dois cruzaram o corredor principal da escola sob o zunido dos primeiros sinais de entrada. Estudantes passavam apressados, trocavam acenos, risos, comentários. Jason mantinha os olhos fixos à frente, como se os rostos ao redor não existissem. Um mundo inteiro de vozes e vida correndo ao lado dele, mas onde ele não pertencia.
Jason sentia que algo se agarrava nos cantos do estômago e fazia tudo parecer pesado. Ele odiava estar ali. Odiava o prédio com seu reboco descascando e os corredores cheios de buzinas humanas. Odiava o som dos tênis rangendo no chão encerado, os armários azuis, a voz de algum funcionário gritando por um aluno atrasado. Odiava o Coringa andando a poucos metros atrás.
Jason odiava mais ainda o fato de não conseguir odiar aquilo com a intensidade que gostaria. Porque, por mais ridículo que fosse, o palhaço estava ali. Ele não precisava estar. Ninguém estava pagando ele. Ninguém ameaçou ele. Mas ele veio, porque Bruce o disse para vir, simplesmente.
A entrada da secretaria era abafada, com luz fluorescente que piscava no teto. Jason parou perto da parede, mãos nos bolsos, tentando se tornar invisível. O Coringa passou por ele, olhou de lado, e por um segundo, pareceu que ia dizer mais alguma coisa, mas não disse. O ex-terrorista apenas entrou.
O adolescente ficou ali, encostado na parede gelada, olhando para os próprios cadarços. Foi nesse momento que percebeu. Ninguém tinha gritado com ele. Ninguém o arrastou até ali. Nenhum policial, nenhum assistente social, nenhum juiz. Ele veio. Ele simplesmente veio, porque Bruce disse e porque não tinha mais força pra fugir. Porque, de algum jeito, ainda que pequeno e meio torto, aquilo parecia um começo.
Sua mãe adotiva, Margareth nunca o levou na escola, ela nunca apareceu nas reuniões, vivia em hospitais, sempre doente demais. E talvez uma parte de Jason quisesse isso, mesmo que vergonhosamente, que alguém o levasse no primeiro dia, que conversasse com o diretor, que assinasse uma merda de bilhete quando ele fazia merda.
Os segundos se arrastavam. Jason manteve os punhos fechados nos bolsos, os dentes cerrados, como se aquilo fosse impedir o que ele sentia de escapar. Uma sensação quente, contraditória. Era quase como... vergonha. Por ter vindo. Por não ter corrido. Pôr, no fundo, querer que alguém estivesse lá. Alguém que, por mais absurdo que parecesse, estivesse ali só por causa dele.
Na escola antiga, ninguém apareceu no primeiro dia. Nem no último. Ele mesmo assinava os bilhetes, forjava a assinatura da mãe adotiva com uma caneta azul quase seca. Ninguém nunca conferiu. Ninguém nunca ligou. Mas agora havia alguém ali dentro. Falando com o diretor. Dando satisfações. Fazendo papel de adulto, mesmo que esse adulto fosse um cara maluco e muito esquisito.
Jason detestava esse sentimento que estava sentindo, uma mistura de pertencimento e repulsa. Ele imaginou como seria sua vida se ele simplesmente ficasse com Bruce, se desistisse de encontrar sua mãe biológica e aceitasse esse novo começo. O pensamento logo se dissipou em sua cabeça. Isso seria ridículo. Ele estava se deixando levar por um vácuo de afeto que existia em sua vida, usando a atenção que estava sendo dada para ele como um tapa-buraco.
Ainda assim... o Coringa estava lá dentro, falando com um diretor de escola como se isso fosse normal. E Bruce o colocou ali, naquela função impossível, como se soubesse que, de alguma forma, o palhaço cumpriria. Isso era o que o deixava mais confuso. Bruce confiava nele, no Coringa, mesmo que hesitantemente, para cuidar de alguém. Ou pelo menos, parecia até certo ponto.
Jason sabia que estava se deixando levar pelo seu lado que sempre quis ter uma família de verdade, festa de aniversário, broncas, jantares idiotas e castigos. Jason queria tudo isso, no fundo, ele sabia que estava se sentindo ridículo por querer isso, por precisar disso, dessa atenção de alguém.
Mas o que mais o corroía, o que mais o fazia apertar os punhos no bolso e empurrar o corpo contra a parede como se o concreto pudesse absorver o que ele sentia, era saber que talvez fosse tarde demais para esse tipo de coisa. Ele não era mais uma criança. Ele já passou dessa etapa.
Jason respirou fundo, o peito subindo devagar, como se cada milímetro de ar tivesse que atravessar concreto. O tempo parecia ter parado ali, entre a parede gelada e os ecos abafados da escola que voltava à rotina. Ele olhou para o chão, depois para o teto, depois fechou os olhos. A vergonha era uma coisa esquisita. Não vinha quando alguém gritava com ele, nem quando era algemado, nem quando dormiu na delegacia. A vergonha vinha agora, nesse silêncio. Quando alguém entrava numa sala só para conversar com um diretor sobre ele. Isso era muito mais difícil de lidar do que violência ou abandono.
A porta da secretaria se abriu. O Coringa saiu, seu semblante era o mesmo de sempre, levemente zombeteiro. O ex-terrorista apenas estendeu um papel para o adolescente antes de passar a língua no canto dos lábios e dizer:
-Seu horário, tente não fazer besteira no primeiro dia.
Jason pegou o papel, mas não olhou para ele de imediato. O gesto foi automático, como quem segura uma corda que não pediu, mas que, por algum motivo, não larga. Seus dedos se fecharam em volta do papel com força desnecessária. Ele ainda não levantou os olhos.
-E aí, vai ficar aí parado? - disse o Coringa, o meio divertido, mas sem aquela zombaria habitual.
Jason finalmente levantou o olhar. Encarou o homem à sua frente, e por um segundo, não viu o sociopata, nem o cara sinistro com as cicatrizes no rosto. Viu só alguém... que veio. Que saiu da porra daquela sala com um bilhete na mão e não fez piada disso dizendo que ele podia fazer isso sozinho.
-Valeu - disse o adolescente desviando o olhar e dobrando o papel, guardando no bolso da mochila.
O silêncio que veio depois não durou nem dois segundos, mas pareceu longo o suficiente para caberem coisas que nunca seriam ditas. O Coringa não respondeu. Só soltou um suspiro leve e deu as costas, antes de dizer:
-Brucie vem te buscar depois.
Jason assentiu meio sem jeito e entrou no corredor seguinte sem pensar mais nisso. Só seguiu em frente. Porque, apesar de tudo, do teatro, da vergonha, da raiva e da confusão, agora havia um caminho. Mesmo que ele ainda não soubesse onde levava exatamente.
Notes:
Talvez eu não consiga postar na semana que vem, vou entrar um semana de provas na Universidade e preciso me deidicar um pouco à isso. Mas, ainda não sei, tudo pode acontecer KKKKK Talvez eu fique angustiado e resolva postar.
Chapter 39: The Gotham We Have (Parte 39)
Notes:
Voltei galera, um pouco atrasado, foram duas semanas sumido! Mas enfim, aqui vai o capítulo da semana com mais de 7mil palavras, resolvi dar uma agilizada na história, desculpem se está ficando com uma resolução um pouco artificial, mas tive que enxugar o que era 3 capítulos em um só porque estava ficando muito arrastado.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Era sábado de manhã, o som ritmado dos golpes ecoava pelo piso emborrachado da pequena sala de treino do apartamento. O saco de pancadas oscilava em balanços violentos, absorvendo cada impacto com um rangido seco. Bruce estava lá desde cedo. Camiseta preta, suada. Mãos enfaixadas. O suor escorria pela têmpora, mas os olhos continuavam firmes, atentos a cada movimento. Ele ainda prezava em manter a forma.
Jason entrou sem bater. A porta estava destrancada, sempre estava. Bruce não parou de socar o saco imediatamente. Apenas diminuiu o ritmo, como quem absorve uma presença antes de reconhecer o que ela significa. Só depois de mais dois golpes ele virou o rosto, um leve aceno com a cabeça.
-Você é bom - disse o adolescente olhando para o homem mais velho.
-Você precisa de alguma coisa ? - perguntou o moreno se afastando do saco por um momento.
-Não - disse Jason franzindo a testa - só estou entediado, sábado de manhã, você sabe como é, não tem nada para fazer aqui.
-Jay já está acordado ? - perguntou o moreno - que horas são ? Era para ele fazer café para você.
-Eu não sou criança - bufou o adolescente desviando o olhar - eu posso fritar uns ovos e fazer café sem provocar um incêndio, sabia ?
Bruce deu uma leve risada, a mais próxima que Jason já tinha ouvido dele. Nada escancarado. Apenas um som breve, que quase desapareceu no ar abafado da sala de treino.
-Não entenda errado, eu não estou duvidando das suas capacidades, você pode fazer seu café se quiser.
Jason deu de ombros, desconfortável. Encostou-se à parede, braços cruzados, tentando fingir que não estava absorvendo aquilo.
-Eu posso acordar o idiota se você faz tanta questão - disse o adolescente ainda sem olhar para o ex-bilionário - aliás, são oito da manhã.
-Não é uma boa ideia - Bruce considerou por um momento, escolhendo as palavras - Jay não é…uma pessoa matutina.
Jason deu um meio sorriso com a boca torta, como se concordasse, mas sem admitir.
-Estou começando a perceber - disse, chutando levemente o chão com o solado do tênis, como se tentasse movimentar o silêncio sem estilhaçá-lo.
Bruce voltou a enrolar a faixa em um dos punhos, mas agora com menos urgência. A tensão que geralmente os envolvia parecia suavizada por aquele tipo de conversa.
-E a escola? Acabei não te perguntando no caminho para casa ontem - perguntou, sem tirar os olhos das próprias mãos. Não era desinteresse, era jeito. Bruce sabia que perguntas diretas, com contato visual demais, muitas vezes só serviam pra fazer o outro se fechar.
Jason demorou um pouco. Deu alguns passos pela sala, como quem precisava se mover antes de pensar.
-É... não é um completo inferno - murmurou o adolescente - o primeiro dia foi suportável.
Bruce assentiu, apenas uma vez. Aquilo já era mais do que qualquer relatório detalhado.
-Deu tudo certo com o diretor ? Com os papéis ? - a voz do moreno era neutra, quase profissional, mas havia uma nota sutil de cuidado ali.
Jason bufou antes de responder, mas não foi o bufar cheio de raiva, mas de resignação:
-Só foi esquisito.
Bruce ergueu os olhos por um instante, observando o garoto. Não insistiu, não pediu detalhes. Deixou o espaço ali, caso Jason quisesse ocupar. O silêncio se estendeu por alguns segundos antes que o adolescente tornasse a falar:
-Não me entenda errado, não foi horrível, só diferente - respondeu Jason desviando o olhar.
-Jay disse alguma coisa que te deixou desconfortável ? - perguntou o moreno arqueando a sobrancelha.
-Não - o adolescente respondeu rápido, antes de considerar por um segundo - quer dizer…sei lá, tipo…ele é esquisito, fala umas coisas esquisitas, mas não estou verdadeiramente incomodado com isso.
-Eu sei bem o que você quer dizer - respondeu o moreno antes de voltar a ajustar as faixas nos punhos - mas não deixa ele colocar coisas na sua cabeça, ele gosta de apertar botões e manipular as pessoas.
-É engraçado como você fala isso tão levianamente, como se estivesse falando do tempo lá fora - observou o adolescente - você está basicamente dizendo que seu marido idiota pode estar tentando me manipular com sei lá qual a intenção ?
-Provavelmente ele não tem uma motivação para isso - o ex-bilionário deu de ombros - é o jeito dele se divertir, ele é um mentiroso patológico.
Jason fez uma careta leve, como quem tenta entender onde exatamente se meteu. Caminhou até o banco de pesos e sentou-se na beirada antes de soltar um bufo dizendo:
-Bem, não estou reclamando, mas já notei que ele é um mentiroso compulsivo com manias de filósofo contemporâneo, nunca sei se ele está sendo sincero ou tentando me passar uma lição de vida através de uma história sem pé nem cabeça.
E o silêncio que se formou entre eles não era tenso. Era sólido. Um tipo de entendimento sem palavras. Bruce retornou em posição de combate e iniciou uma nova série de golpes secos. O adolescente observava, os olhos atentos, tentando ler os movimentos do homem mais velho.
-Quem ensinou pra você? - perguntou Jason depois de um momento.
Bruce parou por um momento olhando para o adolescente, considerando suas palavras seguintes.
-Muitas pessoas - respondeu o moreno - mas meu primeiro mestre foi Alfred, meu ex-mordomo, ele que começou a me ensinar quando eu era garoto.
Jason assentiu devagar. Não disse nada de imediato, esse conhecimento pareceu acionar alguma engrenagem silenciosa na mente dele. Ficou ali, os cotovelos apoiados nos joelhos, como se processasse aquilo com um certo cuidado.
-E porque - começou o adolescente - tipo, porque ele começou a te ensinar isso ?
-Eu era uma criança muito fechada - disse o moreno, agora olhando para Jason - depois que meus pais morreram eu não conseguia lidar com a perda deles, então me fechei em mim mesmo, já na adolescência, eu criei alguns problemas sérios de raiva, essa foi minha rota de fuga.
Jason assentiu devagar. O silêncio que se seguiu não era vazio, mas preenchido de pensamentos densos demais para serem ditos de uma vez. Ele encarava o chão como se as respostas estivessem desenhadas no emborrachado.
-Problemas de raiva, hein? - disse por fim, com um meio sorriso irônico - achei que você fosse o adulto centrado da casa.
Bruce permitiu um leve arquejo de riso escapar pelo nariz, quase imperceptível, enquanto voltava a erguer os punhos em posição. O saco balançava de leve diante dele,mas ele ainda não tinha voltado a bater.
-Hoje em dia talvez eu seja - respondeu, tranquilo - não existe equilíbrio que não tenha sido, primeiro, uma tempestade bem disfarçada, eu aprendi a canalizar essa raiva para outras coisas.
Jason ergueu uma sobrancelha, como quem não esperava aquela resposta. Era honesta demais. Direta demais.
-Você já quebrou alguma coisa? - perguntou o adolescente, num tom entre provocação e curiosidade real - tipo, em acesso de raiva?
O moreno pensou por um momento, uma enxurrada de flashes invadindo sua mente. Das noites como vigilante mascarado, protegendo Gotham, ou pelo menos, afogando seus próprios demônios internos. Bruce tinha quebrado coisas, e não só coisas, ele bateu em muita gente, e fez muitas coisas moralmente duvidosas no caminho.
Bruce se lembrou de sua recente vontade quase cega de matar Andy, da chama quente que adentrou e lambeu seus pulmões naquele dia no apartamento de Samuel Rise. O moreno respirou fundo. O ar parecia pesar mais dentro da sala, saturado de memórias que não tinham som, mas vibravam sob a pele como um choque baixo e contínuo.
Bruce não era cego à própria história. Sabia onde havia falhado, e onde ainda falhava. Lembrava da sensação precisa: os punhos cerrados, o sangue subindo como maré dentro da cabeça, a mandíbula travada enquanto encarava Andy. Lembrava da respiração entrecortada, da visão turva, da ausência total de voz na consciência. Lembrava de ter desejado apertar o pescoço do homem até não sobrar mais nada.
Mas aquilo não era justiça. Não era controle. Era sede. Instinto. Uma raiva antiga, suja, que ele passara anos tentando domar sob o pretexto de proteger a cidade.
O saco de pancadas ainda balançava leve, como um pêndulo que não sabia parar. Bruce o encarou por um instante, vendo ali não um oponente, mas uma repetição.
-Já - respondeu o ex-bilionário em seguida, uma resposta que era seca, mas não era agressiva - a raiva é um combustível muito poderoso quando domada da forma certa.
Jason não respondeu de imediato. Apenas assentiu, quase imperceptivelmente, como quem entendia mais do que queria admitir. Havia algo no jeito que Bruce dizia aquelas coisas, sem tom professoral, sem metáfora de autoajuda, que o fazia ouvir de verdade.
O moreno voltou a socar o saco com um ritmo mais brando, como se agora cada golpe fosse menos sobre força e mais sobre medida. Controle. Respiração. Um tipo de conversa sem palavras. Jason observava, ainda com os cotovelos nos joelhos, os ombros relaxados, mas o olhar atento.
Ele não sabia como expressar, mas havia uma estranha segurança naquele espaço. Um silêncio diferente do que ele conhecia do lugar de onde tinha vindo. Era um silêncio de permissão. Permissão para existir ali sem ter que provar nada, sem ter que se justificar, sem ser julgado.
Jason pensava nas palavras de Bruce, nas que vieram antes e nas que não vieram. Ele nunca imaginou aquele homem sério, quase estoico e cheio de postura, falando de raiva com tamanha honestidade. Não como um defeito, mas como uma coisa real, com a qual se negocia todos os dias. Como quem aprende a respirar dentro de um incêndio.
-Já fiz muitas coisas movido por raiva - admitiu o adolescente depois de um tempo em silêncio - acho que no fundo, até a minha vinda para Gotham foi uma mistura de raiva por ter sido enganado minha vida inteira, uma sede insaciável por respostas para preencher um vazio que antes eu não sabia que estava lá.
-Você tem o direito de estar com raiva disso - falou o moreno se voltando para o adolescente - você é jovem, jovens fazem besteiras.
Jason não respondeu. Apenas olhou para frente, os olhos um pouco mais baixos do que o normal, como se não quisesse que Bruce visse o que havia neles. Havia algo ali. Não era tristeza. Não era culpa. Era o que vinha depois da raiva, quando ela secava e deixava só a casca áspera por dentro.
Bruce o observou por um instante. O garoto ainda tinha aquele jeito endurecido, ombros tensos, peito trancado como se alguém pudesse arrancar alguma coisa de dentro dele se ele deixasse espaço.
Jason passou a mão pelo rosto, como quem espanta um pensamento, depois esfregou as palmas nas coxas do jeans, inquieto.
-Quando eu era pequeno - começou, com a voz baixa, quase sem perceber que estava falando - eu achava que se eu gritasse alto o bastante, alguém ia escutar, algum adulto ou sei lá, por isso me metia em encrencas na minha cidade, fugia e brigava com a minha mãe que não podia dar atenção para mim.
Bruce não se mexeu. Não interrompeu. Só ouviu o que o garoto estava falando.
-A raiva virou isso - continuou o garoto - era melhor sentir raiva do que sentir nada, e eu sei que parece idiota agora, falando em voz alta... mas na época, parecia a única coisa verdadeira que eu tinha.
-Não parece idiota - respondeu Bruce, com firmeza, ainda de pé olhando para o adolescente - você ainda é um adolescente Jason, você não deveria ter tanta coisa na cabeça com essa idade, você sabe que se quiser pode conversar comigo, ou se você se sentir mais a vontade, posso contratar um psicólogo.
-Eu não quero conversar com um psicólogo - Jason franziu o rosto em desgosto.
-Eu fiz terapia quando perdi meus pais - ofereceu Bruce - não funcionou muito bem para mim, mas quem sabe, talvez funcione com você.
Jason respirou fundo. O silêncio voltou, mas não era vazio. Era vivo. Carregado de uma honestidade crua. Era o tipo de espaço que só existe quando duas pessoas sabem o que é carregar raiva como espinho dentro do osso — e escolher, por um instante, não usá-la.
-Você…- começou o adolescente depois de um momento - você poderia, sei lá, me ensinar esse lance de canalizar a raiva ?
Bruce deu um passo para o lado e estendeu o braço, oferecendo a faixa que ainda estava no punho. Jason olhou, hesitou, depois pegou.
-Só os pulsos - disse o moreno, em voz baixa, quase uma instrução - mantém firme, mas não prende o sangue.
Jason assentiu e começou a enrolar. Ele ainda não sabia se aquilo era o começo de alguma coisa. Mas pela primeira vez em muito tempo, não parecia mais o fim.
Bruce observou em silêncio enquanto Jason enrolava as faixas ao redor dos próprios pulsos, com os dedos um pouco trêmulos. O ar ainda carregava o cheiro de suor e couro envelhecido, mas havia algo novo ali. Um resquício de esperança. Pequeno, tímido, imperceptível para quem estivesse de fora. Mas presente.
Jason terminou de prender a última faixa e olhou para Bruce como quem pede permissão sem pedir em voz alta. O moreno assentiu com o queixo. E deu um passo atrás, indicando o saco de pancadas.
-Um passo por vez - disse apenas.
Jason se posicionou, ele não era desajeitado, havia algo cru e natural na forma como ele se posicionava. Havia algo bruto em seus movimentos, um impulso natural, mas sem refino. Ele não sabia o que fazer com os ombros, nem como distribuir o peso, mas o desejo de acertar estava lá, claro como o dia.
O primeiro soco foi direto. Um pouco torto. Um pouco solto. O som que fez ao acertar o saco não era limpo. Jason franziu o cenho, reposicionou os pés, e tentou de novo. Mais forte. O segundo soco foi mais preciso. O terceiro, mais firme.
Bruce ficou ao lado, observando. Ele corrigia pequenos movimentos com palavras curtas e gestos discretos. Jason não reclamava, apenas repetia como se aquele exercício físico, aquele rito de repetição, fosse a única linguagem que ele conseguia falar com clareza naquela manhã.
Minutos passaram. E no intervalo entre uma sequência e outra, Jason parou. Respirava fundo, com os punhos fechados, os olhos fixos no saco como se ele fosse o rosto de todas as coisas que o mundo nunca explicou.
-Eu não quero ficar com raiva pra sempre - disse ele, de repente, sem olhar para Bruce - só não sei como parar.
Bruce não respondeu de imediato. Deixou o silêncio tomar conta antes de dizer:.
-Ninguém sabe, mas todo mundo começa por algum lugar.
Jason assentiu. Mais uma vez. Os punhos ainda estavam cerrados. O corpo ainda estava em tensão. Ele se posicionou de novo, e acertou o saco com mais um soco. Dessa vez, foi limpo, mas estava longe de ser o ideal. O silêncio preenchia o lugar, os sons do saco balançando e dos pés no piso emborrachado sendo o único estímulo em seus ouvidos. O adolescente não sabia quanto tempo havia se passado.
De repente a porta foi aberta lentamente e uma voz preguiçosa e arrastada veio do batente como um raio no ambiente:
-Ensinando o pirralho a socar as coisas ? Brucie e seus métodos de enfrentamento prejudiciais.
Jason parou o movimento no meio do impulso. Virou o rosto devagar, o cenho franzido antes mesmo de ver quem era. O Coringa estava encostado no batente da porta, cabelo desgrenhado, moletom velho demais, e uma caneca de café nas mãos. Trazia aquele sorriso meio torto, que Jason ainda não sabia decifrar. Bud estava ao redor de seus pés como uma sombra fiel.
-Socos às nove da manhã - continuou o palhaço passando a língua no canto dos lábios - um sábado civilizado nessa casa.
Bruce não disse nada. Apenas passou a toalha no rosto e pegou uma garrafa d’água. Havia algo diferente naquele sábado. Um tipo de trégua tácita.
O palhaço se aproximou devagar, sem invadir o espaço e sentou-se no chão, encostado na parede com Bud aos seus pés antes de dizer:
-Terminem de buscar suas doses de testosterona, eu espero para tomar café.
Jason olhou para o Coringa por um instante como quem avalia o nível de absurdo daquela aparição. Mas algo no modo como ele estava ali, desarmado, meio amassado, com a caneca de café segurada pelas duas mãos como um velho, não o irritava tanto quanto deveria. Não mais.
O adolescente balançou levemente a cabeça, bufando. Não com desprezo. Com um resquício de aceitação.
Bruce não se incomodou com a presença do palhaço, ex-bilionário caminhou lentamente até onde ele estava, sentou do seu lado no chão sem nenhuma palavra e pegou a xícara de suas mãos. Jason sabia que o ex-terrorista era uma presença caótica que, paradoxalmente, ajudava Bruce a organizar os próprios pensamentos. Havia algo na forma como eles interagiam, sem nem precisar trocar uma palavra.
-Esse aí vai quebrar o nariz de alguém até o fim do ano escolar - zombou o ex-terrorista acariciando a cabeça de Bud.
Jason revirou os olhos, mas não respondeu. Ainda estava com o pulso levemente tenso, a respiração lenta voltando ao normal. Seu olhar foi do saco de pancadas até Bruce, agora sentado no chão ao lado do Coringa, e pela primeira vez percebeu uma coisa, havia espaço para ele ali. Não como um intruso.
Bruce tomou um gole da caneca que roubara do Coringa. A troca foi muda, natural, como um ritual que se repetia há tempo suficiente para não precisar mais de legenda. O palhaço apenas pegou a garrafa de água que Bruce deixara de lado e virou um pouco na caneca, levando um tapa na mão do moreno, que tentava salvar o café.
Jason olhou para ele, depois para Bruce, e por fim voltou o olhar ao saco de pancadas. Seu punho ainda doía um pouco. Mas era uma dor diferente. Uma dor que vinha com propósito, e por um momento, ele se perguntou se encontrar sua mãe era algo tão importante assim no fim das contas. Ele realmente queria conhecê-la ?
Ele caminhou devagar até onde Bruce e o palhaço estavam, tirou as faixas dos punhos, enrolou com cuidado e colocou sobre o banco de pesos. Depois, sentou-se no chão, de frente para os dois, como quem não sabe o que dizer por um momento, antes de falar:
-Vai ter o que pro café ? Quero panquecas com calda.
-Já tá se sentindo em casa mesmo, hein? - retrucou o ex-terrorista antes de passar a língua no canto dos lábios.
Jason deu de ombros, o canto da boca levantando num meio sorriso. Não era provocação, era convivência.
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Era quase meio dia na delegacia. Chuck ainda estava envolvido com as muitas linhas de investigação, enquanto as notas da perícia não saiam do departamento. Ele se sentia com as mãos atadas no momento, como um animal sendo mantido em cárcere. O tenente estava analisando alguns papéis quando recebeu uma chamada de um número desconhecido.
O tenente franziu o cenho antes de atender, ele se surpreendeu quando notou que conhecia a voz, Richard Grayson. O aspirante a jornalista investigativo entoou em uma voz tensa:
-Olá, tenente, aqui é o Grayson, eu acho que estou sendo seguido.
-Como seguido ? - perguntou Chuck - você não tomou as devidas precauções para não ser identificado ?
-Eu fiz - disse o aspirante a jornalista investigativo, seu tom evidenciava seu pânico - eu fiz a publicação na página do The Gotham Times de forma anônima, não usei minhas credenciais como estagiário, eu não sei como isso aconteceu.
-Calma Grayson - falou o tenente - você tem certeza que foi descoberto ?
-Tenho - disse Dick, seu tom era urgente - no começo parecia paranóia, mas desde que eu publiquei a matéria eu tenho me sentido observado, na verdade, antes mesmo de publicar a matéria.
-Do que você está falando ? - questionou o tenente.
-Eu…eu não quero te preocupar, tenente - falou o homem mais moço - mas eu acho que alguma coisa acabou vazando, eu acho tem alguém não confiável na sua equipe.
-Isso não é possível - falou o tenente - ninguém sabia de você, eu não contei para ninguém além do ex-comissário Gordon e da agente Sarah Essen, ambos são de muita confiança.
-Eu não sei - falou o aspirante a jornalista engolindo em seco - mas é a única resposta.
-Calma, rapaz - falou o tenente, seu tom era neutro.
Chuck sabia que isso era um grande problema, ele sabia que ninguém tinha acesso a essa informação, não havia como a identidade de Grayson ter vazado. Se o aspirante a jornalista investigativo estava sendo seguido, estava sendo seguido por quem ? Eram homens do Contador de História ? Eram homens da organização de tráfico de pessoas ? O tenente sabia que tinha jogado o homem mais novo no meio de um campo minado e o mandado caminhar.
Chuck manteve o telefone afastado do rosto por um instante, fechando os olhos e tentando organizar as ideias. Sabia que qualquer passo em falso poderia colocar a vida do rapaz em risco, e a própria investigação também.
-Ei, Grayson, escute - falou o tenente, seu tom era calmo apesar da situação - eu preciso que você aja naturalmente, entendeu ? Não posso te colocar sob proteção policial agora, não tenho recursos para isso, tente descobrir quem está te seguindo.
Chuck ouviu a respiração acelerada do jovem do outro lado da linha, sentindo a urgência e o medo que permeavam suas palavras.
-Você me escutou, Grayson ? - perguntou o tenente em um tom urgente - acha que consegue fazer isso ?
-...Acho que consigo - respondeu Dick, depois de alguns segundos de hesitação - mas se eu sumir, quero que você vá até meu apartamento, tem um envelope azul embaixo da terceira tábua solta do chão, no canto esquerdo da sala, preciso que você entregue para a minha namorada, Stella.
Chuck sentiu o estômago revirar.
-Você não vai sumir - disse ele firme, tentando manter a compostura - agora me escute, você precisa mudar de rota, sair do radar, nada de voltar para casa, nada de lugares repetidos, vá pra algum lugar movimentado, loja de conveniência, rodoviária, qualquer lugar com câmeras, e mantenha o celular ligado.
-Tá... tá bem - Dick respondeu, a voz um pouco mais controlada - eu tô no centro agora, perto da galeria de arte da 9ª com a Juniper. Vou entrar lá e ver se continuo sendo seguido.
-Fique em movimento, e me mande qualquer coisa estranha que notar - disse o tenente - placas de carros, rostos suspeitos, qualquer merda, entendeu?
-Entendido.
Chuck desligou. Sua mandíbula cerrada. Aquilo não fazia sentido. Se era o Contador de Histórias, o que ele ganhava em caçar Grayson? Ele gostava do jogo, ele que deu a eles as peças para chegar até o contêiner, o Contador gostava das peças no tabuleiro. Por outro lado, se era a organização de tráfico humano, a matéria anônima teria sido um golpe sério, uma exposição real e com provas de algo que, até então, parecia enterrado sob camadas e mais camadas de empresas fantasmas e nomes esquecidos.
O tenente sabia que precisava ajudar Grayson de alguma forma, mas como ? Ele não podia mandar viaturas, isso poderia despertar esse grupo ligado ao tráfico de pessoas, se for eles. Isso envolveria diretamente a polícia, e se forem esses caras, eles não sabem que a polícia está por trás disso tudo. Se souberem tentarão se esconder, rastejar de volta para o esgoto de onde sairiam.
-Chuck - falou a agente Sarah Essen adentrando rapidamente na sala do tenente - abre o site do The Gotham Times, eles lançaram uma matéria sobre a publicação anônima no site deles.
O tenente fez o que foi instruído pela agente, e logo o título da reportagem brilhava na tela do notebook da sala.
“Publicação anônima ganha força: Tráfico internacional de pessoas pode ter base em Gotham. O que a polícia esconde? Quem publicou ?”
Chuck apertou os olhos, lendo o texto. Era um resumo detalhado da rede de empresas fantasmas, das ligações entre o container. Nada que comprometesse diretamente a investigação policial, mas o suficiente para chocar a opinião pública. Na publicação do The Gotham Times eles faziam questão de dizer que seu site foi invadido, que não tinha sido nenhum de seus repórteres que tinha publicado o conteúdo, que eles haviam tentado encontrar quem publicou, mas que o autor da postagem não havia deixado nenhum rastro digital.
De acordo com os comentários do próprio The Gotham Times, não havia rastros, então como alguém havia encontrado Grayson ? Como ele foi rastreado se mesmo a equipe do The Gotham Times que organiza o site não conseguiu ?
Chuck sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele sabia que a matéria era um acerto, que eles tinham conseguido mexer com a estrutura. Mas também sabia que tinha acabado de declarar guerra a alguém que não jogava limpo. E agora, não havia mais volta.
Chuck se afastou da tela com a testa franzida e a respiração presa. O ar da sala parecia mais denso, carregado de uma tensão invisível que começava a se materializar em paranoia. Ele levou a mão ao pescoço e afrouxou levemente a gravata, como se isso pudesse aliviar a pressão que sentia nas têmporas.
-Sarah, será que fizemos a coisa certa ?
-Você quer dar para trás agora ? - perguntou a agente franzindo o cenho - achei que era isso que você queria, tirar alguma reação, tirar os caras da toca.
-Eu acho que…
-O que foi Chuck ? - perguntou a agente, sua voz era preocupada.
-Eu acho que cometi um erro, Sarah - o tenente engoliu em seco.
-Que erro Chuck ? Do que você está falando ? - a agente não entendia o que estava acontecendo.
-Grayson vai morrer, Sarah..- falou Chuck em um tom medido - eu não tinha entendido até agora, o Contador de Histórias sabia que eu faria isso, que eu mandaria publicar o que foi encontrado no contêiner e a linha de empresas fantasmas, que eu irritaria as pessoas erradas e acabaria mandando o garoto para o fogo cruzado.
-Eu não entendo, Chuck - falou a mulher - do que você está falando ?
-Você disse que havia uma folha de papel, lembra ? A folha de papel em branco, que não sabíamos para que servia - disse o tenente no mesmo tom - agora descobri o que ele queria dizer com essa folha em branco, ele queria que escrevêssemos, que contássemos a nossa versão da história.
Sarah ficou em silêncio por um momento apenas olhando para o colega, seu cenho ainda estava franzido. Ela não parecia entender.
-Só faltava uma peça, não é? Sarah - disse o tenente - o que realmente aconteceu com o agente Taylor ? Como foi que você sobreviveu?
-Você está desconfiando de mim ? Depois de tudo ? - se exaltou a agente - acha que eu estou trabalhando para o Contador de Histórias desde o começo?
-Não - falou o tenente com um tom neutro - não desde o começo, desde que o agente Taylor morreu.
A agente Sarah deu um passo para trás, como se as palavras de Chuck tivessem empurrado algo dentro dela. Por um instante, a máscara de autodomínio escorregou, e havia ali um lampejo de raiva, ou seria medo?
-Você não tem ideia do que está dizendo, Chuck - ela retrucou, com a voz firme, mas os olhos vacilaram.
O tenente não tirava os olhos dela. Lentamente, afastou a cadeira e ficou de pé, caminhando em direção à porta, que fechou com um estalo seco. Agora estavam apenas os dois na sala. A tensão era densa, sólida como concreto.
-Eu sei o que estou dizendo - respondeu ele - porque não pensei nisso antes ? Nunca me perguntei porque você sobreviveu, e como.
Sarah o encarou por um momento, os olhos fixos, a mandíbula tensa. Havia um silêncio ali que parecia crescer entre eles como uma rachadura.
-Você acha que foi fácil, Chuck? - disse ela, finalmente, em um sussurro venenoso - achar que ia morrer naquele lugar, sabendo que tudo aquilo... tudo... era um jogo doentio de montar e você é só mais uma pecinha pronta para ser descartada.
Chuck sentiu o sangue esfriar. A confirmação estava ali. Não dita diretamente, mas insinuada, cravada entre cada palavra.
-O Contador de Histórias falou com você - disse ele.
Sarah desviou o olhar.
-Ele deixou uma mensagem para você, alguma coisa que você não me contou - falou o tenente.
Sarah permaneceu em silêncio por alguns segundos que pareceram se estender como uma eternidade. Sua respiração estava controlada, mas os olhos, sempre tão precisos, estavam agora úmidos. Não era só medo. Era exaustão.
-Taylor era um informante, ele ia me matar, eu era o alvo dele, ele me levou naquela operação para dar um fim em mim, mas fui eu que o matei e então…- ela fez uma pausa e respirou fundo - comecei a receber uns telefonemas estranhos depois, a maioria deles não dizia nada mas…ameaçaram minha mãe, eu tinha que terminar o trabalho do agente Taylor.
Chuck ficou imóvel, os ombros duros como pedra. As palavras de Sarah ainda pareciam ressoar na sala, como se tivessem sido cuspidas por uma entidade que não era mais ela. O ar parecia rarefeito.
-Você tinha que terminar o trabalho dele? - repetiu ele, cada sílaba atravessando o ar como uma lâmina - e qual era esse trabalho, Sarah?
Ela ergueu o olhar. Não havia mais lágrimas, apenas o aço velho de alguém cansado demais para continuar fingindo.
-Entregar as pistas, montar as cenas de crime para você achar, vazar dados da polícia, do que estamos investigado.
Chuck esfregou o rosto com as duas mãos, como se tentasse limpar o peso da verdade.
-Você entregou o nome do Grayson para alguém?
Sarah ficou em silêncio por um momento, apenas respirou fundo antes de dizer:
-Todos nós só estamos tentando proteger pessoas que são importantes para nós, no fim, estamos todos apenas tentando sobreviver mais um dia, independente do preço disso.
Chuck a encarou por um longo instante. As palavras dela caíram como pregos em sua consciência. A sala parecia girar lentamente. Ele sentia a bile subir, como se sua própria moral estivesse sendo corroída.
-Você entregou Richard - disse ele, a voz vazia.
-Eu não sabia que isso iria acabar chegando nos traficantes de pessoas - falou a agente, seu tom era neutro.
-Você não sabia, mas era isso que o Contador de Histórias queria - falou o tenente - ele quer que o Grayson seja caçado, quer que os traficantes de pessoas baixem a guarda e deixem o pescoço à mostra quando pegarem o garoto, ele nos está usando como peças no jogo, fizemos tudo que ele queria.
Sarah se sentou, quase sem perceber, como se suas pernas não pudessem mais sustentá-la. Os olhos fixos em um ponto qualquer na parede, distantes.
-E o pior - disse ele - é que cada passo nosso parece nos levar mais fundo nesse buraco. Não tem como parar sem sacrificar alguém, se tirarmos Grayson agora, os traficantes somem, e se deixarmos ele nas mãos deles, talvez a gente consiga finalmente descobrir quem está por trás... mas a que custo?
Chuck andou devagar até a janela da sala. Lá fora, o céu de Gotham estava cinzento como chumbo. Ele apoiou as mãos no parapeito e fixou o olhar em um ponto perdido no horizonte. Lá embaixo, as ruas seguiam vivas, buzinas, passos apressados, a rotina indiferente da cidade que sempre parecia anestesiada ao horror.
Mas ele sabia. Por trás daquela normalidade havia cadáveres empilhados em becos esquecidos, promessas corrompidas em porões abafados, silêncios comprados a sangue. Gotham era um organismo doente, e ele sentia que cada movimento feito por ele e sua equipe era como cortar um tumor com uma lâmina enferrujada.
Ele respirou fundo, fechou os olhos e apoiou a testa no vidro frio. O tenente descobriu ao mesmo tempo que seus maiores agente, tanto Sarah, quanto Taylor, que estavam até o pescoço no caso do Contador Histórias eram na verdade, informantes. O tenente se sentia perdido, se sentia feito de palhaço, não sabia em quem mais podia confiar.
Chuck havia tentado a todo custo manter a investigação de fora dos olhos de Castro que não pensou que talvez, as pessoas mais próximas dele e da investigação estavam, até certo ponto, agindo por suas costas. O tenente se sentia traído.
Chuck deixou o silêncio se alongar. Era como se o mundo tivesse desacelerado, como se os ruídos da delegacia tivessem se calado em respeito àquele momento em que tudo desmoronava, não com tiros, nem explosões, mas com verdades sussurradas.
O vidro frio contra a testa o ancorava. Ele pensava em Richard Grayson, jovem, idealista, esperançoso. Pensava na maneira como ele havia se jogado de cabeça na investigação sem mesmo ser policial, com mais coragem do que muitos homens fardados que Chuck conhecia. E agora, ele estava sendo usado como isca em uma guerra suja, uma guerra que o tenente jurou que saberia lutar, mas agora estava com as mãos atadas. Grayson era a melhor aposta deles agora, e o tenente não conseguia ignorar isso.
“Talvez eu tenha me tornado o tipo de líder que eu odiava quando entrei na polícia”
A lembrança de Gordon veio como um soco. Gordon, sempre cauteloso, Jim não seria passado para trás como um amador, Jim não hesitaria em fazer o que era certo. Porque Chuck sentia que estava hesitando ? Porque não conseguia simplesmente fazer o que era moralmente correto ?
Chuck achava que podia lidar. Que estava preparado. Mas ninguém está preparado para ser traído por alguém em quem confiou. Sarah, ali sentada, pálida, vazia. Era difícil conciliar a mulher que conhecia com a que agora confessava ter ajudado a manipular o rumo da investigação. E Taylor... Taylor morto, mas sua sombra traidora na sala.
O tenente pensou em sua carreira, em quantas vezes disse que não se venderia para manter os pés no chão, que jamais iria cortar um acordo aqui, fechar os olhos ali. Mas nada disso o preparou para ver o tabuleiro sendo virado contra ele. O Contador de Histórias era um dramaturgo da queda. Ele estava lá para escrever sobre a ruína da moral.
-O que mais você sabe, Sarah ? - disse o tenente - ainda sem se virar para a agente.
-Nada - disse ela, seu tom era seco, mas não sem emoção - eu apenas fiz o que tinha que fazer, matei Taylor e paguei por isso, mas fui apenas mais uma peça rapidamente descartável.
-Como ele entrou em contato com você ?
-Um gravador e uma carta - continuou a agente - na carta havia instruções para ouvir o gravador e em seguida queimar tudo, nele dizia que eu devia continuar o trabalho desenvolvido pelo agente Taylor, contei sobre encontrarmos o contêiner, e sobre você ter entrado em contato com o Richard Grayson.
-Você sabia sobre o contêiner ? - perguntou o tenente, seu tom era duro - você sabe alguma coisa sobre essa investigação que eu não saiba ?
-Chuck, eu só passei a informação, eu não sabia de nada, eu não sei de nada - disse a mulher.
-Para quem você passava as informações ? - suspirou o tenente - primeiro para o Rise, mas…depois ele foi assassinado e-
-Você tinha contato com o Rise ? Rise estava ligado ao Contador de Histórias ? Como ele estava ligado, Sarah ?! - se exaltou o tenente a interrompendo.
-Eu não sei - garantiu a mulher, seu tom era suplicante - foi Rise que entrou em contato comigo, foi assim que inclusive consegui algumas daquelas informações sobre ele, eu joguei para os dois lados, e talvez tenha me comprometido, mas eu tentei nos ajudar também, possivelmente o Contador de Histórias recrutou Rise porque ele tinha ligações passadas com o tráfico de pessoas e talvez estivesse mais envolvido do que Matthew pensava.
-Eu não acredito em você - disse o tenente por fim - não mais, Sarah
-Chuck acredite em mim - falou a agente - eu teria dito para você se pudesse.
-Você está fora da investigação, Sarah - falou o tenente por fim - e vai responder formalmente pelo que você fez, vai ser interrogada e contar tudo o que sabe.
-Você não está sendo justo comigo - disse a mulher.
-Foi você que não foi justa comigo.
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Era madrugada no apartamento. Gotham dormia sob a chuva fina que riscava as janelas como agulhas distraídas. Lá dentro, as luzes da cozinha estavam acesas. Um tom amarelado e antigo que fazia o pequeno cômodo parecer ainda menor, mas também mais acolhedor. Havia café sendo passado de novo, e uma frigideira no fogo baixo com ovos que já tinham esfriado duas vezes.
Bruce estava encostado na bancada, camisa de moletom escura, as mangas arregaçadas até os cotovelos, já o ex-terrorista estava sentado de pernas cruzadas no balcão, caneca na mão, olhando para o mesmo jornal da manhã, que ele não tinha lido.
-Olha isso - disse o palhaço, os olhos escaneando uma das manchetes - “Deepwater Horizon: A BP tenta conter vazamento catastrófico no Golfo do México”.
Bruce soprou o café para esfriar antes de responder.
-O vazamento está no terceiro mês, o oceano inteiro vai sentir isso por décadas, e ninguém vai lembrar o nome do engenheiro-chefe.
O palhaço deu um meio sorriso torto antes de passar a língua no canto dos lábios e responder levantando a caneca de café em um brinde debochado:
-A beleza do anonimato corporativo, o mais perfeito dos crimes.
O palhaço desceu do balcão com a caneca ainda na mão, os pés descalços fazendo pouco barulho no piso frio. Bud, que dormia encostado na parede, levantou a cabeça e soltou um suspiro longo, como se já estivesse cansado daquela madrugada.
-Você deixou o fogo aceso de novo - disse Bruce, olhando para os ovos esquecidos na frigideira.
-Eu estava ocupado ponderando sobre o colapso ambiental do capitalismo - respondeu o Coringa, arrastando uma cadeira e sentando de frente para ele - você não pode culpar um homem por estar se sentindo sentimental pelo fim aparente da civilização ocidental.
Bruce bufou leve, quase um riso abafado, o tipo de som que ele só fazia de madrugada, depois de dois cafés e quando ninguém mais estava por perto.
-Você sempre quis o colapso da sociedade - disse o moreno com um tom neutro - não sei do que você está reclamando.
-Esse é um colapso meio decadente e nada emocionante - disse o ex-terrorista balançando a xícara de café - eu queria uma evolução no horário nobre, sirenes, fogos de artifício e não essa coisa sem graça, cheia de petróleo, burocracia e velhos calvos de ternos com suas medidas capitalistas.
O loiro fez uma pausa para lamber o canto dos lábios antes de continuar:
-Esse é um péssimo fim do mundo, o meu seria mais engraçado.
-O seu teria palhaços incendiando Wall Street - murmurou Bruce, puxando a frigideira do fogo com um pano de prato.
-No mínimo - respondeu o palhaço, apoiando o cotovelo na mesa, o queixo na palma da mão - talvez uma orquestra, alguma estética apocalíptica decente, mas isso aí…- ele apontou para o jornal amarrotado - é só terrível mesmo, não tem nem graça.
-Bem - disse o ex-bilionário depois de um momento - não é como se você estivesse realmente preocupado com o fim do mundo, a queda da sociedade moderna e todas essas coisas, está parecendo a Pamela Isley.
-Você me conhece, querido - riu o ex-terrorista girando a caneca nas mãos - só estou decepcionado, é um péssimo fim do mundo, seria mais interessante simplesmente explodir a porra toda, seria mais poético.
Bruce empurrou os ovos de um lado da frigideira para o outro, sem muito empenho. A fumaça era quase imperceptível, e o cheiro de café fresco era o que preenchia o ar.
-Você está reclamando como uma criança - disse o moreno - ou como um senhor de meia idade, e você não chegou nos 30 anos.
-Você não sabe a minha idade - zombou o loiro - isso é segredo de estado até para mim, talvez eu tenha 40 anos e a gente não sabe.
Bruce revirou os olhos discretamente, fazendo o loiro erguer as sobrancelhas de um modo exagerado.
-Você é muito saudável para um cara com mais de 30 anos comendo todas essas porcarias que você come - disse o moreno simplesmente - se tivesse 40 anos seria diabético, no mínimo.
-Ou imortal - respondeu o loiro, dando um gole demorado no café, como se saboreasse a ideia - um espírito do caos com metabolismo acelerado, isso explicaria muita coisa, inclusive minha relação estável com cafeína e açúcar refinado.
-Você é a porra de uma barata - falou o moreno com uma pitada de humor maldoso, que geralmente não existia nele - aposto que ainda vou morrer antes de você, mesmo tendo uma dieta nutricional balanceada e regrada desde a adolescência.
-Tá aí - disse o loiro, apontando com a caneca - a maior piada da biologia, a disciplina morre de infarto silencioso aos cinquenta e dois.
Bruce o observou por um segundo, depois voltou a mexer os ovos já praticamente secos na frigideira. Ainda assim, os dois pareciam estranhamente confortáveis naquilo, o som da chuva lá fora, o estalar suave da frigideira, o cheiro de café e o tipo de conversa que parecia só nascer às três da manhã, entre gente que já viu o mundo virar do avesso algumas vezes.
Jason saiu de seu quarto, ele ouviu as vozes na cozinha, mas estava sonolento, apenas queria ir mijar, ele ignorou as vozes e foi na direção do banheiro.
Na cozinha, Bud levantou, circulou a mesa e deitou aos pés de Bruce com um suspiro resignado. O Coringa o acompanhou com o olhar por um segundo e comentou:
-Esse cachorro envelheceu nesse um ano, tá andando igual velho de sindicato.
-Ele acorda cedo demais - respondeu o moreno - anda de um lado pro outro como se tivesse que resolver alguma coisa.
-Igual a você - ofereceu o ex-terrorista.
Bruce não respondeu. Apenas olhou para o fundo da caneca, como se algo ali merecesse ser lido.
-A propósito... -disse o Coringa passando a língua no canto dos lábios, o tom mais baixo agora, como quem muda o tom para algo mais íntimo, mas ainda casual - você não me contou mais nada sobre sua investigação para achar Tália.
-Eu a encontrei - disse o moreno com um suspiro, seu tom era de pesar - ela está sendo chantageada, preciso dar um jeito de ajudar.
-Você vai falar para o Jason ? - perguntou o loiro.
-Não - falou o ex-bilionário - Talia está envolvida em muitas coisas agora, eu preciso resolver algumas coisas primeiro.
Jason parou no corredor saindo do banheiro. Os pés descalços estalaram levemente no chão frio, mas ele não avançou. Ficou ali, parado na sombra, parte por hábito, parte por instinto. A cozinha estava a alguns passos. Ele podia ver a luz tremeluzindo sob a porta semiaberta. As vozes vinham nítidas, mas baixas, o tipo de conversa que não se tem durante o dia. O tipo de conversa que se tem quando todo o resto está dormindo e só sobra o que é verdadeiro demais para ser dito sob o sol.
Ele não se moveu. Não tossiu. Não anunciou presença.
“Tália”, o nome caiu como um raio. O nome entrou em seus ouvidos como uma agulha fina. Ele não sabia porquê, mas aquele nome carregava peso. Não era só uma mulher. Era uma sombra antiga, uma história nunca contada. E Bruce… Bruce a estava escondendo.
Na cozinha, o Coringa cruzava as pernas de novo na cadeira, girando a caneca como se o conteúdo ainda estivesse quente.
-Hm - murmurou ele, com uma sobrancelha arqueada - você está me escondendo algumas cartas não está ?
Bruce não respondeu. Não imediatamente. O som da chuva do lado de fora era um ruído constante, tão familiar quanto o tilintar da colher no fundo da caneca, ou o chiado tímido da frigideira esquecida. Mas, por dentro, havia silêncio. Um tipo de silêncio que vinha de muito fundo, do lugar onde se guardam as verdades difíceis.
Ele não encarou o Coringa. Olhou para os ovos, agora ressecados, e os empurrou com a espátula sem nenhum propósito real. Só para manter as mãos ocupadas. Para não deixar transparecer o que fervia por dentro.
Talia teve um filho. Era isso. Simples. Um fato com pouco mais de cinco palavras. Mas dentro dele, essas palavras vinham com uma avalanche de significados, perguntas e rachaduras velhas reabertas. Porque ele era o pai. Bruce era pai. Não havia mais dúvida quanto a isso.
Bruce respirou fundo, uma daquelas respirações longas, baixas, que servem para conter o que não pode ser dito. O Coringa continuava ali, sentado na mesa, observando-o com aquele olhar que não era bem zombeteiro, era mais afiado que isso. Como se estivesse farejando alguma fissura nas defesas do moreno.
Mas Bruce não cedeu. Não ainda. Em parte por autoproteção, em parte porque não sabia o que o palhaço faria com aquela informação. Não era medo de traição, não mais, mas medo do que aquela verdade significaria para o que existia ali. Para o que ainda estava tentando existir.
Como se conta que, depois de tudo, depois de guerras, perdas, mortes, máscaras e mentiras, existe uma criança. Um menino, um filho. Bruce não faz ideia do que fazer com isso. Como dizer que existe uma parte dele agora solta no mundo, vulnerável, e que veio de uma das histórias mais perigosas da sua vida. Que Talia ainda é Talia, uma mulher com códigos próprios, lealdades próprias, e que o filho deles nasceu em meio a tudo isso.
Como contar que ele não sabia da existência da criança ? Que até ontem não sabia o seu nome ? Que nunca ele o segurou nos braços? Que não sabe se ele está seguro ou se ele é feliz. Bruce não sabia nada sobre esse filho, e esse filho não sabia nada sobre ele.
O moreno continuou em silêncio, ele não sabia como quebrar aquele silêncio, porque ele sabia que o Coringa sabia que o moreno estava escondendo alguma coisa, mas o ex-bilionário era incapaz de contar.
Bruce foi retirado de seus pensamentos por seu telefone tocando. O som ecoou mais alto do que deveria no silêncio que se instalou na cozinha. O moreno atendeu em um momento do outro lado da linha, a voz de Richard Grayson ecoou:
-Bruce…eu estou sendo seguido.
Notes:
Até a próxima semana! Vou fazer o possível para atualizar o mais rápido possível.
Chapter 40: The Gotham We Have (Parte 40)
Notes:
Ok, é com certeza o meu record de tempo. Aqui vai mais um capítulo saindo direto do forno. Só adiando, ele está preparando o terreno para os próximos capítulos. Dei uma enxugada na história e nos próximos capítulos estarei postando um esquema visual do que temos até agora na investigação do Contador de Histórias. Até lá!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Bruce sentiu o peito gelado ao ouvir a voz de Dick do outro lado da linha. Era uma urgência crua, diferente de tudo que já tinha ouvido do garoto.
-Bruce… eu estou sendo seguido.
O ex-bilionário se endireitou na cadeira. O Coringa, sentado do outro lado da mesa, inclinou levemente a cabeça, curioso. Bruce se levantou, caminhando para o canto da cozinha, o mais longe possível do palhaço.
-Onde você está? - perguntou Bruce, a voz baixa, firme.
-No centro, perto da galeria de arte na Juniper - o jovem respirava com dificuldade - me escuta, isso não é coisa pequena, não é só um idiota tentando me assustar, entraram no meu apartamento, mexeram nas minhas coisas, usaram o meu número e falaram com a minha namorada.
Bruce fechou os olhos por um instante. O estômago afundou. Era exatamente por isso que ele não queria envolver Grayson nisso. Richard era só um estagiário, um universitário, ele não deveria estar no meio disso tudo.
-Você já ligou para o tenente Charles ? - perguntou o moreno.
-Liguei, mas você não está me entendendo, vazaram meu nome - disse o aspirante a jornalista investigativo em um tom de pânico - a polícia não é confiável, alguém da equipe de Chuck vazou que fui eu que publiquei a matéria sobre o contêiner desaparecido em 2006.
-Espera - disse o ex-bilionário depois de ouvir as palavras do homem mais jovem - você publicou uma matéria sobre o contêiner desaparecido em 2006 ? E não pensou em conversar comigo sobre isso ? Foi Chuck que te pediu para fazer isso ?
-Eu preciso de ajuda ! Por favor, Bruce - falou o aspirante a jornalista investigativo com um tom urgente - eles…alguém invadiu o meu apartamento, invadiram meu celular, mandaram fotos da minha namorada, estão atrás dela, eu não sei mais o que fazer, você precisa me ajudar.
Bruce abaixou o celular. Sua expressão endureceu, ele não podia deixar Richard sozinho nisso, mas também não podia se expor. O silêncio se estendeu por um momento, o ex-bilionário olhou no relógio sujo na parede da cozinha do apartamento. Já passavam das 3h30min da manhã.
-Você tem que sair desse lugar agora - disse Bruce, a voz firme, sem margem para contestação - você ainda está na galeria?
-Sim, eu... - Dick respirava rápido - estou tentando me misturar, mas eles sabem, Bruce.
-Então me ouve - Bruce se moveu para o canto mais escuro da cozinha, abaixando ainda mais a voz - pega o caminho dos fundos da galeria, sempre tem uma saída de serviço. Sai pelas ruas menores, segue em direção à Somerset, perto do parque velho, eu conheço o lugar, tem uma lavanderia 24 horas na esquina, entra lá, finge que tá esperando roupa, usa o telefone de lá e me liga de novo.
-Sim... sim, Somerset, lavanderia 24 horas... ok.
Bruce escutou a respiração do garoto do outro lado, e o som abafado de passos, um ranger de portas ou algo parecido.
-Me escuta - disse o moreno - você não fala com mais ninguém, não volta pro apartamento, não tenta avisar a garota, deixa isso comigo, eu vou encontrar um jeito de tirá-la dessa.
-Eu…- a voz do aspirante a jornalista investigativo falhou - você precisa ajudar ela, Stella não tem nada haver com essa história, eu…eu nunca vou me perdoar se alguma coisa acontecer com ela.
-Faz o que eu disse - respondeu o ex-bilionário - eu vou ver o que posso fazer, eu vou conseguir ajuda.
-Não, Bruce - disse o aspirante com a voz embargada - por favor, você precisa prometer que vai ajudar Stella, você…v-você é o Batman, você salva as pessoas, você precisa salvá-la, por favor.
Bruce sentiu o impacto daquelas palavras. Ficou paralisado, o telefone ainda colado ao ouvido, mas sem saber o que dizer. Do outro lado, a linha ficou muda, só o som da respiração irregular de Dick. Bruce sabia que o aspirante a jornalista investigativo não tinha certeza. Mas estava apenas desesperado.
“Você é o Batman. Você salva as pessoas.”
A frase ficou reverberando na cabeça de Bruce como um eco distante de uma vida que ele tentou enterrar. Não era só um pedido. Era um apelo, uma súplica cega de quem vê um mito onde só restou um homem cansado, corroído por cada escolha que fez. Bruce baixou o telefone devagar, o olhar perdido na parede manchada do apartamento. O Coringa continuava quieto, mas o sorriso nos lábios era de quem havia escutado cada palavra e se divertia com o dilema.
Bruce apertou os olhos. A garganta apertava como um nó cego. Ele não era mais o Batman, mas o garoto não tinha ninguém. Gotham continuava sendo a mesma. A cidade ainda comia os fracos, e mesmo aposentado, ele sabia que nada havia mudado de verdade. Só ele havia mudado, pra pior. Ele ainda se lembrava da sua vez usando o manto, pouco tempo atrás. Ele quase matou uma pessoa.
O moreno sentia que seu manto já estava manchado hoje em dia, depois de tudo que ele fez. Depois do ano passado, da tortura no cativeiro, depois de acobertar o assassinato do agente Martin, de ocultar o cadáver jogando-o no rio de Gotham. A verdade é que o moreno tinha medo do que poderia fazer com a máscara do morcego.
Bruce sentou-se de volta, devagar, como se cada movimento pesasse mais que o corpo. O telefone ainda estava em sua mão, a tela já apagada, mas a frase de Dick continuava queimando dentro dele. Ele tentou enterrar o morcego porque o que restava sob a máscara já não era mais um homem, era um animal enjaulado, um predador sujo que quase matou um homem com as próprias mãos. Que quis matar, quis matar porque podia fazer isso, porque era pessoal para ele. Sempre era pessoal quando envolvia o Coringa.
O Batman que Bruce tem sido nos últimos tempos não era o Batman que queria ser, que queria inspirar nas pessoas, porque não era justiça, não era certo. Heróis não matam, heróis não sentem vontade de matar e cruzar a linha entre o certo e o errado.
O que o detinha? Ele já tinha acobertado um assassinato. Jogou o corpo de Martin no rio como um criminoso qualquer. E no fundo... ele sabia que faria de novo. Porque Gotham não era um lugar onde se vencia sendo puro. A cidade dobrava os puros e forjava monstros.
-Você devia ir, Brucie - a voz do Coringa rompeu o silêncio, sarcástica, mas baixa - o garoto te chamou de herói, vai deixar ele morrer com a ilusão?
-Eu preciso falar com Chuck - disse o moreno olhando para o loiro - quero saber sobre essa histórias que ele descobriu sobre o contêiner e porque estão atrás do Grayson.
O olhar do ex-terrorista escureceu por um momento, mas o moreno estava muito submerso no que estava acontecendo com o aspirante a jornalista investigativo para notar. Um flash passou pela mente do loiro. O cheiro de cobre, a sensação de sangue quente nas mãos, da faca, da arma. Ele lembra de correr atrás do adolescente, do que conseguiu fugir do contêiner. Lembra vividamente da sensação de suas mãos apertando o pescoço do adolescente, sentindo o pulsar da veia. Ele lembrava de olhar nos olhos do garoto, nos olhos que se arregalaram e depois perderam a força.
O Coringa fechou os olhos por um instante, como quem saboreia uma memória preciosa. O gosto da violência, da morte, tão presente que ele quase podia sentir o cheiro do sangue fresco de novo. Por um momento, ele não estava mais ali naquela cozinha, estava de volta naquela noite, com o garoto ofegante entre as mãos, a vida dele escorrendo entre seus dedos.
Ele abriu os olhos e viu Bruce ainda encarando o nada, soterrado nas próprias culpas, pesado demais para enxergar o que tinha na sua frente.
-Você quer falar com o Chuckie, hm? - disse o Coringa, um sorriso discreto ressurgindo - sabe que não adianta nada, não sabe? Ele tá mais perdido do que você no caso do Contador de Histórias.
Bruce não respondeu. Não tinha energia para rebater provocações. Só queria entender.
-Se eu fosse você... - continuou o Coringa, inclinando-se sobre a mesa, os olhos faiscando - eu começava pelo garoto que tá lá fora agora, preso como um rato encurralado, porque você sabe que a polícia vai demorar e talvez nem ligue realmente para ele.
Bruce cerrou os punhos, ele precisava falar com Chuck para saber com o que estava lidando. Ele sentia que o tenente o tinha deixado para trás, o jogado para escanteio na investigação.
-Eu não sou mais o Batman - disse o moreno.
O Coringa gargalhou baixo e passou a língua no canto dos lábios antes de dizer:
-Isso, repete essa mentira, quem sabe assim você acredita também.
Bruce passou a mão pelo rosto, ele estava irritado, era muita coisa acontecendo. O moreno se focou muito na investigação procurado pelo paradeiro de Talia e acabou deixando as linhas de investigação do Contador de Histórias.
-Amor - disse o loiro com um tom que era um misto de deboche e carinho - eu posso falar com Chuckie para você e te passar o que está acontecendo se você está muito preocupado com isso.
-Eu não quero você metido nisso - falou o moreno.
-Brucie, esqueceu que sou policial ? Eu trabalho com isso, apesar de estar de licença no momento - disse ex-terrorista antes de passar a língua no canto dos lábios.
O ex-bilionário bufou, exausto. A testa latejava, como se cada pensamento pesasse o triplo do que devia.
-Eu não quero você perto disso - repetiu Bruce, a voz rouca, o olhar ainda preso à parede suja - se o Grayson morrer, vai ser culpa minha, eu sabia que isso era grande demais pra ele.
-Culpa sua? - o Coringa sorriu, inclinando o rosto de lado - oh, querido… sempre carregando o mundo nas costas, né? O ele fez escolhas, você não pode impedir ninguém de ser tolo em Gotham.
Bruce odiava o quanto aquilo mexia com ele. Dick não sabia quem ele era de verdade. Não sabia o que Bruce havia se tornado. Não sabia do sangue, do cadáver do agente Martin, das noites onde Bruce acordava encharcado de suor e achando que ainda estava no cativeiro.
O ex-terrorista levantou da mesa e caminhou lentamente até o moreno, o envolvendo por trás em um abraço carinhoso antes de sussurrar contra seu ouvido:
-Acho que você está pensando demais amor, de novo.
-Eu vou resolver isso com Chuck - suspirou o moreno, relaxando no abraço - depois eu vou atrás do Grayson, preciso saber quem pode estar atrás do rapaz e porque, é muito imprudente e arriscado tentar algo sem saber onde estou pisando.
-Sempre preparado - zombou o loiro.
Bruce permaneceu imóvel no abraço, mas a cabeça fervilhava. Era uma armadura disfarçada de lucidez. Se preparar, entender, calcular.
-Eu não posso só sair às cegas - murmurou Bruce.
Bruce não reagiu ao deboche. O peso no peito não era só medo de falhar, era medo do que estava acontecendo, dos rumos que tomaram a investigação sem que ele tivesse percebido. Como Richard acabou na linha de frente ? Como Bruce não notou ?
O Coringa manteve o abraço, a boca encostada no ombro do moreno, o sorriso quase preguiçoso.
-Não é sua culpa - murmurou o loiro - você vai ficar cheio de rugas se continuar com essa pose de mártir.
Bruce fechou os olhos. Ele sabia. Sabia que o loiro o conhecia demais. Sabia que ele conhecia as camadas, a casca que ele vestia para se manter funcional. E era por isso que odiava cada palavra dele, porque eram verdade.
-Vou falar com Chuck - suspirou o ex-bilionário antes de se desvencilhar do palhaço - não se envolva nisso, só…fica aqui, ok ? Eu não estou pedindo.
Bruce pegou o celular da mesa, a tela ainda com o número de Dick apagado, e saiu da cozinha sem olhar para trás. O Coringa ficou parado no meio do cômodo, os braços caídos ao lado do corpo, o sorriso sumindo devagar. Ficou ali ouvindo o som dos passos do moreno se afastando, o rangido leve da porta do apartamento se fechando atrás dele.
O silêncio retomou o espaço, exceto pelo chiado baixo da chuva batendo na janela. O loiro respirou fundo, os olhos vagando pelo jornal velho ainda sobre a mesa. Ele sabia que Bruce estava no limite. Estava dividido entre ser o homem que tenta, o que calcula, e o predador que ele sabia que ainda morava dentro daquele corpo. E ele amava aquilo, a ruptura constante, o esforço patético de manter controle.
-Ah, Brucie... - murmurou sozinho, pegando a caneca de café frio - sempre adiando o inevitável.
Ele se sentou novamente, Bud deitando aos seus pés com um suspiro pesado. O loiro tamborilou os dedos na mesa, os olhos fixos no nada. Estava pensando, conectando pontos. Ele sabia que algo estava fora de lugar, sabia que o caso não era linear, que tinha algo encoberto, não só no caso, mas em Bruce. O moreno estava escondendo alguma coisa dele em todo esse lance de Talia.
O Coringa ficou ali por alguns minutos, olhos baixos, o café já morno entre os dedos. A madrugada pesava, o relógio da cozinha marcava quase 4h30 da manhã. Ele respirou fundo, cansado do próprio tédio, e puxou o celular do bolso do moletom.
Discou um número que conhecia de cor, mas que raramente usava. O telefone chamou longos segundos antes de atender.
-Sabe que horas são, seu lunático? - a voz de Edward Nashton veio rouca, sonolenta e cheia de desprezo - passou das quatro da manhã.
-Eu sei - respondeu o Coringa com um sorriso que transbordava deboche, passando a língua no canto dos lábios - mas imaginei que um cérebro funcional como o seu já tivesse abolido a necessidade patética do sono.
Edward bufou alto, levemente irritado, ele não estava com paciência para isso agora, nesse horário.
-Se você me ligou para uma provocação gratuita, eu desligo agora
-Não, Eddie - o tom do Coringa ficou levemente mais baixo, mas não menos irritante - eu preciso da sua cabecinha de rato, preciso que você investigue uma coisa pra mim.
Edward suspirou do outro lado da linha, já sentando na cama, o colchão rangendo sob o peso.
-Você sempre tem esse tom quando - resmungou Edward - como se estivesse sentado esperando o próximo número do circo, mas eu não sou um dos seus capangas imbecis.
-Eu sei, Eddie... você é especial - o Coringa sorriu pelo telefone - por isso decidi ligar para você.
-Óbvio - Edward respondeu, o tom impregnado de autoimportância - porque em Gotham, quando se trata de inteligência, eu sou o único investimento que vale a pena, o resto dessa merda de cidade é um zoológico de débeis mentais e imbecis.
-Eu adoraria discordar de você, Eddie, mas seria uma mentira tão descarada que nem eu teria coragem de contar - riu o loiro.
O Coringa estava preparando o terreno com o outro. Com Edward nada era na ponta da faca, para convencê-lo você teria que fazê-lo se sentir indispensável. O palhaço sabia lidar com gente como o ex-charada.
-Naturalmente - murmurou Edward, com uma vaidade entediada, concordando com o ex-terrorista.
-Você sabe que eu sempre posso contar com o seu ego pra me salvar, não é? - provocou o Coringa lambendo o canto dos lábios e girando a caneca vazia nas mãos.
-Ego? - Edward resmungou, ofendido, do outro lado da linha - eu não tenho ego, eu tenho consciência do meu valor, e francamente, se você conhecesse alguém com metade da minha inteligência, talvez eu não precisasse perder meu tempo com você.
-Sempre modesto - o loiro zombou, afundando mais na cadeira.
-Modéstia é para quem precisa parecer acessível, e eu não tenho essa obrigação - rebateu Edward com desdém - você sabe que eu não faço favores, não é?
-Não é um favor - respondeu o Coringa, a voz arrastada, preguiçosa - é um desafio, estou te propondo um jogo.
Do outro lado, o silêncio foi breve. Edward tinha seus limites, mas detestava mais ainda ser subestimado.
-Fale logo o que você quer.
-Quero que você cave informações sobre Talia al Ghul - disse o Coringa, já sabendo que aquilo capturaria o interesse do Charada - movimentos recentes, conexões, qualquer coisa fora do padrão, Brucie estava procurando por ela, a encontrou, mas está muito esquisito e eu acho que tem mais coisa que ele não está me contanto.
-Não vou me meter nos teus problemas conjugais com o idiota do Bruce Wayne - bufou Edward - nem sei o que você vê nesse cara, claramente não é o dinheiro, já que o cara está falido.
O Coringa riu baixo, um som arranhado e incômodo.
-Eu vejo potencial - disse o loiro, jogando a cabeça para trás na cadeira - e ruína, dá no mesmo no fim das contas.
-Poético, a sua cara - retrucou Nashton, já impaciente - e você me acordou pra isso?
-Eu preciso que você me diga o que Talia anda fazendo - continuou o loiro, a voz escorrendo uma paciência teatral - Brucie está estranho e isso me incomoda.
-E você quer que eu investigue a ex do cara para você ? - zombou Nashton - que coisa mesquinha de se fazer, está com ciúmes ?
-Ciúmes de Talia ? - perguntou o ex-terrorista em um tom sarcástico - dá um tempo, Eddie, você me conhece melhor que isso.
-Claro - disse o outro homem, escorrendo zombaria na mesma medida - é por isso que sei que é a sua cara agir como uma colegial enciumada.
-Ora vamos, tudo bem, sou um pouco possessivo com o que me pertence, principalmente quando sinto que estou sendo passado para trás - zombou de volta o loiro, passando a língua no lábio inferior - e você sabe…nós “garotas” precisamos nos ajudar, ninguém mexe em um vespeiro melhor que você.
O palhaço podia sentir os olhos do Charada revirando do outro lado da linha. Ele gostava de brincar com Edward, ele era menos insuportável que a maioria das pessoas.
-Tudo bem - veio a voz do outro homem do outro lado da linha depois de um momento de silêncio - mas você me deve uma, não vou colocar minha mão na merda por sua causa, você que se ferre sozinho.
-Eu também te amo, Eddie - zombou o loiro.
Edward desligou o celular com um corte seco, sem responder o ex-terrorista. Essa atitude fez o Coringa rir, ele e o Nashton tinham uma quase amizade que era, no mínimo, engraçada. Um contrato não formal de não-agressão mútua. O ex-charada era um cara que o palhaço tinha algum grau de respeito. Nashton era inteligente, mas infelizmente para si mesmo, era um narcisista clássico.
O ex-terrorista olhou no relógio, não valia a pena dormir. Ele ficou ali, imóvel, ouvindo o tique-taque abafado do relógio de parede, sentindo o peso da madrugada empilhando-se sobre os ombros. A risada que antes escapara leve agora sumia no vazio da cozinha.
Bud continuava dormindo aos pés da mesa, indiferente ao mundo e às angústias humanas. O Coringa o observou por um instante, o peito subindo e descendo em um ritmo tranquilo demais para o que ele próprio sentia. O palhaço sentia uma sombra do passado serpentear em seus ombros. Ele sabia do que se tratava o contêiner, é claro que sabia, e Bruce logo saberia também.
O Coringa se perguntou como foi que Chuck e Sarah chegaram até aquele maldito contêiner, a investigação ao redor do caso do Contador de Histórias estava estagnada, tudo o que a delegacia tinha eram os nomes de algumas empresas ligadas a “A. Crale Imports.” O ex-terrorista tinha mexido nas coisas de Bruce um tempo atrás, nos arquivos trazidos pelo aspirante a jornalista investigativo. A conclusão era clara, a polícia não tinha como ter chegado até o contêiner somente com aquelas informações, havia algo mais que ele não estava sabendo, que até mesmo Bruce não estava sabendo.
O loiro inclinou-se na cadeira, o rangido da madeira sob seu peso ressoando baixo na cozinha vazia. Ele tamborilava os dedos no tampo da mesa, cada batida ecoando um pensamento desconfortável. Tinha coisa demais fora do lugar. Ele não estava gostando dos rumos que as coisas estavam tomando. Era um caminho perigoso, principalmente se conseguisse ligá-lo ao contêiner de 2006.
O ex-terrorista tamborilou os dedos mais rapidamente na mesa, a mania escorria por entre as frestas de sua cabeça. Se Chuck pediu para o Grayson publicar uma matéria acerca do contêiner, ele deve ter várias informações que o palhaço ainda não tinha conhecimento. O olhar do louco escureceu por um momento e ele se levantou rápido, deixando Bud em alerta.
O Coringa foi até o quarto, e pegou o notebook de Bruce. Ele sabia que tinha senha, mas não importava, era algo óbvio, porque Bruce mantinha pastas escondidas, a senha do notebook era apenas uma ilusão para parecer que as pessoas tinham acesso aos documentos do outro homem. Bruce não era brurro, mas o loiro também não era.
Não demorou muito para que o palhaço conseguisse adentrar em uma das pastas escondidas no aparelho, lá havia muitas coisas, mas nada que ele ainda não soubesse sobre o caso do Contador de Histórias, era a mesma linha de crimes e de acontecimentos. O loiro abriu outra pasta escondida, essa era sobre a busca por Talia. Havia um endereço, os olhos do ex-terrorista estreitaram para isso, principalmente para a descrição de que havia uma babá segurança e uma criança na casa. Não haviam muitas informações adicionais, apenas descrição.
O que Bruce estava escondendo dele ? Não havia nenhuma hipótese anotada no notebook, o que era estranho, Bruce gostava de escrever as coisas que ele supunha, era sua forma de trabalhar. O loiro ficou em silêncio por um momento apenas olhando para a tela e para a descrição que não o ajudava em nada. A única coisa verdadeiramente útil era o endereço. Mas ele não precisava esquentar com isso, não, Edward cuidaria disso, sae tinha alguma coisa sobre Talia que Bruce estava escondendo do ex-terrorista, o Coringa sabia que Edward descobriria.
O ex-terrorista rapidamente abriu a caixa de pesquisa da internet e entrou no site do The Gotham Times. Ele rapidamente encontrou a matéria, ela estava como destaque. O loiro leu por um momento, não havia nenhuma menção de nada que fosse realmente perigoso para ele, ou que poderia acabar virando uma ponte de chegada até ele. O que o ex-terrorista não conseguia entender era como a polícia chegou no contêiner, não haviam pistas da sua localização. Alguma coisa estava cheirando mal.
As únicas pessoas que o loiro tinha conhecimento de que sabiam onde estava o contêiner eram ele e Andy. O palhaço considerou por um momento, mas logo descartou a ideia. Andy não contaria nada. Então, se não foi Andy quem foi ? Havia mais alguém que sabia ? Ele sentiu sua paranóia acender e tentou suprimi-la para baixo. Não haviam outras pessoas que sabiam, era óbvio. O Coringa não tinha contado, então só sobrava o ex-psiquiatra. No entanto, o loiro não via o intuito. Se Andy tivesse a intenção de contar já teria dito a muito tempo, então porque agora ? Porque não antes ?
O palhaço esfregou o rosto com as mãos, irritado. Alguém os havia guiado até lá, como um cão farejador segue um lenço sujo.
-Você abriu a boca, seu filho da puta desgraçado - rosnou o loiro baixinho entre os dentes - você quer foder com a minha vida.
O ex-terrorista pensou por um momento em silêncio, a matéria foi publicada, não havia formas divulgadas que pudesse chegar até ele. No entanto, o loiro sabia que era uma boa ideia monitorar Chuck e sua equipe, ele não podia deixar que alguma informação que poderia comprometê-lo chegar perto de Bruce. O ex-terrorista pensou em quem iria precisar matar e estranhamente não sorriu com isso, ele estava despido de sua máscara de palhaço, só vazava mania mal reprimida. Não gostava de se sentir acuado.
Ele fechou o notebook com força, o estalo da tampa soando alto demais no quarto silencioso. Bud ergueu a cabeça de novo, atento, mas não se mexeu. O Coringa ficou parado, encarando o aparelho fechado como se fosse um inimigo que precisasse ser destruído.
O loiro respirou fundo, as mãos ainda espalmadas sobre a tampa do notebook. O peito subia e descia pesado, como se contivesse algo à beira do estouro. A cabeça latejava num ritmo próprio, acelerado, febril. Ele precisava de respostas antes que as perguntas o devorassem. Talvez nunca ligassem o nome dele ao contêiner de 2006, mas ele não poderia arriscar. Por um momento ele pensou no que Bruce diria se descobrisse.
Não era como se o Coringa pudesse realmente explicar para o ex-bilionário, ele era um sociopata, não é como se ele sentisse empatia pelas pessoas, ou pudesse se sentir culpado por ter matado aquelas crianças no contêiner. O loiro tentou puxar do fundo do peito alguma coisa, qualquer tipo de sentimento de remorso ligada aquela memória, mas não existia nenhuma.
O Coringa ficou ali, o notebook fechado debaixo das mãos, o peso daquela noite de anos atrás escorrendo por entre os dedos como poeira que não desgruda. Ele se lembrava. Não do cheiro, nem dos sons, mas dos olhos. Os olhos do garoto que tentou fugir do contêiner. Porque o adolescente correu. Correu rápido até demais para o estado miserável que devia estar, mas o loiro o alcançou.
O loiro o matou, o estrangulou no chão sujo de lama e ficou olhando. O garoto lutava, os olhos arregalados, os braços fracos tentando empurrá-lo. E ele ficou olhando, só olhando
Porque nos olhos do adolescente, refletido nas pupilas dilatadas, o Coringa viu a si mesmo. Não o que era agora, mas o que tinha sido. Um rato de porão, um produto barato do tráfico de gente, um menino que nunca devia ter crescido. Era como ter matado uma versão que ficou pra trás.
As outras crianças no contêiner... ele matou todas. Não lembrava dos rostos, não sabia se choraram, se pediram por socorro. Não importava. Eram todas como ele, eram uma versão distorcida. Verões que dessa vez, não teriam a chance de crescer, e ele não sabia se isso era um favor distorcido. No fundo, ele não sabia porque fez aquilo, talvez porque sabia que não poderia ajudá-las, nem se quisesse, nem se ele se importasse com outras pessoas.
O Coringa ficou ali, afundado no próprio peso, o olhar perdido em nada. As imagens vinham esparsas, mas nítidas demais para serem ignoradas. As mãos sujas de sangue, o cheiro de metal no ar, os olhos do garoto, que perderam o brilho aos poucos até não restar nada além do vazio. Ele não matou por prazer. Não como costumava fazer. Ele matou porque não sabia o que fazer com aquilo.
Se havia nele alguma coisa parecida com culpa, era um sentimento tão fraco que se dissolvia assim que surgia. Ele tinha que ter terminado aquele capítulo da própria história. E terminou com sangue, porque era a única língua que ele sabia falar.
O loiro fechou os olhos por um instante. O que Bruce faria se descobrisse? Bruce não entenderia. Se o moreno descobrisse... não haveria retorno, não haveria explicação. Porque Bruce sempre quis salvar, ele sempre tentou, pateticamente, remendar o mundo com as mãos. O loiro apertou os olhos com força, os dentes cerrados em um impulso silencioso de raiva ou de defesa, ele mesmo não sabia. Era ridículo perder tempo se perguntando o que Bruce entenderia ou não.
O Coringa respirou fundo e abriu os olhos, o peso no peito transformando-se em outra coisa: paranoia, sobrevivência. Ele não podia deixar que essa memória saísse do lugar onde ele a enfiou. Nem Chuck, nem Bruce, nem ninguém podia saber o que ele havia enterrado ali.
O loiro se levantou devagar, com as pernas formigando de tensão acumulada. Bud o seguiu com o olhar, o focinho descansando sobre as patas. O palhaço sorriu de lado antes de murmurar em um tom conspiratório:
-O que foi, hein? Quer me julgar também?
Bud apenas piscou devagar, indiferente ao veneno nas palavras do dono. O Coringa continuou sorrindo, um sorriso torto, de canto de boca, o tipo de sorriso que mais parecia um espasmo do que alegria.
-Claro que não - murmurou sozinho, andando de volta para a cozinha - você é um cachorro, e cachorros não julgam ninguém, só segue quem os alimenta.
O louco pegou na geladeira uma vodka barata e tomou um gole limpo sem nem fazer uma careta. O cérebro gritava em todas as direções. Ele precisava vigiar Chuck. Precisava saber o que Bruce estava escondendo. Precisava, talvez, conversar com Andy... mesmo que só para verificar se o ex-psiquiatra não estava finalmente jogando contra ele.
O loiro apoiou o quadril na bancada, encarando a garrafa como se ela fosse lhe dar alguma resposta
-Eu sei que é cedo para beber, não me julgue - disse o ex-terrorista desviando seu olhar para o cachorro, antes de lamber o canto dos lábios - aliás, se eu tiver que cortar algumas cabeças pra manter essa merda de história enterrada... acho que dá pra dizer que é terapia, não é?
O cachorro não respondeu. Só um silêncio espesso, velho, úmido como o cheiro do contêiner na memória dele. O Coringa virou mas um gole da garrafa e sorriu. Dessa vez o sorriso foi cruel.
-Eu não vou revisitar essa história Buddie - disse o ex-terrorista, como se o cachorro pudesse respondê-lo - ninguém me põe para lembrar dessa merda de novo, nem vou deixar tentarem.
O loiro ficou mais um tempo ali, sentindo o álcool escorrer quente pela garganta, queimando só o suficiente para lembrá-lo de que ainda estava acordado, ainda estava presente. Mas a cabeça continuava em outro lugar. As mãos dele coçavam, o tipo de coceira que não se alivia com água ou álcool, era um pedido violência.
Bud resmungou baixo, se mexendo no chão, desconfortável. O Coringa o observou de soslaio, a mandíbula travada.
-Não torce o focinho pra mim - murmurou o louco antes de passar a língua no canto dos lábios - eu pensei que tivéssemos passado dessa fase e fossemos amigos agora, você ainda não me perdoou pelo agente Martin ?
O cachorro apenas repousou a cabeça de novo entre as patas, como quem decide que não vale o esforço discutir com um louco.
-É, foi o que pensei - o Coringa respondeu para o silêncio, girando a tampa da garrafa de vodka entre os dedos, o som do plástico raspando no vidro era uma trilha pequena, mas constante - ninguém perdoa ninguém de verdade, não é? Mas ele era um idiota, eu sou um dono muito mehor, não acha ?
O palhaço deixou a pergunta pendurada no ar, como quem sabe que não vai receber resposta, mas gosta de ouvir o próprio eco. Ele encarava Bud, o focinho preto e úmido, os olhos semicerrados, indiferente. O palhaço balançou a cabeça devagar, o sorriso enviesado, um canto da boca levantado como quem finge estar convencido.
-Eu sabia que você concordava comigo - sussurrou, antes de dar mais um gole e fechar a garrafa com um estalo seco.
A mão dele coçava de novo, mas não era ansiedade. Era antecipação. Já fazia tempo que não cortava ninguém. E no fundo... talvez ele estivesse precisando.
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Bruce chegou até a delegacia e entrou com o passo pesado, a camisa de linho encharcada da chuva que caiu em cima de si no momento em que deixou o carro. O ambiente carregava o mesmo cheiro de café frio e papel úmido, misturado ao ranço de azedo que todo prédio velho exalava. Ele atravessou o saguão sem cumprimentar ninguém, os olhos baixos, a mandíbula travada.
Encontrou Chuck em sua sala, encostado em uma pilha de pastas, o rosto marcado pelo cansaço de quem não dormia direito há dias. O tenente ergueu o olhar ao ver Bruce se aproximando.
-Eu estava esperando que você aparecesse - disse Chuck, direto, a voz arranhada.
-Eu quero respostas, Grayson está sendo caçado por causa dessa merda da investigação - cortou Bruce, sem rodeios - Quem vazou o nome dele?
Chuck franziu a testa, massageando o canto dos olhos.
-Ele te ligou também ? - perguntou o tenente em um tom cansado.
-Espera, ele te ligou ? - se indignou o moreno - ele te ligou e você não mandou ninguém ajudá-lo?
-Estou avaliando as possibilidades, Wayne - respondeu o tenente em um tom seco - não dá para simplesmente fazer as coisas sem pensar nas consequências.
O silêncio ficou pesado entre eles por um segundo. Bruce cruzou os braços.
-E qual o seu plano agora? Ficar esperando que o garoto seja abatido igual um rato para ver se alguém aparece para limpar o serviço?
Chuck soltou um suspiro pesado, como quem já esperava aquele confronto.
-A gente precisa de uma isca, e o rapaz já está exposto se tentarmos recolher ele agora, os caras somem de novo - falou o tenente, seu tom endurecendo - eu preciso segui-los, você sabe que estou certo.
-Isso não é um plano - a voz de Bruce era um murro - ele não é um policial, ele não tem treinamento para sobreviver a isso.
Chuck encarou Bruce com o cansaço de quem já perdeu muito.
-Eu estou sem opções, a delegacia tá podre por dentro - rosnou Chuck - você quer que eu confie em quem? Nos meus homens? Castro? Eu não sei mais quem tá do meu lado, porque posso mandar alguém e talvez eles matem o Grayson.
O silêncio se estabeleceu por um momento, cortante, duro, incômodo. Quem o quebrou foi o ex-bilionário, seu maxilar trincado:
-Quem vazou o nome dele ?
Chuck respirou fundo, desviando o olhar por um momento, como se as palavras pesassem mais do que deveria.
-Foi a Sarah.
Bruce franziu o cenho, a descrença escorrendo pela expressão.
-Sarah? - repetiu com um tom de indignação contida - você está me dizendo que a Sarah vazou o nome do Grayson?
Chuck assentiu suspirando, seu rosto era grave.
-Eu também não queria acreditar - admitiu o tenente - acredite, isso foi uma rasteira para mim.
-E onde ela está ? - perguntou o moreno
-Está sob custódia - suspirou o tenente - mas eu não acho que ela saiba mais do que já me disse, o Contador de Histórias a estava chantageando depois da morte do agente Taylor, é uma longa história.
-Como você descobriu onde estava o contêiner de 2006? Porque você não me consultou antes de pedir para o Grayson publicar a matéria, eu teria te dito que era uma má ideia - disse o moreno - porque não pensou em simplesmente me avisar do que estava acontecendo ?
-Na época me parecia uma boa ideia - admitiu o tenente - só notei que fiz alguma coisa errada quando o Grayson me ligou mais cedo, dizendo que tinha certeza que estava sendo seguido, dizendo que possivelmente alguém dentro da minha equipe tinha soltado a informação.
-Como descobriu sobre a Sarah ? - perguntou o ex-bilionário.
-Somente eu e ela sabíamos do envolvimento do Richard Grayson - respondeu o tenente com pesar - mesmo assim, eu não queria acreditar, só me caiu a ficha quando li um artigo da The Gotham Times, dizendo que até mesmo a equipe deles, que conhece todas as formas de entrar pelo site do jornal, sabiam quem tinha invadido o sistema, então eu descartei a ideia de que alguém conseguiu encontrar rastros do Grayson.
Bruce ficou em silêncio por alguns segundos, o maxilar trincado, antes de falar:
-Você me deixou de fora, e colocou uma pessoa que não tinha nada haver em perigo.
-Estava tentando fazer a coisa certa - se defendeu o tenente - eu não tinha como saber que isso era uma armadilha do Contador de Histórias.
-Armadilha ? Como assim ? - perguntou o ex-bilionário franzindo o cenho.
-O Contador de Histórias queria que eu fizesse isso, ele sabia o que eu faria - admitiu o tenente - ele quer usar o rapaz como isca para desmascarar a organização.
-E você vai deixar isso acontecer? - rosnou o moreno - vai fazer o que ele quer que você faça ?
-Eu não tenho outra escolha, pode ser a nossa única chance real de pegar esses caras, o Grayson sabia dos riscos quando começou a investigar por conta própria.
Bruce se aproximou um passo, o olhar sombrio, o corpo inteiro tensionado.
-Ele é um garoto, Chuck - a voz veio baixa, grave, um trovão contido.
Chuck sustentou o olhar, mas havia um peso diferente ali, uma hesitação que não se via antes. Mesmo exausto, ele sabia que Bruce estava certo, mas estava afundado demais para admitir.
-Você vai arriscar ? - Bruce apertou o punho, a voz afiada - arriscar que ele vire mais um cadáver só porque você não sabe em quem confiar? Você me conhece, eu resolvo isso sem depender dos seus homens.
Chuck passou a mão pelo rosto, cansado antes de dizer:
-E o que você sugere, hein? Vai sair sozinho pelas ruas como o maldito Batman de novo? Eu sei que o que eu fiz foi arriscado, eu sei, mas ainda estou analisando o que pode ser feito sem comprometer a investigação.
Bruce deu um passo à frente, a raiva transbordando na postura.
-Então vê isso logo e conserta, porque eu vou tirar o garoto de lá e você vai me dizer tudo que sabe, cada movimento, cada suspeita, eu vou resolver essa merda sem que o nome dele acabe num necrotério.
-Você não pode fazer isso sozinho - Chuck rebateu, o tom grave - se você mexer com esses caras sem plano, o Grayson morre de qualquer jeito.
-Então me dê o que eu preciso - rosnou Bruce - ou eu vou te deixar com o peso de mais um cadáver nas costas.
-Eu estou tentando - retrucou o tenente - mas no momento não tenho como saber quais policiais são confiáveis, se tentarmos atrapalhar e sair fora do script do Contador de Histórias ele pode matar o Grayson para nos mandar uma mensagem.
-Como você descobriu a localização do contêiner ? - perguntou o moreno com um suspiro.
-A primeira charada - disse o tenente - “ Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?" A resposta é o fundo do rio.
-Mas como você associou que se tratava do contêiner e não de outra coisa ? E como descobriu a resposta ? - perguntou o moreno, a imagem dele mesmo com a máscara do morcego, jogando o corpo do agente Martin no rio era vivida em sua mente.
-Matthew Cole - falou o tenente - depois que ele foi preso eu tive uma conversa com ele, o cara fala em enigmas, mas soltou mais do que parecia estar confortável.
-Como Andy saberia disso ? - perguntou o moreno, seu cenho franzido.
-Eu não sei - disse o tenente - mas, ele trabalhou para o Contador de Histórias antes de ser preso no ano passado, pode ser por isso, mas não tenho certeza, e o cara não falou mais nada, você sabe como é, ele é um cara difícil.
Bruce apertou os olhos por um instante, a cabeça fervilhando. Cada peça parecia um pedaço de um quebra-cabeça que não se encaixava direito.
-Andy não solta nada de graça - murmurou o moreno - se ele deixou escapar alguma coisa foi de propósito.
-Com que intuito ? - perguntou o tenente - o que ele ganharia com isso ?
-Eu não sei - admitiu o ex-bilionário, antes de endurecer a voz - mas eu preciso ver Sarah, se ela sabe mais do que está dizendo eu vou descobrir.
-Eu sabia que você diria isso - falou o tenente - mas é como eu disse, não acho que ela tenha mais para contar, ela foi feita de marionete, mais uma peça no jogo desse cara.
-Isso nós veremos.
-Não sei se o comissário Castro vai deixar você falar com ela, Wayne - falou Chuck - infelizmente as coisas ficaram complicadas por aqui, e o comissário já sabe que Sarah foi posta em custódia por vazar informações de uma operação.
-Vou vir como Batman - entoou o ex-bilionário - preciso de respostas, e talvez ela saiba de alguma coisa que podemos usar para ajudar o Grayson a sair dessa.
-Eu não acho que ela saiba de mais nada - suspirou o tenente - o agente Taylor era um infiltrado antes da morte dele, ela ficou encarregada de apenas terminar o que ele estava fazendo.
-Dois membros da sua equipe - observou o moreno - dois membros da sua equipe de confiança.
-Não sei mais em quem posso confiar - disse o tenente - não posso confiar em Castro para pedir proteção policial para o Richard Grayson, e nem confio nos policiais que farão essa proteção, sinto que estou trabalhando sozinho.
Bruce permaneceu em silêncio por um instante. O peso daquela frase "estou trabalhando sozinho" reverberou fundo. Ele sabia o que era carregar um fardo assim. O que era andar pelas sombras sentindo o chão ceder a cada passo porque não havia rede de segurança, não havia aliados de verdade.
Ele conhecia esse caminho, porque trilhou sozinho por tempo demais. Era um beco escuro de desconfiança, onde toda mão estendida parecia uma ameaça disfarçada. Bruce olhou para Chuck e enxergou um homem à beira do colapso, mas não pôde sentir pena. Ele se lembrava de Alfred, de todas as vezes que o ex-mordomo tentou alertá-lo de que, um dia, a solidão o devoraria.
-Você chegou a ler a matéria que foi escrita pelo Grayson ? - perguntou o tenente no meio do silêncio - não publicamos isso, mas, encontramos DNA nas unhas de algumas das crianças mortas.
-Crianças mortas ? - indagou o moreno franzindo o cenho.
-Você não leu então - constatou Chuck com um suspiro - pelo jeito você tem vivido de uma bolha separada do restante da cidade.
-Eu estava procurando por Talia - se defendeu o moreno - eu estava, e ainda estou, tentando ajudar Jason a encontrar a mãe.
-Enfim - suspirou o tenente - encontramos DNA nas unhas das crianças.
-E de quem é ? - perguntou o ex-bilionário.
-Ainda não sabemos - disse o tenente - o DNA já estava parcialmente degradado e está exigindo um trabalho muito minucioso, mas acredito que nos próximos dias teremos uma resposta.
O silêncio pairou como poeira pesada entre eles. Bruce virou de costas, pronto para ir. Antes de sair, deixou a voz firme no ar:
-Todos nós pensamos estar sozinhos, e talvez realmente estejamos, mas não deixe de me avisar das coisas que estão acontecendo, eu não sou seu inimigo.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui, comentem para me deixar feliz :)
Chapter 41: The Gotham We Have (Parte 41)
Notes:
Gente acho que nunca estive em um ritmo tão frenético, sério. Mas enfim, aqui vai o capítulo.
Para os não falantes de português, tem uma imagem com a teia de acontecimentos até o momento da investigação, ela está em português, mas através desse site ( https://www.imagetotext.io/br/traduzir-imagem ) vocês conseguem traduzir a imagem normalmente, só precisam baixar ela aqui. Qualquer problema entrem em contato comigo :)
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O sol tímido de Gotham filtrava pelas nuvens pesadas naquela manhã de segunda-feira. Eras o mais perto de um dia claro que a cidade conhecia. O Coringa chegou com o passo arrastado, as mãos nos bolsos do moletom, o cabelo loiro desgrenhado, olhos semi cerrados pela claridade. Edward Nashton já o esperava sentado num banco de praça, o rosto sério mas que não escondia parte da sua irritação.
-Você não sabe o que é um maldito relógio, é isso? - Edward disparou sem levantar o rosto - eu tenho um emprego, não posso ficar brincando de espera ou vou acabar dormindo numa caixa de papelão.
O Coringa riu baixo, a cabeça tombando de lado, o sorriso cortando o rosto.
-Relaxa, Eddie... eu precisei deixar meu "filho" na escola - zombou o loiro fazendo aspas no ar, um brilho cínico nos olhos - adolescentes não podem vagar sozinhos por aí, você sabe como é, podem acabar indo para o mal caminho.
-Nossa, até parece que você se preocupa de verdade com outra pessoa - zombou Edward.
-Você também não liga para nada que não seja o seu ego ou a sua própria bunda, Eddie - disse o loiro passando a língua no canto dos lábios - nós não somos tão diferentes.
Edward bufou, mas não rebateu. O silêncio dos dois era confortável à sua maneira, um sociopata e um narcisista conversando, ambos com um passado de terrorismo homicida e violento nas costas.
-Você descobriu o que eu pedi? - perguntou o loiro, quebrando o momento.
-Descobri - Nashton respondeu, sem cerimônias - e você não vai gostar.
Ele retirou um envelope do bolso interno do casaco e entregou ao Coringa dizendo:
-Talia tem um filho, mais ou menos dois anos de idade.
-Dois anos ? - o palhaço franziu o cenho e sua expressão ganhou contornos mais sérios.
-Você é inteligente o suficiente para juntar dois mais dois - bufou o ex-Charada - você sabe com quem Talia teve um caso relâmpago três anos atrás.
O Coringa ficou em silêncio por um momento, o peso da informação girando dentro da cabeça dele. Ele encarava o envelope, os olhos semicerrados, o maxilar apertado como se mastigasse uma ideia amarga.
-Um filho... - repetiu baixo, quase zombando de si mesmo - Brucie pode ter um filho.
Edward ajeitou os óculos, impaciente, antes de entoar:
-Você parece meio chocado, não sei que diferença isso faz.
-Eu não ligo que ele tenha um filho - murmurou o loiro, passando a língua no canto da boca - é só que... ele não contou para mim.
-E você está mesmo surpreso? - Edward bufou, zombando - Wayne sempre achou que era o mais esperto da sala, ele vive escondendo coisas de todo mundo, até de você e honestamente, com o seu histórico, quem pode culpá-lo?
O palhaço soltou um riso seco antes de entoar em um tom sarcástico:
-Obrigado pelo apoio, Eddie.
-Eu não estou aqui pra apoiar ninguém - Edward rebateu de pronto, levantando o rosto com o usual - você está remoendo porque ele não confia em você, mas não há surpresa nenhuma nisso, a maioria das pessoas ainda se lembra do tipo de lixo que você é, que nós somos, e com o Wayne não é diferente.
O palhaço não sabia o que sentia. Não era raiva, não era inveja. Era algo que latejava fundo, confuso, como uma chave que girava por dentro e destrancava portas que ele nem sabia que estavam fechadas. Brucie possivelmente tinha um filho, e se tinha ele não contou. A quanto tempo o moreno sabia ? Bruce sabia desde o começo? Possivelmente não.
O loiro continuou em silêncio, suas engrenagens girando em sua cabeça. Bruce possivelmente soube recentemente, isso explicava o comportamento estranho e porque o moreno não o deixou saber sobre o caso de Tália. O palhaço mastigava seco a falta de confiança. Ajudar Jason uma ova, isso foi somente um pretexto para procurar por Tália, talvez Bruce já soubesse em algum ponto, talvez... talvez ele soubesse ou desconfiasse. Não, as peças não se encaixavam, tinha alguma coisa aí.
O louco foi retirado de seus pensamentos pela voz de Edward:
-Você parece maníaco, é meio desconfortável olhar para você quando você não está rindo e zombando das coisas.
O palhaço virou o rosto na direção do ex-Charada por um momento, sua expressão ainda era fechada. Havia algo que emanava perigo no palhaço, algo que era frio como aço. Edward já tinha visto o loiro sem seus contornos divertidos. Nunca foi uma visão agradável. Era o momento em que o palhaço simplesmente perdia sua teatralidade, o momento em que ele simplesmente mostrava sua verdadeira face. A face que era puramente um sociopata maníaco.
-Eu estou pensando, Eddie - murmurou o loiro, baixo - e você devia saber que não é bom me interromper quando eu estou pensando.
Nashton engoliu seco e ajeitou os óculos, mas manteve a postura, embora desconfortável. Sabia que aquela expressão do Coringa não era um jogo, era o rosto que o palhaço fazia quando algo, lá dentro o cutucava. Por mais que conhecesse o loiro, por mais que ambos já tivessem atravessado a linha entre a barbárie e a civilidade, aquele olhar... aquele olhar sem máscara, sem sorriso, era um lembrete claro de quem ele realmente era. E isso era bem mais assustador.
-Não me olhe assim - advertiu o ex-Charada, a voz levemente mais seca - não sou eu quem mentiu para você.
O Coringa passou a mão pelo rosto, o moletom roçando nos dedos. Ele respirou fundo, como quem tenta trancar algo antes que transborde. Edward tinha razão, não foi ele quem mentiu.
Eles ficaram em silêncio. O parque ao redor seguia com o som distante de um trânsito, um cachorro latindo ao longe, o rumor abafado de uma cidade que nunca parava. Mas para o Coringa, tudo soava como um chiado de fundo. Ele só conseguia ouvir o próprio pensamento martelando no fundo de seu crânio. A mania vazava como um líquido fétido de seus poros, sua mente fervilhava de impulsos homicidas, elas giravam como suco de fruta em um liquidificador de.
Edward apenas olhava para os lados, desconfortável. Ele e o Coringa nunca foram de fato amigos, estava mais para conhecidos que não tinham atritos. Eles conseguiam ter conversas minimamente civilizadas, mas não era como se eles conversassem muito. O Coringa não era o tipo de pessoa de quem você conseguia ser amigo.
Quando Nashton entrou em Arkham, achou que iria ser comido vivo. Ele nunca foi bom em socializar com as pessoas, nunca foi bom em conversar com os outros. Na verdade, ele achava uma grande perda de tempo, uma vez que a maioria das pessoas são como uma porta, e ele não tem paciência para elas. Era natural que ele seria intimidado, Edward era um cara estranho, e não era um atleta, não saberia sair no braço com alguém.
Mas aí o Coringa apareceu, não para ajudá-lo, não de um jeito intencional, mas o palhaço foi um peça fundamental para que ele não fosse comido vivo naquele inferno. Porque o Coringa, mesmo não sendo exatamente um exímio lutador corpo a corpo, era um cara intimidador por si só, e facilmente tomado por impulsos agressivos.
O cara que estava implicando com Edward acabou, sem querer, derrubando o Coringa em uma bagunça que se instaurou no refeitório. O loiro abriu o braço de um cara com uma faca improvisada. Lesões dessa natureza não era o tipo de coisa que as pessoas perseguiam em Arkham. Digamos que, bem, os internos, o deixaram em paz depois disso.
Edward não esqueceu aquele dia. Não porque o Coringa o salvou, mas porque ali ele entendeu o que fazia aquele lunático ser tão temido. Não era só o prazer do sangue ou o sorriso rasgado no rosto, era a ausência completa de propósito na violência. O Coringa não esfaqueou o cara porque queria proteger Edward. Ele o fez porque estava irritado, porque podia, porque o tédio o estava corroendo e aquilo foi apenas uma forma dele extravasar sua mania mal contida.
Estranhamente o loiro nunca tentou manipular Edward, ou entrar em sua cabeça. Talvez porque o ex-terrorista visse em Nashton alguém inteligente o suficiente para não se deixar cair em suas provocações. O que eles tinham estava longe de ser uma amizade, era mas uma convivência entre predadores que se reconhecem.
Edward sabia que aquele vínculo torto era o mais próximo que alguém como o Coringa chegava de uma relação estável, for a claro, Harley. Talvez porque ninguém mais era interessante ou inteligente o bastante para valer o tempo.
O palhaço enfim se mexeu, os ombros relaxando um pouco, mas o olhar ainda afundado em alguma coisa que só ele via.
-E agora? - Edward perguntou, o tom cauteloso - vai cobrar ele?
O Coringa sorriu de canto, um sorriso vazio que escorria aquela mania podre.
-Eu não sei ainda, Eddie - murmurou o louco antes de passar a língua no canto dos lábios - eu quero ouvir da boca dele, quero olhar nos olhos de Brucie, porque se ele mentir, se ele mentir pra mim na minha cara… vou saber que essa relação estava condenada desde o começo.
Edward bufou, levantando do banco, estalando o pescoço e olhando para os lados.
-Só não explode tudo antes do meio-dia - disse Nashton em um tom neutro, mas levemente cansado - eu tenho reunião com o agente da minha condicional, então me deixe fora disso, eu preciso manter meu nome longe de porcarias para continuar aqui fora e não naquele maldito manicombio.
O Coringa riu baixo, um som sem alegria, quase um ruído preso na garganta. O olhar ainda afundado em algum ponto que só ele enxergava.
-Relaxe, Eddie... - murmurou, virando o rosto para o céu opaco de Gotham - se eu for explodir alguma coisa, vai ser só a cabeça de alguém.
Edward não respondeu. Só ajeitou o casaco, preparando-se para ir embora.
-Tente não fazer algo estúpido - disse por fim, sem olhar para trás.
O palhaço não negou, não confirmou. Apenas permaneceu ali, os olhos semiabertos, o envelope no colo como se pesasse mais do que devia. Ele pensava em Bruce, no peso da omissão. Por um momento a imagem de Jack acendeu em sua cabeça, como uma fagulha no meio da escuridão. Ele sentia que foi traído, de novo. Bruce não confiava nele para contar algo tão importante.
A lembrança da morte de Jack perfurava sua consciência em flashes rápidos como um raio. Sua mente estava muito barulhenta agora. Ele sentia o peso do martelo em suas mãos, o sangue do outro homem espirrando em seu rosto, a visão da cabeça sendo golpeada, de novo e de novo até virar carne moída. Jack mentiu para ele, e agora Bruce.
O pensamento reverberava como um eco sujo na cabeça do Coringa. Jack mentiu, Bruce mentiu. Todo mundo sempre mentia para ele. Alguém sempre escondia alguma coisa. Como Jack escondeu o jogo na guerra do Iraque e o entregou para ser torturado sob pretexto de ser um infiltrado. Jack sabia que ele não era. Jack tentou enganá-lo até o fim, até depois que ele fugiu dos torturadores depois de meses. Jack ainda mentia para ele, ainda tentava mentir mesmo depois de tudo.
O Coringa apertou o envelope entre os dedos, o papel se amassando sob o aperto. Ele podia rasgar aquilo ali mesmo, fingir que nada aconteceu. Mas não. O palhaço queria olhar Bruce nos olhos, queria ver o momento exato em que o moreno tentaria contornar a verdade ou, pior, suavizá-la. Queria ver o rosto dele quando a máscara de confiança desabasse.
Era isso o que o Coringa queria mais que tudo, o colapso. A confirmação de que mesmo Bruce, mesmo o homem que se deitou ao lado dele todas as noites, ainda mentia para ele. Ainda tinha medo do que ele podia fazer. O palhaço não gostava de ser passado para trás.
O palhaço se recostou no banco, os olhos fixos no chão como se ele pudesse cavar um buraco direto para o passado. As imagens de Jack misturavam-se às de Bruce. Os rostos diferentes, mas o mesmo olhar, aquele brilho de quem acha que pode esconder alguma coisa. Que pode mentir.
O loiro respirou fundo, o moletom pesando sobre os ombros magros. Ele sabia o que precisava fazer. Não importava o que Bruce tivesse a dizer, se confessasse ou mentisse, o Coringa ia saber. Ia ver no jeito como o moreno desviaria os olhos, na tensão da mandíbula, nos silêncios entre as frases.
E então decidiria o que fazer. Mas uma coisa era certa, se Bruce mentisse, ele não ia perdoar. Bruce prometeu, ele disse naquele dia no ano passado, em algum andar de Blackgate onde o palhaço foi acertar suas contas com Andy.
“Talvez seja isso que acontece quando uma força que não pode ser parada se choca contra um objeto que não pode ser movido, talvez eles se destruam porque não são indestrutíveis, ou talvez alguém precise ceder.”
Bruce não era diferente, ele era tão mentiroso quanto sempre foi. O Coringa estava certo sobre o Batman, ele não poderia mudar, ele era um ser imutável e não o amava desde o começo, amá-lo significava mudar. O Batman não podia mudar.
Os flashes no ano passado batiam em sua mente como uma tempestade de granizo em um telhado fraco.
“-Você não pode mudar, você está mentindo para si mesmo, ou está mentindo para mim, de qualquer forma, está mentindo.”
“-Talvez você esteja certo sobre o Batman, mas não sobre mim…não sobre Bruce, talvez seja isso que acontece quando uma força que não pode ser parada se choca contra um objeto que não pode ser movido, talvez eles se destruam porque não são indestrutíveis, ou talvez alguém precise ceder.”
O Coringa respirou fundo, o peito inflando devagar, o som do mundo retornando aos poucos. O trânsito, as buzinas, os passos apressados, o choro de uma criança em algum lugar do parque. Ele manteve os olhos no chão, sentindo o peso de cada frase dita naquela noite em Blackgate. Era engraçado. Bruce tinha prometido ceder. Disse isso com sangue no rosto, o olhar febril de quem queria acreditar no que dizia. Mas agora... agora parecia que tudo não passava de um verniz. Uma camada fina sobre um concreto velho, que rachava no primeiro sinal de pressão.
O palhaço apoiou os cotovelos nos joelhos, o corpo curvado como se o peso do próprio crânio fosse demais. Ele não estava irritado. Estava cansado. Cansado de ciclos, de repetições, de acreditar que alguma coisa podia sair diferente. Bruce era só mais um que escondia, que mentia. Porque ninguém queria encará-lo de verdade. Ninguém nunca quis.
Ele passou a mão pelo cabelo desgrenhado, sentindo o couro cabeludo sensível sob os dedos. Não sabia o que era pior, o fato de Bruce ter escondido ou o fato de que ele mesmo já esperava isso, como quem espera um golpe que vem de olhos fechados.
O envelope estava amassado nas mãos, mas ele não o abriu. Não ainda. Preferia ouvir da boca de Bruce. O loiro sabia que era hipócrita, ele era um mentiroso patológico, mas não suportava se sentir enganado. Não suportava saber que a única pessoa em quem ele confiava não confiava nele. Que quem ele amava estava escondendo o jogo dele. Como Jack. E Jack estava morto.
O pensamento atravessou a cabeça do Coringa como um prego cravado a sangue frio. Jack estava morto porque tentou enganá-lo, porque achou que podia mentir para ele, porque fingiu que se importava com ele somente para depois entregá-lo para ser torturado e morto. Jack era um mentiroso. Bruce era um mentiroso.
“Se você morresse eu ficaria tão triste, Jay”
Porque alguém que dizia que o amava o machucaria ? Ele matou Jack, estourou a cabeça dele com um martelo. Mas não sentiu satisfação nisso, não de verdade, porque o palhaço o amava. Ainda o ama. Mesmo que a pessoa que ele gostava fosse apenas uma máscara, um personagem. Porque no fim, Jack não era real. Jack era uma mentira, uma mentira bem contada.
Matar Jack foi o mais próximo da tristeza que ele sentiu de verdade.
O loiro suspirou depois de um momento e passou a mão pelo rosto, sentindo as cicatrizes grossas em suas bochechas. As cicatrizes que ele mesmo provocou naquele dia, que ele mesmo cortou com dois cacos de vidro. As cicatrizes latejava em sua memória, como se o vidro ainda estivesse ali, enterrado sob a carne. O loiro passou a língua no canto dos lábios rapidamente em um tique nervoso compulsivo.
O loiro se levantou devagar, o envelope amassado na mão fechada. As juntas dos dedos estalando pelo aperto. Ele não sabia como iria reagir quando visse o rosto do moreno. Parte dele queria esmagar o maxilar de Bruce com um peso de porta e arrancar cada verdade pela boca como quem arranca dentes com alicate. Outra parte só queria ouvi-lo. Só queria que ele dissesse que não era verdade, que estava enganado, que tudo aquilo era um engano. Mesmo sabendo que não era. Porque o problema não era o filho, era Bruce ter escondido isso dele.
O Coringa se ajeitou no moletom, o vento frio de Gotham batendo em seu rosto como um tapa úmido. Ele começou a andar, o passo lento mas constante. O caminho para casa parecia mais longo, como se o mundo pesasse o triplo. Cada passo era um compasso de raiva contida, de mágoa travada entre os dentes.
Ele tinha diversas formas de matar Bruce, ele gostava de se considerar criativo. Mas matar Bruce apenas não parecia satisfatório, ele podia matar as outras pessoas que o moreno gostava, como Alfred, Jason, Rachel…Duela ? Aposto que Bruce iria sofrer se ele matasse um bebê. O loiro quase riu com esse pensamento, o pensamento cruel serpenteava em sua mente como uma cobra venenosa.
Sua mente trabalhava rápido pensando em horários, formas e nas coisas que tinha em casa. Não seria tão difícil, ele somente precisava drogá-los. Drogar Bruce e Jason seria fácil, ele morava com eles. Ele poderia facilmente chegar até Alfred, e podia ligar para Rachel sob algum pretexto envolvendo Bruce. Não seria difícil. Mas por onde ele começaria ? Era melhor deixar as crianças por último, então ele começaria pelo ex-mordomo ? Por Rachel ? Não, por Bud. O cachorro seria um bom começo, mas como o mataria ? Afogado ? Cortaria sua cabeça ?
A cabeça do ex-terrorista girava com uma aura maníaca. Depois de um momento, um dos olhos do palhaço tremeu em um pequeno espasmo e ele respirou fundo, como se isso tivesse o tirado de um transe. Ele não podia fazer isso, ele amava Bruce. Ele sabia que depois que a raiva e a mania passasse ele não sentiria nada além daquela névoa de vazio e tristeza surda.
Ele sabia disso porque já tinha passado por isso antes. Depois de Jack, depois da cabeça aberta e da carne triturada, tudo o que restou foi o vazio. Aquele vazio espesso, pesado, que grudava nas costelas e fazia o peito parecer uma caverna sem eco. Matar Bruce não seria diferente.
O Coringa passou a língua pelas cicatrizes, umedeceu a boca seca, os olhos fixos em algum ponto distante da cidade. Ele não queria que Bruce terminasse como Jack. Não queria sentir o vazio, o luto invertido de quem destruiu a única coisa que amava só porque não sabia o que fazer com a dor de ser traído.
O palhaço parou no meio da calçada, o trânsito buzinando ao longe. O envelope rangeram sob seus dedos. Ele respirou fundo, o peito arfando como se estivesse carregando um cadáver nas costas. Porque ele precisava ouvir. Precisava ver Bruce dizer.
Ele caminhou, o moletom encharcado pelo suor frio. A cada passo, as cicatrizes no rosto pareciam queimar como feridas recentes. Porque no fundo, bem lá no fundo, ele torcia para que menos Bruce dissesse alguma coisa que fizesse sentido, que justificasse. Alguma merda melodramática sobre proteção, sobre não querer que ele sofresse. Ele aceitaria isso? Talvez. Talvez não. Talvez o matasse do mesmo jeito, talvez estivesse fadado a matar todas as pessoas que amava.
Mas ele precisava saber. Precisava ver. Precisava ouvir da boca de Bruce se ele era só mais um, mais um como Jack, mais um que usava um rosto bonito para esconder um verme. O Coringa sabia o caminho de casa de cor, mas parecia mais longo. Cada esquina era uma bifurcação mental, voltar ou seguir? Explodir tudo ou escutar? Matar ou apenas olhar nos olhos? Era isso que o enlouquecia, o “ou”. Ele não sabia o que era pior, ser enganado ou perdoar.
O silêncio morno quando ele chegou em casa era previsível. Todo mundo saiu cedo. Bruce no trabalho, Jason na escola, o cachorro largado em algum canto da casa. Ele jogou o envelope na mesa da sala com um baque seco. Caminhou devagar até a cozinha, abriu a geladeira e ficou encarando o interior por longos segundos. Nada ali resolvia o que latejava na cabeça dele.
O loiro foi em direção ao balcão e pegou um martelo daqueles de amassar carne, ficou olhando por um momento antes de guardar e puxar uma faca. Uma faca era melhor, mais satisfatório. Os pensamentos escuros invadiam sua mente como um veneno doce. Sua cabeça zumbia como um inseto incômodo. O louco largou a faca e dentro da gaveta e a fechou com força, sua respiração levemente acelerada. Ele tinha que manter a cabeça acima das vozes. Ele não ia matar Bruce.
Ele estava frustrado, o louco agarrou os próprios braços com força, seu maxilar estava travado. Ele sentia as unhas por cima do moletom que estava usando. Era um momento horrível para ter uma crise psicótica.
Ele inspirou fundo, o peito arfando irregular, os olhos queimando como se a memória estivesse presa atrás das pálpebras. O chão sob seus pés parecia inclinar, o mundo girando levemente de lado. O Coringa rangeu os dentes e fechou os olhos com força.
Ele não queria ter uma crise. Não agora. Não antes de Bruce chegar. Mas o chão parecia tremer, as bordas do mundo começavam a borrar, como uma tela molhada. O barulho do relógio na parede explodia dentro do crânio dele, cada tique-taque um prego entrando em seu ouvido. O Coringa apertou os olhos, forçando o ar para fora do nariz com violência.
As mãos tremiam. A garganta ardia. Ele podia ouvir. Podia ouvir Jack, podia ouvir os gritos, podia ouvir ele mesmo rindo enquanto esmigalhava a cabeça de alguém que dizia que o amava. Ele se jogou contra a parede da sala com força, a nuca batendo com um som seco. O impacto o trouxe de volta por um segundo, um segundo inteiro de silêncio onde só existia o próprio peso respirando com dificuldade. Ele deslizou até o chão.
O palhaço se sentou ali, encostado na parede, as pernas dobradas e o moletom encharcado de suor. A sala estava escura mesmo com a luz do dia entrando pelas frestas da janela. O envelope estava na mesa, intocado.
O loiro iria esperar. Ele não ia fazer nada, somente iria esperar que a porta abrisse e o som das chaves ecoasse pela entrada. E então ele se levantaria, e perguntaria. Só isso.
Só queria que Bruce não mentisse. Ou talvez... fosse tarde demais para isso.
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Jason encarava o quadro, mas não via nada além de rabiscos e manchas de giz. A aula escorria pela cabeça como água por uma telha quebrada. Ele tamborilava o lápis contra o caderno, o olhar perdido na página em branco que ele já havia desistido de preencher.
Ele era o garoto novo. E como sempre, ser o novo era sinônimo de estar sozinho. Ninguém se aproximava, ninguém puxava papo. Ele não sabia se era porque não se misturava ou porque o cheiro de deslocamento impregnava nele como fumaça. Não importava. Ele já tinha se acostumado.
O que ele não conseguia acostumar era com o eco daquela conversa na cozinha. Ele tinha escutado o Coringa, escutado Bruce. Sobre Tália. Bruce sabia onde ela estava e não pretendia contar para ele.
Bruce prometeu. Prometeu que ajudaria a encontrar a mãe dele. Disse isso com toda aquela firmeza de adulto que quer parecer digno de confiança. Mas desde então... nada. Só promessas jogadas como moedas em um poço fundo. E onde estava o Batman? O fodido Batman? O herói que também prometeu? A capa preta, a máscara, tudo conversa. Porque ninguém realmente se importava.
Jason não sabia o que doía mais: a fome de encontrar a mãe biológica ou o medo de que, se encontrasse, fosse só mais uma decepção. Porque parte dele... parte dele queria aceitar o que tinha agora. Queria dizer para si mesmo que era o suficiente. Ele não estava infeliz.
No entanto, havia algo que o puxava para encontrá-la, para pelo menos virar aquela página. Porque ele estava cansado de correr atrás de fantasmas.
Jason apoiou a testa na palma da mão, o cotovelo cravado na mesa dura. Ele queria desistir, queria apagar a busca da cabeça. Fingir que aquilo não importava, que o que ele tinha agora era suficiente.
O professor chamou seu nome e Jason piscou, os olhos ardendo de raiva contida. Não respondeu. Não queria responder. Era só mais uma aula inútil, só mais um rosto que ele nunca veria de novo quando fosse embora. Porque era isso que ele fazia, e ele não ficaria muito tempo por ali.
A sala ficou em silêncio por um momento antes que as vozes baixas da sala ao seu redor recomeçassem, sussurros. Ele era o garoto estranho, o novo, o problemático. Que diferença fazia? Ele pensou em sair dali. Levantar, abandonar a sala, talvez ir até o escritório da escola, dizer que precisava ir embora. Inventar uma desculpa. Mas ele sabia que isso não resolveria nada. Porque o que ele queria mesmo era bater a porta da frente de casa e encarar Bruce. Perguntar na cara dele. Exigir.
E se não respondesse? Jason não sabia o que faria. Talvez fugisse. Talvez fosse atrás sozinho. Ele podia encontrar alguém que soubesse de Tália. E se achasse Tália, talvez achasse a mãe. Mas algo dentro dele o impedia de fazer isso, talvez o medo. Medo de precisar fazer tudo sozinho de novo. Ele estava cansado disso. Ele estava cansado de ser só ele.
Jason apertou o lápis até a madeira ranger entre os dedos. A raiva e o medo embaralhavam tudo por dentro. Ele odiava Bruce naquele momento, odiava o Coringa, odiava o Batman, odiava até a si mesmo por ainda querer uma resposta. Por ainda querer que alguém se importasse o suficiente para contar. Por que Bruce não dizia nada?
Ele estava cansado de andar no escuro, de ser o moleque que não tinha ninguém para dar a mão. Porque no fundo, Jason sabia que queria ser escolhido. Queria que Bruce o escolhesse. Que o Coringa, do jeito doentio e estranho dele, também o escolhesse. Queria alguém que o enxergasse, que dissesse: “eu vou te ajudar”. E não porque era uma obrigação, ou porque era conveniente, mas porque queriam.
Jason respirou fundo, o peito pesado. A sala de aula era só um borrão sem vida. O mundo era sempre assim quando ele pensava nela, a mãe que ele nunca viu, nunca conheceu. Ela tinha um rosto? Um nome? Algum traço que fosse parecido com o dele?
A manhã se arrastava. Jason nem notou quando o sinal tocou indicando o fim daquela aula. O adolescente estava andando no corredor quando ouviu:
-Qual é, garoto novo?
O adolescente estreitou os olhos e olhou na direção da voz depois de um momento. haviam três garotos olhando para ele.
-Estamos juntos em algumas aulas - disse um dos garotos, seu sorriso não era muito amigável - e então, qual é a tua ? Parece muito pensativo.
Jason não respondeu, ele não sabia se os rapazes queriam fazer amizade com ele ou antagonizá-lo. Talvez ainda não soubessem.
-De que parte de Gotham você é ? Você tem um sotaque diferente - perguntou o mesmo garoto.
-Eu sou do interior do Texas - disse Jason, seu tom era seco.
O garoto riu, um riso curto e debochado.
-Texas? - repetiu, trocando olhares com os amigos - ah, então é isso, um caipira perdido na cidade grande.
Jason não respondeu. Só ficou parado, o maxilar travado.
-Ouvi dizer que vocês gostam de transar entre parentes - disse um dos caras - já engravidou sua prima ? Por isso que você fugiu para Gotham ?
Foi quando Jason parou. O peito subia e descia rápido, o sangue já martelando nas têmporas. Ele podia ignorar, podia andar, mas não queria. Não hoje. Não com o estômago cheio de raiva, de frustração, de promessas vazias. Ele girou nos calcanhares e foi pra cima do primeiro que falou, o que zombou do sotaque. Empurrou o garoto com força contra o armário, o barulho ecoando pelo corredor.
-Fala de novo, seu merdinha - cuspiu Jason, o olhar baixo e feroz.
-Calma aí, cara - o garoto tentou rir, empurrando Jason de volta - é só uma brincadeira.
Jason estreitou os olhos para o garoto que ainda tentava rir. O outro adolescente ficou em silêncio por um momento olhando Jason antes de dizer em um tom de deboche:
-Agora olhando mais de parte eu conheço você, você não está ficando com o Bruce Wayne ? Vi ele te buscando outro dia, como se você fosse um bebê que não consegue ir para casa sozinho.
Jason não respondeu. Não sorriu, não ironizou, não tentou parecer indiferente. Só acertou um soco seco e direto na boca do garoto. Que levou a mão onde o foi socado e empurrou Jason para longe.
-Qual seu maldito problema, esquisito de merda ?! - gritou o garoto, limpando a boca suja de sangue.
Jason não pensou. Não respondeu. Só avançou de novo, o punho fechado, o corpo inteiro respondendo como um elástico esticado por tempo demais. Ele acertou o garoto de novo, dessa vez no estômago, fazendo o outro se dobrar e recuar tropeçando no armário.
-Fala agora, porra! Fala! - Jason socava sem pensar, o som abafado dos punhos encontrando pele, o garoto contra o armário tentava se proteger sem sucesso.
Um professor apareceu no fim do corredor, a voz atravessando o barulho:
-Ei! EI! O que tá acontecendo ?!
Jason largou o garoto com um tranco e se afastou, o peito arfando, o sangue pulsando no ouvido. Sabia que ia se foder por aquilo, mas naquele momento não importava. Nada importava.
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Bruce estava no meio do expediente quando tentou ligar para Dick pela terceira vez. A ligação sequer completava. Só a mensagem direta da caixa postal, aquela voz fria e automática dizendo que o número estava indisponível. Bruce franziu o cenho, os olhos cravados no visor do celular. Algo estava errado. Dick não sumia sem avisar, não assim.
A voz do aspirante a jornalista investigativo ainda ecoava em sua cabeça, as últimas palavras na ligação durante a madrugada de sábado para domingo. Desde aquela chamada o ex-bilionário não conseguiu falar com ele. Richard não ligou para ele da lavanderia 24 horas, talvez nunca tivesse chegado lá em primeiro lugar.
Ele sentia um amargor no fundo da boca. Eles tinham perdido tempo, estavam perdendo tempo. O rapaz pediu sua ajuda. Era culpa dele, foi Bruce que colocou Grayson nisso, foi ele que o envolveu no caso do Contador de Histórias, foi ele que mandou que o aspirante a jornalista investigativo procurasse a polícia. Era tudo culpa dele.
Bruce apertou o celular com força, os nós dos dedos ficando brancos. Cada decisão, cada conselho que deu para Dick reverberava como um erro grotesco. Ele achava que estava guiando o garoto, mas só o havia jogado para dentro da boca do lobo.
O aparelho vibrou nas suas mãos, o visor iluminando com uma notificação de mensagem. Era um número desconhecido.
Bruce abriu a mensagem de imediato, e rapidamente viu seu conteúdo:
“Você sempre deixa alguém pagar por aquilo que não consegue terminar.”
A mensagem era curta, sem assinatura, sem pistas. Mas a pontada no estômago veio imediata, ele sabia de quem era. O Contador de Histórias estava brincando novamente
“Onde ele está ?”
Digitou o moreno, já tentando rastrear o número do celular pelo computador da promotoria. Mas como esperado, não houve resposta do outro lado. E o celular, como o moreno suspeitava, era clonado, haviam pelo menos 34 números de telefone igual espalhados pela cidade. Era óbvio que era um celular e um número descartável, o Contador de Histórias nunca usava o mesmo número mais de uma vez.
Bruce encarou o visor apagado do celular. Mas a cabeça de Bruce não sossegava: como o Contador de Histórias sabia? Como ele podia saber que Dick tinha sido levado, se quem o pegou não era ele, e sim a rede de tráfico ? Esse pensamento o corroía, porque esse era o plano do Contador de Histórias, usar Grayson como isca, mas como ele poderia saber que o tráfico viria de fato atrás dele, e mais, como o tráfico de pessoas ficou sabendo sendo que Sarah Essen vazou o nome do aspirante a jornalista investigativo para o Contador de Histórias e não para pessoas ligadas ao tráfico de pessoas.
Bruce sentiu o gosto metálico da paranoia subindo pela garganta. O quebra-cabeça estava todo na sua frente, mas as peças não encaixavam. O Contador de Histórias havia planejado transformar Dick em isca, ele mesmo havia deixado isso claro. Mas como ele podia ter certeza que o tráfico iria morder essa isca? Como o tráfico sequer ficou sabendo?
Sarah Essen. Ela vazou o nome de Dick. Mas ela vazou para o Contador de Histórias, não para qualquer peixe graúdo da rede de tráfico. A não ser...
A não ser que o Contador estivesse no meio deles. Ou fosse um deles. Mas se fosse verdade, porque o cara estava querendo destruir a organização ? Não fazia sentido, nada disso fazia mais sentido, mas era a única resposta.
Era a única explicação. A precisão das informações, o tempo das mensagens, a forma como parecia prever cada movimento. O Contador de Histórias não apenas sabia que Richard seria caçado, ele sabia quem viria caçá-lo.
Ele fechou o punho com força, o maxilar travado. O celular pesando como chumbo na palma da mão. A voz do aspirante a jornalista investigativo ecoava na cabeça dele, a última ligação. Ele não sabia se o garoto ainda estava vivo. Mas ia descobrir. E quando achasse o Contador, ele faria aquele verme contar cada detalhe. Palavra por palavra.
Bruce ficou parado, o olhar cravado na tela apagada, a mente processando rápido demais, rápido até para si mesmo. O Contador de Histórias. Um deles. Só podia ser.
E ainda assim, o raciocínio tropeçava, porque se era parte da rede de tráfico, por que se sabotar? Por que arriscar o próprio anonimato para expor as vísceras do esquema? Orgulho? Culpa? Diversão? Ou havia algo pior, algo mais fundo, um jogo que Bruce ainda não conseguia enxergar. Jogar com o Contador de Histórias era como jogar com um inimigo invisível, que estava em todos os lugares e que sabia de tudo. Se Bruce ligou os pontos, é provável que ele queria que Bruce os ligasse.
Ele sentia que estava sempre um passo atrás porque era isso que o Contador queria. Cada pista, cada nome que surgia era uma linha conduzida por alguém que narrava o jogo inteiro. Bruce largou o celular na mesa com força, o som abafado quebrando o silêncio do escritório. Precisava sair dali. Precisava pensar.
Ele se recostou na cadeira, os olhos no teto. O Contador de Histórias era um deles. Um deles que estava traindo a própria organização, ou pelo menos, parecia estar. Talvez fosse um jogo interno. Um rival? Uma peça deslocada? Um sadista que agora queria narrar sua própria versão da história, à custa de todos os envolvidos? Ou, pior, talvez o Contador estivesse limpando o terreno. Denunciar o tráfico, expor tudo, destruir a concorrência para então reerguer algo novo, sob controle absoluto. Bruce cerrou os olhos. Essa era a teoria mais perigosa.
O moreno abriu o computador da promotoria e acessou uma pasta fantasma. Ele tinha transferido para vários dispositivos as linhas de investigação, era um jeito eficiente de otimizar o trabalho.
Ele tinha atualizado o documento recentemente com informações que estavam faltando, era uma forma de visualizar o que eles já sabiam até o momento. E depois da atualização de Chuck mais cedo, sobre Julian Backwood ser a resposta para a segunda charada, bem, o moreno achava que o emaranhado do caso estava ficando cada vez mais complexo.
As coisas estavam ficando cada vez mais complicadas, mas todas estranhamente se emaranhavam em uma teia de acontecimentos e pessoas. Tudo estava conectado. Julian Backwood, o agente desaparecido há décadas, era o elo que unia as três linhas de investigação do ano passado. Por conta disso, o tenente achava que ele era a resposta para a segunda charada e o moreno concordava com a análise.
O contêiner era a resposta para a primeira charada, mas e a terceira ? Havia a terceira charada. O moreno ainda não sabia qual era a resposta.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?" (Contêiner)
"Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?" (Julian Backwood)
"O passado tem uma maneira curiosa de assombrar os que tentam enterrá-lo. Sementes plantadas em terras distantes germinam na sombra, crescendo sem que seus cultivadores sequer saibam de sua existência. O fruto logo estará maduro. Mas será que o jardineiro está pronto para colhê-lo?" (???)
O moreno ainda não sabia. Ele relia a terceira charada em silêncio, os olhos fixos na tela como se pudesse espremer dela alguma confissão escondida. Sementes, terras distantes, fruto, o jardineiro. Eram muitas metáforas, exatamente o estilo do outro homem, cada palavra parecendo um prego pressionado contra o crânio. O tom era diferente. Não era um lugar, não era uma pessoa diretamente. Era uma ideia, uma consequência talvez. O passado... sementes... terras distantes... o fruto maduro.
Bruce apoiou os cotovelos na mesa, esfregando o rosto com força. Qual era o passado que germinava nas sombras? O tráfico? Não... era antigo demais. Julian desapareceu há décadas, o contêiner era parte do esquema atual, mas esse "fruto", o que diabos era esse fruto? A pergunta que rondava a cabeça dele não era apenas o que era o fruto, mas quem era o jardineiro.
O moreno foi retirado de seus pensamentos quando seu telefone tocou. Bruce atendeu rapidamente:
-Alô
-Sr. Wayne? - disse uma voz do outro lado da linha - aqui é da coordenação da escola do seu... enfim, de Jason, precisamos que o senhor compareça à escola.
-Jason está bem? - perguntou o moreno franzindo o cenho.
-Ele se envolveu numa briga séria no corredor - disse a voz do outro lado - precisamos que o senhor venha buscá-lo, agora.
Bruce suspirou fundo, já se levantando, a mão livre ajeitando o paletó.
-Ele está machucado? - perguntou o moreno.
-Não, mas o outro aluno... bom, o senhor verá - disse o responsável pela coordenação - é importante que venha.
-Certo, mas eu estou trabalhando - disse Bruce - porque não ligaram para o Jack ?
-Nós tentamos, mas tocou até cair - explicou a mulher, o tom formal - e o senhor também consta como responsável legal na ficha de matrícula, então resolvemos comunicá-lo.
Bruce não disse nada por um instante, o maxilar travado.
-Estou indo - disse por fim - me dê vinte minutos.
O moreno desligou e saiu com passos largos, o rosto impassível, mas o peito fervendo. Ele mal percebeu que estava rosnando baixinho enquanto atravessava o escritório. O carro estava na vaga de sempre, e Bruce entrou no volante como se pudesse descontar a raiva no próprio volante. Por que o Coringa não atendeu? Era claro que não atenderia. Sempre desaparecia quando a toda desandava.
O moreno tentou ligar para o ex-terrorista, mas caiu na caixa de mensagem. Bruce franziu um testa. Que estava acontecendo? , ele não tinha tempo para isso. Richard estava sumido e tinha o caso do Contador de Histórias e agora o seu filho com Talia que o moreno nem sabia que existia.
Bruce afundou as costas no banco, o carro parado num semáforo. O mundo inteiro parecia querer pesar em cima dele de uma vez. As vozes na cabeça, as promessas não cumpridas, os rostos que ele não conseguia salvar, sempre voltavam.
Bruce segurou o volante com força, os nós dos dedos brancos. Era tudo culpa. O caso de Richard, o filho que ele não conhecia, Jason cheio de raiva por não ter respostas. E o Batman? Um mito ausente que não cumpria promessas. Ele estava tão cansado
O mundo parecia um novelo que alguém puxava de dentro para fora a a, desenrolando os fios todos de uma vez, sem cuidado. E ele, Bruce, era só o tentando recolher os pedaços sem deixar o chão engolir tudo.
O moreno tentou ligar novamente para o ex-terrorista, mas caiu novamente na caixa de mensagens. Ele então entrou no aplicativo de mensagens do celular e digitou:
"Onde você está ? Estou tentando falar com você, me liga assim que ver essa mensagem"
Bruce encarou a tela por alguns segundos antes de bloquear o celular e jogá-lo no banco do passageiro com um suspiro cansado. O trânsito seguia lento, o horizonte de Gotham pesado de fumaça e concreto. Parecia que até o céu conspirava pra esmagar tudo sobre ele.
Notes:
Até a próxima :) Comentem para me deixar feliz.
Chapter 42: The Gotham We Have (Parte 42)
Notes:
Então, estou em um ritmo frenético mas vou precisar dar uma desacelerada. Passei a noite inteira ontem terminando de escrever esse capítulo. Sério, tô de pé só por conta de café e energético, não que eu esteja reclamando, mas estava ansioso demais para postar esse capítulo. Enfim, antes de começar a leitura, eu aviso que esse capítulo é meio forte, eram 2 capítulos originalmente, mas eu uni os dois em mais de 11 mil palavras porque não queria deixar vocês ansiosos.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
O prédio da escola tinha aquela mesma cara de sempre, concreto pálido, cercado de grades grossas que pareciam mais um aviso do que proteção. Bruce estacionou o carro na rua lateral, próximo à entrada principal. Desligou o motor, mas permaneceu alguns segundos ali, as mãos firmes no volante, os olhos fixos no pátio vazio e úmido de garoa. A ligação da coordenação ainda vibrava na cabeça dele, como um alerta sussurrando que havia fracassado em algum lugar, de novo. Já era quase fim de tarde.
O moreno pegou o celular em cima do banco do carona, não havia nenhuma mensagem do ex-terrorista. Bruce franziu a testa e praguejou. O que havia de errado agora ? De qualquer jeito, ele tinha outro problema no momento.
Ele inspirou fundo, passou a mão pelo rosto e saiu do carro. O céu estava encoberto, cinza sujo, igual à cidade inteira naquela manhã. Ao atravessar o portão, o segurança apenas assentiu com a cabeça, já sabia quem era Bruce, todos sabiam. A coordenadora o esperava no hall, com um olhar cansado e uma prancheta na mão.
-Sala dois, ele está esperando no corredor - disse ela, sem rodeios.
Bruce assentiu, os passos ecoando pelo piso encardido. Quando virou o corredor, encontrou Jason sentado em um banco, com a mochila jogada no chão. A cabeça baixa, os ombros tensos como se carregasse o próprio mundo ali. Bruce parou diante dele.
-Vem, vamos - falou o moreno.
Jason não respondeu. Pegou a mochila, jogou nas costas e seguiu Bruce sem levantar os olhos. O caminho até o carro foi silencioso, o barulho dos passos e da rua preenchendo o vazio que nenhum dos dois se atreveu a cortar. Entraram em um movimento que era rápido e lento ao mesmo tempo. Bruce deu a partida sem uma palavra, o motor foi o único som por um tempo.
O moreno manteve os olhos na rua, mas cada semáforo vermelho parecia uma tentação para dizer algo. Até que ele não segurou mais e entoou:
-O que aconteceu lá dentro?
Jason, encostado no vidro da janela, observando os postes e as fachadas passarem borradas, respondeu sem virar o rosto:
-Não interessa.
Bruce trincou o maxilar, mas tentou manter a calma, Jason era só um adolescente e estava passando por muita coisa.
-Jason, eu preciso saber - tentou o moreno com um suspiro, tentando não ficar com raiva - eu não posso te ajudar se você não me contar.
O adolescente riu baixo, um som curto e sem humor.
-Me ajudar? Você não pode me ajudar, Bruce - disse o adolescente com um tom amargo.
O moreno olhou rápido para ele antes de voltar os olhos para a rua.
-Posso tentar - continuou o ex-bilionário - mas preciso que você fale comigo.
Jason se virou, finalmente encarando Bruce com um olhar carregado de desprezo e cansaço
-Você não é meu pai, Bruce.
A frase veio como um tapa seco. Bruce sentiu, mas não respondeu de imediato. O sinal fechou, e o carro parou. Eles ficaram em silêncio por um momento a mais, um silêncio rançoso e tenso
-Eu sei que não sou - disse Bruce por fim - não estou tentando substituir nada, mas eu… estou aqui.
-Porra nenhuma - interrompeu Jason - você prometeu, disse que ia me ajudar a achar minha mãe, falou que ia me ajudar, mas isso foi só conversa.
O moreno ficou em silêncio, deixou que o adolescente dissesse o que estava carregando no peito.
-Cadê o Batman que ia me ajudar ? - rosnou Jason - cadê a polícia ? Ninguém liga, porra.
Bruce inspirou devagar antes de entoar:
-Eu estou procurando, Jason, eu-
O adolescente o interrompeu dizendo:
-Está procurando porra nenhuma, você sabe onde está Talia, e não ia me contar.
-Tália não sabe, eu perguntei, Jason - falou o moreno tentando apaziguar o adolescente - ela não sabe quem é sua mãe, mas não desisti, eu vou procurar por ela.
-Tanto faz - murmurou o adolescente, voltando a olhar pela janela.
-Não estou te enganando - suspirou o moreno olhando para o adolescente por um momento antes de voltar seu olhar para a estrada - eu… estou tentando.
-Todo mundo diz isso.
Bruce sentiu as palavras como chumbo. Não era só sobre Jason. Era sobre todos. Dick sumido. Damian, o filho que ele não conhece. Bruce era um centro gravitacional de perdas.
-Você não está sozinho nisso - falou o moreno depois de um momento de silêncio que era muito barulhento.
-Eu não preciso de ninguém - disse Jason, firme - não preciso de você, ou da sua ajuda de merda, para o carro que eu vou descer.
O moreno apertou o volante com mais força. O semáforo abriu e ele retomou o caminho. A chuva fina começava a engrossar, as gotas riscando o vidro.
-Jason, você não pode ficar por aí sozinho.
-Eu quero sair - rosnou o adolescente - eu disse para parar o carro !
Bruce manteve os olhos firmes na pista, a mandíbula tensa, as palavras travadas no fundo da garganta. O pedido de Jason ecoava, uma ordem cravada de rancor e ferida. Mas Bruce não cedeu.
-Eu não vou te largar no meio da rua - respondeu firme, o tom mais baixo do que gostaria - gritar não vai mudar isso.
Jason bufou alto, afundando no banco, os braços cruzados como um muro entre ele e o mundo. A respiração do garoto era pesada, feita de raiva contida. Bruce sentia aquilo no ar, cada soluço seco que Jason tentava sufocar no próprio orgulho.
-Você não pode me prender nessa porra de carro - rosnou o adolescente irritado.
Bruce mordeu o canto da boca, os olhos fixos no trânsito. Não adiantava argumentar. Jason não queria escutar. O garoto queria que ele sofresse. Que ele sentisse o mesmo desamparo que o garoto carregava. E Bruce sentia. Estava cansado de fingir que não.
-Eu estou procurando, Jason - falou o moreno - eu juro que tô.
-Jura? Então por que não me disse sobre a Tália? - a voz de Jason era um golpe - porque você é igual a todo mundo, você escolhe o que eu posso ou não saber, e foda-se o que eu quero.
Bruce respirou fundo, o peito afundando de raiva como um navio afundando em silêncio.
-Tália não sabe de nada - disse baixo, tentando não transparecer raiva - eu perguntei, e ela não sabe quem é sua mãe.
Jason riu, um riso sem alegria, um som áspero que ficou preso entre os dentes.
Você acha que eu sou burro, é isso? - ele virou o rosto, encarando Bruce de lado, o olhar ferido e rancoroso - você acha que eu não sei que todo mundo sabe alguma coisa menos eu? Que vocês falam nas minhas costas?
Bruce apertou o volante, o maxilar tensionado. Por um momento, quis dizer que Jason estava errado. Quis argumentar, justificar. Mas que diferença isso faria? A verdade era que Jason estava sozinho há muito mais tempo do que qualquer um ali podia compensar.
-Eu não menti pra você - disse Bruce, baixo, como se a sinceridade pudesse alcançar o garoto mesmo por trás daquela muralha de raiva - eu prometi procurar e estou procurando, só não tenho as respostas ainda.
-Eu não acredito em você.
Bruce sentiu as palavras do garoto como uma pedra jogada direto na garganta. Não era a primeira vez que alguém dizia isso para ele, mas vindo de Jason, tinha um peso diferente.
O carro seguiu, o barulho da chuva engrossando, espirrando contra o vidro como se o céu também tivesse algo para despejar em cima deles. Bruce respirava fundo, tentando conter o cansaço, a raiva, o desânimo.
-Eu sei que você não acredita - respondeu o moreno, por fim, a voz seca, cansada - e eu não posso te forçar a acreditar em mim, mas eu vou continuar procurando, eu não desisti.
Jason não respondeu. Nem um olhar, nem um som. Apenas o silêncio obstinado de quem decidiu não ouvir mais nada. A frase ficou solta entre eles, um peso jogado no meio do carro. Jason não se mexeu. Bruce não insistiu mais.
-Eu não quero que você sofra, Jason - disse o moreno depois de mais alguns momentos - e eu sei que não sou seu pai, e que você está irritado agora, mas eu me importo com você, eu só estou fazendo isso para te proteger.
-Me deixa na praça do centro - disse o adolescente ainda olhando pela janela.
Bruce respirou fundo, cada palavra de Jason era um tijolo em cima de tudo que ele já carregava. Mas ele manteve o olhar na estrada, o maxilar tenso, o volante firme entre os dedos.
-Eu não vou te largar por aí sozinho - respondeu o moreno, a voz grave, firme.
-Foda-se, Bruce - Jason rebateu, o tom seco, irritado - não é sua responsabilidade.
-Mas eu fiz ser minha responsabilidade - respondeu Bruce - eu fiz disso minha responsabilidade no dia em que você entrou naquela casa.
O adolescente finalmente virou o rosto, encarando Bruce com um olhar que não era só raiva, era tristeza crua, sem proteção.
-Eu não pedi nada disso - disse Jason, a voz falhando no fim - eu não pedi pra morar com você, ou qualquer porra dessas, eu só pedi ajuda para achar a minha mãe.
A frase bateu fundo. Bruce manteve o olhar firme na rua, mas engoliu em seco. Porque ele entendia, ele sabia que Jason estava irritado, e com razão. Bruce escondeu dele que tinha encontrado Talia, mesmo que Talia não soubesse de nada, ele não poderia ter escondido.
-Eu sei - respondeu Bruce, com um peso sincero na voz - mas eu não vou desistir de você, mesmo que você queira.
Jason virou o rosto de volta pra janela, as gotas de chuva distorcendo o mundo lá fora. Ele estava cansado dessa conversa com o ex-bilionário.
-Eu preciso de um tempo - suspirou o adolescente - de espaço, então me deixa na minha, ok ? Eu estou cansado de todo mundo escondendo tudo mim.
Bruce apertou o volante, sentindo os nós dos dedos esbranquiçarem. O silêncio do carro só não era pior que a sensação de que estava perdendo Jason, centímetro por centímetro, cada vez que o garoto falava. Ele respirou fundo, tentando não dizer o que estava preso na garganta, que espaço era o que todos pediam antes de irem embora.
-Eu entendo - disse baixo, sem desviar os olhos da estrada - mas eu não vou te deixar largado no meio de Gotham, não com o que tá acontecendo por aí, vou te levar até a casa de um amigo meu.
-Você tem amigos ? - zombou o adolescente ainda olhando pela janela.
-Ele era meu mordomo - falou o moreno ainda olhando para a estrada - ele é a única pessoa que confio agora, se você quiser, posso te levar para lá.
Jason não respondeu de imediato. Apenas continuou encarando o vidro, os prédios passando borrados, riscados pela água. Bruce não sabia se o silêncio era um sim ou um não, mas decidiu que insistiria mesmo assim. O garoto não queria olhar para ele, não queria respostas, mas ainda assim estava no carro, ainda estava ali.
-Se você não quiser, posso te levar para a casa do ex-comissário Gordon, é isso ou você vai para casa comigo - disse Bruce firme, mas sem raiva - não vou te largar em qualquer lugar.
Jason soltou um suspiro longo, abafado, e por um instante Bruce achou que ele não diria mais nada. Mas então o garoto falou, sem olhar para ele:
-Tanto faz, faz o que quiser, você sempre faz, mas não quero ir para a casa do seu ex-mordomo, isso parece uma merda.
Não era permissão, era rendição. Aquilo soou pior do que um grito, pior do que um tapa. Bruce sentiu o peso disso na coluna, como se algo dentro dele tivesse se partido de vez. Ainda assim, continuou dirigindo. Quando finalmente estacionou, o céu já parecia mais baixo, a cidade toda coberta por uma névoa úmida. Bruce desligou o carro, mas não se mexeu. Ficou ali, mãos no volante, antes de falar, sem encarar o garoto:
-Eu não sei fazer isso direito, Jason - a voz de Bruce estava seca, cansada.
Não tinha sido uma escolha, só uma desistência. E ainda assim, ele sabia que o garoto precisava de espaço, e precisava de segurança.
Eles desceram do carro. O moreno ouviu o celular vibrando em cima do banco do passageiro. Chuck, perguntando se ele ia à delegacia, que tinha informações novas. Bruce ignorou por ora. Antes de qualquer outra coisa, precisava garantir que Jason estaria em um lugar seguro.
Agora ambos estavam na frente da porta do antigo comissário, James Gordon. Bruce subiu os dois lances de escada e bateu na porta do ex- comissário. Gordon atendeu de imediato, de blusa de flanela e óculos pendendo no nariz.
-Wayne? - a surpresa era visível, mas o tom era de preocupação - aconteceu alguma coisa?
Bruce olhou para os lados, desconfortável. A garoa molhava os cabelos, mas ele parecia alheio.
-Preciso de um favor - a voz saiu mais grave do que o esperado - eu... queria saber se o Jason pode ficar aqui, por uns dias.
Gordon ergueu as sobrancelhas, mas não questionou de imediato. Ele abriu mais a porta, dando espaço para Bruce e Jason entrarem.
-O que aconteceu?
-Muita coisa tem acontecido, Jim - respondeu o moreno, em partes se desviando do assunto - você consegue ? Só uns dois ou três dias.
-Tudo bem - falou o ex-comissário franzindo o cenho, desviando os olhos do moreno e olhando para o adolescente - você pode colocar suas coisas no quarto à direita, é um quarto de hóspedes.
Jason rapidamente foi em direção ao quarto, ignorando completamente Bruce. Jim e o moreno ficaram em silêncio por alguns momentos antes que Gordon quebrasse o silêncio:
-Não tem problema ele ficar por aqui, você sabe, eu gosto de ter outra pessoa para jogar poker.
-Obrigado, Jim - suspirou o moreno.
O ex-comissário sorriu por um momento, ele parecia cansado, muito mais velho do que realmente era.
-Sabe, Bruce - disse Jim em um tom neutro - independente do que esteja acontecendo, eu sei que você se importa com ele, eu ouvi muito a respeito, e se minha fonte estiver correta, eu acredito que ele só está com raiva agora, mas vai passar.
-Jay tem falado sobre Jason ? - perguntou o moreno um pouco incerto.
-Você sabe como ele é - sorriu Gordon - ficou falando do adolescente revoltado que você aceitou em casa, eu tenho o relatório completo sobre Jason Todd.
-Isso é tão a cara dele…- bufou o moreno.
-Eu só quero que você saiba que estou aqui para ajudar - disse o ex-comissário - talvez ele só precise esfriar a cabeça.
-Obrigado - disse o moreno novamente antes de dar as costas e sair pela porta da frente.
A garoa insistia em escorrer pelas têmporas, mas ele nem notava mais. Quando chegou na calçada, parou por um momento, os olhos fixos no horizonte difuso de prédios e fumaça. Gotham parecia cada vez mais uma cidade de fantasmas, onde todas as figuras importantes da vida dele se transformavam em vultos que ele tentava agarrar — e que sempre escorriam pelos dedos.
Jason estava ali em cima, escondido atrás de um quarto emprestado, mas a distância já era imensa. Bruce sabia que não podia obrigá-lo a confiar, não podia forçar laço nenhum. Ainda assim, o impulso de proteger, de manter por perto, era o que restava. Mesmo que fosse tarde demais.
No carro, o celular vibrava sem parar. Era Chuck. O caso não parava, o mundo não parava. Mas Bruce parou por um minuto inteiro, o olhar fixo no volante. Perguntou-se se teria sido diferente com Jason se tivesse feito menos promessas. Ele suspirou fundo, ligou o carro e encarou o retrovisor. Não havia ninguém ali, mas por um momento ele viu o reflexo do próprio fracasso.
O moreno estava dirigindo de volta para a promotoria quando o celular tocou novamente, no visor mostrava o nome de Chuck. O ex-bilionário suspirou por um momento antes de atender:
-Alô.
-Wayne - começou o tenente, seu tom era apreensivo - onde você está ?
-Estou no trânsito - respondeu o moreno - tive que buscar o Jason na escola.
-Está tudo bem ? - perguntou o tenente depois de um momento de silêncio, sua voz era estranhamente apreensiva.
O moreno estranhou, Chuck não era o maior fã dele. O tenente dificilmente fazia perguntas sobre ele. Bruce franziu o cenho, o olhar cortando o trânsito à frente, mas metade da atenção já estava na ligação.
-Tá tudo bem - respondeu, mesmo que não fosse verdade - o que aconteceu?
Chuck demorou um segundo, como se estivesse ponderando o peso do que ia dizer. Quando falou de novo, a voz estava firme, mas havia algo a mais, um incômodo, um cuidado que Bruce reconhecia de gente que não queria ser o portador da má notícia.
-Wayne - começou o tenente - consegue vir aqui agora ? Tem uma coisa que eu preciso que você olhe.
O moreno suspirou, e estava pronto para responder à Chuck quando seu telefone vibrou. Era uma mensagem do Coringa.
“Preciso que você venha para casa”
-Chuck - disse o moreno, voltando a ligação com o tenente - depois eu passo aí, tenho que fazer uma coisa primeiro.
-Wayne ? Voc - o tenente foi interrompido pelo moreno que apenas desligou o celular sem mais nenhuma palavra.
Bruce olhou novamente para a mensagem enviada pelo Coringa, não era comum o ex-terrorista enviar mensagens de texto para ele. O palhaço deveria ter tentado ligar para o ex-bilionário e deu linha ocupada. Bruce não estava gostando nada dessa história.
Bruce encarou a tela por alguns segundos, os olhos fixos nas poucas palavras do palhaço. "Preciso que você venha para casa". Sem piada, sem floreio. Sério demais para o loiro. Isso acendeu um desconforto imediato no peito do moreno.
Bruce girou o volante na primeira oportunidade, cortando a rua contrária. A chuva engrossava a cada quadra, o barulho abafando o som do motor. Ele não sabia o que ia encontrar em casa, mas sabia que não ia gostar.
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Chuck não tinha mais tempo para isso, ele tinha os resultados, mas os resultados eram mais confusos do que as perguntas. O DNA sob as unhas das crianças havia sido identificado, era o DNA do Coringa.
-Merda, Wayne - rosnou o tenente ao ouvir o moreno desligando o celular em seu rosto com um click mudo.
Chuck esfregou o rosto com as duas mãos, os papéis ainda abertos na mesa, as fotos espalhadas entre relatórios e laudos. Ele encarava aquilo tudo e, ainda assim, parecia que as respostas continuavam enterradas debaixo da pele dos mortos.
As crianças haviam arranhado o assassino antes de morrer. Ele não precisava de mais nada para afirmar que o culpado estava ali, bem debaixo do nariz deles o tempo inteiro. E, no entanto, não fazia sentido.
O tenente sentia no osso que aquilo não fechava. Ele sabia como era ver um caso resolvido, e isso não era. Era um enigma que ria na cara dele. Como se tivesse mais coisa atrás da cortina, e Chuck ainda estivesse olhando só pela fresta. Ele precisava que Bruce olhasse também. Wayne era uma merda de pessoa, mas era o único que conhecia o Coringa.
Chuck recostou na cadeira, os olhos cravados no papel com o resultado do laboratório, mas não era o texto que ele via, era o passado. Em 2006, o Coringa não era um palhaço, não exatamente, pelo menos. Não havia maquiagem, não havia nome, nem truques de palco. Era só um homem no começo de uma trilha podre. Os primeiros casos do Coringa datam de algum momento no final de 2006, sua primeira grande operação foi um roubo a banco, onde o Batman o mandou para o hospital.
O tenente pensou naquela filmagem, em 2006, do Coringa, ainda sem a pintura de guerra, sacando dinheiro da conta de Jack Napier. Era algo anterior à figura do Coringa. Antes da risada, antes da máscara, já havia um monstro.
Era como se o passado estivesse cavando as próprias unhas para sair do chão e puxar todos de volta para o inferno. Chuck encarou o telefone. Bruce precisava saber disso.
Chuck ficou ali, o peso do tempo inteiro sobre as costas, como se cada papel naquela mesa pesasse o dobro. A evidência era irrefutável. O DNA estava lá. A ciência não mentia, mas o instinto dele berrava que aquilo era só metade do quadro.
O Coringa, ou o homem que um dia seria o Coringa, matou aquelas crianças. Isso era fato. Mas por quê? O que aquele cara fazia naquele mundo antes de pintar o rosto ? Quem era ele antes de ser o terrorista que quase destruiu a cidade mais de uma vez ?
O palhaço estava envolvido nisso. O tenente pensou no prédio que foi incendiado no ano passado, onde Chuck encontrou o desenho de ursinho que estava na gaveta da sua mesa, na delegacia. Algumas peças pareciam se encaixar. O tenente não notou, mas o ex-terrorista estava tentando encobrir seus rastros desde o começo, desde aquela época, desde antes. Foi o Coringa que pegou o desenho na gaveta, foi ele que incendiou o prédio, impossibilitando que eles conseguissem qualquer prova de lá.
Chuck apoiou os cotovelos na mesa, a cabeça enterrada nas mãos. Era óbvio agora. Queima de arquivo. Só que o arquivo, no caso, era um rastro de corpos e segredos que o ex-terrorista deixou escapar lá atrás.
O tenente sabia que havia um espaço vazio na história do Coringa. Um período nebuloso que se estendia desde o seu nascimento até ele simplesmente aparecer com o rosto pintado e a risada furiosa. No entanto, ele não imaginava que tinha raízes tão bizarras, tão nojentas e distorcidas. Chuck queria vomitar.
-Te peguei, filho da puta - rosnou o tenente entre os dentes - eu vou fuder com a tua vida.
Chuck apertou o celular com tanta força que os dedos estalaram. Chuck o odiava. Não era um ódio técnico, policial, frio. Era pessoal. Era por sua equipe, sua equipe que o ex-terrorista matou e torturou. Eram apenas agentes fazendo seu dever, tinham famílias os esperando em casa. Nenhum deles merecia o que aconteceu com eles.
Mas mesmo assim, o que deixava o tenente mais irritado e frustrado era que a história não fechava. O palhaço era um sádico, um monstro, um assassino, mas um traficante? Um predador que recolhia crianças para vender?
O tenente acreditava que sim, que antes de ser o Coringa, o ex-terrorista era lixo igual a qualquer cafetão ou traficante de carne humana. Ele via isso na fita mental que repetia toda vez. O sorriso sujo, os olhos vazios, a risada antes de puxar o gatilho.
Chuck queria acreditar nisso. Porque era mais fácil. Porque pintar o Coringa de algo além de um assassino complicava a ordem natural das coisas. Se ele era um traficante, um estuprador, um vendedor de gente, de pornografia de criança, então o mundo fazia sentido. Então Chuck podia odiá-lo com método, com disciplina.
Mas mesmo assim, mesmo com o laudo na frente dele, algo rangia por dentro. Como se o quebra-cabeça ainda tivesse peças escondidas. Ele puxou o desenho do urso, que sobreviveu ao incêndio no ano passado, aquele que o palhaço provocou. O papel queimado nas bordas, o traço infantil.
O tenente empurrou para baixo aquela parte dele que era um investigador, que estava achando as peças muito desconexas e conflituosas. Chuck ignorou a voz da sua consciência dizendo que havia alguma coisa errada. Era mais fácil abraçar o que ele, no fundo, queria, alguma coisa para tornar seu ressentimento pelo Coringa ainda mais justificável.
Chuck ficou ali por um tempo, só respirando, os olhos fixos no vazio. A cidade lá fora era um ruído distante, abafado pelas paredes da delegacia e pelo peso do que ele carregava por dentro. Parte dele queria levantar da cadeira agora, invadir a porra da casa de Wayne e meter uma bala na cabeça do palhaço.
-Filho da puta... - murmurou Chuck, seu tom era baixo - não adianta se esconder na saia do Batman, eu vou acabar com você.
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O moreno subiu no apartamento com um desconfiança, ele sentia no fundo dos seus ossos que tinha alguma coisa errada, mas no momento, ele sentia que tinha coisas mais importantes para tratar. Era muita coisa em sua cabeça, o sequestro do Grayson, Tália e seu filho, sua briga com Jason. Ele precisava fazer sua cabeça desacelerar.
-Jay ? - chamou o moreno adentrando em casa, a sala estava escura, não parecia ter ninguém em casa.
O moreno caminhou mais alguns passos em direção ao meio da sala antes de entoar novamente:
-Jay ? Você me mandou mensagem - o moreno fez uma pausa olhando ao redor - está tudo bem ?
O apartamento respondeu com silêncio. Denso, cheio de algo que Bruce não conseguia nomear de imediato. Mas ele sentia. Sentia no cheiro, no peso do ar, naquela escuridão que não era normal. O Coringa nunca deixava a sala assim. Jay era barulhento até no silêncio.
-Jay...? - chamou mais uma vez, a voz cortando o silêncio espesso que parecia ter se empilhado nas paredes do apartamento.
Nada. Nenhuma resposta. Nenhum barulho de passos. Bruce deu mais alguns passos para dentro. O lugar estava afogado em sombra, só a luz fraca da rua filtrando pelas frestas da cortina. O moreno apertou os olhos, o maxilar travado. Ele sabia que tinha algo errado. O tipo de silêncio que não é ausência de som, é um aviso. Um vácuo que puxa o estômago para baixo. E então ele ouviu. Baixo, quase imperceptível, uma respiração arrastada, irregular. Veio do fundo da sala, perto da poltrona encostada na parede.
-Você me mandou mensagem - disse o moreno, já sabendo onde o ex-terrorista estava , mas não sabendo como se aproximar - você está bem ?
A resposta não veio de imediato. Bruce avançou mais um pouco, os olhos se acostumando à penumbra, até distinguir o vulto afundado no chão ao lado da poltrona. O Coringa estava ali, encostado na parede, a cabeça abaixada entre os joelhos, o peito subindo e descendo num ritmo irregular, como se respirar fosse uma luta.
-Eu não sei... - a voz do Coringa veio rouca, baixa, como se cada palavra arranhasse a garganta - não sei o que estou fazendo.
Bruce se agachou à distância, as mãos sobre os joelhos, o olhar firme.
-Então me diz - falou o moreno - o que está acontecendo?
O Coringa ergueu a cabeça devagar, os olhos vermelhos, fundos de quem não dormia há dias, foi quando o moreno viu o brilho de uma lâmina se mover rápido. O palhaço tinha uma faca.
Bruce não se moveu de imediato. O brilho da lâmina cortava o pouco de luz que a sala recebia, um reflexo rápido, oscilando entre os dedos do Coringa.
O loiro olhava para ele, mas não via. Era como se estivesse preso dentro de si mesmo, atolado em alguma coisa que Bruce não sabia, mas já imaginava que tinha seu nome gravado em cada borda afiada daquele abismo. E sabia que qualquer movimento em falso seria gasolina no incêndio.
-Jay... - o tom dele caiu, grave, controlado - abaixa isso.
O Coringa riu baixo, um som vazio, sem vida. O riso de quem já cruzou a linha e só restava encarar o fundo do abismo.
-Sabe o que é engraçado? - sussurrou o palhaço passando a língua no canto da boca, girando a lâmina devagar entre os dedos - eu nem sei por que eu peguei isso, eu só... não consigo desligar a porra da cabeça.
-Eu estou aqui - disse o moreno se aproximando um passo antes de parar - fala comigo.
O Coringa ergueu o rosto, o olhar opaco. A faca oscilava, mas o braço tremia. Parecia mais exausto do que ameaçador.
-Você mentiu pra mim - a voz do ex-terrorista saiu mais firme, engasgada de raiva - achou que eu não iria descobrir sobre Talia ? Sobre o filho ? Acha que eu sou um idiota ?
-Me dá a faca - disse o moreno, com um tom neutro, se aproximando mais um passo, o olhar cravado no fio da lâmina - eu não queria esconder de você, eu devia ter te contado.
Bruce sabia que estava caminhando em um campo minado. Ele tinha que ter muito cuidado com os movimentos e com as palavras agora. Bruce avançou mais um passo, mas a tensão no ar era um fio esticado demais. O Coringa girava a faca devagar, os dedos no cabo, os olhos fundos cavando a silhueta do moreno no escuro. Era como se estivesse decidindo, medindo mentalmente o ponto exato entre rasgar o outro ou a si mesmo.
O moreno parou. O ar parecia mais pesado, viscoso, como se cada respiração viesse com o gosto metálico de sangue imaginado. Bruce conhecia esse olhar. Era o mesmo olhar de um animal encurralado, não o de medo, mas o de quem sabe que pode destruir tudo à volta antes de cair. Bruce conhecia esse olhar, era sanguinário, frio, homicida.
A sala parecia um campo de guerra em suspenso. O cheiro de suor, o som das respirações, o peso do que não era dito, tudo era pólvora espalhada no chão. O moreno manteve as mãos à vista, não num gesto de rendição, mas como quem tenta convencer um animal selvagem de que não representa perigo. O silêncio era palpável, o olhar de Bruce não desgrudava da faca. Eles já estiveram nisso mais de uma vez e o ex-bilionário sabia que precisava dar um jeito de desarmar o ex-terrorista.
-Jay, vamos conversar - falou o moreno, seu tom ainda era neutro, mas havia uma nota de cansaço.
-Nós poderíamos ter conversado antes, nós tínhamos tempo - cuspiu o loiro, a língua umedecendo o canto dos lábios - mas você escolheu esconder as coisas de mim.
-Eu sei que você está…- o moreno fez uma pausa escolhendo as palavras com cuidado - eu sei que está chateado comigo, mas vamos conversar e resolver.
O Coringa inclinou a cabeça, o sorriso se esticando torto, sem alcançar os olhos. O rosto dele era um campo seco de raiva represada, e a lâmina oscilava como um pêndulo entre a sanidade e o impulso. Bruce estava pronto para dar mais um passo quando sentiu seu sapato resvalar levemente no chão. O moreno olhou para baixo, por conta da pouca iluminação ele não tinha visto. Era sangue e isso fez alguns alarmes soarem na cabeça dele como uma sirene.
-Você…- começou o moreno sem saber o que dizer ou como dizer.
Mas Bruce não recuou, não baixou o tom, mas os músculos do corpo já estavam tensionados, prontos para reagir se o palhaço desse qualquer sinal. O ex-terrorista se ergueu do chão. O olhar cravado no moreno como quem queria explodir, queria que Bruce revidasse, que gritasse, que fosse igual, porque seria mais fácil.
-O que você fez ? - entoou Bruce, sua voz não vacilava, mas havia algumas rachaduras quase imperceptíveis.
O Coringa não respondeu de imediato. O peito subia e descia pesado, o olhar baixo por um instante, como se fosse possível sentir o gosto da culpa misturado no fundo da garganta, mas não era culpa, não era arrependimento. Não com o Coringa.
Bruce deu mais um passo, o sangue sob seus calçados marcando o chão com pegadas mudas. O cheiro veio antes da visão completa. Ferro, carne, um odor que ele conhecia de campo de batalha, de cena de crime.
Então o moreno viu, onde a penumbra engolia o chão, ainda entre ele e o Coringa, Bud. O cachorro do agente Martin. O cachorro deles. Estirado, o pelo empapado de vermelho, o peito imóvel. Tinha sido um corte limpo no pescoço até a barriga, mas não limpo o suficiente para ser indolor. Bruce soube, só de olhar, que o animal tinha sofrido.
O moreno apertou os dentes com força, mas não demonstrou que aquilo o tinha abalado em certo grau. O moreno fechou os punhos, o estômago revirando. Não era só um cachorro, não para o palhaço, não para eles. E agora estava morto. Morto pelas mãos que o alimentaram.
-Jay - começou o moreno, ainda avançando, passando por cima do cadáver do cachorro sem olhar para ele - está tudo bem, larga essa faca e vamos conversar.
O Coringa não respondeu. Ele apenas sorriu de canto, os olhos vidrados. Não havia humanidade ali, só um buraco. Um poço seco e escuro, o mesmo de sempre, só que mais fundo. O peito dele arfava, o suor escorria pelas têmporas e colava o cabelo na testa. A faca subiu levemente, não como ameaça, mas como vício. O braço dele tremia, mas a mão era firme, e Bruce sabia, uma decisão já estava feita.
-Você mentiu - murmurou o palhaço, os olhos fixos no moreno, como se ele fosse a única coisa sólida naquela sala - você estragou tudo.
Bruce respirou fundo. A sala tinha cheiro de sangue e de morte. De abandono. Ele manteve o olhar cravado no ex-terrorista. Ele precisava desarmá-lo. Mas não havia mais nada ali que pudesse ser desarmado. O loiro deixou o corpo pender para frente, os passos curtos e arrastados, a faca baixando ao lado da perna, mas o olhar não desgrudava. Um olhar de quem está pronto para ser morto ou matar, já não fazia diferença.
-Eu devia ter te contado - Bruce disse, o tom baixo, firme - me desculpe.
Mas era tarde demais, o Coringa não queria conversa, o sangue no chão já era um recado. Bruce sabia ler aquilo. O Coringa parou o movimento da faca, o olhar firme no moreno. Um fio de algo ali, raiva, mágoa, ou só o vazio querendo ser preenchido com qualquer coisa.
-O que você quer que eu diga? - a voz do moreno disse no silêncio, como uma pedra atirada em uma vidraça - quer que eu grite? Que eu bata em você? Porra, você precisa de ajuda.
A sala estava saturada de tensão, o cheiro de sangue preenchendo cada canto. Bruce sabia o que vinha. Não precisava de palavras. Já tinha visto aquilo nos olhos do outro. O momento antes do salto, antes do abismo puxar.
O ex-terrorista deu um passo, apenas um. A faca subiu um pouco, e Bruce viu o brilho no metal misturado ao sangue seco. O moreno não recuou. Fechou os punhos ao lado do corpo, o maxilar trincado. Então o Coringa avançou. Um impulso cego, bruto. Bruce desviou no último segundo, o corpo girando para o lado tentando segurar o braço do ex-terrorista apenas para levar um chute no lado direito.
O loiro riscou a faca no ar novamente, fazendo o moreno dar um passo para trás de forma rápida. Ele precisava desarmar o Coringa. Alguém poderia acabar se machucando.
Bruce sentia o corpo no modo automático, a respiração presa, os músculos prontos. O loiro avançava com os olhos cavados, febris, uma selvageria crua que não precisava de grito para ser ameaça. A faca subia e descia como um dente de animal, sem técnica, só instinto, só fúria.
O moreno bloqueou o segundo golpe com o antebraço, o metal roçando o tecido do casaco e abrindo um rasgo superficial na pele. Bruce segurou o punho do palhaço com força, o olhar cravado no dele. O loiro explodiu num impulso, um joelho subindo direto no estômago do moreno, que sentiu o ar sair dos pulmões com um baque seco. Não teve tempo de respirar antes do primeiro soco atingir seu queixo, um golpe torto, mas forte, o suficiente para fazer o moreno recuar dois passos.
O ex-terrorista partiu para cima de novo, o rosto distorcido de raiva, os punhos fechados batendo como quem não tinha técnica, só violência. Bruce bloqueava o que conseguia, os antebraços já doendo, mas o palhaço era imprevisível. Veio um chute na lateral da coxa, um soco direto no maxilar. Bruce girou o corpo, tentou um contragolpe, um cruzado pesado que acertou o rosto do Coringa com um estalo surdo. Sangue espirrou do nariz do loiro, mas ele nem sentiu, somente riu.
Bruce avançou, o ombro empurrando o palhaço contra a parede. O moreno socou o abdômen dele três vezes, golpes fundos, com o peso inteiro do corpo, mas o loiro revidou cravando as unhas no rosto de Bruce, rasgando a pele, tentando alcançar os olhos.
Bruce rugiu baixo, a cabeça latejando. Empurrou o Coringa com força para o meio da sala, os dois tropeçando no sangue espalhado no chão, escorregando. O Coringa girou no próprio eixo e acertou um soco violento no ouvido do moreno, que viu tudo girar por um segundo.
-Vem, seu filho da puta ! - o Coringa berrou, cuspindo sangue de lado, os olhos arregalados de pura fúria.
Bruce não esperou o próximo ataque. O loiro vacilou, e isso bastava. O moreno desferiu um soco curto no estômago do Coringa, o som abafado de ar sendo expulso misturado ao riso rasgado que o loiro soltou. Mas o palhaço não caiu, ele avançou com o ombro, empurrando Bruce contra a parede. A cabeça do moreno bateu com um estalo surdo, as mãos deslizando para agarrar o pescoço do ex-terrorista e empurrá-lo para longe.
O loiro reagiu rápido, o joelho subindo direto no abdômen de Bruce. O moreno sentiu o impacto nas entranhas, mas não cedeu. Puxou o Coringa pelo colarinho, jogando-o no chão com força suficiente para ouvir o som seco do corpo batendo. A madeira gemeu sob o peso do palhaço, mas ele rolou e já estava de pé.
Bruce não pensou. Avançou outra vez, mas dessa vez o Coringa já esperava. O loiro puxou a faca caída no chão, girou o punho e, sem aviso, cravou o metal no braço do moreno. Bruce bateu no pulso do palhaço, impedindo que o loiro recuperasse a faca. Bruce chutou o peito do ex-terrorista, empurrando-o para longe.
O ex-bilionário levou a mão até o braço machucado e apertou com força, trincando os dentes, o sangue escorria espesso ao redor da faca alojada. O Coringa tropeçou para trás, mas sumiu no breu antes de cair. O som dos passos se dissolveu no apartamento escuro, sumiu de verdade. Bruce ficou ali, ofegante, a faca cravada superficialmente no bíceps, o sangue já quente escorrendo. A lâmina ficara presa. Havia apenas silêncio.
O moreno ficou parado, os olhos vasculhando a escuridão. O peso do apartamento inteiro parecia desabar sobre o peito dele. Ele tentou ir até um interruptor, mas a lâmpada da sala estava quebrada. Ele não estava com cabeça para brincar de esconde-esconde, sua cabeça estava doendo e seu braço latejava como o inferno.
-Jay - Bruce chamou, a voz baixa, tensa - isso não vai acabar bem pra nenhum de nós.
Não houve resposta. Cada passo que dava, o chão rangia. Qualquer barulho parecia alto demais. A cada rangido, ele esperava um ataque cego saindo do escuro. O silêncio não era só ausência de som, era um predador. O apartamento inteiro estava respirando como uma garganta engolindo o moreno de volta. O cheiro, o suor, o calor e a dor do corte no braço, tudo parecia potencializado, como se o espaço tivesse se fechado ao redor dele.
O moreno caminhou pelo corredor até o quarto deles, e rapidamente acendeu a luz. O loiro estava no canto com a arma. A arma que o loiro usava em serviço. O ex-terrorista apontou para cima e quebrou a lâmpada do cômodo antes de disparar na direção do moreno. Bruce se jogou no chão, ouvindo a bala chicotear acima de sua cabeça.
O som de um objeto caindo ecoou. Um vaso? Um livro? Um barulho seco à direita. Bruce virou para lá, mas nada. Ele não conseguia ver nada. O apartamento inteiro era um pulmão doente, respirando pesado e morrendo junto com o fôlego de Bruce. O escuro era viscoso, apertado, colado na pele como um plástico sufocante. A lâmpada quebrada cuspia cheiro de queimado no ar. Cada passo, cada deslizar do sapato no piso de madeira denunciava tudo, mas o silêncio do Coringa era absoluto.
Bruce apertava o braço ferido com a mão livre, tentando estancar o sangue que vazava quente. O estômago ainda revirava dos chutes, os músculos dos ombros ardiam de tensão, mas ele não podia parar. Não ali, não com o ex-terrorista à solta no breu.
Outro passo no corredor. À esquerda. Bruce girou, os olhos caçando um vulto, mas nada, só um vazio negro. Então o som de um gatilho sendo puxado seco, sem disparo. Click. Ele congelou. O Coringa estava perto. Muito perto.
O moreno calculou por um momento. Um estampido violento ricocheteou no ar e atravessou alguma madeira. A pressão do som era um soco na cabeça. O moreno caiu de lado, sentindo a bala passar perto demais da orelha.
O celular vibrou no bolso. O toque abafado. Bruce puxou no reflexo, atendendo.
-Wayne? É o Chuck, porra! Porque você não atende o telefone ? Você tem que vir agora - a voz do tenente era urgente, nervosa - é sobre o Coringa, sobre o caso! DNA, o contêiner... você precisa vir!
Bruce não teve tempo de responder. O clarão de um disparo iluminou o quarto por um segundo, revelando a silhueta do Coringa na porta, a arma erguida. Bruce rolou para trás de um móvel, o som do tiro ensurdecendo os ouvidos.
-Você não vai a lugar nenhum - o loiro entoou, a voz baixa, fria no breu, sem aquele tom de riso - ninguém me deixa, nem você.
-Jay, abaixe isso - falou o moreno
-Não - O Coringa trincava os dentes, o dedo no gatilho estava firme.
O moreno calculou de onde vinha a voz do ex-terrorista. O moreno sentiu a mão encontrar algo no chão, um pedaço quebrado do vaso. Pegou o fragmento, respirou fundo, calculou. Jogou para o canto oposto da sala. O som do impacto atraiu a atenção do palhaço e outro disparo explodiu, perfurando a parede.
Bruce se ergueu no impulso, avançando silencioso. O Coringa sentiu, virou rápido mas o moreno se jogou contra ele, o peso do corpo inteiro empurrando o loiro contra a parede. O disparo saiu errado, rasgando o ombro de Bruce de raspão. O moreno agarrou o pulso do Coringa, forçando a arma para cima, o corpo deles colado, um arrastar bruto de ossos e ódio.
O metal frio da arma queimava na pele dos dois, o cheiro de pólvora, suor e sangue formando uma névoa sufocante. Bruce sentiu o próprio ombro esquentar do tiro de raspão, mas ignorou a dor, usando o peso do corpo para esmagar o Coringa contra a parede. O loiro se contorcia, os dentes cerrados, os olhos cegos no escuro, mas famintos.
Eles tombaram para o lado, rolando pelo chão. A arma raspava o piso, o gatilho a um triz de disparar a cada segundo. Bruce empurrou o braço de Jay com toda a força, mas o ex-terrorista mordeu o antebraço dele como um animal preso, os dentes rasgando a pele. Bruce urrou, o braço cedeu um pouco, o suficiente para o Coringa recuperar o controle por um instante.
Um tiro explodiu. O impacto empurrou Bruce para o lado. Mas o grito não foi dele. O som veio do loiro. O moreno tateou no escuro, ouvindo o ofegar dolorido. Mas ele não encontrava o Coringa. Seu telefone vibrou novamente, mas Bruce não deu atenção para isso no momento. Bruce estava muito ocupado agora.
O moreno tateou pelo quarto até chegar nas janelas, ele abriu as cortinas, tentando clarear o espaço ao seu redor. Havia uma trilha de sangue no chão, Bruce não sabia se era dele mesmo, o ferimento do tiro de raspão e a facada em seu braço explodiam em dor quente a cada movimento.
O telefone não parava de tocar em seus ouvidos, Bruce pensou em jogá-lo contra a parede, estava com os nervos à flor da pele. A luz fraca da rua escorria pelas janelas, um tom pálido que não era suficiente para clarear o quarto, mas desenhava sombras no chão. As marcas de sangue pareciam riscos grosseiros, um rastro que ziguezagueava entre os móveis. Bruce apertava o braço, o sangue escorrendo entre os dedos, o corpo pesado, o fôlego queimando o peito.
O telefone insistia em vibrar no bolso. O nome de Chuck piscando na tela.
-Merda... -Bruce murmurou, arrancando o aparelho e atendendo sem levar ao ouvido - fala.
-Bruce?! Onde caralho você está? - a voz de Chuck veio distorcida pelo sangue latejante nos ouvidos do moreno - eu preciso de você na delegacia agora! Eu sei quem era o Coringa antes da porra da maquiagem! Wayne, você não tá entendendo, ele tá ligado com o caso das crianças! O contêiner, porra!
Bruce ouviu, mas cada palavra parecia distante, abafada pelo peso de outro som, o arrastar de algo no chão. O Coringa ainda estava ali. E estava rastejando. Bruce largou o celular no chão. A arma ainda estava por ali, perdida no escuro, mas o loiro também. Cada respiração do moreno era um ensaio para o próximo movimento. Ele avançou devagar, o olhar fixo no rastro vermelho no chão. Seguiu o traço torto de sangue até a beirada da cama.
O som de um click baixo, seco, gelou a espinha do moreno, ele se jogou para o chão antes que o disparo quebrasse a janela. O moreno caiu de mau jeito, sentindo o corpo protestar, o sangue pulsando nas têmporas.
-Vai embora... - a voz de Jay era baixa, arrastada, um fio de raiva - vai embora e eu acabo contigo.
Bruce ficou de joelhos, o peito arfando, o braço latejando como um membro morto. A arma estalou novamente, o tambor girando vazio. O Coringa estava sem munição.
O silêncio se instalou entre eles, denso, somente o som dos dois respirando pesado. Bruce se ergueu devagar, o olhar se ajustando à penumbra. O loiro estava encostado no pé da cama, o abdome sangrando, o revólver ainda em mãos, inútil.
Bruce deu um passo à frente e o ex-terrorista sacou um canivete e a apontou para o próprio pescoço. Ele estava avisando o moreno. Bruce parou.
-Nós dois precisamos de ajuda - falou o moreno, seu tom baixo - se continuarmos com isso vamos sangrar até a morte, porra.
-Eu não ligo - rosnou o palhaço - eu não ligo mais para porra nenhuma, e depois que você falar com Chuck talvez também não ligue para nada.
-Do que você está falando? - questionou o moreno, franzindo o cenho.
-Eu matei as crianças - cuspiu o loiro, seus olhos irritados - eu matei cada uma delas, e sabe porque ? Porque eu quis, e pronto.
O loiro tremia, o braço firme segurando o canivete rente à própria garganta, os olhos cravados em Bruce como um animal cercado, sem escapatória além do abismo. O sangue escorria do ferimento no abdômen, pintando a camiseta do louco.
Bruce ficou parado. O peito subindo e descendo pesado, a cabeça martelando cada palavra dita. Ele sentia a garganta fechar, o sangue quente escorrendo do braço, o ombro ardendo, o corpo pedindo para desabar.
Tudo estava embotado, afogado no peso que o invadiu de dentro para fora. As palavras do loiro ecoavam, irreversíveis, contaminando o ar como veneno: “Eu matei as crianças.”
Bruce queria gritar. Queria correr até ele, esmurrá-lo até os ossos cederem, até o sangue pagar por cada morte. Mas ele não moveu um músculo. O peito só doía. Uma dor funda, silenciosa, que não fazia som, mas dilacerava cada espaço dentro dele.
Bruce encarava o palhaço como quem tenta reconstituir um rosto numa memória desfeita. Como se a pessoa diante dele fosse feita de vidro rachado, cada fenda mostrando algo que ele nunca viu, que nunca quis ver.
As lágrimas vieram grossas, silenciosas. Um choro feio, cru, que não pedia permissão. Bruce não gritou. Não avançou. Apenas chorou. A cabeça baixa, o corpo tremendo. Ele odiava o que ouvia, mas odiava mais o que sentia. Porque mesmo agora, mesmo com cada pedaço dele implorando por nojo, por raiva, ele não conseguia.
O palhaço o encarava, o canivete firme no pescoço, mas os olhos estavam vazios. Não havia orgulho na confissão. Não havia remorso. Só um oco. Um poço sem fundo, velho, tão velho quanto os crimes que Bruce agora sabia que ele carregava.
Bruce arfou, soluçando baixo. A cabeça girava com as peças que, finalmente, se encaixavam. Ele se curvou, as mãos cobrindo o rosto, as lágrimas pesadas, quentes. Ele queria se odiar por isso. Por não conseguir, mesmo agora, odiá-lo de verdade.
-Porque você fez isso ? - perguntou o moreno, seu tom não era de raiva.
-Eu não sei - admitiu o loiro, passando a língua no canto dos lábios - eu gostaria de ter uma explicação para te dar, mas eu não tenho, eu só…não sei.
Bruce abaixou a cabeça, o rosto soterrado nas mãos, os dedos sujos de sangue e lágrimas. As palavras do loiro ficaram suspensas no ar, como cacos de vidro flutuando, prontos para cortar se alguém respirasse. Bruce só queria um motivo, qualquer coisa, um resquício de arrependimento. Mas ele sabia que não havia nada, nem poderia.
O ex-bilionário ergueu o olhar aos poucos, os olhos vermelhos, a respiração instável. Ele encarou o loiro sentado no chão, encostado na cama, o canivete ainda rente à garganta, ainda banhado pela pouca luz que vinha dos postes da rua. A mão do ex-terrorista tremia. O sangue encharcando o tecido da camisa, o chão, a madeira, as paredes quase pareciam respirar junto com a dor deles.
-Eu não sei o que você quer que eu diga - suspirou o palhaço, encostando a cabeça no colchão da cama, ainda sentado no chão - que sinto muito ? Que me arrependo ? Você sabe que isso é besteira, eu nem consigo sentir isso.
Bruce abaixou as mãos devagar, o rosto ainda úmido das lágrimas que vinham sem controle. Ele respirava como se o ar estivesse preso, como se cada inspiração fosse um esforço forçado, como se o peito não quisesse mais obedecer.
Ele sempre soube quem o Coringa era. Sempre soube do que ele era capaz. A brutalidade, o sangue, os jogos sádicos, tudo isso estava no contrato silencioso que existia entre eles desde o começo. Mas ouvir. Ouvir da boca dele. Ouvir aquela voz arrastada, falando das crianças, sem peso, sem nenhum tipo de arrependimento... aquilo era diferente.
Bruce limpou a boca com o dorso da mão, o gosto metálico do próprio sangue misturado à saliva. Ele olhou o loiro no chão, o canivete ainda rente à garganta, mas o olhar... o olhar era só um buraco. Nem prazer, nem culpa. Só um poço seco.
Bruce passou a mão pelos cabelos, puxando os fios com força como se aquilo fosse ajudar a pensar. Mas só o que havia era o peso da realidade. A porra da realidade de que o homem que ele amava era um buraco no mundo, um sociopata até o osso. Bruce sabia disso, ele sabia, mas sempre era uma merda quando isso era jogado na frente do seu rosto sem qualquer anestesia.
Isso era o que mais dilacerava Bruce. Não era o sangue no chão, nem o próprio corpo doendo em cortes e hematomas. Era o tom. O jeito como o Coringa falava daquilo, daquelas vidas, como se fossem descartáveis, como se nunca tivessem existido.
-Eu não acredito em céu, inferno ou essas coisas - começou o loiro depois de um momento de silêncio, seu tom arrastado - acho que Deus não existe, está morto, ou é um sádico de merda, mas…eu acho que meu maior medo, de verdade, é de que, se morrermos, eu e você…
O moreno ficou parado. As lágrimas já não vinham mais, mas o rosto ardia. O braço latejava, o ombro queimava. Ele estava em pedaços e não conseguia odiar do jeito que deveria. O loiro fez uma pausa, o moreno olhava para ele.
-Tenho medo de nunca mais te ver - falou o loiro com um suspiro cansado - porque eu sei bem o que eu sou, e se existe inferno, eu tenho meu lugar garantido lá embaixo me esperando, e eu nunca te disse o contrário e talvez, esse medo, seja o mais próximo que eu consigo chegar... de algo que você chamaria de amor.
O silêncio caiu pesado. Só o som do peito arfando. Bruce respirou fundo, limpou o rosto.
-Eu não sei porque eu sou assim - continuou o loiro - eu simplesmente sou, sempre fui, antes do Iraque, antes de Jack…antes da tortura, antes de tudo e eu não sei porque, talvez seja algo que esteve lá desde sempre…ou talvez não, eu não sei.
Bruce ouviu cada palavra como se o ar estivesse mais denso, como se a própria atmosfera pesasse sobre seu peito. Ele ficou parado, o corpo querendo ceder, querendo cair, mas a cabeça erguida, os olhos marejados. Não havia força para raiva. Não havia energia para o ódio. Só o cansaço de alguém que amava o que não devia.
-Está tudo bem - falou o moreno, seu tom cauteloso - abaixa esse canivete.
O loiro ficou imóvel por um tempo, o canivete ainda pressionado contra a pele pálida do pescoço. As veias pulsavam, lentas, o sangue escorria do abdômen manchando a camiseta de carmesim e Bruce sabia que ele não aguentaria muito tempo naquele estado.
-Não - respondeu o Coringa, a voz umedecida pelo cansaço - não está tudo bem, nunca esteve e você só está dizendo isso porque não quer me ver morrer, mas não é porque me ama, é porque você não suporta perder mais nada.
Bruce fechou os olhos por um momento, respirando fundo, a cabeça latejando, o braço pesando, o corpo inteiro pedindo rendição.
-Eu não sei o que eu sinto agora, Jay - admitiu o moreno, seu tom era baixo - eu só sei que… eu não consigo te odiar, e eu queria, queria muito, mas eu te amo, mesmo que você não acredite em mim agora.
Por um segundo, o canivete vacilou na mão do palhaço. O olhar dele afundou nos olhos de Bruce, procurando uma mentira, um vacilo, qualquer coisa. O loiro não acreditava que o ex-bilionário realmente o amava, ele não conseguia confiar. As imagens de Jack se misturavam com a imagem de Bruce em sua frente em um frenesi agressivo. O louco fechou os olhos e afundou o rosto no colchão, sobrecarregado.
O silêncio que se seguiu parecia um organismo vivo, respirando entre eles. Bruce continuou imóvel, o corpo pulsando dor, no peito um nó apertado que não desfazia. O ex-bilionário observava o loiro afundar o rosto no colchão, como uma criança exausta de um pesadelo que não terminava, como se se escondesse do mundo ou de si mesmo.
Bruce sentiu o corpo ceder. Ele deslizou até o chão, sentado, as costas encostadas na parede fria, o sangue secando no braço, o rosto inchado de tanto chorar. Ele não sabia o que fazer. Ele pensou nos corpos das crianças. Pensou no cachorro morto na sala. Pensou na confissão que acabara de ouvir, dita como quem comenta o tempo.
Ainda assim, Bruce não conseguia levantar. Não conseguia sair dali. Porque em meio a todo o horror, ele via o que ninguém mais via, o menino invisível por trás dos crimes, o menino que nunca existiu de verdade, que não tinha nome. Bruce não sabia se o Coringa desenvolveu esse traço de personalidade devido ao que passou na infância, no tráfico de pessoas. Bruce nunca saberia de verdade se o palhaço poderia ter sido diferente. Talvez não, talvez não mudasse nada.
Bruce respirou fundo, o ar entrava devagar, pesado, como se cada inspiração puxasse junto um pouco do peso daquele apartamento sufocado de história e sangue. Ele encostou a cabeça na parede e ficou ali, olhando o teto invisível no escuro, ouvindo o som abafado da respiração do Coringa. O ex-bilionário ficou ali, o corpo exausto, mas a mente acesa, como um motor girando no vazio.
O apartamento era uma extensão daquela mente em ruína, sombras que pareciam ter forma, sangue como uma escrita torta no chão, e o cheiro, aquele cheiro de suor, pólvora, carne aberta. Ele não conseguia olhar para Jay sem ver a rachadura.
-Jay…- chamou o moreno depois de alguns minutos em silêncio.
Ele lembrou do que Harley dissera uma vez, numa conversa sobre mentes como a do Coringa. Ela havia dito que certos cérebros eram como espelhos jogados do alto de um prédio. Não importa quantas peças você cole, nunca mais será um reflexo inteiro. O Coringa era assim. Um estilhaço ambulante. E cada pedaço refletia uma faceta. Era um amontoado de identidades mal costuradas, um labirinto de vozes internas que nunca paravam de sussurrar.
-Eu não sei se você é o Jack ou o Bruce agora... vocês ficam trocando de rosto - disse o loiro, o rosto ainda parcialmente enterrado no colchão.
Bruce ficou imóvel, os dedos ainda cravados no próprio braço ferido. O nome de Jack era uma faca na boca dele. Sempre foi. O maldito nome que aparecia nos pesadelos do loiro, nos surtos, nas brigas. O mesmo nome que vinha acompanhado de amor e ódio, de uma saudade doentia e do rancor que explodia em violência.
-É Bruce - suspirou o moreno, sua cabeça latejava - sou eu.
O loiro não respondeu de imediato. O corpo permaneceu imóvel, o rosto enterrado no colchão como se o tecido pudesse silenciar tudo o que girava dentro da cabeça dele. Mas Bruce percebeu o tremor leve nos ombros do palhaço, como alguém lutando para segurar um peso invisível.
-Bruce... - repetiu o loiro, como quem testa um nome na língua, como se fosse um gosto que ele não sabia se era doce ou veneno - você sempre fala como se isso fosse resolver alguma coisa.
O moreno apoiou a cabeça na parede de novo, os olhos pesados, mas o coração ainda teimoso, ainda preso naquela forma torta de amor.
-Sou eu - tentou novamente o moreno.
-Eu não sei se acredito em você - admitiu o loiro.
Bruce fechou os olhos. O peso daquela confissão não era uma novidade, mas ainda assim feriu como sempre. O palhaço nunca acreditava, não realmente. Nunca confiava. Ele vivia cercado de ecos que distorciam cada palavra dita, como se tudo que ouvisse passasse primeiro por um filtro quebrado.
-Eu sei que não - murmurou Bruce, a voz áspera de exaustão - mas eu não vou embora mesmo assim.
O loiro ficou em silêncio. O colchão abafava a respiração curta dele, mas Bruce ouvia os soluços mal contidos, um som abafado que parecia escapar sem que o próprio Coringa permitisse. Bruce encostou a testa nos joelhos. O braço doía, o sangue secava, a cabeça latejava. Tudo nele pedia por descanso, mas a mente não desligava.
-Você sabe que se fosse eu lá - começou o moreno depois de um momento, escolhendo as palavras - eu jamais teria te entregado, eu jamais faria isso com você, então não me compare com ele, eu jamais te deixaria sofrer se eu pudesse impedir e você sabe disso.
O loiro não respondeu de imediato. O peito subia e descia devagar, cada respiração um fio frágil que o mantinha ali, entre o agora e um passado que não morria. O canivete ainda estava próximo da pele, mas a mão tinha perdido firmeza. O olhar dele, quando finalmente ergueu para Bruce, era um pântano confuso de cansaço, desconfiança e um medo que ele jamais admitiria.
-Eu queria acreditar em você - disse o ex-terrorista, sua voz meio arranhada - eu queria muito.
Bruce quis tocá-lo, mas o próprio corpo não permitia, ele sentia que seu corpo pesava mais que chumbo. E ele sabia que podia receber uma reação violenta e o palhaço ainda tinha um canivete. Era arriscado dado o momento atual. Mas Bruce queria, queria muito.
-Você matou Jack, esmagou a cabeça dele - a voz do moreno era baixa, firme, arrastando o peso do que significava cada palavra, tentando puxar a mente confusa do loiro - eu não sou ele e se eu fosse... você já teria me matado também.
Bruce sabia que o Coringa não sabia quem era, mas sabia “o que” era. Sabia porque via isso nos olhos do loiro todas as vezes em que o outro o olhava e hesitava, como se buscasse um rosto por trás do rosto. O ex-terrorista não sabia onde terminava e começava. O nome, a pele, o riso, tudo era um disfarce que ele mesmo tinha esquecido como tirar. O Coringa era um vidro rachado, e cada trinca refletia um rosto diferente, uma pessoa que ele já foi mas que não existe mais.
Era como se ele fosse um cemitério ambulante. Um corpo carregando os próprios cadáveres nas costas. O menino sem nome, que teve os dentes arrancados no quarto escuro, que chorava até o choro não ter mais som. O adolescente com o rosto sujo de terra, que segurava uma pá como quem segura a própria raiva. O assaltante que vestiu o capuz vermelho para roubar porque não sabia outra coisa além da fome. O soldado que atravessou o Iraque com uma arma nas mãos. E tantos outros. Haviam tantos. O loiro matou todos eles. Um por um.
Era um vidro estilhaçado, cada trinca uma voz, cada pedaço um rosto. Como um espelho que nunca refletiu por inteiro, que nunca teve um reflexo verdadeiro, só fragmentos que tremem antes de cortar. O Coringa era muitas pessoas, mas não era ninguém. Um mosaico de vidas que ele mesmo enterrava à medida que vivia. Matava o que tinha sido, deixava o cadáver de uma versão anterior pelo caminho, e seguia.
-Talvez eu ainda te mate - sussurrou o loiro depois de um momento de silêncio, a testa grudada no colchão, a voz embargada de choro contido - ou talvez eu me mate, eu ainda estou pensando sobre isso.
Bruce não respondeu de imediato. Ele apenas ficou ali, sentado, o peito pesado demais para uma resposta rápida. Talvez porque ele soubesse, no fundo, que o palhaço não estava blefando. Que aquela não era uma ameaça, era só uma constatação. Um pensamento que nascia e morria dentro de uma cabeça em colapso.
Bruce observava o loiro, o corpo estirado, respirando curto, o canivete pendendo devagar da mão. Pensou em como o ex-terrorista era o próprio labirinto. Um emaranhado de corredores, portas trancadas, armadilhas escondidas, e, no centro, um vazio que sugava tudo. Não havia saída ali. Só repetições. Só mortes sucessivas de quem ele já foi.
Talvez, pensou Bruce, o que mais apavorava o Coringa fosse que, no fim, todas as vozes que ele carregava. O menino. O adolescente. O soldado. Todos. Saísse do escuro da sua mente. Talvez fosse por isso que o loiro confundia Jack com Bruce. Porque o passado era um terreno tão escavado, tão mexido, que tudo se misturava.
E Bruce, que deveria ser um rosto diferente, um porto seguro, era só mais um reflexo quebrado no vidro. Mais uma identidade confusa. Bruce deixou o silêncio pairar, porque ali, qualquer palavra fora de lugar era um fósforo em um quarto cheio de gás. Ele respirou fundo. O peito doía. Não só pela briga, pelas pancadas, mas porque a verdade era um peso que não dava mais para ignorar. O Coringa era um campo de batalha onde ninguém vencia. Nem ele próprio.
Bruce olhou para o teto escuro. Ele pensava em Jack, no maldito nome que o loiro nunca deixava morrer, mesmo inconsciente, mesmo entre delírios. Jack era um fantasma, e Bruce, no fundo, odiava esse fantasma, mesmo sem conhecê-lo. Não só por ciúmes, mas porque Jack era a lembrança de que o Coringa não era só um monstro criado pelo mundo, era um monstro que alguém amou e traiu. E Bruce odiava não ter sido o primeiro a amá-lo. Odiava não ter estado lá antes da guerra, antes da tortura, antes de tudo rachar. Antes dessa falha de confiança ser criada. Talvez ela já estivesse lá, o moreno não sabe, nunca saberia. Era mais um dos “e se” que cercavam o loiro.
Mas no fundo, ele sabia que o louco sempre confundiria os dois. Porque para o palhaço, amor e violência vinham da mesma mão. Jack o amou e o entregou. Bruce o amava... mas estava ali, com o corpo coberto de sangue, de novo. Sempre de novo. Eles viviam em um ciclo de violência, um ciclo que eles não podiam por fim, como duas forças que se repeliam e se atraíam.
Talvez o palhaço nunca conseguisse distinguir totalmente Bruce e Jack. Talvez na cabeça rachada dele, Bruce e Jack fossem o mesmo rosto, aquele que olha e promete amor, mas depois deixa a porta aberta para o sofrimento entrar. Talvez ele esperasse ser traído a cada passo.
-Se algum de nós tiver que morrer, eu prefiro que seja eu - falou o moreno no silêncio que se instalou.
O loiro riu. Um riso cansado, sem humor, abafado no colchão.
-Claro que prefere...talvez por isso eu te ame tanto - disse o loiro, passando a língua nos lábios e virando o rosto de lado no colchão, olhando para o moreno, os olhos mais suaves - sabe, você vai ser um ótimo pai.
A última parte foi dita com uma sinceridade desconcertante. Não havia deboche ou veneno, apenas uma constatação contemplativa. Era quase suave. Bruce permaneceu encostado na parede, o peito ainda arfando, o braço latejando.
-Você escondeu ele de mim... como se tivesse medo que eu encostasse - continuou o loiro - sabe o que é pior? Eu não sei se eu iria encostar para machucar ou pra segurar no colo…eu não sei.
Bruce não disse nada. Só ficou ali, respirando, ouvindo o outro respirar. A noite estava sendo longa. Ele se sentia cansado, como se existisse uma névoa em sua mente.
-Ele se parece com você? - o palhaço perguntou de repente, a voz baixa - você deveria ir falar com ele, não deixe Talia te impedir se é isso que você realmente quer.
Bruce demorou um tempo para responder. O peso daquela pergunta era tão grande quanto tudo que ainda pairava no apartamento, o sangue, a ameaça, o cansaço. Ele encostou a cabeça na parede, fechou os olhos por um instante, como se a resposta estivesse ali, atrás das pálpebras.
-Eu não sou bom nisso - suspirou o moreno - Jason me odeia, ele ouviu quando falamos sobre Talia na cozinha, que eu sabia onde ela estava e não iria contar para ele.
-Ele é um adolescente, não tem ideia de que você só está tentando protegê-lo, afinal é isso que você faz - entoou o loiro, sua voz arrastada no silêncio do quarto.
Bruce soltou um riso seco, baixo, que logo se dissolveu no próprio cansaço.
-Eu não consigo proteger ninguém, Jay... olha pra gente, para você - murmurou, os olhos ainda fechados - eu não consigo nem me proteger de mim mesmo.
O loiro não respondeu. Só o som do tecido do colchão e o peso do silêncio entre eles. Bruce não sabia quanto tempo ficou assim. O corpo foi cedendo, os músculos relaxando contra a parede gelada. Os pensamentos começaram a embaralhar, as palavras se misturando às dores. O sangue secando, o pulso lento. Ele piscou devagar... o escuro parecia mais espesso. Quando acordou, ou pensou ter acordado, um estrondo sacudiu o apartamento. Vozes. Passos apressados. Um clarão de lanterna o cegou por um momento.
-Aqui! - a voz de Chuck explodiu no ambiente - Wayne !
Bruce tentou se mover, mas o corpo não obedecia de imediato. Ele gemeu baixo, a cabeça pesada, os olhos ardendo. Chuck apareceu no foco da lanterna, ajoelhando-se ao lado dele. O tenente estava suado, o rosto tenso.
-Merda, merda, merda… fica acordado, porra - Chuck murmurava, tentando estancar o sangue do braço de Bruce com um pano - alguém chama o paramédico! Anda !
Bruce girou o rosto com dificuldade. Ele parecia embaixo d'água. Bruce procurou pelo loiro com os olhos e o viu. O Coringa estava sentado no chão, escorado no pé da cama, o rosto ainda afundado no colchão. O canivete caído perto, a camiseta estava grudada de sangue.
-C-Chuck - tentou falar o moreno - ele precisa de ajuda.
-Wayne, calma - rosnou o tenente apertando o pano ao redor da faca no ombro do moreno - você perdeu muito sangue, fica parado.
Bruce tentou insistir, mas o corpo não tinha mais força. Cada músculo parecia separado do comando da cabeça. Ele ofegava, olhando o teto borrado, as sombras das lanternas cortando o escuro como farpas de luz. Chuck gritava ordens no fundo, um misto de fúria e urgência. Mas tudo parecia abafado e de repente tudo girou antes de sumir.
Notes:
Até a próxima semana :) Não queiram me matar, eu também gostava de Bud. Mas o Coringa é um sociopata, cheio de comorbidades, não dá para simplesmente prever o que se passa na cabeça doida dele. No capítulo original eu tinha detalhado a morte do cachorro, mas voltei atrás e não escrevi na versão final, achei meio pesado, eu sou apaixonado por animais. Não tenho dificuldade de descrever nada, escrevo as maiores barbaridades, mas morte de cachorro é demais para mim kkkkkk. No entanto, se alguém for perturbado o suficiente (ou só quiser mesmo) avise, que eu coloco em algum momento.
Chapter 43: The Gotham We Have (Parte 43)
Notes:
Bem, aqui vai o capítulo da semana. Cerca de um pouco mais de 7 mil palavras. Peguei uma gripe colossal, tenham paciência comigo. Enfim, esse é um capítulo meio parado e chato, as eu preciso dele e do próximo para arquitetar o início do que seria mais ou menos o final dessa história :) Mas não se preocupam, mesmo eu dando uma encurtada ainda falta muita coisa rolar (rindo de nervoso).
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
2 Dias depois:
Bruce acordou com o som do monitor cardíaco marcando o tempo que ele não lembrava de ter perdido. A luz do fim da tarde atravessava as persianas, riscando o quarto com faixas quentes e diagonais. O teto branco e sem marcas era um contraste violento com a lembrança do apartamento, escuro, úmido, cheio de vozes e sangue seco. Ele levou um tempo até entender onde estava. A cabeça doía. O ombro ardia. O estômago revirava. Ele sabia onde estava, hospital.
Tentou se sentar, mas o corpo protestou com uma dor em ziguezague. Gemeu baixo, os olhos apertados. A mão direita, com o soro, estava fria. O braço esquerdo inteiro estava enfaixado, e ele sentia o peso de pontos internos, de remendos apressados.
Olhou em volta, mas não havia nenhuma movimentação. Nenhum policial. Nenhuma resposta. Ele piscou lentamente, a cabeça pesada, os músculos latejando sob as bandagens.
-Ei... - chamou o moreno, sua voz rouca - tem alguém aí?
Nada. Somente o bip teimoso e o zumbido leve do ar-condicionado. Ele tentou tirar os fios presos no braço, mas o esforço fez o corte reabrir. O sangue brotou, quente. Ele xingou, baixinho, entre dentes cerrados.
-Porra…
Depois de alguns minutos a porta se abriu com um ranger sutil. Um enfermeiro entrou, distraído, com uma prancheta na mão. Viu Bruce se mexendo, desperto e arregalou os olhos.
-Sr. Wayne. Bom dia, que bom vê-lo acordado - começou o enfermeiro - eu já vou chamar o médico, tudo bem? Você está seguro, está em um hospital.
-Cadê ele? - interrompeu Bruce, a voz rouca mas firme - o Coringa.
-Eu... não sei se posso dar esse tipo de informação - falou o enfermeiro - o senhor sofreu um grande trauma, precisa descansar, e-
-Me responde, porra - a voz de Bruce se elevou interrompendo novamente.
O enfermeiro hesitou. Um segundo só, mas Bruce viu. Aquela pausa. A forma como os olhos do outro desviaram por um instante.
-O senhor precisa descansar, está sob observação e-
-Não me trate como um maldito paciente em estado de negação - rosnou Bruce interrompendo, erguendo-se na cama o quanto conseguia, o olhar duro - onde ele está?
O enfermeiro deu um passo para trás.
-Eu... vou chamar o policial de plantão, ele vai saber o que dizer - falou o enfermeiro, nervoso, saindo pela porta do quarto - espere só um segundo, por favor, nosso protocolo é preservar sua integridade emocional.
Bruce encarou o homem com um desprezo frio antes de rosnar:
-Meu emocional não precisa ser preservado.
Com essas palavras, Bruce caiu de novo sobre os travesseiros, a respiração irregular, o peito arfando de frustração. Ele odiava isso. O controle escorrendo pelas mãos. Ele acordou de péssimo humor, ele só queria ver o Coringa. Porra, eles precisavam conversar, eles precisavam ficar cara a cara e enfrentar as coisas que não tinham sido ditas entre eles.
Depois de alguns minutos um oficial entrou no quarto. Ele era jovem, Bruce o reconheceu, já o tinha visto na delegacia antes. O policial ficou em silêncio por um momento antes de dizer em um tom contido:
-O tenente Charles pediu para que eu avisasse ele assim que o senhor acordasse, temos algumas perguntas se o senhor não se importar, elas podem nos ajudar a conduzir a operação.
-Operação ? - o moreno estreitou os olhos para o outro homem - quero saber do Coringa.
-Ele está sob custódia em uma ala isolada do hospital - continuou o policial - está sedado e tem pelo menos 2 agentes da SWAT caso as coisas fiquem complicadas.
Bruce fechou os olhos por um segundo, os dentes trincados, como se engolisse um grito. O mundo girava devagar ao redor dele, mas dentro do peito, tudo era aceleração, uma espiral de raiva, preocupação e um medo que ele não ousava nomear. O policial à sua frente parecia desconfortável, como se estivesse lidando com algo que não sabia como tocar. Era isso que sempre acontecia quando falavam do Coringa, ou pior, quando falavam do Coringa com o Bruce Wayne.
-Eu quero ver ele - rosnou o moreno, seu tom era definitivo, uma memória muscular do tom do morcego - agora.
O jovem hesitou, coçou a nuca, desviou o olhar para o chão desconfortável antes de dizer:
-Sr. Wayne, o senhor ainda está em recuperação, além disso... há protocolos e o tenente deixou claro que qualquer aproximação precisaria ser... avaliada.
-Avaliada por quem ? - rosnou o moreno estreitando os olhos - para o inferno com os protocolos.
-Eu entendo, senhor - tentou o policial - mas o senhor foi vítima de um ataque, e-
-Corta essa merda - Bruce interrompeu, cuspindo as palavras como cacos de vidro - eu não fui vítima de nada, ele estava mais machucado que eu, e porra, eu sei muito bem me defender.
O policial abriu a boca para responder, mas a força da presença de Bruce, mesmo deitado, mesmo costurado e com tubos nos braços, o fez pensar duas vezes. O silêncio pesou por alguns segundos.
-Eu vou avisar o tenente que o senhor está exigindo uma visita - disse o policial por fim, com o tom contido de quem caminha num campo minado.
-Não estou exigindo, estou informando - a voz de Bruce era baixa, mas dura como pedra.
O policial assentiu e saiu, fechando a porta atrás de si. Bruce afundou a cabeça no travesseiro, os olhos fixos no teto. A fúria o mantinha acordado, mas por trás dela, o que dominava mesmo era a ansiedade crua. Ele precisava ver o palhaço. Precisava ouvir a voz dele. Nem que fosse para o ex-terrorista rir dele e chamá-lo de exagerado. Porra, ele queria tanto que o Coringa somente risse dele.
Ele sabia como o sistema tratava o Coringa, não como pessoa, mas como uma entidade perigosa, algo a ser vigiado, sedado, isolado. O ex-terrorista era uma aberração nas fichas da polícia, um número de prontuário com uma mistura perigosa de transtornos mentais. E o moreno sabia que o que mais irritava o sistema era o fato de não poder julgar o loiro como um criminoso qualquer, não podiam simplesmente aplicar nele uma pena de morte.
Bruce sabe, Blackgate tem sua cota de psicopatas e sociopatas. O transtorno de personalidade antissocial, apesar de garantir imputabilidade, não retira a pessoa do sistema prisional comum, apenas garante celas isoladas. No entanto, o Coringa tem diversas comorbidades que garantem a ele uma estadia vitalícia no Arkham. Você não pode prender uma pessoa com transtorno esquizoafetivo em uma penitenciária comum, muito menos condená-la à morte.
Minutos depois, passos pesados soaram do lado de fora. A porta se abriu de novo. Chuck entrou. O tenente parecia exausto. O rosto carregava olheiras fundas, os cabelos desalinhados. Ele parecia muito cansado.
-Pensei que você fosse ficar mais calmo, Wayne - entoou o tenente, seu tom era neutro - mas já que você me fez largar tudo na delegacia e vir aqui, acho que é uma boa hora para conversarmos sobre o que eu descobri, sobre o contêiner de 2006.
-Eu sei sobre o contêiner, sobre as crianças - suspirou o moreno - isso é uma merda, quase vomitei quando ele me disse, quando jogou essa informação na minha cara e me disse que não sabia o porque fez isso.
Chuck parou ao lado da cama, o olhar fixo em Bruce. Por um instante, parecia que ele estava medindo o quanto ainda havia do bilionário intacto sob os hematomas e os pontos. A tensão entre os dois era espessa, carregada de passado não dito e verdades que ninguém queria carregar.
-Claro que ele sabe porque fez isso, ele está tentando esconder as provas que o liguem ao tráfico de pessoas - cuspiu o tenente, sua voz era de desprezo - quem diria que o Coringa estaria envolvido em uma sujeira dessas ? Surpreende um total de zero pessoas.
-Ele não faz parte disso Chuck - disse o moreno - não do jeito como você está pensando.
-Foi ele que disse isso para você ? - questionou o tenente - se você quer se enganar tudo bem, Wayne, mas eu não vou passar por cima das evidências, tenho motivos sólidos para acreditar que o Coringa fazia, ou ainda faz, parte do tráfico de pessoas.
Bruce apertou os olhos, respirando fundo, sentindo o gosto metálico da raiva na língua. Ele sentia a ferida reabrindo não só no corpo, mas dentro do peito.
-Você está ouvindo a si mesmo, Chuck? - a voz saiu baixa, mas afiada - você acha o que ? Que ele trabalha no tráfico de pessoas e toda aquela merda do ano passado foi uma encenação ? Que ele estava nos bastidores ocultando provas ?
-Ele queimou o prédio - falou o tenente, seu tom era duro - quando recebemos o endereço, uma pista dada pelo contador de histórias, o lugar estava queimado, e eu achei lá aquele desenho de urso, parcialmente queimado, o desenho que estava na minha gaveta, mas que apareceu lá de alguma forma.
O moreno ficou em silêncio por um momento olhando para o tenente.
-Na época eu achei estranho, mas pensamos que poderia ser um infiltrado - continuou Chuck, seu olhar escurecendo - mas você, você…não parece surpreso, Wayne.
Bruce sustentou o olhar por alguns segundos. Não desviou. Não piscou. Apenas deixou o silêncio preencher o quarto, denso como fumaça. Depois, com a voz baixa, firme, respondeu:
-Porque não estou.
Chuck deu meio passo à frente, os olhos semicerrados antes de perguntar:
-Você sabia?
-Fui com ele até lá naquele dia - disse o moreno, calculando suas palavras - vi do carro quando ele colocou fogo em tudo.
-E você deixou ele incendiar a cena de um crime, Wayne ? - entoou Chuck indignado - o que há com você ?
-Chuck, ele não trabalha para essas pessoas - tentou o moreno novamente - a história é muito mais bizarra do que você pode imaginar.
-Então me explica - desafiou o tenente - eu quero entender, porque até agora tudo o que eu penso é que ele estava trabalhando com esses caras desde o começo, desde antes de aparecer como Coringa em 2006.
Bruce respirou fundo. As costelas doíam com o movimento, mas ele precisou daquele ar, daquele segundo a mais para não gritar. Para não jogar na cara de Chuck tudo de uma vez. Ele olhou para o teto, depois para o tenente, antes de entoar:
-Ele foi traficado, passou toda a infância e a maior parte da adolescência nesse sistema de merda, eu não sei muitos detalhes, mas ele conseguiu fugir em algum momento.
-Ele que te disse isso ? Você sabe que ele é um mentiroso patológico - devolveu o tenente em um tom de desprezo - eu não acredito no que você está falando, Wayne.
-Eu sei que é meio difícil de acreditar, mas você lembra dos números escritos no desenho ? Naquele desenho de ursinho que você mencionou antes - começou o ex-bilionário.
-4903? O que tem ? - falou o tenente franzindo o cenho.
-Esses são os mesmos números que o Coringa tem rasgado em um lado das costelas e também, estava na porta de um dos quartos, no quanto que o Coringa entrou naquele dia, onde foi a origem do incêndio - disse o moreno, seus olhos fixos no tenente - ele não queria que ninguém soubesse sobre isso, sobre esse lugar, não sei o motivo, mas entendo que é uma coisa complicada de se conversar, de se lembrar.
Chuck ficou em silêncio. Por um momento, só o som da respiração dos dois preenchia o quarto. Os olhos do tenente não piscavam. Pareciam buscar no fundo da memória algo que encaixasse com aquilo.
-Você deixou ele fazer a sua cabeça - cuspiu o tenente, sua raiva era velada, mas fria - você é mais inteligente que isso, está se deixando ser manipulado.
Bruce cerrou os punhos, mesmo com a dor latejando em cada músculo. Os olhos estavam vermelhos, não só pela exaustão, mas por algo mais denso. Um cansaço existencial.
-Você que está ignorando as evidências - falou o moreno, seu tom era neutro, mas havia uma pontada de raiva.
-Isso que você me disse não prova nada, Wayne - retrucou o tenente.
-Você está acreditando naquilo que quer acreditar - rosnou o ex-bilionário - eu sei que o odeia, mas está deixando uma raiva pessoal nublar seu julgamento.
-Você quer mesmo entrar nisso ? - disse o tenente em um tom de advertência - você quer mesmo falar de deixar os sentimentos pessoais nublar o julgamento ? Você deixou ele queimar uma cena de crime e ocultar provas, ele é um assassino, independente do que tenha acontecido com ele, para o inferno com essa merda, não muda o fato que ele matou aquelas crianças em 2006, não muda o fato de que é um terrorista de merda.
Bruce fechou os olhos por um segundo. A frase caiu como chumbo. Na mente dele, a memória se desenrolava em camadas lentas. O apartamento escuro. A luta no chão. A arma entre eles. O tiro no abdome do palhaço. E a confissão sussurrada, dita com uma ausência de remorso que gelava até os ossos
-Ele vai para Arkham - disse o tenente por fim, quebrando o silêncio - não posso colocá-lo no Arkham pelos assassinatos, uma vez que isso é muito antigo, e ele teoricamente está reformado, mas posso colocá-lo por ocultação de provas e por deliberadamente atrapalhar as investigações, isso claro, se tiver documentos de que ele tem frequentado um psiquiatra.
Bruce endureceu o olhar. Sua expressão era fria. Ele ficou em silêncio por um momento antes de entoar:
-Ele não vai à lugar nenhum.
-Você não tem mais sua influência política, Wayne - cuspiu Chuck - nem mesmo seus contatos, você está falido e sem aliados, e ao contrário do Gordon, não vou ser conivente com esse tipo de coisa e se você tentar intervir, posso garantir que você vá passar um tempo em Blackgate.
-É uma ameaça ? - desafiou o ex-bilionário.
-É um aviso - devolveu o tenente.
-Convença meu advogado - disse o ex-bilionário estreitando os olhos, seu olhar era definitivo, sem deixar margem para negociação - e eu quero ver meu marido, agora.
Chuck encarou Bruce por longos segundos. A tensão entre os dois se adensava no quarto como poeira em ar parado. O tenente então passou a mão pelo rosto, os dedos pressionando as têmporas como se quisesse apagar a dor de cabeça que crescia ali desde a semana anterior.
-Você é mesmo teimoso para caralho, Wayne - murmurou ele por fim, a voz baixa, exausta, quase resignada.
Bruce não respondeu. Não precisava. O silêncio dele era uma lâmina embainhada, firme, ameaçadora, contida. Ele pensou em tudo o que tinham construído. Em cada pedaço que ainda era ferida aberta, em como amar o Coringa era como abraçar uma lâmina. E mesmo assim, ali estava ele.
Chuck puxou uma cadeira e se sentou ao lado da cama, cruzando os braços antes de dizer:
-Wayne, você sabe que não tenho pessoalmente nada contra você, mas com tudo isso você pode até mesmo perder os status de lar provisório do Jason, a assistência social pode querer tirá-lo de você.
-A coisa mais importante para um homem é a sua família, tenente - devolveu o moreno - não pode me culpar por querer proteger isso.
Chuck soltou um suspiro e se levantou caminhando até a porta. O tenente fez uma pausa antes de abri-la dizendo:
-Eu entendo, mas não concordo.
Com essas palavras o tenente saiu porta afora, deixando o ex-bilionário sozinho novamente: O silêncio voltou a crescer no quarto, mas agora ele era diferente. Mais pesado. Mais íntimo. Quase acolhedor. O tipo de silêncio que você só compartilha com fantasmas. Ele olhou para o teto. Bruce estava mais cansado do que deixava transparecer.
Não demorou muito, 15 minutos depois o mesmo enfermeiro adentrou no quarto. Ele parecia nervoso.
-O senhor precisa comer - começou o enfermeiro - temos purê de batatas com frango, mas se o senhor não quiser, eu posso providenciar outra coisa.
-Eu quero ver o Coringa - disse o moreno simplesmente, sua voz era dura - agora.
O enfermeiro hesitou, os olhos arregalados, o corpo ainda meio na porta, como se tivesse medo de entrar de verdade naquele quarto, ou naquele campo minado que era Bruce Wayne.
-Senhor Wayne, a ala psiquiátrica está em contenção… houve uma tentativa de automutilação, e os médicos estão…
-Ele tentou se machucar ? - a voz saiu baixa, cortante, como se cada palavra atravessasse o ar como uma lâmina fina.
O enfermeiro pareceu encolher antes de dizer:
-Ele arrancou os fios da mão, tentou usar a agulha do soro… está sedado com medicamentos mais fortes agora, mas está estabilizado, os médicos disseram que foi um surto, mas o senhor não precisa se preocupar, ele está bem.
Bruce virou o rosto, engolindo seco. A garganta queimava, e pela primeira vez desde que acordara, sentiu os olhos arderem. O mundo ficou pequeno por um momento. Só existia o bip do monitor. O palhaço só fazia essas coisas quando estava angustiado. Bruce sabia que o ex-terrorista tinha tendências de acabar se machucando.
O moreno fechou os olhos por um instante, a cabeça pesada. Ele não sabia mais quando as coisas tinham saído dos trilhos. Talvez nunca tivessem estado nos trilhos, talvez o que eles tinham fosse exatamente isso, a ausência de trilhos. Eles eram um trem descarrilhado esperando o momento de tombar. Bruce sabia disso, sabia que não era simples. Nunca foi. Mas ele amava aquele desgraçado.
-Se você não pode me liberar para vê-lo, mande vir aqui o responsável pelo hospital - disse o ex-bilionário, mantendo a voz neutra.
-Mas, Sr. Wayne - começou o enfermeiro - talvez fosse melhor o -
O enfermeiro foi cortado pelo ex-bilionário com um tom frio:
-Eu não perguntei o que você acha melhor, eu disse para chamar o responsável pelo hospital.
O enfermeiro engoliu em seco, a mão apertando a prancheta como se ela pudesse protegê-lo da presença opressora no leito. Assentiu rápido, os olhos evitando os de Bruce, e desapareceu porta afora sem mais palavras. O silêncio voltou, mas desta vez carregado de eletricidade. Bruce sentia o coração acelerar, não por conta das drogas no sangue, mas pela raiva contida, pelo medo que ele se recusava a nomear, mas pela impotência.
A porta se abriu de novo depois de alguns minutos e, dessa vez, um homem entrou de jaleco, seguido por uma mulher com uma prancheta e um olhar clínico. O diretor médico do hospital era grisalho, robusto, com rugas de preocupação vincadas na testa. Aproximou-se devagar, como quem se aproxima de um animal ferido.
-Sr. Wayne - começou ele, a voz calma, firme - meu nome é Dr. Thompson Garcia e entendo que o senhor está pedindo acesso ao paciente que está sob observação na ala psiquiátrica, mas há protocolos, riscos clínicos, ele é instável e -
-Eu quero vê-lo, agora - cortou Bruce, a voz rouca, mas implacável - não estou negociando, somos casados legalmente e eu sei muito bem meus direitos civis.
A médica ao lado do diretor hesitou, mas não disse nada. O diretor cruzou os braços, estudando Bruce por longos segundos. Ele podia ver o desgaste naquele rosto. Os pontos no ombro. As olheiras profundas. Mas mais do que isso, ele viu o desespero contido.
-Dez minutos, e com acompanhamento - suspirou o médico depois de um momento - e sem contato físico, ele ainda pode estar volátil, e a sua segurança está nas mãos desse hospital.
-A minha segurança é problema meu - devolveu Bruce, o tom ainda calmo, mas com aquele fio de aço cortante por baixo.
A médica lançou um olhar incômodo ao diretor. Ele ignorou.
-Vai querer cadeira de rodas ou o senhor prefere arriscar o deslocamento dos pontos por pura teimosia? - perguntou o diretor com um toque de ironia que não sobreviveu à expressão de Bruce.
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Chuck ajustou a gola do casaco, os dedos duros de frio e tensão. O cheiro de antisséptico ainda agarrava suas narinas, como se os corredores do hospital tivessem se impregnado nele. Ele estava cansado. Não o cansaço que passa com sono ou café, mas o tipo que se instala no sangue. Um peso que se carrega nos ossos. Mas não havia tempo para pausa, havia papelada, sim, mas mais do que isso: uma operação inteira para coordenar. E uma rede de tráfico para derrubar antes que engolisse mais vidas.
A van da polícia aguardava no recuo da calçada. O motor ainda ligado, uma fina nuvem de vapor saindo do escape. Chuck desceu os degraus do hospital com passos firmes, mesmo que seus ombros denunciassem a tensão. Um agente do esquadrão especial caminhava ao lado, atento.
-Senhor, vamos por aqui - disse o agente, indicando o contorno do prédio com um gesto seco - o estacionamento principal está fechado por causa de uma ambulância. Não saiu ainda.
Chuck apenas assentiu. Os olhos ardiam, o estômago protestava em silêncio. Havia deixado Bruce Wayne com raiva naquele quarto, mas não tinha alternativa. O Coringa era um espinho encravado em sua alma, antigo, profundo, infectado. Chuck sabia que jamais conseguiria seguir em frente. Os rostos da sua equipe ainda o assombravam, alguns mortos, outros mutilados, outros apenas... arruinados por dentro.
O ar parecia denso demais. Quente e frio ao mesmo tempo. Um tipo de antecipação que gelava os instintos. E então, como se o mundo decidisse confirmar o pressentimento, um carro preto irrompeu na contramão e cortou a frente da van com brutalidade. O motorista da van freou com tudo.
Dois homens saltaram do carro antes mesmo que o veículo parasse. Já desceram atirando. O primeiro tiro estalou seco, direto no para-brisa da van. O vidro estilhaçou parcialmente, uma teia de rachaduras se espalhando. Chuck mal teve tempo de se abaixar. O segundo disparo ricocheteou na lateral da van com um baque metálico, estridente, fazendo o ar vibrar.
Chuck puxou a arma. O mundo pareceu desacelerar. Coração disparado, respiração contida, visão focada. A adrenalina tomou o lugar do cansaço como um líquido quente correndo pelas veias.
-De onde eles vieram ?! - rugiu, pressionando-se contra o painel.
-Um na lateral ! Um atrás do poste ! - respondeu o agente, enquanto tentava girar o volante e dar marcha à ré, mas os pneus dianteiros já estavam furados.
-A merda da Janela está travada - gritou Chuck, largando a alavanca e empurrando a porta com o ombro. Estava rosnando como um animal encurralado.
Saiu para a rua no meio da fumaça, o cheiro de gasolina e borracha queimada enchendo os pulmões. Os tiros cortavam o ar como navalhas. As botas dele batiam forte no asfalto, e ele viu com clareza: um dos atiradores usava casaco grosso, o outro touca e óculos espelhados. Armados com fuzis automáticos. Profissionais.
Chuck se jogou atrás de um carro, o metal frio contra a pele. Mais disparos. Vidros explodiram sobre sua cabeça. Ele rolou até o outro lado do para-choque e se ergueu apenas o necessário para mirar. Calculado. Preciso.
Três tiros. Um deles gritou e caiu, o ombro estourado, largando o fuzil. O agente da van o imobilizou rapidamente. Mas o segundo atacante correu, saltando sobre um canteiro de concreto, derrubando uma lixeira. Chuck foi atrás. As pernas queimavam, os pulmões também. Ele já não era jovem. Mas ainda era rápido.
-Fica no chão ! - gritou o tenente, mas o homem já escalava uma pequena grade. Chuck atirou duas vezes, certeiro. O corpo caiu com um baque surdo. Um único gemido e um saco escuro escorregou das costas do atacante. Uma mochila.
Chuck se aproximou com a arma em punho.
-Não se mexa !
O sujeito tossia sangue, tentando arrastar o próprio corpo, mas era inútil. Chuck chutou a arma para longe e ajoelhou-se sobre o peito dele, pressionando.
-Quem mandou vocês?! Fala, porra !
O homem arfava. O sangue escorria pela lateral da boca. Ele sorriu. Um sorriso lento, desafiador, quase com pena antes de dizer:
-Vocês... já tão mortos. Só não perceberam ainda. Mexeram no que não deviam…
Chuck rangeu os dentes, algemando o sujeito ali mesmo. A respiração dele estava acelerada, mas os olhos estavam calmos. Como se aquilo fosse só o começo.
Sem perder tempo, Chuck pegou a mochila caída. Mas não abriu o zíper, ele trabalhava nisso a tempo demais para reconhecer o que poderia ser muito bem uma bomba.
O tenente pegou o celular e rapidamente ligou para a delegacia, ele precisava de uma equipe anti-bombas para ontem. Chuck se afastou dois passos da mochila, os olhos fixos no zíper meio aberto, como se o próprio tecido respirasse. A ligação com a delegacia foi curta, objetiva, quase fria.
-Aqui é o Tenente Charles, tentativa de execução, coordenadas no GPS da viatura - disse ele - mantém a equipe antibomba, agora.
Ele desligou sem esperar resposta. Os dedos ainda tremiam um pouco, adrenalina demais, foco demais. Olhou em volta. A rua ainda ecoava disparos de fundo, mas o grosso da troca já havia cessado. Sirenes surgiam ao longe, crescendo. O cheiro de pólvora misturado à fumaça era espesso, quase visível.
O atacante algemado gemia algo baixo. Um lamento, talvez. Chuck ignorou. Aproximou-se com cautela da mochila, contornando pelo lado oposto. O que quer que houvesse ali, alguém tinha arriscado um ataque em plena luz do dia, em frente a um hospital, para garantir que ela chegasse ou que fosse destruída.
Atrás dele, as sirenes ecoavam pelas ruas, reforços chegando, paramédicos, rádio pipocando. A multidão começava a surgir nas calçadas. Mas Chuck nem se virou, seus olhos estavam fixos na mochila.
Os paramédicos arrastavam o atirador ferido em uma maca, ainda algemado. O outro estava sendo colocado no camburão. O rádio do esquadrão chiava com ordens desencontradas. Um helicóptero policial começou a sobrevoar o quarteirão. Mas Chuck ainda estava ali, parado no meio-fio, cercado de concreto, vidro quebrado e cheiro de pólvora. Olhando para a mochila como se ela fosse um organismo vivo de verdade.
-Tenente! - o agente da van gritou ao se aproximar, ofegante - o senhor tá bem?
Chuck ergueu os olhos lentamente antes de responder:
-Eles sabiam onde eu ia estar, sabiam a hora exata, isso não foi improvisado.
-O que o senhor acha ? - indagou o outro homem.
-Sinceramente ? Acho que estão tentando nos avisar de alguma coisa - respondeu o tenente, sua voz era fria, ainda olhando para a mochila, intocada no chão.
Depois de cerca de 20 minutos, um grupo antibomba apareceu em um helicóptero. Se fossem de viatura, ou ainda, de furgão, iriam demorar mais do dobro do tempo. Chuck sabe que talvez o seu tom de voz tenha influenciado nisso.
Um dos especialistas do esquadrão antibomba ajoelhou ao lado da mochila. Movimentos suaves, treinados, o olhar escondido atrás da viseira espelhada. O silêncio em volta ficou mais denso. Mesmo os sons da rua, sirenes, vozes, helicóptero, pareciam se curvar à espera do veredito.
Chuck não se moveu. As mãos fechadas em punhos ao lado do corpo. A mandíbula travada. Sentia o próprio coração batendo nas têmporas. Não era medo. Era um tipo de certeza escura. A mesma que sentiu anos atrás, quando viu a fita de vídeo com os gritos da sua equipe. O mesmo tipo de silêncio que vem antes de algo irremediável.
-Está limpo - disse o técnico, por fim, com um aceno para o parceiro - não é explosivo, podem se aproximar.
Chuck respirou fundo pela primeira vez em minutos. O ar entrou frio demais. Passou a mão pelo rosto e se ajoelhou junto ao técnico. Com cuidado, calçando luvas de látex, ele abriu o zíper da mochila por completo.
Dentro, havia um bloco de envelopes pardos, organizados com meticulosidade assustadora. Cada um numerado com esferográfica preta, mas no primeiro envelope, na capa, algo saltava como uma lâmina, o número 34, escrito à mão com marcador vermelho. Grosso. Riscado com força, como se tivesse sido empurrado contra o papel com raiva.
Chuck estendeu a mão e puxou o envelope com cuidado. Estava lacrado com fita. Era uma contagem regressiva, começava no 34 e ia diminuindo até o número 1. Eram mais peças do jogo. Chuck sentia que o Contador de Histórias estava arquitetando sua última onda. Sua última narração.
—--------
Levaram Bruce de cadeira, contra sua vontade, mas o corte no ombro reabriu levemente quando ele tentou se levantar sozinho, e mesmo ele sabia que não conseguiria atravessar o corredor inteiro cambaleando.
A cadeira de rodas rangia baixo pelos corredores, mas o som mais presente era outro: o da própria respiração de Bruce. Ela vinha curta, contida, como se respirar demais fosse fazer doer mais do que já doía. O hospital se tornava mais frio à medida que se aproximavam da ala psiquiátrica. Não era só a temperatura do ar condicionado; era o tipo de frio que vinha de lugares onde ninguém quer entrar.
As luzes ali não tremeluziam, mas pareciam mais pálidas. O silêncio era mais espesso. Era o silêncio de portas trancadas, de vozes engolidas, de crises abafadas com injeções e protocolos. O enfermeiro à frente não dizia nada. O guarda atrás também não. Bruce estava cercado por gente, mas sozinho.
Ele pensava na última vez que viu o Coringa acordado. O sangue na camisa, o olhar distante. O peso da confissão. E a sensação de estar diante de um poço sem fundo. Um abismo.
A cadeira parou. Diante dele, a porta. Um visor de vidro fosco, opaco o suficiente para esconder. Mas Bruce podia sentir. Sentia o palhaço como um campo gravitacional.
A médica apertou o botão e a trava eletrônica soltou com um clique seco. Bruce não esperou. Levantou, mesmo contra a dor, mesmo contra o bom senso. O guarda deu meio passo à frente, mas o enfermeiro o segurou com um olhar.
Eles sabiam quem era Bruce Wayne, mesmo que não soubesse que ele era o Batman. Eles sabiam quando não atravessar o caminho dele. O moreno tinha, nos últimos dois anos, mudado mesmo que sutilmente sua imagem, principalmente entre os médicos.
O herdeiro Wayne, antes um homem de luxos e extravagâncias, acabou com a imagem de um homem recluso, com um seleto círculo próximo. Todos sabiam que Bruce era inflexível e grosseiro quando se tratava do Coringa, ele beirava ao desagradável.
Bruce entrou e ficou parado por alguns segundos olhando para o ex-terrorista. O rosto estava machucado. O moreno não viu por conta do lençol e da roupa do hospital, mas, ele sabia que o ex-terrorista estava com o abdome coberto de bandagens por conta do tiro. No entanto, o que se destacava eram as restrições nos pulsos, colocadas por cima de bandagens grossas.
Tudo dentro do ex-bilionário queria correr até o outro, agarrá-lo pelos ombros, sacudi-lo, perguntar o que diabos ele achava que estava fazendo. Mas não era assim que se falava com o Coringa. Bruce aprendeu do jeito ruim.
Ele se aproximou devagar, como se pisasse em estilhaços. Sentou na beirada da cama e observou o rosto do outro, não o palhaço, não o assassino, não o terrorista. Só Jay. O cara que gostava de café ridiculamente doce, cereais infantis e ficava acordado com ele de madrugada falando sobre as coisas mundanas demais para ambos. A pessoa que Bruce aprendeu a amar, um pedaço por vez.
-Ele está sob forte sedação - disse a médica em um tom clínico - ele tem oscilado entre episódios esquizofrênicos e comportamento de risco, achamos melhor usar uma contenção depois que ele acabou se mutilando com a agulha do soro.
Bruce não respondeu. Não porque não tivesse nada a dizer, mas porque qualquer palavra, naquele momento, soaria errada. O moreno passou os olhos pelo rosto pálido do outro. O cabelo loiro estava úmido, colado à testa. Os cílios lançavam pequenas sombras nas bochechas. O peito subia e descia de forma lenta, artificial.
A médica ia intervir, mas pensou novamente nisso. O diretor tinha deixado claro que não deveria ter qualquer contato físico, mas ela não ousou dizer isso ali, em voz alta, então ela simplesmente engoliu as palavras antes que saíssem de sua boca.
O moreno respirou fundo. A garganta doía. O peito ardia. O curativo no ombro latejava com raiva, mas tudo isso parecia menor agora.
-Ei amor - sussurrou o moreno - é Bruce.
O ex-terrorista abriu os olhos devagar antes de piscar pesadamente. Seus olhos estavam desfocados e parecia ter dificuldade em mantê-los abertos. Ele piscou devagar, como se estivesse tentando voltar de muito longe, não de um lugar físico, mas de um estado. O olhar dele encontrou Bruce, mas demorou para reconhecê-lo.
Bruce se inclinou um pouco, mas não muito. Ainda respeitava o espaço entre eles. Sabia que Jay precisava que ele estivesse perto, mas não demais. Pressionar agora seria como acender um fósforo num quarto cheio de gás.
-Eu estou aqui - disse Bruce, simples.
Bruce fechou os olhos por um segundo. Sentiu o peso daquelas palavras como se fossem toneladas.
-Como você está ? - perguntou o moreno, uma das mãos se movendo para acariciar as costas da mão do palhaço com o polegar.
-Brucie…- murmurou o palhaço, sua voz meio grogue da sedação.
-Isso amor, sou eu - disse o ex-bilionário - está tudo bem.
-Eles me drogaram - murmurou o Coringa depois de um momento de silêncio - agora minha cabeça parece estar voando…está tudo muito confuso e distorcido, está tudo muito...quieto.
-É só o remédio - disse Bruce, baixo, como se falasse a uma criança - está tudo bem, eu tô aqui.
O palhaço franziu o cenho, tentando manter os olhos abertos, tentando ancorar a consciência na presença à frente dele. Mas era difícil. Era como tentar caminhar com o chão oscilando debaixo dos pés.
-Eles disseram… que eu tentei me machucar - murmurou o palhaço, como quem lê uma informação pela primeira vez e não sabe se acredita - eu não lembro disso.
Bruce engoliu seco. A mão dele, ainda sobre a do outro, não apertou. Só permaneceu ali. Firme e estável. Bruce sabia que isso não era bom sinal, ele não gostava de ver o ex-terrorista tão diferente de si mesmo. O Coringa que o moreno conhecia teria feito uma piada sobre isso. O ex-terrorista só agia assim sob efeito de medicação, Bruce nunca iria se acostumar com isso.
-Não importa agora - respondeu o moreno.
-Não gosto de sentir minha cabeça assim…- murmurou grogue o palhaço, sua voz parecendo um pouco angustiada no final - está tudo muito quieto e organizado, você sabe eu não sei lidar com isso, eu não gosto de me sentir assim.
-Eu sei - respondeu Bruce, e sua voz soou como um cobertor sendo puxado sobre um corpo com febre - eu sei que você odeia, mas agora é isso que está te mantendo seguro.
O loiro fechou os olhos por um segundo, como se precisasse fugir até da própria percepção. Seus cílios estremeceram. A respiração ficou mais curta, irregular. Ele tentou dizer algo, mas a boca só se abriu e fechou como se as palavras fossem areia fugindo pelos dedos.
-A sua mentira me puxou para fora dos trilhos - disse por fim, quase inaudível - eu não sei explicar mas, as coisas começaram a se sobrepor e isso fazia muito barulho, eu tentei…mas a enxurrada de pensamentos invadiam a minha cabeça e eu não sabia como lidar com isso.
O palhaço virou levemente o rosto, seus olhos marejados sob o efeito de um controle artificial. Ele parecia envergonhado, mas era outra coisa. Isso, em alguém como ele, era quase surreal. O Coringa não sentia vergonha, da mesma forma que não sentia remorso.
-Eu… eu descarreguei uma arma na sua direção, eu realmente queria te matar, talvez impedir que você fosse embora, eu não sei, eu só…os pensamentos vieram muito rápido e eu fiz, e não consigo nem me sentir mal por isso, não consigo nem me sentir culpado, eu só…não sinto nada - continuou o palhaço, sob efeitos de remédios que o confundiam o palhaço era mais propenso a deixar seus sentimentos amostra - da mesma forma como não consegui sentir nada quando matei Buddie, eu só…fiz, olhei ele nos olhos enquanto fazia, como se não fosse nada e mesmo agora, não consigo me sentir culpado ou me importar.
Bruce ouviu em silêncio. Não o tipo de silêncio educado, vazio, que se faz por não saber o que dizer. Era um silêncio denso. Cheio. Um espaço que ele segurava para o loiro, para que aquelas palavras existissem sem julgamento imediato, sem filtro. Para que pudessem simplesmente cair no mundo e respirar. O moreno baixou os olhos por um instante. Não porque não suportasse olhar para ele, mas porque estava tentando segurar o próprio peso. O peso do amor. Do luto. Da impotência.
-Você não sente - disse, por fim, a voz baixa, firme, sem espanto - mas você sabe, sabe que deveria sentir.
O loiro virou o rosto de volta, os olhos meio perdidos no meio da sedação. Bruce sustentou o olhar.
-Eu já vi você fazer coisas horríveis, mas é muito difícil você falar delas assim, sem ironia, sem aquele oco frio - falou o moreno depois de um momento - eu sei que é porque você está drogado, mas só de você dizer…bem, isso importa para mim.
O palhaço piscou lentamente. Um músculo em sua mandíbula tremeu, como se contivesse alguma reação. Mas não veio riso. Não veio sarcasmo. Apenas aquele vazio estranho, onde Bruce sabia que existia uma guerra interna.
O silêncio voltou. Mas não era o mesmo de antes. Não era o silêncio institucional, esterilizado, de hospital. Era um silêncio íntimo, pesado, como quando se está de luto por alguém que ainda respira.
Bruce ficou ali, ao lado da cama, com a mão sobre a de Jay, sentindo o calor dele mesmo por baixo das bandagens e contenções. Era uma conexão frágil. Um fio tênue. Mas era tudo o que ele tinha. Ele queria dizer algo. Queria segurar aquele momento e moldá-lo em palavras, transformá-lo em abrigo. Mas tudo o que tinha era cansaço e medo. Um medo que doía por dentro, lento, corrosivo, não do Coringa. Bruce não tinha medo dele.
O loiro também ficou em silêncio, não reagiu. Respirava devagar, os olhos semiabertos, como alguém à beira do sono. E Bruce sentiu raiva, não do Coringa, mas da situação, do sistema, do mundo. Porra, até dele mesmo. Sentiu raiva porque ele era o Batman, porra. O maldito Batman. E nem com todas as máscaras, com toda a força ele conseguia proteger o que mais importava. Não ali, não daquele jeito, não do jeito que o Coringa precisava dele.
Bruce desviou o olhar por um instante, fixando-se em um ponto qualquer no lençol branco. O padrão simples da costura. Um vinco mal passado. Era mais fácil olhar para aquilo do que encarar o rosto do loiro agora, não por medo, mas por cansaço. Um cansaço que vinha de dentro, de tentar manter de pé algo que vivia à beira de desmoronar.
Por um segundo, Bruce quis chorar. Mas o corpo não deixava. O hábito, a couraça, a maldita disciplina de ferro que construíra com anos de trauma, não permitiam. Ele só sentia a pressão, como se as lágrimas empurrassem por dentro, mas parassem sempre na última camada. Umidade que não alcançava os olhos.
O palhaço murmurou algo que Bruce não entendeu de imediato. Palavras arrastadas, engolidas pela sedação. Pareciam palavras de alguém sonhando acordado, ou tentando acordar de um pesadelo que não terminava. O moreno inclinou a cabeça, atento, mas não insistiu para que repetisse. Algumas coisas, ele sabia, vinham como estilhaços, se tentasse tocá-las, só machucaria mais.
Depois de alguns momentos, o ex-terrorista estava com os olhos semiabertos, tentando reencontrar o foco em Bruce, mas o olhar escorregava. Como se a realidade fosse água e ele estivesse se afogando.
-Estou com medo, eu não gosto dessa sensação de silêncio, eu não quero refletir sobre nada, mas as coisas simplesmente vem se infiltrando e eu…eu não sei como parar, eu…eu acho que me machuquei depois que arranquei a agulha, por onde estavam me dando sedativo - disse o loiro, seus olhos desfocados - mas eu não sei, e agora eu me sinto pior e tem faixas me prendendo na cama…Porque eu estou preso na cama, Brucie ?
Bruce fechou os olhos lentamente como se carregasse nas têmporas o peso da declaração. Mas havia algo diferente agora. Um tipo de verdade crua, sem o verniz. Uma vulnerabilidade sem máscara que o loiro somente mostrava nesses momentos, ou quando estava em uma crise muito ruim.
-Está tudo bem - suspirou o moreno - não precisa ficar com medo, eu protejo você.
O loiro não respondeu. Talvez não conseguisse, talvez a frase tivesse entrado como um som abafado, como se Bruce tivesse falado debaixo d’água. Mas o loiro piscou devagar. Um gesto mínimo, mas suficiente para que Bruce soubesse que ele tinha ouvido. Que aquelas palavras, “eu protejo você”, tinham alcançado algum lugar lá dentro. Um lugar ferido, confuso e exausto. Essas palavras sempre despertavam um misto de emoções no ex-terrorista.
O moreno então se inclinou um pouco mais. Suas costas protestaram, o ombro gritava, mas ele ignorou. Levou a mão livre até a lateral do rosto do Coringa, os dedos deslizando levemente sobre a pele quente e cicatrizada na bochecha. Era uma carícia quase sem contato. Ele sabia que o toque podia ser demais, invasivo, desorganizador. Mas ao mesmo tempo, o palhaço precisava saber que ele estava ali de verdade.
-Você não está preso aqui, tudo bem ? - disse Bruce, a voz baixa, firme - é só até seu corpo melhorar e a sua cabeça parar de gritar e te encher de pensamentos…descontrolados.
Bruce quase mordeu a língua, a palavra “louco” quase saiu de sua boca, e ele sabia que isso poderia desencadear outra crise. Coringa não achava que era louco, achava que era diferente. Ele não via seu quadro como uma doença.
O ex-terrorista pareceu querer protestar. Mas desistiu no meio do caminho. A boca se fechou devagar, e ele só respirou. A respiração dele agora era irregular, mais consciente, como se cada inspiração tivesse que ser buscada num lugar fundo demais.
Bruce se endireitou lentamente, voltando a sentar direito. Ficou ali, em silêncio, observando o loiro afundado nos lençóis. Não havia planos, não havia missão. Só aquele momento. Cru, humano, fraturado.
Ele pensou em Damian. Pensou na forma como tudo tinha desmoronado a partir da mentira, ou melhor, da omissão. Jay tinha descoberto que ele tinha um filho. E Bruce tinha escondido isso. Talvez por medo, talvez por hábito. Talvez por uma parte dele ainda acreditar que dava pra proteger alguém das verdades difíceis. Mas não dava.
-Eu errei com você - disse Bruce de repente, as palavras saíram baixas, como se ele as estivesse arrancando de algum canto endurecido dentro do peito - eu deveria ter te contado, e não porque você tinha o direito de saber, mas porque eu tinha o dever de ser honesto com você, mas não fui.
O loiro não reagiu. Talvez estivesse ouvindo, talvez já estivesse voltando ao torpor dos remédios. Mas Bruce precisava dizer. Precisava que a verdade também fosse dele. Dessa vez, Bruce o sentiu de outro jeito. Como uma pausa entre batimentos. Como o instante antes de um suspiro. Um intervalo que dizia mais do que qualquer resposta.
-Desculpe Sr. Wayne - disse a médica, quebrando o silêncio - mas o seu tempo acabou.
O loiro parecia adormecer aos poucos. As pálpebras pesadas. A tensão nos ombros suavizando. Talvez por exaustão. Talvez porque, por fim, tenha encontrado um pedaço de chão firme no meio do colapso. Mesmo temporário.
-Tudo bem - respondeu o moreno se levantando com certo esforço.
O corpo inteiro do ex-bilionário protestou, mas ele não fez um som. Apenas ajeitou a coberta sobre o peito do loiro com cuidado. Depois se curvou e encostou os lábios na testa dele. Um beijo breve e silencioso.
-Eu vou voltar amanhã.
Com essas palavras o moreno se afastou e foi em direção à saída. A porta se fechou atrás dele com um clique suave. E o mundo, do lado de fora, continuou rodando no mesmo caos de sempre. Mas, ali dentro, por um instante, houve calma. Uma espécie de paz. Trêmula, desequilibrada.
Notes:
Enfim, era isso. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 44
Notes:
Bem, aqui vai o capitulo da semana. Como eu disse anteriormente, tenham um pouco de paciência comigo, eu tive que dar uma desacelerada na história, para as coisas se ajeitarem. Eu sei que parece que se passa muito tempo, mas não, esse capítulo inclusive, se passa no mesmo dia do capítulo anterior. Mas eu precisava desse capítulo para desenvolver algumas coisas pendentes de preparar terreno para os próximos. Então ele é mais lento e meio chato, desculpem kkkkk.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Já haviam se passado cerca de três dias desde que Bruce havia deixado Jason com o ex-comissário Jim Gordon. O adolescente sabia que deveria estar se portando melhor, deveria pelo menos agradecer, ou fingir que ouvia as perguntas gentis de Jim sobre como ele estava dormindo, se queria mais alguma coisa, se precisava sair um pouco.
Mas ele não queria, e mais do que isso, ele não conseguia. Qualquer tentativa de Jim de se aproximar era rapidamente cortada. Um silêncio frio. Um grunhido indiferente. Às vezes, um simples virar de costas. Jason não estava bem em confiar tão rápido de novo. Não depois da rasteira que tomou de Bruce.
Ele passava a maior parte do tempo no quarto de hóspedes. Não era grande, mas era silencioso. A janela dava para o beco lateral. Jason passava horas ali se não estivesse na escola Ficava alí, sentado no chão, as costas encostadas na parede, encarando a moldura da janela como se algo fosse aparecer. O sol subia, descia.
Naquela tarde, Jim deixou um prato na porta do quarto. Não bateu. Só deixou ali, como nos outros dias. Jason ouviu os passos indo embora. Não levantou de imediato, só ficou ali. Ele pensava em Bruce. No rosto dele quando mentiu. Na calma com que segurou a verdade até ela apodrecer por entre os dedos.
Jason estava frustrado. Frustrado porque já haviam se passado três dias e o ex-bilionário não apareceu, não tentou se desculpar novamente. Bruce nem sequer tinha ido até lá para ver como ele estava. Jason sabia que era isso que tinha pedido para o moreno, um tempo para pensar e ficar sozinho. No entanto, havia um desconforto nisso, em Bruce ter simplesmente aceitado esse pedido sem mais nenhuma resistência. O adolescente se sentia ridículo, mas ao mesmo tempo irritado por simplesmente se importar com isso. Ele não deveria se importar.
Jason odiava que isso o afetasse tanto. Ele não queria se importar. Mas se importava, e isso o deixava furioso. Porque se tinha uma coisa que ele odiava mais do que ser enganado, e Bruce, no fim das contas, o deixou de novo.
O prato continuava na porta. Jason podia senti-lo ali. Sabia que, se levantasse, o vapor ainda estaria preso debaixo da tampa. Sabia que Jim ficava em silêncio por respeito, mas provavelmente sentava na poltrona da sala com os olhos presos à TV sem prestar atenção em nada, só esperando ver uma sombra na porta do quarto. Mas não havia sombra. Só Jason, murado dentro dele mesmo.
Ele sabia que deveria pelo menos ir comer com Jim. O cara não tinha sido nada além de hospitaleiro com ele. Uma parte dele sabia que estava fazendo birra como um adolescente deixado de castigo. Ele sempre se achou muito maduro para a idade, mas talvez isso fosse uma bobagem total, estava agindo exatamente como um adolescente que acha que foi traído agiria. Mas era como se houvesse uma camada espessa entre ele e o mundo, como se quebrar o silêncio fosse quebrar também o orgulho.
Ele suspirou. Um suspiro seco, contido, mais raiva do que rendição. Levantou-se, passou a mão pelos cabelos bagunçados, foi até a porta e parou. O prato ainda estava ali. Olhou-o por um segundo, como se avaliasse se aquilo era mesmo uma boa ideia.
Então ele o pegou, sem pressa, mas também sem hesitação. O adolescente andou pelo corredor curto. Os pés nus no chão de madeira. O ar da casa estava morno, cheiro de café velho e jornal. Jason entrou na sala em silêncio e sentou no outro lado do sofá. A TV estava ligada, noticiário mudo, as imagens passando como decoração. Jim estava ali, no canto, com um livro no colo. Nem olhou quando Jason entrou, somente virou a página com calma.
Jason destampou o prato. A comida estava quente ainda. Arroz com carne e legumes refogados. Ele começou a comer devagar. Em silêncio, apenas uma colher de cada vez preenchendo o espaço. Jim não disse nada e nem ele, mas havia um alívio pequeno, quase imperceptível, no ar entre os dois. Algo que Jason sentiu sem saber nomear.
Depois de alguns momentos, Jim, do seu canto, leu mais algumas linhas antes de marcar a página com o polegar e fechar o livro com cuidado. Não olhou para o garoto. Mas falou:
-Bruce é um bom homem, mas é terrível quando se trata de se expressar com palavras, você já deve ter notado isso.
Jason não respondeu, apenas continuou comendo, os olhos na tela. Jim respirou fundo antes de quebrar o silêncio novamente:
-Não estou dizendo isso pra defendê-lo, estou dizendo porque… às vezes, a gente cresce achando que quem nos ama vai saber exatamente o que fazer, mas nem sempre sabem, às vezes, falham, mentem.
-Você fala como se tivesse uma vasta experiência nisso - ofereceu o adolescente.
-Talvez - admitiu Jim, seu tom era calmo, mas havia uma nota de passado - eu fiz muitas coisas das quais me arrependo, muitas delas envolvendo minha família, porque, no fim, meus anos na polícia me renderam a perda da minha filha mais nova, o colapso do meu casamento e o afastamento do meu único filho restante.
Jason parou por um momento, a colher a meio caminho da boca. O silêncio entre ele e Jim não se quebrou de imediato, mas ficou mais pesado. Ele olhou de relance para o homem sentado do outro lado da sala. O rosto de Jim estava parcialmente coberto pela sombra da luminária, mas os olhos estavam ali, fixos em algum ponto invisível na frente.
-Eu não sabia disso - murmurou Jason, baixando os olhos para o prato.
-Não é o tipo de coisa que a gente sai contando - respondeu Jim, sem drama - mas com certeza é o tipo de coisa que a gente carrega todos os dias, e não estou dizendo isso para ter sua simpatia, apenas estou te contando uma coisa que eu gostaria de ter dito ao meu filho se as coisas entre nós não estivessem tão estremecidas, que os pais nem sempre sabem o que estão fazendo, a paternidade não vem com um manual.
Jason não sabia o que dizer. Parte dele queria devolver alguma ironia, um sarcasmo qualquer, só para manter a muralha em pé. Mas o cansaço de Jim era real, e tão parecido com o seu que parecia um espelho embaçado. Por um instante, ele viu o futuro, e era muito parecido com aquele sofá, com aquele silêncio.
-Eu estou procurando a minha mãe - falou Jason depois de um momento de silêncio - eu vim para Gotham para encontrá-la, mas…eu não sei mais o que quero com isso, uma parte de mim precisa disso, precisa encontrá-la, conhecê-la e entender as coisas, mas outra parte minha só quer agarrar o que existe na minha frente, com medo que isso seja arrancado também.
Gordon escutou em silêncio. Não se moveu. Não reagiu com surpresa nem compaixão escancarada. Apenas ouviu de verdade, como alguém que já aprendeu a não interromper a dor dos outros com conselhos fáceis.
-Essa é uma sensação difícil de carregar - disse ele por fim - a de ter que escolher entre o passado que falta e o presente que pode sumir, e a verdade é que… nenhuma escolha é seguro, porque nenhuma vem com garantia.
Jason encostou o prato no braço do sofá. A comida ainda pela metade. Ele não olhava para Jim, mas também não parecia mais evitar sua presença.
-Eu sempre achei que, encontrando ela, tudo ia fazer sentido - disse o garoto, a voz baixa, áspera - que talvez as coisas ruins iam parar de me perseguir se eu soubesse pelo menos de onde vieram, mas agora nem sei se quero ouvir as respostas.
-Você tem medo de ouvi-las - disse Jim simplesmente - isso é totalmente normal.
-Eu não sei mais o que estou fazendo - desabafou Jason levando uma das mãos ao rosto - eu…eu não sei.
-Você não precisa decidir isso agora - falou o ex-comissário, seu tom era solidário - apenas pense se gosta de ficar com Bruce.
O garoto ficou em silêncio por um longo tempo. O barulho da TV ainda rodava em segundo plano, agora uma reportagem sobre o trânsito. Nada importava ali além daquela sala.
-Eu gosto de Bruce - fala o adolescente depois de refletir por alguns momentos - não é como se ele me tratasse mal ou algo assim, e bem, “Jack” não é exatamente uma pessoa fácil de gostar, mas…não é tão ruim assim dividir um teto com ele.
-Ele tem me falado sobre você - Jim começou a confidencializar, falando do Coringa - ele me disse que Bruce estava em algo que ele chamou de “novo projeto de caridade”, embora você saiba, não é isso que Bruce pensa que você é.
-Vocês são amigos ? - Jason ergueu a sobrancelha por um um momento.
-Algo assim eu acho - respondeu o ex-comissário - ele vem aqui quase todas as terças feiras jogar Poker, me atualizar sobre as coisas da delegacia, às vezes vem assaltar minha geladeira.
Jim deu um leve sorriso com o canto da boca, como se aquela lembrança fosse absurda e familiar ao mesmo tempo. Jason o observou, quase descrente.
-O Coringa joga poker com você ? - ele disse com um tom entre a provocação e a incredulidade.
-Ele conta histórias horríveis enquanto blefa descaradamente - respondeu Jim - e geralmente ganha, ou as vezes me deixa a gente ganhar, não sei, com ele nunca dá pra saber onde a verdade começa e onde termina a performance.
Jason soltou um som que não era bem uma risada, mas se aproximava disso. Uma espécie de suspiro com gosto de cansaço e incredulidade. De novo, silêncio. Mas agora era outro tipo de silêncio, não um muro, mas um corredor estreito, onde se ouve a própria respiração enquanto se caminha.
-Sabe o que é mais louco? - disse o adolescente, mexendo com o garfo na comida já fria sob os joelhos - é que quando eu estou naquela casa... às vezes parece que tá tudo certo, só por alguns segundos parece que eu pertenço ali, e depois tudo quebra de novo, porque eu sei que não foi feito para durar.
-Mas você gostaria que durasse ? - perguntou o ex-comissário.
-Entrar oficialmente para a família Wayne ? - zombou o adolescente - não, eu não acho que seja assim.
-Não acha - refletiu Gordon - mas ainda não tem certeza sobre isso.
Jason abaixou os olhos, o garfo girando entre os dedos. A zombaria em sua voz desapareceu, dissolvida no peso do que vinha depois. Ele não respondeu de imediato. A pergunta de Jim ficou ali, flutuando no ar como poeira no feixe de luz da janela. Inofensiva à primeira vista, mas difícil de ignorar.
-Ainda preciso encontrar a minha mãe - suspira Jason, uma nota de pesar em seu tom, um pesar dolorido - eu sinto que nunca vou ter paz se não souber quem ela é, o que faz e…bem, o porque não ficou comigo.
-Eu entendo Jason - falou o ex-comissário com pesar.
Jason apertou o garfo com mais força, os olhos fixos em algum ponto entre os próprios joelhos. Quando falou de novo, a voz era baixa, mas firme:
-Eu não sei o que eu diria para ela, mas eu sinto que nunca vou conseguir deixar de olhar para trás se eu não terminar isso, se eu não resolver as coisas, mas…eu sinto que estão todos me tratando como se eu fosse uma criança.
-Você também não é um adulto - soltou Jim depois de um momento - você não deveria se forçar a tentar pensar como um, está tudo bem que você tenha dúvidas.
-Eu não sei agir de uma forma diferente - retrucou o adolescente - eu…eu agi assim a minha vida inteira.
-E não gostaria de parar ? - falou Jim, sua voz era acolhedora - jogar videogame, assistir filmes, sair com os amigos à noite ou com alguma garota, ou sei lá, são coisas que eu esperaria de um adolescente na sua idade.
Jason ficou em silêncio por um tempo, encarando o prato agora esquecido no braço do sofá. A comida esfriava, mas ele mal parecia notar.
-Eu não sei se consigo - disse por fim - eu olho pros outros moleques na escola e… eles parecem viver num mundo diferente, como se tudo fosse mais leve, como se pudessem errar e voltar atrás sem perder nada, eu não me lembro da última vez que me senti assim.
Gordon respirou fundo, passando a mão pelo rosto com um cansaço manso antes de entoar:
-Eu sei que não parece, mas... você ainda tem tempo, Jason.
Jason olhou pra ele. Havia algo nos olhos do ex-comissário que o fez ficar quieto. Não era pena. Era compreensão, aquela compreensão profunda, que só vem de quem também já teve o chão arrancado debaixo dos pés.
-Sabe… quando eu vivia com a minha mãe adotiva, de hospital em hospital - começou Jason, hesitante - eu via esses casais levando os filhos pra escola, os moleques reclamando da lição de casa, pedindo hambúrguer, e eu…eu queria sentir raiva, queria odiar aquilo, mas na verdade acho que sentia inveja, porque no fundo, queria alguém que mandasse eu dormir cedo, que implicasse com minhas notas, mas agora que eu tenho algo... meio assim… eu só fico esperando acabar.
-Bruce se importa com você - disse o ex-comissário depois de um momento de silêncio - você sabe disso, sabe que ele só quer te proteger, mesmo que você não queira isso.
-Eu sei - suspirou o adolescente com pesar.
-Você não acha que talvez, só talvez - continuou Jim no espaço de silêncio - tenha sido um pouco duro demais com ele ?
Jason fechou os olhos por um segundo. Não como quem quer dormir, mas como quem tenta empurrar pra longe uma lembrança insistente.
-Eu disse coisas horríveis - confessou, baixo, quase como se estivesse se ouvindo pela primeira vez - e o pior é que... parte de mim quis dizer.
-Porque você se sentiu traído - disse Jim com tranquilidade - porque quando você finalmente baixou a guarda e foi atingido de surpresa, está tudo bem ficar com raiva.
Jason balançou a cabeça devagar antes de entoar:
-Eu só… não entendo como alguém que diz que se importa tanto consegue esconder algo tão grande de mim, porque ele podia ter me dito, poderia ter confiado em mim, mas não fez isso.
Jim não respondeu de imediato. O som da TV, abafado e monótono, enchia o espaço entre eles.
-É como eu te disse, os pais nunca sabem exatamente o que estão fazendo, eles também erram, mesmo que seja tentando acertar.
Jason encarou o chão. Sentia o peito apertado de novo, aquela sensação de que nada fazia sentido e, ao mesmo tempo, tudo fazia sentido demais.
-Eu não sei se consigo voltar e acreditar nele - sussurrou o adolescente - e também tem o Batman, ele disse que iria ajudar a achar a minha mãe, mas ele não apareceu, ninguém me incluí nas coisas que me diz respeito, é como se eles estivessem decidindo as coisas por mim.
-Você conheceu o Batman ? - perguntou Gordon depois que o garoto terminou seu desabafo.
-Sim, eu estava procurando por informações com um colega do reformatório - começou a explicar o adolescente - ele tinha um contato com um homem que trabalhava na empresa do pai dele, como contador, nós fomos na casa dele e lá encontramos o Batman.
-Você se lembra do nome desse cara ? - perguntou o ex-comissário franzindo a testa.
-Humm - pensou Jason por um momento, tentando se lembrar - ele era meio esquisito, mas não sei se lembro do nome dele exatamente, acho que o sobrenome era “Nashton”.
-Edward Nashton ? - perguntou o Jim, como quem confirma uma suspeita.
-Sim, acho que era isso, ele era um cara esquisito - disse o adolescente sem entender para onde a conversa estava indo.
Jim se endireitou na poltrona antes de dizer:
-Não se preocupe com isso, Nashton é um ex-cyberterrorista, é muito inteligente na verdade, mas atualmente é inofensivo, não consigo imaginar o que o Batman estava fazendo atrás dele.
-Estava procurando o paradeiro do Coringa - esclareceu o adolescente.
-Bem - sorriu o ex-comissário - isso é a cara dele.
-Eles são esquisitos - falou Jason depois de um momento - digo, Bruce e o Coringa, eles são um casal bem estranho, uma combinação que deveria ser estudada.
-Eles têm muita história - esclareceu Gordon- vai por mim, eles se amam mais do que parece.
-Vai por mim, eu não preciso de mais demonstrações esquisitas de amor para me convencer disso - Jason fez uma careta.
Jim soltou uma risada curta, abafada, como quem não consegue evitar. Ele gostava do adolescente, o fazia se lembrar do seu filho Jimmy, hoje crescido e parte da equipe policial. Era nesses momentos que o ex-comissário pensava em como realmente estava ficando velho.
Jason pensava em Bruce, nos silêncios pesados, nos olhares cansados. Pensava nas manhãs em que o homem deixava café na cozinha para ele. Porque Bruce era o cara que levantava cedo para seu treino matinal todos os dias, tinha uma rotina totalmente regrada na maior parte do tempo. No entanto, o homem sempre deixava o café para ele na cozinha antes de sair para trabalhar na promotoria. Assim como Jason sabia, o ex-bilionário levava café incrivelmente doce e cereais infantis para o Coringa no quarto. Jason sabia que ele deixava lá, em cima do criado mudo, porque o ex-terrorista acordava apenas cerca de duas horas depois.
O adolescente sabia que Bruce era um homem mais fechado, mas que mesmo com suas limitações em demonstrar que se importava na maior parte do tempo, fazia certos gestos que eram significativos. Bruce era um cara carinhoso do seu jeito. Talvez ele e o Coringa não fossem o modelo de família que o adolescente estava procurando, mas foi o que apareceu para ele, e estranhamente, não era tão ruim.
-Você acha que eu deveria falar com ele? - suspirou o adolescente, evitando o olhar do ex-comissário.
-Talvez - disse Gordon, estudando as feições de Jason - você quer falar com ele ?
-Eu não sei - admitiu Jason.
-Você tem tempo - respondeu Gordon depois de um momento, como uma forma de consolo - não se preocupe se ainda não sabe o que quer fazer.
-Obrigado - ofereceu o adolescente - por ser legal, eu tenho agido como uma criança por quase três dias.
-Não se preocupe com isso - tranquilizou Gordon, antes de sorrir - mas eu preciso de alguém para jogar poker, se você estiver interessado.
Jason levantou uma sobrancelha, surpreso.
-Você está me convidando pra jogar poker? - disse, num tom meio irônico, meio desconfiado.
-Estou dizendo que pode ser mais divertido se tiver alguém novo na mesa - respondeu Gordon com um leve sorriso - e, sinceramente, seria bom ter alguém que talvez não blefe com tanta convicção quanto o Coringa, “Jack” é muito bom mentiroso.
Jason bufou, balançando a cabeça, mas havia uma pequena curva no canto da boca. Não era exatamente um sorriso. Mas era o mais perto que tinha chegado disso em dias.
-Não prometo que vou saber jogar - respondeu.
-Ótimo - disse Gordon, pegando seu livro novamente e abrindo na página marcada - assim fica mais fácil pra eu ganhar.
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O som do vidro estilhaçando ecoou pelo corredor do hospital como uma sirene afogada. Bruce tinha acabado de lançar uma bandeja de metal contra a parede. Não havia ninguém no quarto naquele momento, só ele e o peso daquilo tudo. Estava há horas ali, trancado, olhos fundos. Bruce sabia que estava surtando, mas ele precisava sair daquele maldito quarto, daquela maldita cama. Bruce não era conhecido por relaxar, simplesmente por deixar as coisas para depois.
Ao redor dele, estavam os restos de uma crise, a bandeja virada no chão, um abajur tombado, os cacos de um copo quebrado que ele nem lembrava de ter derrubado. Mas agora tudo estava quieto. Tudo, menos a mente.
Alfred estava ao seu lado, sentado na cadeira ao lado da sua cama em silêncio, olhando o estado do homem que ele considerava como filho. Ele sabia que não faltava muito para que alguém da equipe do hospital entrasse no quarto e notasse o quão perturbado estava o moreno.
-Eu não sei o que fazer agora, Alfred - desabafou o ex-bilionário, seus olhos não encontravam o do homem mais velho.
-Eu tentei tanto... - Bruce continuou - tentei fazer o certo, mas…eu não sei mais o que estou fazendo, eu me descuidei…eu não como deixei que as coisas chegassem nesse ponto, fazia cerca de dois meses que ele não estava medicado e nem indo na terapia, eu…eu fui irresponsável, mas era tanta coisa acontecendo.
Houve um longo silêncio. O ex-mordomo apenas escutava como sempre, sem nenhuma repressão. Às vezes tudo que Bruce precisava era falar. O moreno costumava guardar tudo para si, achando que deveria carregar e resolver tudo sozinho.
-Jason me odeia - continuou o moreno - eu quebrei a confiança dele, não contei sobre Talia, eu... quis protegê-lo, mas acabei sendo igual a todos os outros.
-Isso não é sua culpa - disse o ex-mordomo depois de um momento - você não pode continuar achando que pode fazer tudo sozinho, é coisa demais para uma pessoa só.
-Você não entende, Alfred - disse o moreno.
-Eu entendo muito bem - retrucou o homem mais velho - mas eu acho que você está colocando um peso muito grande nas próprias costas, eu sempre disse que o senhor tem seus limites, e também, me sinto mal por vir aqui trazer mais preocupações.
-O que houve ? - perguntou o ex-bilionário franzindo o cenho.
Alfred respirou fundo. Ajeitou o paletó e então, com a calma de quem sempre trouxe más notícias como se servisse chá, falou:
-Senhor... Talia me procurou ontem e agora... ela desapareceu.
Bruce ergueu os olhos, o coração disparando. Era como um balde de água fria em sua cabeça. Outro problema, outra falha, outro erro.
-Como assim, desapareceu? - perguntou o Wayne.
-Ela me procurou e disse que o Contador de Histórias estava atrás dela - falou o ex-mordomo - disse que não podia arriscar levar o garoto consigo, que ele corria perigo se fosse exposto, quando tentei contactá-la novamente não consegui.
Bruce ficou em silêncio. A pulsação dele estava mais rápida, e não apenas pelo surto anterior. Era como se cada notícia empurrasse mais fundo uma estaca que já estava cravada no centro do peito.
-Onde está o meu filho, Alfred ? - perguntou o moreno depois de um momento, sua voz estava apreensiva.
-Ele está comigo, não se preocupe - tranquilizou Alfred - mas no momento, estou preocupado com senhor, não esperava encontrá-lo nesse estado.
-Eu estou bem - retrucou o moreno - eu ganho alta hoje mesmo, e então eu vou resolver isso.
Alfred observava em silêncio. Havia algo de trágico na forma como Bruce falava. Um homem à beira do colapso, tentando continuar em pé apenas porque não via outra escolha.
-Eu acho que no momento o senhor tem muito em seu prato - falou o ex-mordomo, seu tom era calmo - você deveria ir para casa e descansar.
-Descansar é tudo o que tenho feito nas últimas horas desde que acordei - disse o moreno - sinto que vou surtar se nada for feito.
-O senhor sabe que não vai conseguir ajudar o Coringa desse jeito - disse Alfred tentando trazer o moreno para a razão - desse jeito o que vai conseguir é um passe de ida para dividir uma cela com ele em Arkham.
O silêncio pairou entre os dois, pesado. Bruce se virou para Alfred com os olhos mais escuros do que nunca.
-Talvez a loucura seja mesmo como a gravidade - ofereceu o moreno - eu me sinto em queda livre.
Alfred manteve os olhos firmes no rosto do homem à sua frente. Havia ali, por trás do cansaço, da raiva e da culpa, um garoto que nunca soube como pedir ajuda. Bruce podia ter enfrentado criminosos, assassinos, terroristas, mas nada era tão assustador para ele quanto admitir que não conseguia mais aguentar o que era colocado em suas costas.
Bruce passou as mãos no rosto de novo, como se tentasse se arrancar dali, de si mesmo. Ele não queria estar ali. Não queria estar em lugar nenhum. Queria resolver tudo, fazer tudo voltar ao eixo, mas não havia mais eixo. E o que sobrava era ele, os cacos, e o peso de ser sempre o último a desmoronar, de ser o que não poderia desmoronar por completo.
-O senhor sabe que sempre pode contar comigo - suspirou Alfred - independente de qualquer situação, por mais complicado que seja.
-Eu sei, Alfred - respondeu o moreno - mas eu nem sei como você poderia me ajudar agora.
-Eu vou ficar com Damian e procurar Talia para você - ofereceu o ex-mordomo - onde está Jason ?
-Está com Gordon - falou o moreno - eu o levei para lá depois que ele não quis mais ficar comigo.
-Então está bem - continuou o ex-mordomo - Gordon pode ficar com ele por mais algum tempo, até você resolver o problema maior, porque você precisa se preparar para caso ocorra do-
-Jay não vai para o Arkham - falou o moreno em um tom de definitivo, interrompendo o homem mais velho.
-Não é você quem decide isso - devolveu o ex-mordomo - ele não estava comparecendo às sessões de terapia, tão pouco tem tomado a medicação, você sabe que isso é uma violação grave no caso dele, somado com o que o tenente Charles disse que pode colocar junto na fixa…bem, a situação não é boa, mesmo que ele não vá responder pelos assassinatos de 2006.
Bruce apertou os olhos com força, como se isso pudesse afastar o peso das palavras de Alfred. Ele já sabia disso. Sabia de cada cláusula, de cada risco, de cada detalhe técnico que transformava um erro em sentença. Mas ouvir Alfred dizer em voz alta era como levar um soco no estômago.
-Eu não vou deixar isso acontecer - repetiu, mais baixo, com a voz rouca.
Alfred respirou fundo, mas não respondeu de imediato. Sabia que argumentar agora não adiantaria. Bruce não estava falando como um homem racional. Estava falando como alguém desesperado. Como alguém que tinha chegado no limite e agora estava tentando impedir que o que restava desmoronasse.
-Eu só… - Bruce passou as mãos pelos cabelos, os olhos perdidos - não sei mais o que fazer, mas eu vou dar um jeito.
O ex-mordomo se levantou da cadeira e pegou uma garrafa de água na mesinha. Estendeu para Bruce, que aceitou com relutância, apenas para ter algo entre as mãos.
-Você cada vez mais me lembra o seu pai, Bruce - falou o ex-mordomo, um tom que era neutro, mas cheio de significado - ele também fez tudo que pode pela sua mãe, inclusive o acobertamento do assassinato da senhorita Ross, e você a um ano atrás me disse que nunca passaria por cima da lei como ele, mas então você…bem, você sabe do que estou falando, e agora está falando da mesma forma.
O moreno sabia do que Alfred estava falando. Bruce tinha acobertado e ocultado o corpo do policial Martin que o Coringa matou. O moreno se livrou do corpo, jogou o corpo no rio como se fosse um criminoso. Bruce tinha feito isso. E agora, Alfred achava que o moreno estava pronto para mexer seus pauzinhos o suficiente para que o Coringa não fosse para Arkham. Bruce tinha mudado, o ex-mordomo reconhecia. Não era mais o mesmo homem, que era quando começou a vestir o manto do morcego.
Bruce havia mudado de um jeito que era quase imperceptível para quem não conhecia seus limites morais, ele estava mais flexível, mais inclinado a agir com base em seu coração. Isso assustava Alfred, mas ao mesmo tempo, o orgulhava. Porque o homem mais velho sempre quis que o moreno construísse uma família. E agora que o ex-bilionário construiu, Alfred o via novamente com medo de perder isso. Como perdeu no passado, naquele beco. Quando perdeu seus pais.
Alfred sabe que o moreno tem medo de ficar sozinho de novo, de perder as pessoas que ele ama. Bruce criou o Batman para que as pessoas não tivessem que passar pela dor que ele passou naquele dia. Da mesma forma, Bruce enterrou o manto do Batman para viver sua própria vida, para poder deixar algumas coisas no escuro se curar sozinha. Alfred sabe que isso no fim, não deu certo. Não da forma como o moreno esperava. Porque o Batman ainda era uma sombra que pairava.
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O sol na delegacia já começava a sumir por trás das cortinas pesadas da sala do tenente. Chuck estava analisando os 34 envelopes do atentado desde que voltaram para a delegacia. Ele ainda não tinha chegado à uma conclusão. Haviam certas informações relevantes, mas algo o incomodava. Era como uma contagem regressiva de envelopes, mas mais do que isso. Eram fotografias, ou recortes que faziam referência a tudo que tinha sido visto até o momento.
O tenente já havia iniciado uma sessão de interrogatório com os dois homens do atentado, mas eles não pareciam ser grande coisa. Eram dois homens com passagem por roubo a banco, a única coisa que disseram é que foram contratados para atirar contra a van da polícia. Um deles disse que eles receberam todas as informações por um celular descartável naquela manhã. Nenhum deles disse saber o que havia dentro da mochila, tão pouco sabiam dizer se havia a intenção de entregá-las da parte de quem contratou o serviço.
Chuck não tinha comprado essa ideia, mas ele, os dois homens sabiam mais do que estavam contando e o tenente queria interrogá-los mais tarde a sós. Mas no momento, ele ainda não tinha as perguntas certas. As perguntas certas viriam, ele sabia, porque o Contador de Histórias não fazia as coisas por acaso. Obviamente esses dois homens não sabem as respostas para as perguntas que eles estão fazendo agora. São perguntas óbvias, e o Contador de Histórias jamais entregaria o jogo, nunca foi o estilo dele fazer isso.
No primeiro envelope havia uma fotografia dele mesmo, como se o Contador de Histórias estivesse debochando do tenente. Havia fotografias de outros membros da polícia nos envelopes seguintes, Taylor, Sarah, Castro e Martin. Todos estavam acompanhados de uma palavra que fazia referência a peças de xadrez. Peões.
Chuck achou de péssimo gosto, era como uma zombaria, uma zombaria bem feita. Como se todas essas pessoas fossem simplesmente peças em um tabuleiro de verdade. Como se não fosse algo apenas performático do jogo doentio que estavam jogando.
A maioria das pessoas eram peões, Taylor, Martin, Sarah, Martin, John Paul Smith. Esses dois últimos nomes fizeram o tenente franzir a testa. John Paul Smith era um agente desaparecido, que foi apontado pelo Bruce Wayne assim que ele e o Coringa fugiram do cativeiro onde estavam sendo mantidos naquela época. Por outro lado, o agente Martin tinha sumido também no ano passado, nunca foi encontrado, mas não pesava nada sob ele, ele apenas desapareceu. O que Martin estava fazendo junto com os restantes ?
A única coisa que o tenente conseguiu pontuar é que eram todos agentes da polícia, e pior, a maioria deles estavam envolvidos com corrupção dentro do sistema, como era o caso de John Paul Smith, Sarah e Taylor. Mas e Castro ? Isso seria uma prova definitiva de que ele estava trabalhando para o Contador de Histórias. Castro aparecia como uma peça diferente, ele era lido como um peão também, mas havia algo a mais, um sinal, poderia não significar nada. O número 8.
No entanto, o tenente sabia melhor, ele sabia que o Contador de Histórias nada era por acaso. O número 8 já havia aparecido em algum momento, no ano passado. Esse número geralmente está associado a Lustitia , e a justiça. Mas o que será que isso significava ? Naquele contexto o tenente não sabia. Um peão e número 8. Isso diferenciava Castro do restante dos agentes da polícia, classificados apenas como “peões”. Isso seria o suficiente para apontar com certeza na direção de que Castro tinha algo a esconder ? E mais, que sua transferência para Gotham não foi acidental ?
Envelope 34 - Fotografia = Charles (Torre)
Envelope 33 - Fotografia = Sarah Essen (Peão)
Envelope 32 - Fotografia = Castro (Peão 8)
Envelope 31 - Fotografia = Taylor (Peão)
Envelope 30 - Fotografia = Martin (Peão)
Envelope 29 - Fotografia = John P. Smith (Peão)
A partir do envelope 28, a coisa mudou um pouco e já não mantinham um padrão como antes. Não eram apenas agentes ativos, ou mesmo que haviam morrido ou desaparecido. Isso era algo bastante perturbador. Eram frases, ou nomes de outras pessoas envolvidas de alguma forma no caso.
Envelope 28 - Fotografia = Matthew Cole (Cavalo)
Envelope 27 - Fotografia = Talia Al Ghul (Bispo)
Envelope 25 - Fotografia = Jason Todd (Bispo)
Envelope 24 - Fotografia = Richard Grayson (Bispo)
Envelope 23 - Fotografia = Thomas Moore (Bispo)
Envelope 22 - Fotografia = Bruce Wayne (Cavalo)
Envelope 21 - Fotografia = Coringa (Cavalo)
Envelope 20 - Fotografia = Julian Backwood (Cavalo)
O tenente franziu a testa. Havia algo estranho. Eram 4 bispos e haviam 4 cavalos. Para jogar xadrez precisamos de dois times, então era um tabuleiro duplicado, isso explicava a disposição das peças. Mas por que enviar isso ? O que o Contador de Histórias tinha a dizer com isso ? O tenente não entendia o que queria dizer. Não fazia sentido.
A partir do envelope número 20 as coisas começaram a ficar mais esquisitas, o que antes parecia uma zombaria, os relacionando com peças de xadrez em um tabuleiro se tornou algo mais enigmático. Pareciam fragmentos, sem conexão aparente.
Envelope 19 - Frase = “De um baralho velho e manchado, um Ás emerge…”
Envelope 18 - Frase = “Todos temos um Ás na manga, ou será que não ?”
Envelope 17- Frase = “Corte seu envio pelo naipe do coração, e procure o Ás que traz o mesmo sobrenome.”
Envelope 16 - Frase = “Vamos desafiar essa narrativa”.
Envelope 15 - Frase = “Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge”.
O tenente parou para analisar por um momento, pareciam charadas, ou talvez estivesse embaralhado ou codificado, não seria a primeira vez. Uma coisa o incomodava, a presença do 8 novamente, só que dessa vez, envolvido em uma charada de deck de cartas. Isso envolvia Castro nessa narrativa ? Qual era o significado do 8 nesse novo contexto ?
Ele largou o último envelope sobre a mesa com cuidado, como se ele pudesse explodir. Não era mais apenas uma pilha de papel. Aquilo era um mapa. Não um mapa físico, não com ruas ou endereços, mas uma cartografia de intenções, de jogadas feitas no escuro por um oponente que via tudo muito antes dos outros sequer acenderem a luz.
Ele passou os dedos pela têmpora. O sol morria atrás das cortinas, e tudo na sala parecia se comprimir: o ar, a paciência, a razão. O que era antes um ataque coordenado, agora se mostrava como algo ainda maior. Um jogo de xadrez com regras ocultas. Um baralho com cartas marcadas.
Porque 34 envelopes ? O número ecoava, Castro, o Peão 8. O único peão numerado. Isso não podia ser acidental. O número 8 havia surgido na mesma frase que falava do baralho. “Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge.” Chuck pensava na diferença entre um peão comum e um que alcança a oitava casa. No xadrez, isso significava promoção. Um peão que, ao alcançar o fim do tabuleiro, podia se tornar uma peça poderosa. Mas para que lado ? Isso realmente importava ? Será que havia dois lados no tabuleiro ?
Chuck levantou-se. Os envelopes estavam organizados na mesa, numerados, em ordem decrescente. Era como se o Contador de Histórias estivesse voltando no tempo, desfiando a trama de trás para frente, esperando que alguém entendesse a direção. Porque ele os organizou assim ?
Os envelopes 14, 13 e 12 repetiam as mesmas charadas que eles já conheciam muito bem. A última, no entanto, ainda não tinha uma resposta. O tenente ainda não havia sido capaz de resolvê-la.
"Sou o lugar onde o silêncio encontra o fluxo constante, sem nunca ver o sol. Carrego pedras e lama, sou onde os segredos da água repousam em paz. Quem eu sou?" (Contêiner)
"Sigo caminhos que os olhos não podem ver, uma rede que conecta o que não pode ser. Sou o laço entre o vazio e a existência. Quem sou eu?" (Julian Backwood)
"O passado tem uma maneira curiosa de assombrar os que tentam enterrá-lo. Sementes plantadas em terras distantes germinam na sombra, crescendo sem que seus cultivadores sequer saibam de sua existência. O fruto logo estará maduro. Mas será que o jardineiro está pronto para colhê-lo?" (???)
Já os envelopes 11, 10 e 9 eram referências às três linhas de investigação que foram feitas no ano passado. Uma delas com relação com a Wayne Enterprises, outra com o tráfico de pornografia infantil e a última, a que recriava antigos casos do agente Julian Backwood. Backwood, no entanto, unia todas as três linhas de investigação, já que havia investigado o caso de Samantha Ross, e também, investigado uma ligação entre a família Elliot e a família Maroni. As coisas sempre voltavam para Backwood, de um jeito ou de outro. Ele era um elo, algo que amarra toda a história. Mas porque ?
O envelope 8 talvez fosse o envelope mais misterioso, não havia nada dentro dele. Era vazio. Parecia algo simbólico. Já no envelope 7 havia outra frase.
"A peça esquecida nunca deixou o tabuleiro”
Os últimos 6 envelopes eram singulares. O envelope número 6 tinha uma fotografia, parecia uma câmera de segurança, não dava para identificar muita coisa disso. Mas o tenente teria que passar por algum programa, para tentar diminuir a granulação e melhorar a imagem. Os envelopes número 5, 4, 3 e 2 o assustaram de certo modo. No envelope 5 havia uma fotografia na sala de sua casa, como se alguém tivesse adentrado lá. O envelope 4 era mais ou menos a mesma coisa, mas era a cozinha da casa do Bruce Wayne, Chuck já tinha estado lá algumas vezes. No 3, era o corredor da casa do ex-comissário Gordon e no envelope número 2, era um apartamento que o tenente não conseguiu identificar. O que isso queria dizer?
E havia o último envelope, nele apenas um desenho palito, um homem enforcado. Em um jogo de forca. Havia espaços embaixo. Oito espaços. Uma palavra de oito letras. Novamente, o número 8 se repetia como um mantra de maldição. Chuck ficou parado. O tempo parecia se contrair em torno do último envelope.
O desenho simples do jogo da forca, traçado com traços infantis, contrastava com toda a complexidade dos envelopes anteriores, e talvez por isso mesmo fosse o mais ameaçador. Um homem palito pendurado por uma corda, oito traços sublinhando o espaço onde uma palavra deveria estar. Oito letras, oito casas no tabuleiro.
E o número 8 aparecendo mais uma vez como se assombrasse o ritmo da investigação. Não havia letras preenchidas, nem dicas aparentes. Somente o desenho, cru e frio. Chuck sentou-se novamente, com os olhos fixos na folha. Ele pensava no vazio do envelope 8, no silêncio dele. E pensava que talvez aquele espaço não fosse sobre o que faltava, mas sobre o que estava ausente por intenção. Um convite ao silêncio, ou ainda, à ausência.
As conexões se embaralhavam, mas havia uma lógica escondida sob as camadas de caos. O tenente podia sentir isso, porque com o Contador de Histórias, nada era por acaso. Nunca. Talvez a palavra que o enforcado escondia estivesse ligada a uma identidade, ou ainda, a uma confissão. Mas o mais perturbador era o padrão. Havia um padrão doentio. Uma contagem regressiva, apontando peças, do envelope 34 ao 20, depois indo para uma sequência do que parecia ser uma charada, dos envelopes 19 ao 15. Depois disso, o padrão pareceu voltar para o passado, mostrando as três charadas que já haviam aparecido antes, nos envelopes 14 ao 12. E depois, ainda com o mesmo padrão de passado, referências às três linhas de investigação do caso do ano passado, nos envelopes 11 ao 9.
E então havia aquele envelope peculiar, o envelope que parecia deslocado. O envelope 8. E depois o envelope 7 com mais uma frase. Estaria ela fazendo referência ao envelope 8 ? Chuck não sabia o que pensar. E por último, havia as fotos, primeiro aquela de uma câmera granulada (envelope 6) e então, a sequência da sua sala (envelope 5), a cozinha do apartamento do Bruce Wayne (envelope 4), o corredor da casa de Jim Gordon (envelope 3) e depois aquele outro apartamento, que o tenente não tinha conseguido identificar. E finalmente, o último envelope, o homem enforcado, 8 letras.
O tenente sabia que deveria haver um padrão, um motivo para que as coisas estivessem alinhadas e agrupadas desta maneira. O Contador de Histórias era um homem que gostava de se ater aos detalhes. Ele era bom nisso.
Ele estava frustrado, não havia ninguém em quem ele confiava o suficiente nesse momento para ajudá-lo, pelo menos não pessoas da polícia. Ele sabia que as únicas pessoas com quem poderia contar era o ex-comissário Gordon, e pasmem, Bruce. O tenente não queria trazer Jim novamente para a roda, mas sentia que não sabia mais o que fazer. Depois da descoberta da traição de Sarah, o tenente sentia que cada passo seu estava sendo relatado para o inimigo. Ele se sentia encurralado.
E ainda havia outras pendências. Havia Richard Grayson, que ainda estava desaparecido e talvez até morto à essa altura. Havia o interrogatório de Sarah que não deu em nada. E Chuck não sabia o que fazer com tudo isso. Ele tinha mais dois interrogatórios para conduzir, e sentia que isso era impossível sem uma equipe. Mas ele não tinha uma equipe. Sua equipe atual não se mostrou confiável. Ele confiava em Sarah, confiava em Taylor, eram seus melhores agentes, escolhidos a dedo.
O tenente passou a mão pelo rosto por um momento, exausto. Já não havia luz lá fora, e Gotham mergulhava na escuridão da noite. Ele sabia que precisava buscar ajuda, talvez buscar ajuda fora do tabuleiro. Ele pensou no que restou de sua equipe original, aquela da qual Annie fazia parte. Ele perguntou internamente para si mesmo se já estava sendo traído naquela época. Ele não sabia se queria uma resposta, porque ele queria acreditar que não.
Chuck não era ingenuo, ele sempre soube que o sistema político e policial de Gotham era corrupto. No entanto, ele nunca pensou que pessoas tão próximas dele, pessoas que ele confiava, iriam apunhalá-lo pelas costas.
Ele abaixou os olhos para a mesa. Tudo à sua frente parecia mais pesado agora. Cada envelope era uma ferida, uma rachadura na estrutura já frágil. Ele tentou montar o quebra-cabeça, tentava todos os dias. Mas agora... era como se o próprio tabuleiro estivesse se desfazendo sob seus pés. Ele não tinha mais aliados. E o mais aterrador era a constatação de que, talvez, nunca tivesse tido.
O tenente esfregou o rosto com as duas mãos. O que ele estava enfrentando não era só uma rede de corrupção. Era uma máquina viva. Um enredo costurado com a delicadeza de quem tinha esperado muito tempo, talvez décadas para ver cada linha cair em seu devido lugar.
E o que o Contador de Histórias queria no fim? Justiça? Vingança? Confissão? Chuck se deteve na última frase do envelope 7.
“A peça esquecida nunca deixou o tabuleiro.”
Que peça era essa ? Seria coincidência que ela apareceu logo depois do envelope em branco ? Estaria essa frase fazendo referência ao envelope 8 ? Porque não havia nada no envelope ? Talvez fosse a mesma tese da folha em branco. Talvez fosse a mesma lógica da folha que foi dada para Sarah no dia em que ela foi recrutada pelo Contador de Histórias Quando ela foi recrutada como mais um de seus peões descartáveis, depois de matar o peão dele, o agente Taylor. Talvez, o envelope 8 vazio esteja ligado com a folha em branco. Havia algo que os ligava, uma ausência. Mas o que isso queria dizer ?
O tenente não era tolo, ele sabia que não poderia resolver tudo isso sozinho. Chuck nunca se considerou um homem brilhante, ele era acima da média, mas não era um gênio. Não como Bruce Wayne, ou ainda, como Edward Nashton. Chuck era o cara da burocracia, ele era o cara que fazia o trabalho chato. Ele nunca foi como Gordon, e até mesmo Gordon tinha suas limitações nesse campo.
Chuck se recostou na cadeira, os olhos ainda colados nos envelopes. A luz fraca da luminária criava sombras longas pela mesa, como se os próprios papéis estivessem sussurrando uns aos outros, tramando algo pelas suas costas.
Ele sabia que era um péssimo momento para se autodepreciar. Mas havia algo desesperador na ideia de estar sozinho, em não poder confiar em ninguém sem medo de ser traído. Porra, isso era maior que a polícia, era maior do que Gotham. Ele sabia que precisava de uma nova equipe.
Chuck sabia, racionalmente, que deveria contactar Gordon. O ex-comissário era a única pessoa que ele podia pensar no momento. A única pessoa que poderia ajudá-lo. E havia Bruce, mas ele e o ex-vigilante não estavam em bons termos. Ele pensou em Nashton, mas era muito difícil fazer o ex-Charada cooperar com a polícia, sempre era preciso uma boa dose de persuasão. E era difícil persuadir uma pessoa como Nashton, geralmente Chuck apelava para Bruce, que tinha mais jeito para lidar com o outro homem.
Ele respirou fundo. Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que não precisava de mais peças. Ele precisava parar de olhar para os envelopes, parar de olhar para a investigação, apenas por um momento. Mas uma dúvida sempre ficava quando ele fechava os olhos para dormir. Que história o Contador de Histórias estava narrando ? E o mais importante, o porque estava narrando, porque agora ? Porque dessa forma ?
Chuck apoiou os cotovelos na mesa e passou as mãos pelo rosto, os olhos queimando. A questão não era mais apenas “quem fez isso?”, mas por que alguém esperaria tanto tempo para começar a contar essa história?
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Bruce caminhava pelos corredores do hospital com um passo firme, mas lento. Ainda havia dor em seu corpo, reflexo da internação recente. Recebera alta poucos minutos antes, e poderia ter ido para casa. Mas a casa, no momento, era só uma caixa vazia. Ele sabia que Alfred estava certo em mandá-lo ir para casa e descansar, mas ele não conseguia. Não no momento.
O moreno parou em frente da porta do quarto por um momento antes de entrar. Ele não tinha comunicado a equipe do hospital, mas ninguém seria maluco o suficiente para tentar barrá-lo novamente de fazer o que queria fazer. O Coringa estava deitado, os cabelos loiros bagunçados, grudados no rosto pela transpiração, as contenções ainda presas nos pulsos, como se ele fosse explodir a qualquer momento, mas ele não iria explodir. Estava sedado demais, os olhos meio abertos, mas sem foco.
Bruce se aproximou devagar. Sentou-se ao lado da cama, observando o rosto do homem que, por tanto tempo, foi o seu oposto, e hoje era o único lugar no mundo onde ele se sentia completo. Eles foram feitos um para o outro de um jeito tão distorcido que Bruce sentia que demorou muito tempo para perceber que o amava. Amá-lo foi uma construção, foi a ressignificação de muitos conceitos já estabelecidos.
No entanto, ali naquele quarto de hospital, aquilo na sua frente era... perturbador. Ver Jay daquele jeito, tão calado e afundado sob uma névoa espessa de sedativos. Bruce não gostava de vê-lo assim, tão drogado que provavelmente nem sabe o que está acontecendo ao seu redor.
Bruce suportava todas as facetas do outro homem. A faceta do palhaço, geralmente a mais comum, teatral, infantil e irritante. Algo tão enraizado nele como um câncer de humor ácido e piadas sem sentido. A faceta homicida, essa geralmente era bem assustadora, os contornos divertidos sumiam da postura do loiro, e tudo que existia era a mania fria. Era diferente de vê-lo matar ou torturar com o rosto do palhaço, era mais cru, mais doentio. Era nesses momentos, quando o Coringa perdia sua teatralidade, que era possível ver o que havia além, um sociopata. Um sociopata frio e de humor podre. Mas uma pessoa que é de fato, doente.
E havia outra faceta, uma que geralmente não aparecia sem um gatilho específico. Talvez a mais difícil de lidar. A faceta dos traumas, a que não tem a intenção de ser violenta, mas que acabava sendo, talvez como forma de autopreservação. Porque Bruce sabia que o Coringa tinha muitas feridas não curadas em relação ao passado. Isso se refletia em várias coisas. O moreno não é psiquiatra, ou psicólogo, mas não quer dizer que ele não tenha estudado para tentar entender melhor. Ele queria entender.
O ex-bilionário passou os dedos com cuidado pela beirada da contenção no pulso direito do ex-terrorista.
-Eles não vão te soltar até ter certeza que você não vai tentar... você sabe - murmurou Bruce, como se o palhaço pudesse responder, talvez uma parte dele ouvisse, ou não - e eu…eu sei que você odeia hospital, odeia ficar preso e odeia sedativos, mas eu preciso que você fique bem, para mim poder ficar bem…
O Coringa continuava imóvel. Os olhos estavam entreabertos, mas inertes, como os de uma boneca antiga. Bruce odiava aquela expressão, ele preferia que o ex-terrorista estivesse debochando de sua cara, fazendo algum comentário idiota sobre a situação.
Bruce se inclinou um pouco mais, passou os dedos pelo cabelo loiro e úmido, afastando a franja da testa. O toque era quase reverente.
-Eu queria que você gritasse comigo agora - continuou o ex-bilionário, sua voz carregava uma rachadura quase imperceptível - que me chamasse de idiota ou dissesse algo para me irritar, porque eu preciso disso agora.
Ele abaixou o olhar para o peito do loiro, que subia e descia num ritmo lento, regular, pesado demais para ser natural. Bruce sabia o motivo da sedação, ele sabia o quão perigoso o Coringa poderia ser. Ver o loiro assim era como olhar para um mar calmo onde antes havia uma tempestade. E Bruce não confiava em mares calmos na superfície, não quando ele sabia que a tempestade ainda se arrastava por dentro, no fundo.
-Você é um desgraçado - murmurou o moreno, quase com carinho - mas eu não estou pronto para te perder para uma camisa de força e um leito acolchoado.
Bruce fechou os olhos e respirou fundo, antes de sentar na beira da cama e tirar os sapatos com uma calma que não combinava com o momento. Ele soltou um dos pulsos do ex-terrorista do ferro da cama para poder virá-lo de lado na cama estrita. Bruce em um movimento lento, se deitou atrás do loiro. Um gesto que era impróprio, e absurdo para o lugar onde estavam. Mas o moreno precisava disso, ele precisava segurar o outro homem contra si por um momento. Somente por um momento.
Ele encaixou o corpo do ex-terrorista com uma precisão silenciosa, como quem volta para um lugar conhecido. Um braço passou pela cintura magra do loiro, o outro ficou por baixo do travesseiro. Ainda havia dor no ombro, no lado esquerdo, onde os pontos repuxavam, mas Bruce ignorou, ele apenas pressionou o rosto contra a nuca suada do Coringa, fechando os olhos como se, naquele gesto simples, pudesse se ancorar em algo real.
Bruce fechou os olhos e fingiu que estavam em casa. Fingiu que o riso viria em seguida. Que o Coringa acordaria, reclamando da comida ruim, pedindo cereal doce e exigindo o controle da televisão. Fingiu que amanhã não havia um sistema querendo colocar o ex-terrorista de volta em Arkham, ou Jason ainda magoado, Richard desaparecido, ou Alfred tentando segurá-lo pelo colarinho da razão.
Bruce pensava em tudo que não conseguia dizer. Em todas as vezes que odiou o Coringa. Em todas as vezes que o desejou. Em cada parte da vida em que ele tentou arrancar esse homem de dentro de si, mas falhou. Porque amar o Coringa era como amar um incêndio. Ele queria protegê-lo, mas não sabia como. Como você protege alguém como o Coringa ? O palhaço, na verdade, não precisava da sua proteção, e Bruce sabia disso em algum nível.
O ex-terrorista era completamente capaz de lutar sozinho, mas Bruce não queria isso. Não queria. Porque quando você ama uma pessoa, você quer protegê-la, independente dela ser capaz ou não. Você não quer que ela sofra. Mas como se protege um incêndio ? E o pior, um incêndio que queimava por dentro ?
A mão do moreno que estava na cintura do Coringa deslizou com cuidado até os dedos soltos do pulso livre. Entrelaçou-se neles com cuidado, como uma carícia. Bruce ficou ali, em silêncio, por longos minutos. O calor do outro homem aos poucos vencendo o frio do hospital. A dor, a angústia, o medo, tudo parecia suspenso. Suspenso e pesado sob suas cabeças, mas sem alcançar seus ossos.
E Bruce ficou ali, respirando abaixo daquele emaranhado suspenso. Por um instante não dava para medir em minutos ou segundos. O quarto se tornava um refúgio mínimo, apertado, de paredes brancas e cheiro de éter, mas ainda assim um refúgio. O mundo lá fora poderia continuar girando, se despedaçando. Bruce não se importava. Não agora. Agora ele só queria ficar ali, com a testa encostada na pele quente da nuca do ex-terrorista, ouvindo aquele som quase imperceptível da respiração lenta.
-Você não tem ideia do que faz comigo - sussurrou o moreno, quase num suspiro - Você bagunça tudo, me vira pelo avesso, e ainda assim…
Ele não terminou a frase. Somente apertou os dedos em volta dos do loiro com um cuidado que contrastava com tudo que a história dos dois já foi. No silêncio do quarto, Bruce pensou no amor. Não no amor como falavam nos livros, ou nos filmes, ou nas promessas mentirosas da infância. Pensou no amor como ele conhecia, o amor torto, meio violento e contraditório. Um amor que machuca como uma tela de arames farpados, mas que aquece como um banho quente no inverno. Um amor que resistia, que não cabia nas palavras e que jamais caberia.
O loiro nunca pediu nada dele, nunca prometeu nada também. Ele não era confiável, não era estável. Mas mesmo com todos os alertas, todas as cicatrizes, todas as noites em claro, havia algo ali. Algo que Bruce não encontrava em lugar nenhum. Uma coisa antiga e quase infantil. Um sentimento que o fazia querer colocar o outro homem contra seu peito nas noites ruins e dizer que estava seguro. Mesmo que soubesse que segurança era um conceito frágil demais para o loiro. Dizer que iria protegê-lo, mesmo que não soubesse do que ou como fazer isso.
Bruce apertou os olhos com força. Ele não era bom com palavras. Nunca foi. Era péssimo em expressar o que sentia, mesmo nos momentos mais simples, mesmo com as pessoas mais próximas. E com Jay… era pior. Porque não havia linguagem possível que traduzisse o que ele sentia por ele de verdade. Porque com o Coringa tudo era exagerado. Era intenso demais, às vezes dolorido demais, amargo e dramático demais. Silêncios longos, mudanças de humor e discussões que não levavam a lugar nenhum. Mas Bruce sabia que não conseguiria mais viver sem isso. A ideia de viver sem isso o desesperava.
Ele enfiou o rosto mais fundo na curva do pescoço do outro homem. Queria afundar ali. Desaparecer naquela respiração pesada e no calor, fingir por alguns minutos, que estavam bem. Que estavam em casa. Que o loiro não estava sedado até os ossos em uma cama de hospital depois de surtar, matar o cachorro deles e esvaziar uma arma na direção dele. Bruce só queria fingir que estava tudo bem. Ele precisava que tudo estivesse bem.
-Você sabe…- começou Bruce no silêncio, divagando - você sabe que eu faria qualquer coisa por você, não é ? Que eu te amo tanto que às vezes acho que fiquei louco no meio do caminho e não sei mais o que estou fazendo, me desculpa…eu estava com tanta coisa na cabeça que eu não prestei atenção nos sinais, eu…eu não pensei que as coisas fossem ficar tão fodidas assim, eu não estava cuidando de você.
A respiração lenta do ex-terrorista era a única resposta que vinha. Aquela calma forçada, embutida em miligramas de contenção química, era tudo que Bruce tinha agora. Mas ele continuou, falando como se suas palavras pudessem entrar pelas frestas da consciência do outro homem. Como se algum fragmento do Coringa ainda estivesse ali, ouvindo.
-Eu devia ter percebido - sussurrou Bruce, o queixo roçando de leve na pele do pescoço do loiro - eu deveria ter prestado mais atenção, eu sabia que você não estava indo na terapia, que não estava tomando seus remédios e eu…eu achei que poderia…na verdade, eu não sei o que eu estava pensando.
A mão entrelaçada na do loiro apertou de leve. Um gesto tão pequeno, mas que para Bruce parecia vital, era o que o mantinha ali, ancorado.
-Eu te amo - disse o moreno simplesmente, beijando a nuca do ex-terrorista - eu prometo que vou consertar isso, eu não vou deixar nada acontecer com você, nós vamos voltar para casa.
E mesmo sem resposta, mesmo com o mundo em ruínas do lado de fora, Bruce sentiu que aquela era a única verdade que ainda restava a ele.
Notes:
Obrigado a quem está acompanhando até aqui. Sério, eu sei que é complicado acompanhar uma história longa. Novamente, obrigado pelos elogios, os comentários me deixam bem feliz :)
Chapter 45: The Gotham We Have (Parte 45)
Notes:
Então gente, o capítulo da semana está aí. Ficou meio curto, mas é porque eu eu andei com muitos problemas pessoais e isso meio que fez meu desempenho cair um pouco. Desculpem qualquer erro de português, é que eu realmente não tenho tempo de ler os capítulos que eu escrevo kkkk
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Na manhã seguinte, o céu de Gotham era uma massa uniforme de nuvens baixas e pesadas, como se a cidade inteira estivesse presa num limbo de tempo suspenso. Chuck estacionou o carro em frente à casa do ex-comissário Gordon e ficou alguns segundos com as mãos no volante, sem se mover. O motor ainda roncava baixo, mas seus pensamentos estavam muito mais altos.
O tenente não sabia exatamente o que o levou até a casa do ex-comissário, mas sabia que era algo que vinha se misturando com o sentimento de impotência que somente crescia dia após dia. Chuck sabia que não conseguiria fazer isso sozinho, quase tudo que ele tinha descoberto havia sido mastigado por terceiros, seja por Gordon no ano passado, ou mesmo Bruce e Nashton.
Chuck suspirou e desligou o carro. Ele sabia que estava exausto, jogando em um jogo que não conhecia as regras. Cujos passos de seu adversário que determinava a direção das peças.
Quando o tenente bateu na porta, o som ecoou pela casa com um tom seco, quase deslocado do silêncio ao redor. Jim abriu a porta segundos depois, de óculos e ainda vestindo uma camisa de flanela gasta, o café da manhã aparentemente interrompido.
-Chuck? - a surpresa na voz de Gordon não era fingida.
-Eu posso entrar ? - perguntou o outro homem sem rodeios.
Jim deu espaço sem hesitar. O olhar do ex-comissário escaneou o rosto do tenente, lendo nas entrelinhas que aquilo não era apenas uma visita educada.
A porta do quarto de hóspedes permaneceu entreaberta. Jason estava deitado ainda, era muito cedo. Mas ele ouvia tudo, as paredes eram finas e não havia barulho no ar além dos dois homens adultos na sala. Jason não fazia isso por intromissão, mas por costume.
Na sala, Chuck se sentou no sofá com uma postura tensa, as mãos entrelaçadas como se segurasse algo prestes a quebrar.
-Acho que tentaram me matar - começou o tenente, seu tom era desconfortável - ou talvez fosse apenas para entregar a mensagem, eu não sei mais, e não confio em ninguém depois de tudo que vem acontecendo.
Gordon não respondeu de imediato. Pegou sua caneca de café e estendeu outra a Chuck. O tenente aceitou com um aceno breve.
-Eu soube…- falou o ex-comissário depois de um momento, o pesar era evidente - sobre Sarah, a gente sai do departamento mas o departamento nunca saí da gente.
-Sinto muito por isso - devolveu o tenente - eu sei que vocês…bem, você sabe.
-Isso foi a muito tempo - suspirou Jim antes de beber um gole de sua caneca - nós tentamos, digo…depois que eu e Bárbara nos separamos, nós tentamos, mas acho que estamos machucados demais eu e ela para esquecer tudo e seguir em frente, as vezes o amor não basta para fazer funcionar.
-Mesmo assim - insistiu Chuck - eu sinto muito.
-Eu também - aceitou Jim, antes de fazer um momento de silêncio e mudar de assunto - mas acho que você não veio aqui para chorar minhas relações amorosas.
-Não - concordou o tenente - eu preciso da sua ajuda, eu não sei em quem posso confiar e sinto que não posso fazer isso sozinho.
Jim assentiu, devagar, como se aquela frase tivesse um peso que ele já conhecia bem.
-Ninguém consegue - respondeu ele, pousando a caneca sobre a mesa de centro - você acha que consegue, no começo, e depois… tudo escorrega pelas frestas.
Chuck passou a mão pelo rosto, os dedos pressionando os olhos, como se quisesse empurrar o cansaço para dentro da pele.
-Eu estou tentando ligar as pontas do caso do Contador de Histórias desde que você se aposentou - continuou o tenente - você sabe de tudo que tem rolado, misturado com o caso que resolvemos no ano passado…as ligações estão ficando complicadas de assimilar e cada vez mais eu não sei o que cada coisa significa, ou como se relaciona ou porque.
Jim assentiu devagar, os olhos baixos, como se o peso daquela confissão de Chuck tivesse trazido à tona algo que ele mesmo preferia manter enterrado. Ficaram alguns segundos em silêncio. O tipo de silêncio que só existe entre dois homens cansados demais para disfarçar.
-Já estive na sua pele - falou o ex-comissário - você sabe que eu não queria me aposentar realmente, foi uma aposentadoria compulsória, porque eu não tinha pistas para continuar investigando, mas não largava o osso, igual a você.
Chuck abaixou o olhar para a própria caneca, ainda intacta. Pensou em jogá-la contra a parede. Só para ver alguma coisa quebrar de verdade.
-Eu tenho perdido o sono - confessou o tenente, quase sem perceber que dizia em voz alta - sinto que estou falhando, que estou jogando um jogo que não posso ganhar.
Um silêncio mais denso caiu entre os dois, depois de alguns momentos, o ex-comissário disse com um tom calmo:
-Me conta o que você tem.
-Desde a última vez que conversamos eu descobri algumas coisas, e muitas coisas aconteceram também - começou o tenente - você com certeza chegou a ler a matéria no The Gotham Times, estava tudo dentro dos conformes, até…bem, até não estar e eu descobri que era uma armadilha, que fiz exatamente o que o Contador de Histórias queria que eu fizesse.
Chuck parou por um momento. Respirou fundo. O cheiro do café, que antes era um alívio, agora parecia amargo demais.
-Eu mandei Richard Grayson direto para o fogo cruzado e agora ele sumiu, faz cerca de 76 horas talvez mais - continuou o tenente - e eu não sei o que fazer, em quem confiar e como proceder com isso, e tem mais coisas acontecendo, e eu não sei por onde eu começo.
Jim se recostou um pouco mais no sofá, os olhos firmes no tenente esperando que esse continuasse.
-É muita coisa para te contar - suspirou Chuck.
-Temos tempo - respondeu o ex-comissário simplesmente.
-Descobri de quem é o DNA encontrado nas unhas das crianças do contêiner desaparecido em 2006 - continuou o tenente depois de um momento - é o DNA do Coringa, falei com Bruce, mas você sabe como ele é, ele se recusa a ver que o Coringa está envolvido com isso, que estava tentando ocultar provas, que tem ligações com essas pessoas que comandam tráfico de pessoas.
O silêncio que se seguiu àquela última frase foi mais espesso do que qualquer outro antes. Gordon não se mexeu. Nem sequer piscou. Chuck, por sua vez, parecia estar esperando uma reação, qualquer reação. Um espasmo no olhar, um sinal de incredulidade ou surpresa. Mas nada veio.
O ex-comissário apenas se recostou um pouco mais no encosto do sofá, como se o peso daquela revelação já estivesse ali há muito tempo antes de dizer:
-Ele não está envolvido como você acha que está.
-Você também ? - perguntou o tenente incrédulo - Bruce me disse a mesma coisa, ele acha que o Coringa foi traficado quando criança, mas isso não faz o menor sentido. Porque ele mataria aquelas crianças em 2006 ? Porque ele iria queimar o prédio antes que pudéssemos fazer uma perícia no lugar ? O que ele ganharia com isso ? Porque parece que ele está protegendo esses caras.
Gordon respirou fundo, como se precisasse de ar para encontrar as palavras certas. O silêncio se estendeu por um momento antes que o ex-comissário dissesse:
-Eu não sei o que se passa na cabeça dele.
Chuck o observava com atenção, tentando decifrar aquele tom. Era um tom que o ex-comissário usava bastante quando se tratava do Coringa.
-Ele matou aquelas crianças, Jim - enfatizou o tenente, seu tom era duro - eu tenho motivos de sobra para pensar que ele está envolvido com o tráfico de pessoas, e eu vou fazê-lo pagar por isso.
-Vai mandá-lo para o Arkham ? - questionou o ex-comissário, seu tom era neutro.
-Estou juntando provas para isso - suspirou o tenente - preciso entrar com um pedido para revogar a liberdade condicional, não vou conseguir interná-lo por assassinato, mas no momneto, me contento com ocultação de provas.
-Você vai comprar uma briga que não quer, com Bruce - pontuou o ex-comissário.
-Bruce pode esperar o dele também - rosnou o tenente - vou mandá-lo para Blackgate se ele começar a me ameaçar e interferir na polícia.
Jim suspirou depois de um momento. Ele sabia da animosidade entre Chuck e Bruce, de como eles constantemente não confiavam um no outro, apesar da colaboração. O Coringa era um ponto complicado entre os dois. Chuck ainda não conseguia esquecer, as cicatrizes mal curadas queimaram, porque o ex-terrorista foi o culpado pela morte da sua equipe.
-Você tem algo maior no momento Chuck - falou Gordon - acho que pegar o Contador de Histórias é mais urgente do que sua vingança pessoal para com o Coringa.
-Não estou fazendo isso por mim ou pela minha equipe - retrucou o tenente - ele matou aquelas crianças, e tentou ocultar as provas de um dos cativeiros da organização, eu sei que ele está envolvido nisso, eu sei.
-Sabe ? Ou você só quer acreditar nisso ? - perguntou o ex-comissário antes de continuar - o Coringa é um cara terrível, eu sei disso, você sabe disso e até Bruce sabe disso, mas você também sabe que mesmo sendo imprevisível o Coringa tem um modus operandi. O que ele ganharia fazendo parte desse tipo de organização ?
-Eu lá tenho cara de psiquiatra ? - retrucou o tenente.
-Chuck isso não faz sentido - suspirou o ex-comissário - Coringa é um terrorista, ele gosta de espetáculos, explosões, atentados, grandes lutas com monólogos, algumas manipulações doentias e similares, não é o perfil dele fazer parte de uma organização que trafica pessoas, e não porque é doentio demais para ele, mas porque é organizado demais, por baixo dos panos demais, sem nenhum propósito além de dinheiro.
Gordon fez uma pausa. Pegou a caneca, mas não bebeu. Apenas ficou ali, com os dedos em volta do calor já morno, encarando Chuck como quem tentava empurrar uma verdade muito indigesta pela garganta do outro.
-Às vezes, Chuck - continuou o ex-comissário - a gente quer tanto que alguém seja o culpado… que para de olhar para quem realmente está fazendo o estrago.
Chuck bufou. Virou o rosto e encarou a janela por um instante. A luz cinzenta da manhã escorria pelas frestas da cortina como uma ameaça velada.
-Eu não estou procurando bode expiatório - retrucou o tenente - só acho que não pode ser coincidência.
-Não é - concordou Gordon, calmo - mas talvez não signifique o que você acha que significa.
Chuck estreitou os olhos antes de dizer:
-Você também acredita nisso, que o Coringa foi traficado.
-Sim - concordou o Gordon - não foi fácil para mim simplesmente passar a acreditar nisso, precisei enfrentar algumas coisas, inclusive coisas sobre mim mesmo.
-Você nunca me disse - falou Chuck de repente - sobre o que aconteceu no Arkham.
-Talvez não soubesse como falar - respondeu Gordon.
-E hoje sabe ?
O ex-comissário parou por um momento, havia algo pesado em seu silêncio. Era um silêncio carregado, denso. Gordon não gostava de pensar sobre isso, em algum grau ele sabia que tinha sido cúmplice do que aconteceu, embora não soubesse na época exatamente o que estava sendo feito.
-Você sabe que eu sabia que os internos estavam sendo torturados - começou o comissário - embora eu não soubesse exatamente o que estava sendo feito com eles.
-Eu sei, você se sente culpado por isso, mas v-
O tenente foi cortado por Gordon simplesmente:
-Foi errado, independente de quem eles eram, aquilo nunca devia ter acontecido.
-Mas aconteceu - disse o tenente no silêncio que se instalou.
-Sim, aconteceu…- falou o ex-comissário com pesar, antes de tomar um gole da xícara de café - eu não sei exatamente o que aconteceu com todos eles, os que não aceitaram a reabilitação, e acho que não gostaria de saber, o que eu sei já é o suficiente para não conseguir dormir todas as noites, eu… eu sei que você não conheceu muito bem o Matthew, mas que era amigo de Annie, e eu não quero estragar a imagem que você tem dele por causa disso.
-Acho que depois de tudo que vimos no ano passado, é bem difícil estragar mais a minha visão dele - disse o tenente.
Jim balançou a cabeça devagar, um sorriso fraco, quase inexistente, passou pelo canto de seus lábios antes de sumir de novo, engolido pela tensão que preenchia a sala.
-É... talvez você tenha razão - murmurou ele - mas mesmo assim, ainda é uma merda, porque Matthew é um cara bem mais bizarro do que você pode pensar, acredite, Bruce tinha os motivos dele por ter surtado quando achou que Andy tinha entrado no apartamento dele, ou mesmo, eu tive meus motivos para ter mantido esse cara preso em Blackgate por quase um ano depois da sequência de merdas do ano passado.
-O que aconteceu ? - perguntou o tenente, seu cenho franzido.
-Andy queria se vingar por causa da Annie - continuou o ex-comissário, considerando as palavras com cuidado - mas acho que…alguma coisa ficou estranha, bem estranha.
Chuck inclinou o corpo para frente, o olhar preso em Gordon.
-O que quer dizer com "estranho"? - perguntou em voz baixa, como se temesse a resposta.
Jim esfregou as têmporas com os dedos, como quem tenta dissipar um enjoo vindo da alma. Não era fácil falar sobre isso.
-Estou falando de abuso sexual e psicológico - falou o ex-comissário de forma categórica - Andy queria se vingar, então usou seu poder como médico para dopá-lo e usar hipnose, bem…ele queria descobrir como mexer com o Coringa, e ele conseguiu de certa forma, mas acabou se envolvendo demais.
Chuck não sabia o que dizer. O nome de Annie ainda era uma ferida aberta para muitos, mas aquela reviravolta deixava tudo mais podre, mais difícil de digerir. As palavras de Gordon pareciam ter cortado o ar, transformando a sala num vácuo. O tenente permaneceu imóvel, com as mãos entrelaçadas ainda mais apertadas, ficou olhando para o chão, como se esperasse que o carpete lhe desse alguma resposta. Algo que fizesse aquilo fazer sentido. Mas nada veio. Nenhuma explicação. Nenhuma lógica. Somente um frio que crescia na nuca.
-Isso é doentio… - disse por fim, sem conseguir disfarçar o nojo - mas consigo entender a cabeça dele nesse momento, porque eu entendo o buraco que o Coringa cava dentro das pessoas, esse cara corrói ideias, destrói estruturas internas e te convence que a verdade é mentira e que a mentira é sua única saída.
Chuck não disse mais nada. Apenas respirava fundo, tentando manter a mente à tona naquele mar de revelações. O silêncio voltou a cair, mas agora era outro tipo de silêncio. Era pesado, sim, mas também revelador. Como se ambos estivessem despidos de qualquer pretensão.
Jim também não parecia ansioso para quebrar o silêncio, ele ficou ali, imóvel, com os olhos fixos em algum ponto invisível entre a mesa e o chão. O peso da memória parecia puxá-lo para dentro, como se cada palavra dita tivesse escavado mais fundo uma ferida que ele passou anos tentando cobrir com rotina, com café, com o barulho do mundo lá fora.
-Às vezes - começou o tenente, a voz saindo arrastada - eu me pergunto se a gente ainda é capaz de sair disso inteiro, ou se já fomos contaminados demais, se já fomos longe demais pra voltar.
Gordon não respondeu. Um músculo em sua mandíbula se contraiu. Ele fechou os olhos por um instante. Quando voltou a abri-los, a expressão estava mais velha. Não de idade, mas de cansaço. De quem carrega lembranças demais e soluções de menos.
-Eu tentei sair - disse, enfim - aposentadoria, casa longe do centro, livros na estante, café orgânico… merda nenhuma funciona, você fecha os olhos e eles estão lá, as vítimas, os erros, as coisas que você deixou passar, os nomes que você esqueceu de anotar…
O silêncio voltou, mas dessa vez, não era sufocante. Era necessário. Era um respiro antes da próxima verdade dura. Chuck passou a mão pela nuca, depois esfregou as palmas nas calças como se quisesse se livrar da sujeira emocional que aquelas palavras tinham deixado. Voltou a fitar o ex-comissário antes de dizer:
-Você se sente culpado ? Digo…não foi sua culpa o que aconteceu em Arkham, você não tinha como saber.
-Eu sabia o suficiente e fechei os olhos - falou Jim, olhando para a xícara de café frio na mesa de centro - é uma merda descobrir que você deixou isso acontecer, principalmente depois de ter conhecido o “garoto” e passado a conviver com ele todos os dias na delegacia.
-Eu nunca vou deixar de achar bizarro você chamando aquele terrorista de “garoto” - disse o tenente desviando o olhar.
Jim soltou um riso fraco, quase irônico, mas não havia humor nele. Era mais uma válvula de escape, uma tentativa falida de aliviar o peso do que estava por vir.
-Eu sei - disse ele, finalmente - eu também acharia no seu lugar, mas ele é um garoto, pelo menos a parte dele que adora giz de cera colorido.
Jim se recostou de novo no sofá. Os ombros caídos, a caneca esquecida na mão. A manhã cinzenta parecia ter invadido a sala inteira, não apenas pela luz fraca, mas pela atmosfera. Tudo parecia suspenso, como se o tempo estivesse esperando que ele dissesse o que ainda não tinha coragem de dizer.
Chuck respirou fundo, uma inspiração lenta e pesada, como se tentasse absorver tudo aquilo sem deixar transbordar. O silêncio se estendeu por mais alguns momentos antes que o ex-comissário o quebrasse:
-Mas e a investigação, o que mais você tem ?
-Tenho 34 envelopes - suspirou o tenente - estavam dentro de uma mochila, junto com os caras que tentaram me matar.
Jim levantou uma sobrancelha com lentidão, mas não disse nada de imediato. Só observava Chuck com aquela expressão que não pedia pressa. Era o tipo de olhar que ele usava com vítimas em choque e com criminosos prestes a confessar. Um olhar que dizia para ir em frente.
-Pode ser um padrão - continuou o tenente - a primeira parte é como se ele estivesse nomeando os jogadores, me colocou como “torre”. Sarah, Taylor, Castro, Martin, John Paul Smith, todos como “peões”, somente Castro estava marcado como “Peão 8”.
Gordon franziu o cenho:
-Oito?
Chuck assentiu antes de continuar:
-Isso se repetiu, aparece em uma das charadas no envelope quinze: “Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge” - Chuck respirou fundo - e o envelope 8… estava vazio.
Jim ficou em silêncio por um momento, processando. Passou o dedo na borda da caneca como se traçasse mentalmente uma linha de pensamento antes de dizer:
-No xadrez quando um peão chega até a oitava casa, ele pode ser promovido, mas e depois ?
-Os envelopes mudam - continuou o tenente - aparecem “cavalos” e “bispos”: Matthew Cole, Bruce, Coringa, Talia, Grayson, Jason, Julian Backwood, Thomas Moore… - ele esfregou o rosto com as duas mãos - parece uma duplicação de tabuleiro, como se houvessem dois jogos rolando ao mesmo tempo, ou… dois lados do mesmo, ou eu não sei.
-Certo - murmurou Gordon tentando organizar seus pensamentos.
-E aí vem a parte mais bizarra, frases, charadas, e cartas de baralho - continuou Chuck - começa com referências a “ás”, depois fala de um “naipe do coração”, menciona o número 8 de novo, e no fim… os últimos envelopes são ainda piores, são fotos da minha sala, da cozinha do apartamento do Bruce e do seu corredor.
-O quê? - Gordon quase deixou a caneca cair - você está dizendo que ele esteve aqui?
-Ou alguém esteve - respondeu Chuck com frieza - e então, no último envelope… um desenho, um enforcado, o jogo da forca, com oito traços, e nenhuma letra preenchida, nada além disso.
Jim recostou-se, os olhos vazios fixos em algum ponto distante.
-Oito letras… - murmurou ele - novamente tudo aponta para o número 8.
Gordon permaneceu quieto. O silêncio não era hesitação, era reflexão. Havia algo no número oito que parecia vibrar com uma frequência antiga dentro dele, como um eco. Não era coincidência. Nada disso era.
O velho ex-comissário passou a mão pelo rosto, sentindo o peso dos anos não na pele, mas no fundo do estômago. No ano passado, o número oito também tinha aparecido na investigação, o número geralmente era associado à justiça. Chuck observava em silêncio, e não precisou dizer nada. Ele sabia que Jim já havia tomado uma decisão. Só não a havia dito em voz alta.
Depois de mais alguns momentos de silêncio o ex-comissário entoou:
-Eu poderia ver esses envelopes ?
-Claro - respondeu prontamente o tenente.
No quarto de hóspedes, Jason escutava a conversa com um cenho franzido. Seu nome tinha aparecido, assim como o de Talia, e o adolescente queria saber o porquê. No entanto, ele sabia que ninguém lhe tratava como adulto, e não contavam o que estava acontecendo.
A voz abafada dos dois homens na sala não era mais apenas ruído. Era um mapa, um labirinto de nomes, segredos e decisões que estavam sendo tomadas bem ali, do outro lado da parede. Jason apertou os olhos, isso poderia levá-lo até a sua mãe de alguma forma.
Do lado de fora, Jim e Chuck já saíam pela porta. O ex-comissário agora vestia o velho sobretudo. Chuck carregava o mesmo peso no rosto que Gordon via todo dia no espelho, culpa, raiva, e uma sensação difusa de urgência, como se o tempo estivesse sendo devorado por alguma coisa que ninguém conseguia ver.
O carro foi ligado e o motor ronronou baixo. Jason ouviu o som e se levantou. Ele sabia o que ia fazer. O adolescente calçou os tênis e saiu pela janela do quarto, ele precisaria de algum dinheiro para chegar até a delegacia de metrô, mas ele não estava reclamando, ele era bom em pular catracas e roubar trocados.
No carro, Chuck dirigia em silêncio, os olhos fixos na estrada à frente, mas a mente bem longe. No banco do passageiro, Jim encarava a paisagem urbana com uma expressão que misturava familiaridade e estranhamento.
Cada esquina parecia assombrada por um fantasma do passado, algum caso não resolvido, uma vítima esquecida, um erro que voltou para cobrar seu preço. Ele não estava mais com o distintivo no bolso nem o peso da lei nos ombros, mas ainda assim, sentia que estava de volta à linha de frente. E parte dele odiava o quanto aquilo parecia certo.
Quando chegaram à delegacia, o prédio parecia ainda mais opressivo do que o normal. Não era apenas o concreto antigo ou as janelas sujas, era a sensação de que as paredes estavam escutando. Como se o próprio edifício fosse cúmplice de algo.
Jim caminhou ao lado de Chuck, o velho corpo ainda firme, mas carregando o tipo de rigidez que vem com anos de vigilância. Ele reconhecia cada passo naquele lugar, mas agora, parecia caminhar por um cenário adulterado.
Na gaveta da mesa, onde Chuck mantinha os envelopes, eles os esperavam, silenciosos, como um túmulo bem arrumado. Quando a chave girou na fechadura e a gaveta foi puxada, o cheiro de papel e cola seca invadiu o espaço.
Jim olhou os envelopes dispostos com cuidado, numerados como se narrassem uma contagem regressiva. Cada envelope era uma camada, uma isca, um golpe cirúrgico. E ele sabia. O Contador de Histórias não estava apenas brincando. Ele estava esculpindo algo. Uma narrativa viva, que respirava através do medo dos outros.
Jim não disse nada. Mas enquanto seus dedos passavam lentamente pelos papéis, algo se firmava dentro dele. Um pressentimento. Não de que sabiam menos do que pensavam… mas de que estavam olhando para a coisa errada.
Chuck tirou um dos envelopes da gaveta com cuidado. Era o número 8, ainda vazio. Ele colocou-o sobre a mesa como se fosse frágil, como se tocá-lo com força demais pudesse disparar algum tipo de armadilha.
O ex-comissário olhava para os envelopes dispostos sobre a mesa com um semblante avalhador. Havia algo que eles estavam deixando passar. Eles ficaram em silêncio por um momento antes que o ex-comissário o quebrasse:
-O que você acha que significa Castro ser o número 8 ?
-Eu não sei - admitiu o tenente, com os olhos fixos no envelope 8, como se ele pudesse abrir a boca a qualquer momento e sussurrar a resposta.
-Mas você acha que é importante - afirmou Jim, sem desviar o olhar.
-Eu sei que é importante, porque o Contador de Histórias não joga dados, porque tudo que ele faz é meticulosamente planejado - Chuck passou a mão pelos cabelos, exausto - os outros agentes foram listados apenas como “peões”, só Castro tem um número, e não qualquer número, no xadrez quando o peão alcança a oitava casa, ele pode se transformar em qualquer peça, a escolha é do jogador.
-Eu sei - disse o ex-comissário - você já investigou sobre Castro ?
-Não exatamente - disse o tenente - eu precisaria abrir um processo investigativo formal e ele seria notificado, ele não tem muitas informações na ficha pública da polícia.
-Isso é estranho - apontou Gordon depois de refletir por um momento - digo, o que ele precisaria esconder ?
Antes que Chuck pudesse responder, o telefone da sala tocou. O som foi como uma lâmina cortando o ar tenso. Ambos se entreolharam. O tenente cruzou a sala e atendeu.
-Delegacia Central, Tenente Charles falando.
-Tenente, nós tivemos um atentado em Blackgate - disse a voz do outro lado da linha - o preso número 609-03 sofreu uma tentativa de homícidio.
-Matthew Cole ? - perguntou Chuck para conferir.
-Sim senhor - confirmou o policial - o senhor pediu para que nós ficássemos de olho em movimentações estranhas e eu achei de bom tom notificar.
-Sim, continuem - agradeceu Chuck depois de um momento - foi arquitetado pelos próprios presos ?
-Não - falou o oficial depois de um momento, sua voz era tensa - foi um dos polícias que faziam a segurança nos corredores.
O tenente ficou em silêncio por um momento. A garganta travou como se engolisse cacos. Ele olhou para o telefone ainda encostado ao rosto, mas não via mais a sala. Não via Jim. Não via os envelopes. Via apenas aquele silêncio denso que surgia quando a verdade decidia deixar de sussurrar para gritar. Um guarda. Um policial.
Não era um ataque de facção. Não era um acerto de contas. Era alguém de dentro. Alguém uniformizado. Com chave, com autorização, com acesso. Com o mesmo brasão que ele carregava costurado no peito todos os dias.
-Qual o nome do guarda envolvido? - perguntou Chuck.
O silêncio foi breve, mas carregado.
-Oficial Anthony Keller.
Chuck fechou os olhos. O nome não era novo. Keller era um oficial antigo. Tinha mais de quinze anos de serviço e um histórico limpo. O silêncio que se seguiu era outro. Mais pesado, mais amargo.
-Continue o trabalho - falou o tenente.
-Entendido senhor.
Chuck deixou o telefone no gancho, com cuidado, e virou-se lentamente para Jim. O ex-comissário o encarava com aquele olhar gasto, o de quem viu essa cidade corroer as próprias vísceras por décadas e ainda assim se espantar com a extensão da podridão.
-Tentaram matar o Cole - disse Chuck, num tom que não pedia resposta - mas não foram os presos, foi um dos nossos, o oficial Anthony Keller.
Jim ficou quieto. Ele conhecia Keller, ele não era um novato. Jim soltou um longo suspiro, o tipo de suspiro que só sai de quem já cansou de fingir surpresa. Ele se sentou devagar na beira da mesa, os olhos voltados para um ponto fixo em nada.
Chuck recostou-se na cadeira, a mandíbula travada, os olhos fixos nos envelopes como se buscasse respostas entre os recortes, entre o cheiro de papel, ou talvez entre as entrelinhas do que não havia sido dito. O ar da sala pesava como chumbo, e não por causa da notícia em si. Era pelo que ela simbolizava. Pela constatação que, a cada nova peça revelada, menos controle eles pareciam ter sobre o tabuleiro.
-Eu achei que com Sarah fosse o fundo do poço - disse o tenente depois de um momento.
Jim cruzou os braços, pensativo. Depois se levantou, caminhando até a janela da sala. Lá fora, a cidade continuava tão caótica quanto sempre. Gotham era um organismo vivo em existência. Como uma cascavel acuada.
-Vou conversar com um contato que tenho no departamento do estado, vou ver o que consigo sobre Castro antes de vir para Gotham no ano passado - disse o ex-comissário, ainda olhando pela janela.
Chuck apenas assentiu, os dedos tamborilando de leve na lateral da mesa, um gesto mecânico de quem precisava manter alguma parte do corpo em movimento para não explodir por dentro.
Jim continuava parado, com as mãos nos bolsos, olhando a cidade como quem escuta um paciente à beira da morte. Não havia pressa em seus movimentos, apenas aquele cansaço quase ancestral de quem já viu o colapso vir de dentro, mais de uma vez. O colapso das instituições, das promessas, das lealdades.
Chuck se recostou na cadeira, jogando a cabeça para trás e encarando o teto, como se esperasse que alguma palavra caísse de lá, pronta e iluminada. Mas o teto apenas o encarava de volta, cego e mudo. Sem dar nenhuma resposta.
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As luzes estavam parcialmente apagadas no apartamento. A luz do fim da tarde entrava morna pelas persianas semiabertas, cortando a sala em tiras douradas e sombras compridas. O ar carregava um silêncio denso, o tipo de silêncio que só se instala quando a confiança é posta à prova.
Bruce estava ali, parado perto da porta, ainda com o paletó jogado no braço e o rosto mais abatido do que Rachel lembrava tê-lo visto em muito tempo. As olheiras fundas, a postura menos rígida do que o habitual. Havia algo em sua presença, algo mais íntimo do que cansaço, mais do que desgaste.
Harvey estava de pé, com as costas voltadas para Bruce, olhando pela janela. A mandíbula cerrada. Ele segurava um copo de uísque que não tocava havia minutos.
-Isso com o Coringa é muito sério, Wayne - disse Harvey, sem virar-se, a voz era firme, mas carregava uma tensão mal disfarçada - você sabe disso, não sabe?
Bruce não respondeu de imediato. O silêncio que se seguiu foi suficiente para irritar Harvey, que enfim se virou.
-O que você está me contando é muito sério - continuou o promotor - deu muito trabalho conseguir que ele ficasse em liberdade depois de toda aquela merda de tentativa de terrorismo em Blackgate com o Matthew Cole.
-Eu só estou pedindo para você tentar me ajudar - falou Bruce, seu tom era firme - ver o que pode ser feito.
-Nada pode ser feito, Wayne - retrucou Harvey - se ele descumpriu o acordo da condicional ele vai voltar para Arkham, e eu te avisei que isso aconteceria.
-Não precisa falar comigo como se eu não entendesse o que está em jogo - Bruce cerrou o maxilar, a raiva vazava.
-Não? - Harvey deu um passo à frente, a voz subindo, o copo ainda na mão, esquecido - porque pra mim parece exatamente isso, você entrou nessa achando que podia controlar a porra de um caos ambulante, e agora tá aqui, pedindo para eu torcer a justiça pra proteger ele de novo.
Bruce jogou o paletó na poltrona com força, como se tirasse um peso do próprio corpo.
-Eu não estou aqui pra defender o que ele fez - retrucou o moreno, encarando Harvey com firmeza.
-Como sempre você é cego demais e burro para notar que esse cara é só um sociopata - rosnou Harvey de volta - ele nem deve ser capaz de gostar de verdade de uma pessoa.
-Você quer mesmo jogar isso em mim agora? - falou o ex-bilionário.
Rachel se moveu, instintivamente, mas não interveio.
-Você acha que eu escolhi isso? - Bruce continuou, a voz baixa, mas firme como pedra - você não tem ideia do que eu carrego, Harvey.
-Não dá pra defender o Coringa só porque agora ele tem um endereço fixo e anda por aí com seu sobrenome - disse o promotor público simplesmente - ele é o mesmo cara de antes e você sabe disso, ou talvez não saiba, porque é só um idiota mimado que se acha o centro do mundo.
Bruce deu dois passos à frente, o corpo rígido como aço, os olhos faiscando como se alguma represa dentro dele finalmente tivesse estourado. A acusação bateu fundo, não por ser verdadeira, mas pela familiaridade. Ele já ouvira aquilo antes, nas entrelinhas, nos olhares, nos corredores da alta sociedade.
-Você não sabe porra nenhuma do que eu passei - disse, a voz baixa, mas cortante - não se atreva a falar comigo assim, você não me conhece.
-Conheço sim - retrucou Harvey, seu tom duro - eu conheço o suficiente para saber que você vive em um mundo onde as consequências nunca batem na sua porta, porque tudo sempre se resolve pra você, porque você sempre teve tudo que quis, dinheiro, imprensa do seu lado, porta aberta onde quer que entre, mas agora você se aproxima de um sociopata e espera que o resto da cidade compre essa sua bobagem.
Rachel se levantou da poltrona devagar. A postura da mulher era tensa. Rachel foi até o marido e disse:
-Harvey, já chega.
-Não - Bruce respondeu, a voz contida, mas faiscando de raiva - deixa ele falar, eu quero ouvir.
Harvey endureceu, a raiva prestes a transbordar. Era exatamente como ele achava que Bruce iria se portar, como uma vítima, como incompreendido.
-Você quer ouvir? Então ouve - continuou o promotor - você tá completamente fora da realidade, Wayne.
Bruce o encarou com uma calma forçada, mas havia um calor crescente atrás dos olhos.
-Fora da realidade? - Bruce deu um passo mais perto, e Harvey sustentou o olhar - eu perdi tudo, minha fortuna, minha empresa, meu nome…e sabe de uma coisa ? Nada disso nunca importou para mim.
-Então, por que diabos você ainda age como se fosse intocável? - Harvey disparou, mas Rachel já estava à frente dele, uma mão no braço.
-Harvey - disse ela com pesar - vai esfriar a cabeça, agora.
O promotor respirou fundo, encarando Bruce como se quisesse continuar, mas acabou cedendo. Pousou o copo no aparador e saiu sem dizer mais nada, o som da porta se fechando pesado no ar.
O silêncio que ficou era diferente do anterior. Mais baixo, mais íntimo. Bruce ficou onde estava, os ombros caídos, como se a raiva tivesse dado lugar a um peso antigo. Rachel o observou por um instante antes de falar:
-Eu soube do Damian.
Bruce ergueu os olhos para ela, confuso.
-Como?
-Alfred me contou - disse a mulher - não fique chateado com ele.
Bruce franziu o cenho, como se o nome tivesse puxado um fio esquecido. Ele desviou o olhar para o chão. Não havia raiva na expressão, mas algo mais denso, como se o ar tivesse ficado mais pesado entre eles.
Rachel o estudou por alguns segundos, e havia ali uma mistura de compaixão e uma falta de julgamento silenciosa. Bruce apenas ficou olhando para ela, como se a frase tivesse aberto uma porta que ele ainda não estava pronto para atravessar.
-Até poucos dias, eu nem sabia que ele existia - disse por fim, num tom baixo, quase como se admitisse um fracasso.
Rachel assentiu lentamente, sem julgá-lo. Havia ternura no olhar dela, e Bruce percebeu, mais uma vez, como sempre fora fácil conversar com Rachel, mesmo nos assuntos em que não havia resposta certa.
-Ele tem dois anos - ele continuou, quase como quem se lembrava em voz alta - e você sabe… tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo, eu não sei o que pensar.
Bruce desviou o olhar para as faixas douradas de luz na parede. O mundo parecia um lugar estreito demais para tudo o que ele carregava agora. O Coringa, o caso do Contador de Histórias, Jason, o desaparecimento de Dick. E, agora, um filho. Um filho que nunca pedira por ele, que ainda não sabia quem ele era, que talvez não entendesse quando fosse apresentado a ele.
Bruce ficou em silêncio por alguns segundos, a mão passando devagar pelo rosto como se quisesse apagar um cansaço que vinha de dentro, não da pele.
-Eu não sei como ser pai, Rachel - a frase saiu sem força, como se admitir fosse um risco.
Ela se aproximou, parando a poucos passos dele.
-Ninguém sabe - respondeu, simples - Harvey e eu ainda estamos aprendendo como ser pais, com Duela.
Mas Bruce não parecia convencido. O olhar dele estava perdido em algum ponto do chão, como se tentasse montar uma peça que não se encaixava. Até poucos dias, Damian era apenas um nome que não existia no seu mundo. Agora, era uma criança real.
O peso disso não era só o de proteger. Era o de não saber se havia algo em si capaz de preencher aquele espaço. Ele pensou em seu próprio pai, nas poucas lembranças que restavam.
Rachel observava, e ele sabia que ela entendia mais do que dizia. Sempre fora assim. Não precisavam de longas explicações para compreender o que o outro carregava.
-Você não precisa ter todas as respostas agora - ela disse, com a calma de quem sabia que ele ia ignorar o conselho, mas precisava ouvi-lo mesmo assim.
Bruce ficou em silêncio. O olhar voltou para as persianas, para aquela luz filtrada que parecia prender o dia no meio do caminho entre tarde e noite. Parte dele queria ficar assim, suspenso, sem precisar enfrentar o momento de conhecê-lo. O ex-bilionário achava que já havia acumulado muitos fracassos nos últimos anos, ele não precisava somar mais um na sua lista.
Rachel não disse nada. Apenas ficou ali, observando-o como quem entende que certas batalhas são travadas para dentro, e que qualquer palavra dita cedo demais só serviria para erguer mais defesas. Bruce inspirou fundo, mas o ar parecia mais denso do que deveria. Ele estava tão cansado, mas sabia em algum grau que não podia mais adiar isso.
—------------
O quarto do hospital estava mergulhado num silêncio úmido. O cheiro de antisséptico parecia grudar no ar, e cada passo de Chuck soava mais alto do que deveria no piso encerado. O Coringa estava deitado, ainda com os pulsos presos na cama por amarras de contenção. As pálpebras meio abertas revelavam olhos vidrados, com aquele brilho estranho de quem está no meio do caminho entre a vigília e um sonho ruim.
Haviam reduzido a sedação para o interrogatório, mas ainda havia um peso artificial nos músculos dele, um atraso de segundos entre o olhar e a reação. Ele ainda se sentia fora de si, embora tivesse uma noção do que estava acontecendo ao seu redor. O ex-terrorista se sentia uma merda. Havia um ruído branco dentro de sua cabeça, um zumbido que arrastava seus pensamentos para longe.
O tenente se sentou na cadeira ao lado da cama do ex-terrorista e ficou em silêncio por um momento. Havia algo perturbador em estar sozinho com ele pela primeira vez em muito tempo. O Coringa sempre conseguiu despertar o pior nele.
Chuck se recostou na cadeira, o corpo inclinado para frente. Observou o rosto à sua frente, tentando encontrar nele algum vestígio de lucidez ou de humanidade. O jeito como o ex-terrorista parecia deslocado do seu elemento o fazia parecer menos com um palhaço e mais com uma pessoa cansada. Mesmo que, talvez, fosse apenas os sedativos falando por ele.
-2006 - disse o tenente, a voz grave, como quem joga uma pedra num lago parado.
O Coringa piscou lentamente. As pupilas pareciam demorar para reagir à luz. O zumbido dentro da cabeça dele misturava-se ao som constante das máquinas no quarto, e por um instante ele não soube se o homem ao seu lado tinha mesmo falado ou se era mais um eco distante.
-As crianças no contêiner - acrescentou Chuck, sem mudar o tom.
O silêncio que veio depois foi pesado. Coringa mexeu levemente a cabeça, como se estivesse tentando lembrar de um rosto visto há muito tempo, mas logo deixou o movimento morrer. Uma respiração longa escapou de seus pulmões, arrastada.
Chuck o observava como quem examina um animal selvagem ferido, não por compaixão, mas para medir se ele ainda podia morder. Os lábios do Coringa se curvaram num sorriso preguiçoso, torto. A língua passou devagar pelo canto da boca, e um som abafado, quase um riso, escapou.
Chuck não desviou o olhar. O riso se espalhou pelo quarto como um cheiro ruim, lento e insistente, mas os olhos não acompanhavam. Eram frios, distantes, como se a conversa fosse apenas um pano de fundo para outra coisa acontecendo dentro dele.
-Quer que eu diga… o quê? - murmurou o Coringa, a voz pastosa, enrolando cada sílaba - que sinto muito ? Você sabe que não sinto, nem se eu quisesse.
Chuck manteve o corpo inclinado para frente, como se quisesse encurtar a distância entre eles, mas não por intimidade, e sim por pressão.
-Então diz o que aconteceu - a voz dele era baixa, sem pressa.
O Coringa piscou outra vez, devagar. O olhar vagou para o teto, depois para um ponto invisível no ar, como se estivesse seguindo um pensamento que não sabia para onde levava. Não havia culpa ali. Não havia sequer lembrança de dor. Apenas um vazio onde deveria haver qualquer coisa.
O ex-terrorista virou lentamente a cabeça, e por um instante, um instante breve demais, parecia olhar para dentro de si. Não havia remorso, apenas fragmentos desconexos: o cheiro do metal quente no contêiner, a respiração acelerada das crianças, o silêncio pesado depois. E aquele outro garoto, o que correu.
Lembrou do som das passadas no chão molhado, do corpo leve se debatendo nas mãos dele. Lembrou de olhar para aqueles olhos arregalados e ver neles algo que reconheceu de forma instintiva, como se estivesse olhando para um reflexo distorcido. E sentiu… nada. Só o aperto dos dedos fechando até o movimento cessar.
Chuck inspirou fundo, como quem segura um comentário que poderia acabar com o interrogatório. Seu olhar era duro, mas também cansado. Ele sabia que qualquer tentativa de arrancar arrependimento dali era inútil.
O palhaço deixou as pálpebras caírem um pouco mais, como se aquela conversa já tivesse perdido a relevância para ele. O zumbido interno voltou a ocupar todo o espaço, abafando a voz do tenente, abafando o quarto, abafando tudo.
Chuck recostou-se levemente na cadeira, mas os olhos continuaram fixos nele, como se tentasse atravessar aquela camada de sedação à força.
-Falei com o Gordon antes de vir - disse, num tom que não carregava qualquer traço de conversa amistosa - ele me falou da sua última estadia no Arkham.
-Arkham… - murmurou o loiro, o som arrastado, quase como se provasse o gosto da palavra - um lugar horrível para tirar umas férias.
-Também falamos sobre Matthew - continuou, o nome carregado como chumbo na boca - e sabe de uma coisa ? Achei que foi pouco pra você.
-Claro - zombou o ex- terrorista, passando a língua no canto da boca seca da medicação - eu esperaria algo assim de um cara como você, esse seu verniz de homem da justiça nunca me enganou, Chuckie.
Chuck deixou escapar um riso breve, mas sem qualquer humor. Não era a reação que o Coringa buscava, mas também não era recuo.
-É - disse, com a voz baixa e áspera - talvez você não esteja tão errado.
Ele se inclinou um pouco mais, o peso do corpo projetando sombra sobre o rosto à sua frente.
-Parte de mim… queria muito que você sofresse, e não por justiça, não por aquelas crianças, não pela minha equipe, ou por todas as pessoas que você matou - continuou o tenente - mas porque você me dá nojo, porque cada vez que eu olho pra você, eu lembro que o mundo permite que algo como você exista.
O Coringa deixou escapar um som baixo, quase um resmungo, como quem ouve uma piada contada mil vezes. O tenente se recostou na cadeira, cruzando os braços, o olhar fixo como uma lâmina. Ele não esperava confissão, arrependimento, nem qualquer fragmento de humanidade. Só queria deixar claro que, dopado ou não, preso ou não, o Coringa ainda era observado por olhos que o queriam esmagar.
-Vou te mandar de volta - falou o tenente depois de um momento - para o Arkham.
Por um instante, o quarto ficou novamente tomado pelo silêncio úmido. Chuck podia ouvir o ritmo da respiração lenta e controlada do homem na cama. O silêncio que caiu no quarto não era apenas pesado. Era denso, carregado de uma energia estranha, quase física. O Coringa não desviava os olhos, mas havia algo feroz e silencioso neles, um ódio que não precisava de palavras para existir.
-Te estripo e penduro as suas vísceras na frente da delegacia antes de isso acontecer - disse o loiro, seu tom era frio.
Chuck não se mexeu. Nem um piscar mais rápido. A ameaça pairou no ar como um corte aberto, mas o tenente não parecia disposto a estancar o sangue.
-Até sedado, você não consegue ficar calado - disse, num tom que não era de provocação, mas de constatação - sabe o que é pior? Eu acredito que, se pudesse, você tentaria.
O Coringa deixou escapar um sorriso breve, sem dentes, mais um arqueamento involuntário no canto da boca do que um gesto calculado.
-Que bom que nós conhecemos o suficiente - zombou o loiro, passando a língua no canto dos lábios - eu sabia que você era moralmente torto, mas não sabia que compactuava com estupradores, essa é uma novidade.
-Quando se trata de você eu abro uma exceção - retrucou o tenente - eu entregaria uma medalha para qualquer filho da puta que colocasse uma bala na sua cabeça.
-Obrigado - zombou o loiro - faz eu me sentir especial.
Chuck não respondeu de imediato. Ficou olhando para as amarras nos pulsos do loiro, para a pele marcada debaixo delas. Ele sabia que, por lei, aquele homem tinha que ir para Arkham. Era o protocolo. Era o certo. Era o que todos esperavam que ele fizesse.
-Sabe…talvez eu devesse mudar o seu destino de férias - começou Chuck, inclinando-se para frente - tem um lugar que eu acho que iria te cair melhor, sem remédio, nem doutores ou paredes acolchoadas, somente caras do tamanho de um guarda-roupa empilhados em celas minúsculas e que iam adorar te conhecer.
Notes:
Até a próxima semana. Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 46: The Gotham Ww Have (Parte 46)
Notes:
Bem, aqui está o capítulo da semana. Gente eu sei, estamos em uma parte da história que eu chamo de "limbo" onde as coisas estão bem paradas, mas isso é importante para a trama, eu juro kkkkkk inclusive, uni mais de um capítulo em um para ficar mais compacto. A partir do próximo eu juro que as coisas vão começar a se alinhar novamente, eu prometo :) Desculpem erros de digitação, eu escrevo nas notas do celular e sem corretor, e não tenho tempo de ler antes de postar isso.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Ainda era noite. As luzes da fachada da delegacia refletiam um tom pálido nas poças de chuva acumuladas no asfalto. O vento soprava pelas ruas como se quisesse esvaziar a cidade, carregando lixo leve e folhas secas que se amontoavam nos cantos da calçada.
Jason atravessou a rua com as mãos no bolso, o capuz puxado para cobrir parte do rosto. O tecido úmido colava na nuca. Empurrou a porta principal com um movimento rápido, sentindo o calor abafado do interior da delegacia bater contra o rosto. O cheiro familiar de café requentado, papel molhado e desinfetante o envolveu imediatamente. Não havia muito movimento no turno noturno.
Jason avançava pelo corredor com passos contidos, os tênis rangendo de leve contra o linóleo gasto. Não estava ali oficialmente. Não tinha autorização. Mas também não tinha qualquer intenção de pedir.
Dois detetives discutiam algo baixo no balcão, um telefone tocava insistente em alguma mesa distante. Ele entrou como se tivesse permissão para estar ali, mas cada passo era calculado. Passou direto pelo balcão e pelo sargento de plantão, que ergueu os olhos por um instante, mas não disse nada.
Jason não estava ali por acaso. Ele tinha seguido o ex-comissário até ali pela manhã, ficou rondando, tentando de alguma forma entender o que estava acontecendo. Havia muitas pessoas, e ele facilmente seria reconhecido. O adolescente não era burro de adentrar a delegacia naquele horário. Então ele esperou.
Ele esperou o momento oportuno, o tenente havia saído e provavelmente sua sala estava vazia. Jason era um assaltante, tinha o mínimo de bom senso de esperar o momento perfeito para adentrar na sala do tenente sem ser visto. Ele precisava de qualquer informação que pudesse, qualquer coisa que pudesse levá-lo até a sua mãe. Qualquer coisa que pudesse sanar suas dúvidas.
O adolescente adentrou na sala como um fantasma, sem chamar atenção. Ele precisava dos documentos sobre o caso do Contador de Histórias, ele estava envolvido nisso, seu nomes estava nisso. Malia Tate, ou ainda, Talia, havia prometido para ele quando o trouxe para Gotham. Eles o ajudariam a achar a sua mãe.
Até o momento, todos só o estavam deixando de fora de coisa que o diziam respeito, todos estavam escondendo o jogo dele, como se ele fosse uma criança que não consegue tomar as próprias decisões. Isso o irritava, ele não era mais uma criança. Ele já tinha visto mais do que muitos adultos podiam suportar. E agora, qualquer pista, qualquer pedaço de papel que ligasse as pontas soltas, podia ser o caminho para sua mãe, ou pelo menos, para a verdade sobre quem ela realmente era.
Jason puxou a primeira gaveta da mesa, os dedos deslizando rapidamente entre pastas e envelopes. Não estava ali para ser cuidadoso, mas para ser rápido. Nomes, datas, transcrições de depoimentos. E então, entre as páginas, algo chamou sua atenção, o nome “Margareth Todd”. O nome que conhecia como o de sua mãe adotiva. O choque foi breve, mas suficiente para travar seu movimento por um segundo.
A ficha era curta, mas o bastante para revelar um vínculo perigoso, conexões antigas com Samuel Rise, contrabandista e traficante de pessoas. O mesmo Rise que, segundo as anotações, fora próximo de Matthew Cole, “Andy”, ex-psiquiatra atualmente preso em Blackgate.
As anotações continuavam, segundo elas, Rise estava morto. Isso era um problema, já que Rise parecia ser um novo elemento que poderia levá-lo até o paradeiro de sua mãe biológica. Jason pensou no ex-psiquiatra, Andy. O homem deveria saber de alguma coisa, já que , segundo os registros, ele tinha alguma ligação de amizade com o contrabandista. Ele poderia saber alguma coisa sobre sua mãe, ou ainda, pelo menos, saber sobre alguém poderia levá-lo até ela. Era algo improvável, mas ele tinha que tentar.
Jason se sentia sem saída, de acordo com Bruce, Talia não sabia nada sobre sua mãe. Bruce poderia estar mentindo, mas o adolescente não acreditava nisso, o ex-bilionário não mentiria sobre algo assim, não para Jason, não depois de esconder que tinha encontrado Talia.
O adolescente estava tão imerso em seus pensamentos que não ouviu de imediato o som dos passos se aproximando pelo corredor. Quando a porta se abriu, girou rápido, guardando o papel de volta como um reflexo.
-Jason? - a voz grave, carregada de surpresa, cortou o silêncio.
Era o ex-comissário Gordon, o homem ainda estava na delegacia, analisando os 34 envelopes deixados pelo contador de histórias e tentando falar com alguns contatos que tinha na polícia do estado.
-O que você está fazendo aqui ? - perguntou Jim, estreitando os olhos.
-Nada - respondeu o adolescente, seu tom não era convincente, mas o ex-comissário decidiu não pressionar.
-Você não foi para a escola ? - perguntou o ex-comissário, seu tom não era acusador, apenas o tom de alguém que constata algo.
-Não - admitiu o adolescente sem olhar para o outro - eu não estava com vontade de ir, você não estava em casa, então eu…sla, decidi passar por aqui,
O ex-comissário o observou por um instante, como se estivesse tentando decidir se valia a pena pressioná-lo. Depois, deu um passo mais perto.
-Jason… é noite, você está na sala do tenente Charles sem permissão - entoou Jim - Isso não é exatamente “passar por aqui”.
Jason desviou o olhar para as estantes, tentando evitar a pressão daquele olhar.
-Só estava curioso - falou o adolescente
-Curioso com o quê? -insistiu Gordon, a voz mais baixa agora, mas firme.
Jason hesitou. Uma parte dele queria soltar tudo, falar sobre Margareth, sobre Rise, sobre Andy. Mas outra parte sabia que, se fizesse isso, corria o risco de ter Gordon no seu pé. Era melhor que o ex-comissário não soubesse de nada.
-Nada demais - disse por fim, tentando fechar o assunto - só… queria ver como era aqui à noite.
Gordon suspirou, mas não parecia convencido. Ele parou para olhar o adolescente por um momento. Havia algo nos olhos de Jason, uma fagulha de autopreservação, desafiando Gordon a continuar com a conversa.
-Olha, garoto… eu não sei o que você está procurando, mas não é seguro ficar mexendo nessas coisas - disse Jim - às vezes, saber demais é pior do que não saber nada.
Jason levantou o queixo, um lampejo de desafio nos olhos. Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, apenas o zumbido da lâmpada quebrando o momento.
Gordon deu um passo para trás antes de dizer em um tom calmo, mas cansado:
-Vá pra casa, Jason, e amanhã… vá pra escola, eu ainda vou ficar aqui mais um pouco, pode pedir comida se quiser, tem dinheiro dentro do jarro na cozinha.
Jason não respondeu. Apenas observou o comissário sair da sala, os passos ecoando pelo corredor até desaparecerem. Ficou sozinho outra vez, mas a pasta de Samuel Rise ainda queimava na memória, junto com a anotação que agora parecia gravada no fundo da mente. Margareth, Rise e Andy. Três nomes que, de repente, estavam muito mais próximos do que ele gostaria. E ele sabia que não conseguiria deixar isso quieto.
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O amanhecer não entrou pela janela e escorreu por ela, lento e frio, espalhando um cinza pálido sobre a mesa de Chuck. O calor do café já tinha ido embora, deixando um anel escuro no fundo da caneca esquecida ao lado de uma pilha de pastas. O ar na sala estava saturado, parado, com aquele odor de poeira misturado ao metal do grampeado.
Ele não mexia o corpo há minutos, talvez horas. Somente os olhos trabalhavam, percorrendo as linhas datilografadas, os selos oficiais, as assinaturas impressas no papel como cicatrizes. Arkham, sempre Arkham. Cada documento, cada protocolo, cada laudo psiquiátrico repetia o destino como se fosse inevitável. E, pela lei, era.
O caminho do Coringa estava traçado com muros altos, janelas gradeadas e o perfume enjoativo de desinfetante hospitalar. O mesmo ciclo, a mesma rotina de sedativos, sessões de terapia e portas acolchoadas.
Mas na cabeça de Chuck, a imagem era outra. Era o corredor estreito e úmido de Blackgate, o som pesado das botas batendo no concreto, o cheiro agridoce de suor e ferrugem. Era a ala onde homens do tamanho de armários passavam os dias afiando olhares como lâminas, onde as dívidas eram pagas em carne e ossos. Blackgate não tinha sedativos. Não tinha paredes almofadadas para conter gritos. Tinha dentes quebrados, ossos trincados e um silêncio que não protegia ninguém.
No fundo da pilha, encontrou a ficha criminal. O nome desconhecido, a foto, o histórico de merdas. A folha fria que reduzia anos de sangue e caos a parágrafos curtos e objetivos. Sobre ela, começou a espalhar outros papéis, ordens de transferência, formulários em branco, laudos falsos que ele mesmo fez questão de escrever e mandar autenticar. Chuck tinha seus contatos.
A mão dele não tremia. Não era a primeira vez que falsificava algo, mas nunca tinha feito por um motivo tão… pessoal. A caneta deslizou sobre o papel de transferência como se soubesse o caminho sozinha. Era apenas uma assinatura. Não havia pressa, mas também não havia hesitação.
Linha por linha, o protocolo foi desmontado e remontado para apontar em outra direção. Arkham sumia das páginas, substituído por Blackgate com a naturalidade de um erro de digitação. Não foi fácil fazer isso, mas Chuck não fez parecer crível, ele somente precisou de um psiquiatra que adentrasse em sua farsa, e isso não era difícil em um lugar como Gotham, onde todos estavam sedentos por um maço de dinheiro sujo.
Enquanto assinava, Chuck sentia aquela parte dele, a parte que nunca se encaixou nos discursos de justiça limpa e imparcial, respirar fundo. Não era pela lei, não era pelo trabalho. Era pela satisfação pequena, mesquinha, de saber que o homem que ele odiava ia acordar um dia cercado não por médicos, mas por predadores de verdade.
Quando terminou, encostou-se na cadeira e deixou os papéis repousarem sobre a mesa. O sol agora batia na borda do arquivo, tingindo de dourado o que não passava de um ato sujo e irreversível. Blackgate não era o lugar certo, mas naquele momento, Chuck se deu conta de que não dava a mínima. Talvez fosse isso que o assustava mais.
Parte de Chuck se deleitava com a ideia do ex-terrorista ficar em uma cela cheia de caras que provavelmente o matariam dormindo, porque o tenente sabia que o palhaço tinha várias pessoas que o odiavam. O Coringa era um cara fácil de odiar, e até mesmo os criminosos mais cruéis e sádicos de Blackgate tinham seus códigos de honra. O palhaço tinha enrolado muita gente, roubado a máfia, matado gente importante. E talvez, o pior, o Coringa atualmente era um policial, meio torto, mas um policial. Qualquer criminoso odeia policiais.
O tenente queria ver como o loiro iria se virar em um lugar como Blackgate, onde não havia apenas os maluquinhos de bairro, mas pessoas realmente perigosas. Porque Arkham apesar de contar, anteriormente, com pessoas realmente difíceis. No momento era apenas um depósito de pessoas com alguns transtornos. Uma vez que a maioria dos terroristas mais perigosos, como Harley, Nashton e Isley estavam reabilitados. Havia Crane, que estava morto, Bane que foi transferido para Blackgate e o Pinguim que estava solto. Então, no momento não havia no Arkham, muitos nomes de peso.
Chuck sentia um peso estranho, uma mistura de culpa e alívio que fazia o nó em seu estômago apertar sem compaixão. Ele sabia que a decisão que acabara de tomar atravessaria linhas tênues, linhas que ele mesmo ajudou a delimitar durante anos no sistema corrompido de Gotham. Não era só um ato de sabotagem burocrática, era uma declaração silenciosa, uma pequena vingança que ele poderia assinar com sangue se fosse preciso, mesmo que isso o fizesse ficar no fogo cruzado com Bruce.
O moreno era uma pedra no sapato, e o tenente sabia em algum grau que precisava do outro homem na investigação do Contador de Histórias. No entanto, nesse momento, ele não conseguia pensar com clareza. Ele não se importava com o que o Wayne iria fazer, no quanto iria espernear e ameaçá-lo. Porque estava farto, farto do ex-bilionário querendo intervir nos assuntos da polícia como se tivesse esse direito, quando não tinha.
Dane-se Bruce, foda-se ele. Chuck e o ex-bilionário nunca se deram muito bem, nem quando cooperavam em algum caso. O tenente nunca gostou da forma como Gordon se dobrava às vontades e planos do morcego. Chuck não deixaria o Wayne subverter a lei, não de novo. Ele faria o Coringa pagar.
Não era justiça, ele repetia para si mesmo. Era só um jogo de sombras, onde a lei era um espectro frágil e a sobrevivência dependia da brutalidade escondida atrás das grades. Chuck não tinha ilusões. Sabia que enviar o Coringa para lá era como entregá-lo ao lobo em meio ao rebanho, e que de alguma forma distorcida, isso o confortava.
Lentamente, ele recolheu os papéis, colocou-os dentro de uma pasta surrada e levantou-se. A luz dourada do sol já invadia a sala, queimando o ar frio que ainda persistia. Chuck olhou pela janela, observando o mundo que seguia seu curso. A verdade para ele era simples e crua, nem toda justiça se faz com justiça.
Depois de alguns momentos, soou uma batida na porta, e o ex-comissário passou por ela. Chuck guardou os documentos sobre o Coringa em um movimento fluido. Jim não percebeu, a sala de Chuck era um caos controlado, arquivos espalhados e mapas rabiscados. O ar ainda carregava o cheiro do café frio e do peso das decisões recentes, mas a investigação não podia parar.
Gordon entrou rápido analisando uma das pastas com cuidado antes de dizer:
-Conversei com meus contatos na polícia do estado, descobri algo sobre Castro.
Chuck ergueu a cabeça, interessado antes de franzir a testa, preparando-se para o que viria. Jim passou a mão pelo rosto, ainda recuperando o fôlego.
-Não há registros dele na delegacia de Newark - começou o ex-comissário - não há nada, nem ficha, nada que comprove que ele trabalhou lá como dizia os papéis de transferência apresentados por ele.
O silêncio caiu como uma bomba no ambiente. Aquela declaração caiu no ambiente com um estrondo, porque eles sabiam em algum grau que o atual comissário não era confiável. No entanto, ter certeza de um jeito concreto era outra história.
-Você tem certeza disso, Jim ? - perguntou o tenente.
-Minha fonte é totalmente confiável - conformou Gordon.
-Você acha que ele está usando uma identidade falsa ? - perguntou Chuck, mais para si mesmo do que para o outro homem.
-Não - respondeu o Jim - não acho, esse nome existe de verdade, ele está no sistema do estado, ele de fato é um oficial, apenas não veio de onde afirmava vir.
-Qual o sentido disso ? De onde ele veio ? - perguntou o tenente.
-Ele era um oficial do estado do Texas - disse o ex-comissário - isso te lembra alguma coisa ?
-Jason - falou, simples, como se soltasse uma pedra no fundo de um lago - mas, porque Castro disse que veio de Newark ?
-Eu não sei.
O ex-comissário balançou a cabeça, incerto, como se tentasse enxergar através da neblina. Ele sentia que deixou alguma coisa passar, alguma coisa estava faltando.
-Como você acha que isso se relaciona com a investigação ? - perguntou Jim por fim.
-Não tenho ideia - admitiu o tenente com um suspiro.
-Você vai entrar com um processo administrativo contra ele ? - perguntou Jim caminhando até a janela.
-Não - respondeu o tenente - ele saberia que descobrimos e acho melhor manter isso em segredo no momento, pelo menos até descobrirmos como isso se encaixa na investigação do Contador de Histórias.
Chuck virou-se lentamente, os olhos fixos em Gordon por um instante mais longo do que o esperado. O silêncio entre eles era carregado, preenchido por um peso que nenhuma palavra conseguia aliviar.
-O interrogatório de Sarah está marcado para essa tarde, não é ? - o ex-comissário mudou de assunto depois de um momento - eu gostaria de participar.
-Você está aposentado Jim - suspirou o tenente - eu não posso te colocar naquela sala e você sabe disso.
-Você sempre foi o cara inflexível com as regras - refletiu Jim, seu tom era amigável - nunca gostou de passar por cima da jurisdição, isso é algo que admiro, apesar de sempre ter te achado uma mula teimosa.
Chuck se recostou na cadeira, os olhos fixos no ponto invisível à sua frente, enquanto o silêncio entre eles crescia, pesado e cheio de não ditos. Ele esboçou um sorriso curto, meio resignado, meio cansado. Se Jim soubesse o que ele estava fazendo não diria isso. Não mais.
O tenente desviou o olhar para os papéis sobre a mesa, as peças daquele quebra-cabeça que teimava em não se encaixar. Ele tinha muito trabalho a fazer, se sentia esgotado, mesmo tendo dormido. O relógio na parede marcava o tempo que escapava rápido demais. Eles sabiam que cada passo precisava ser calculado, cada movimento pensado antes da próxima jogada.
O ar parecia denso, cheio de sombras que se alongavam entre as paredes daquela sala que agora parecia mais um campo de batalha. Chuck não sabia como Castro entrava nessa equação, como o número 8 se encaixava, mas ele iria descobrir. Ele daria um jeito de descobrir.
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Jason apertou o telefone com força, sentindo a borracha fria do aparelho pressionando a palma da mão. Estava em Blackgate, havia conseguido convencer os oficiais a deixá-lo falar com Matthew por alguns minutos. Foi preciso uma grande dose de persuasão e no fim, ele pensou que eles iriam o mandar embora. Mas não.
Do outro lado do vidro, Andy o observava com aquela calma irritante, quase maternal, que parecia capaz de desarmar qualquer um. O som abafado das vozes de outros visitantes e presos ecoava pelas paredes da sala de visitas, mas ali, entre eles, havia apenas tensão pura, carregada de intenções não ditas.
-Então... você veio - disse Andy, devagar, como se estivesse saboreando cada sílaba - não me surpreende, eu sabia que viria.
Jason engoliu seco, tentando controlar a ansiedade. A mão que segurava o cabo tremia levemente, mas ele se forçou a manter o olhar fixo nos olhos de Andy, refletidos no vidro entre eles. Cada gesto do homem parecia medido, calculado.
-Eu... preciso encontrar a minha mãe - disse Jason, a voz carregada de urgência, mas com uma tentativa desesperada de firmeza.
Andy inclinou a cabeça, como se estivesse ponderando o pedido. O leve sorriso no canto da boca dele não chegava aos olhos, que permaneciam frios e atentos.
-Claro que você precisa - ele fez uma pausa, prolongando o silêncio de propósito - mas o caminho até ela não é seguro.
Jason apertou o fone com mais força, sentindo o calor da palma subir pelo braço. O medo crescia, misturado à esperança. Ele sabia que Andy estava brincando com ele de alguma forma, que cada palavra era cuidadosamente escolhida para manipular.
-Você sabe onde ela está - disse Jason, tentando soar confiante - apenas me diga onde posso encontrá-la.
O ex-psiquiatra recostou-se levemente na parede atrás dele, cruzando os braços. A postura era descontraída, mas os olhos continuavam fixos em Jason, lendo cada reação, cada hesitação.
-E o que eu ganho com isso ? - perguntou Andy, voz baixa, quase sussurrante - eu não sou o tipo de cara que dá informações de graça.
Jason sentiu o nó no peito apertar a garganta. Mas havia determinação em seu olhar. Ele respirou fundo, tentando controlar o nervosismo, sabendo que o outro homem estava ali para medir sua resistência. Jason apertou ainda mais o cabo do telefone, sentindo o frio percorrer sua espinha. O nervosismo misturava-se à raiva e à necessidade de respostas. Ele respirou fundo, tentando manter o controle.
-Então, o que você quer ? - perguntou o adolescente, sua voz dura.
Andy inclinou a cabeça, estudando o garoto silenciosamente. O adolescente sentia o olhar do outro homem sobre si, um olhar avaliativo, como quem mede o valor de alguma coisa. O olhar dele parecia atravessar Jason, vasculhando cada pensamento, cada hesitação.
-Que tal algumas informações ? - perguntou o ex-psiquiatra com um arquear de sobrancelha - você está morando com Bruce, não está ?
Jason engoliu em seco, sentindo a garganta apertar. O nome de Bruce trouxe à superfície uma onda de memórias confusas e sensações que ele ainda tentava controlar. Apertou o fone com mais força, como se quisesse extrair força daquilo.
-Sim, estou… ficando lá - falou o adolescente com cautela - o que tem ?
-Nada - sorriu o ex-psiquiatra - você está na defensiva, não precisa disso, foi apenas uma pergunta simples.
-Não entendi o sentido da pergunta - falou Jason, estreitando os olhos.
-Calma, só quero saber como está o Jay - falou Andy, seu tom era amistoso - nós somos…amigos.
-Porque você quer saber do Coringa ? - perguntou o adolescente, estranhando o rumo da conversa - eu não sei, da última vez que o vi ele estava, sei lá…normal ?
-E quando foi isso ? - perguntou Andy, como quem não quer nada e pergunta sobre o tempo.
-Uns 4 dias ? - Jason franziu o cenho.
Andy fez uma pausa longa, deixando o silêncio se estender como um aviso. Observava Jason com a paciência calculada de alguém que sabe que cada segundo de espera aumenta o desconforto do outro.
-Quatro dias - repetiu ele, baixando a voz.
Jason respirou fundo, tentando organizar o turbilhão de pensamentos. Cada palavra de Andy tinha camadas escondidas, e ele sentia que estava sendo manipulado sem nem perceber. Apertou o telefone com mais força, como se o gesto pudesse lhe dar algum controle sobre a situação.
-Então… você sabe onde ela está ? - disse Jason, firme, sem conseguir esconder a ansiedade - eu preciso encontrar a minha mãe.
-Porque você acha que eu sei de alguma coisa ? - desafiou o ex-psiquiatra.
-Você tinha uma relação com Samuel Rise - se adiantou o adolescente - eu sei que ele trabalhava com o tráfico de pessoas.
-Sam era só um cara que guardava umas fitas e arquivos de pornografia infantil, ele não estava de fato metido com os nomes grandes dessa sujeira toda - falou Andy, seu tom era simplista.
-Não é verdade - retrucou Jason - ele teve um contato com a minha mãe adotiva, ele estava mais envolvido do que você está falando, ele sabia quem era a minha mãe.
-Olha garoto - começou Andy, seu tom era quase paternal - talvez você não saiba como o tráfico funciona, mas se você foi traficado ainda bebê a chance de que sua mãe te vendeu para esses caras é enorme, você teve sorte, agradeça a sua mãe adotiva, você poderia ter acabado em um lugar bem pior.
Jason sentiu o telefone tremer na mão, a borracha fria escorregando ligeiramente enquanto ele apertava com força. As palavras de Andy caíam como pedras pesadas sobre sua mente, arrastando lembranças e medos que ele tentava manter trancados. Por um instante, pensou em desligar, fugir, mas algo mais profundo o prendia ali, o desejo de respostas, a necessidade de entender.
-Isso não vem ao caso - Jason tentou manter a voz firme.
Andy inclinou-se para frente, os olhos permaneciam afiados, calculistas, vasculhando cada reação do garoto. Ele o estava estudando. Os olhos do rapaz eram determinados, ele gostava disso. Era quase poético.
-Eu sei onde você pode encontrar alguns caras que podem saber do paradeiro dela - disse o ex-psiquiatra depois de um tempo de silêncio - o tipo de mulheres que vende bebês tem um perfil específico, mesmo que sei lá, sua mãe seja uma exceção, vale a pena tentar.
Jason engoliu em seco, sentindo o peito apertar. A menção de mulheres que vendem bebês ecoou em sua mente como um golpe seco, cortando qualquer traço de esperança imediata. Ele apertou o telefone com mais força, tentando controlar o tremor que subia pelo braço.
-Onde? - perguntou, tentando manter a firmeza na voz, mesmo sabendo que cada palavra sua estava sendo minuciosamente avaliada.
O ex-psiquiatra deixou o silêncio se estender por alguns segundos, apenas estudando Jason, medindo seu nível de frustração, seu medo, sua determinação. O leve sorriso no canto de seus lábios persistia, frio e paternal ao mesmo tempo.
-Não é um lugar fácil - começou, devagar, como quem prepara o terreno para uma armadilha - mas você pode encontrar essa informação em Narrows.
-Em que lugar de Narrows ? - se adiantou Jason.
-Você não está querendo demais ? - bufou o ex-psiquiatra.
Jason apertou o telefone com força, sentindo a borracha do aparelho pressionar a palma da mão até machucar. A respiração dele estava rápida, quase descompassada. O ex-psiquiatra estava brincando com ele.
-Você está com pressa, garoto - disse Andy, calmamente antes de suspirar - mas como você quer tanto saber, bem, você pode procurar pelos arredores da ponte Trigate.
Jason engoliu em seco, sentindo o frio subir pela espinha. Apertou o telefone com mais força, tentando extrair coragem do ato físico.
-E com quem eu falo ? - perguntou o garoto.
-Eu não sei exatamente - falou Andy dando de ombros, depois de uma pausa de tensão - não é como se eu falasse com esse tipo de gente, você vai precisar procurar.
O vidro separava-os, mas o peso do olhar de Andy parecia atravessar a barreira, lembrando Jason de que, naquele jogo de manipulação e informações, ele estava lidando com alguém que conhecia cada truque psicológico.
-Ok - respondeu o adolecente apertando os dentes.
Ele soltou o telefone, olhou para o vidro uma última vez, e virou-se, saindo da cabine. Cada passo ecoava na sala de visitas, misturando-se aos murmúrios de Blackgate, enquanto a determinação e o medo se entrelaçavam em cada músculo tenso de seu corpo. Uma parte dele dizia que era uma péssima ideia, mas ele não conseguia ouvir.
Ele precisava de respostas. Ele precisava disso logo, e não apenas quando os adultos ao seu lado achassem que fosse conveniente para eles. Ele caminhou pelos corredores frios de Blackgate, o eco de seus próprios passos se misturando ao som distante de portas de ferro batendo. A sensação de claustrofobia apertava o peito dele, mas não era o espaço físico que o incomodava; era a pressão das escolhas que agora pesavam sobre ele, cada decisão carregada de possíveis consequências.
Cada passo era uma lembrança silenciosa de que ele estava sozinho no labirinto da própria vida, mesmo cercado por tantas figuras adultas que pareciam saber tudo, menos o que ele realmente precisava. Enquanto saía do prédio, o vento frio bateu contra seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido da cidade, mistura de asfalto molhado e ferrugem dos trilhos próximos.
Ele sentiu um arrepio percorrer a espinha e percebeu que o frio era quase irrelevante diante da inquietação que carregava por dentro. As palavras de Andy se repetiam em sua mente como um mantra tortuoso, misturando esperança e medo em doses iguais. A cidade continuava indiferente ao seu drama interno, mas para ele, cada rua, cada esquina, cada sombra parecia pulsar com a mesma intensidade de seu próprio coração. Ele tinha uma pista agora. Um lugar.
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A chuva fina batia no capô do carro enquanto Bruce estacionava em frente à pequena casa de Alfred. O céu estava baixo, tingido de cinza, e havia no ar aquele cheiro de terra molhada que sempre lhe trazia memórias antigas, memórias de um tempo que parecia pertencer a outra vida.
Ele ficou alguns segundos dentro do carro, olhando a porta da frente, respirando fundo antes de sair. Não sabia exatamente por que estava nervoso. Talvez fosse o peso da ideia de “pai” se materializando, ou o medo silencioso de não estar à altura.
Quando Alfred abriu a porta, o calor da casa o envolveu de imediato. O cheiro era de chá fresco e pão no forno. Era estranho como até depois de adulto a presença serena de Alfred retirava, mesmo que um pouco, a tensão em seus ombros.
Bruce fechou a porta atrás de si, sentindo as roupas ainda frias pela chuva. Tirou o casaco, mas não se aproximou de imediato. Seus pés pareciam pesar mais do que o normal, como se cada passo fosse um compromisso silencioso que ele ainda não sabia como cumprir.
O menino estava no tapete da sala, sentado entre blocos de madeira espalhados. Ao perceber a presença de Bruce, levantou a cabeça, mas não sorriu nem recuou. Apenas o observou por um momento.
Alfred, sempre atento, serviu-lhe um chá, mas Bruce mal olhou para a xícara. Ele só conseguia manter os olhos no menino, como se tentasse memorizar cada detalhe, o jeito como segurava um bloco com força, o movimento cuidadoso dos dedos, a postura ereta para alguém tão novo.
-Damian - falou o ex-mordomo para a criança - esse é Bruce, você sabe quem é ?
Damian apenas negou com a cabeça antes de voltar a montar os blocos. Havia uma precisão nele, uma dureza que não combinava com uma criança da faixa etária.
-Talia não falou sobre mim para ele - suspirou Bruce, esclarecendo para Alfred.
-Onde está a minha mãe ? - perguntou o garoto olhando para o ex-bilionário.
-Eu não sei - respondeu o moreno - mas eu vou encontrá-la.
Damian segurou o bloco por mais um segundo antes de largá-lo no tapete, o som seco quebrando o silêncio confortável da sala. Seus olhos ficaram presos em Bruce por tempo suficiente para deixar claro que aquela resposta não o satisfazia. Não havia ansiedade na pergunta dele, apenas uma firmeza incomum, como se já tivesse entendido, de alguma forma, que o mundo não lhe dava garantias.
Bruce sentiu a respiração pesar. Não era só a pergunta que o atingia, mas o fato de que, mesmo com apenas dois anos, Damian parecia carregar algo que ele reconhecia.
Alfred, discreto, se afastou deixando pai e filho sozinhos na sala. Bruce deu um passo, depois outro, até ficar a poucos metros do garoto. Ele queria se abaixar, falar com ele na altura dos olhos, mas hesitou, não sabia se era cedo demais, se aquele gesto seria recebido ou rejeitado.
-Você… - Bruce começou, mas parou. O que se diz para alguém tão pequeno e ao mesmo tempo tão fechado? Ele nunca foi muito bom com essas coisas.
Damian voltou a encaixar blocos, como se a conversa tivesse acabado. Mas Bruce notou que, de tempos em tempos, os olhos por baixo dos cílios da criança estavam o avaliando.
Foi então que Bruce se abaixou, deixando o joelho encostar no tapete. Pegou um bloco caído, girou-o entre os dedos e colocou-o ao lado da construção do menino, sem tocar em nada que já estivesse montado. Damian observou o gesto, mas não disse nada. Apenas pegou o bloco e o encaixou como se fosse parte do plano dele desde o início.
-Você não me conhece - falou o ex-bilionário depois de um momento de silêncio, não sabendo se estava colocando coisa demais no outro - e até poucos dias eu não sabia que você existia, mas eu quero que a gente se conheça…eu sou o seu pai e eu me importo com você.
Damian não reagiu de imediato. Continuou a empilhar as peças com a mesma precisão quase metódica, o som das madeiras se encontrando preenchendo os espaços entre as palavras de Bruce. Havia algo na postura do garoto, o queixo levemente erguido, os ombros retos, que não combinava com a fragilidade que Bruce esperaria ver em uma criança de dois anos. Era como se já tivesse aprendido, cedo demais, a se manter firme diante de estranhos.
Bruce sentiu uma pontada estranha no peito, uma mistura de orgulho e tristeza. Era impossível não reconhecer ali um reflexo seu, moldado por outra história, outra ausência. Ele estendeu a mão para outro bloco, mas dessa vez Damian olhou diretamente para ele antes que o gesto se completasse.
O olhar não era de hostilidade, mas de algo mais silencioso, uma avaliação quase adulta. Bruce manteve a mão estendida, imóvel, deixando que fosse o menino a decidir. Após alguns segundos que pareceram mais longos do que deveriam, Damian pegou o bloco e colocou-o sobre a pilha, sem quebrar o contato visual.
O barulho suave da cozinha indicava que Alfred ainda estava por perto, mas não voltaria até que fosse necessário. Bruce se acomodou no tapete, o joelho rangendo discretamente pelo frio da chuva lá fora. Ele não tentou iniciar mais conversa, apenas ficou ali, ao lado, participando daquela construção lenta de madeira e de algo muito mais frágil.
Enquanto Damian encaixava outra peça, Bruce sentiu, pela primeira vez em muito tempo, que estava começando algo que não poderia abandonar. Não um caso, não uma investigação. Mas um vínculo.
-Eu não tenho pai - falou o Damian depois de terminar sua construção, seus olhos encaravam o ex-bilionário com uma frieza incomum.
Bruce manteve o olhar firme, mesmo sentindo o impacto daquelas palavras se alojarem fundo. Não havia ingenuidade infantil, não havia provocação, era uma fala que não se esperaria de uma criança de dois anos. Mas também, apenas uma simples constatação. Até o momento, Damian não teve um pai.
O silêncio que se seguiu pareceu mais pesado do que deveria para um cômodo tão pequeno. Bruce olhou para a construção de blocos à sua frente e pensou no quanto aquilo refletia o próprio garoto. Ele respirou fundo, tentando escolher uma resposta, mas percebeu que talvez não houvesse resposta certa. Qualquer palavra soaria como promessa, e ele sabia o peso que promessas tinham. Então não disse nada. Apenas estendeu a mão e reposicionou, com cuidado, um bloco que estava levemente torto.
Damian não agradeceu, mas também não afastou a mão de Bruce. Seus olhos voltaram para a pilha recém reforçada, e por um instante, muito breve, os ombros relaxaram. A chuva do lado de fora aumentou, tamborilando contra as janelas.
-Eu sei que você nunca teve um pai - falou o moreno no silêncio que se instalou - mas eu estou aqui agora.
Damian manteve o olhar preso em Bruce por alguns segundos, como se estivesse testando o peso daquelas palavras antes de decidir o que fazer com elas. Não havia emoção clara em seu rosto, mas os olhos… os olhos guardavam um brilho tênue, difícil de decifrar. Não era aceitação, tampouco rejeição. Talvez fosse apenas curiosidade, ou a necessidade de medir até onde aquele homem iria antes de desaparecer.
Bruce não desviou. Ficou imóvel, sustentando o silêncio que agora parecia fazer parte do próprio diálogo entre eles. Ele sabia que insistir, naquele momento, seria um erro. As relações não se constroem à força, e a confiança de Damian parecia algo que exigiria mais do que palavras.
O som distante de Alfred mexendo na cozinha voltou a preencher o ar, trazendo com ele o cheiro reconfortante do pão assado. Bruce percebeu que aquele pequeno mundo, a casa quente, o barulho suave da chuva, a criança concentrada à sua frente, de alguma forma lhe parecia menos sufocante do que deveria.
Ele sabia que o caminho até Damian seria longo. E que, talvez, o garoto só viesse a aceitá-lo muito tempo depois, se é que o aceitaria. Mas, sentado ali, no tapete, entre blocos e silêncio, Bruce sentiu que tinha dado o primeiro passo.
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A delegacia estava quase silenciosa quando Chuck finalmente percebeu que o dia tinha virado noite. A luz fraca da luminária sobre sua mesa criava uma ilha amarelada no meio da penumbra do escritório. Os 34 envelopes estavam dispostos à sua frente como um mosaico de ameaças, cada fotografia e cada frase alinhada de acordo com a ordem em que tinham chegado. Ele havia passado horas mergulhado nos nomes, cruzando registros internos, arquivos de pessoal e relatórios antigos. Uma busca obsessiva, que já começava a se misturar com a exaustão.
O método era simples e quase burocrático, um nome por vez, varrendo cada ocorrência no banco de dados da polícia, depois ampliando para relatórios internos, boletins de ocorrência e, por fim, escavando nos registros mais antigos, aqueles que raramente alguém se dá ao trabalho de abrir. Mas, como sempre, era nas anotações esquecidas, nas margens de relatórios empoeirados, que se encontravam as histórias mais sujas.
Taylor estava ali, no meio dos arquivos mortos da delegacia, coisas escondidas a anos atrás. Havia acusações de corrupção mal investigadas contra ele, mas nada sólido o suficiente para derrubá-lo em vida. Só que, naquela noite, a insistência de Chuck em seguir cada rastro começou a mostrar resultado. Um relatório de cinco anos atrás, aparentemente banal, mencionava Taylor como contato de um informante.
Até aí, nada incomum. Mas o mesmo informante aparecia em outro caso, envolvendo contrabando de mercadorias e desaparecimento de testemunhas. Quando Chuck cruzou os registros de chamadas e deslocamentos de viatura, encontrou padrões estranhos, turnos trocados com outros oficiais de última hora, paradas não registradas em pontos conhecidos por atividades ilícitas. Isso era estranho e o tenente sabia, de forma inconsciente, que estava diante de um esquema de corrupção muito antigo dentro da delegacia. Taylor estava nisso a muito tempo, muito antes do Contador de Histórias aparecer.
No entanto, uma coisa serpenteava na mente do tenente, ele não sabia como o Contador de Histórias recrutava as pessoas para o seu joguinho macabro. Ele sabia que Sarah estava sendo chantageada, mas e os outros ? E Taylor ? E…Casto ? Como eles foram puxados para isso ? O tenente sabia que a corrupção era algo enraizado nas entranhas da cidade. Algo podre e vil que brotava por entre as pedras e concreto.
Sua última conversa com Gordon ainda passava em sua cabeça como um filme. O tenente pegou de dentro de uma das gavetas a ficha do comissário Castro. Ele imprimiu, em partes por medo que em algum momento a ficha fosse apagada, mesmo sabendo que isso era bobagem.
O ex-comissário acreditava que a identidade de Castro estava correta, que suas credenciais como oficial não eram falsas. E talvez, Jim estivesse certo. Toda a documentação que envolvia o nome do atual comissário parecia estar dentro dos conformes, não parecia ter nada de irregular ou suspeito. Era limpo demais, arrumado demais. Mas porque Castro mentiu sobre Newark ? Isso não entrava na cabeça do tenente, faria mais sentido se fosse uma identidade falsa.
No entanto, o tenente já havia checado, o ex-tenente e atual comissário James E. Castro, existia de fato. E não havia nada registrado contra ele, nenhum inquérito. O tenente se perguntava se não era uma identidade roubada, isso faria sentido. No entanto, alguém teria notado ? Era uma resposta difícil de prever. Havia muitas possibilidades, e nenhuma devia ser descartada.
Havia algo que incomodava o tenente, os pedaços de charada que havia em alguns dos envelopes, que falavam novamente do número 8. Chuck se perguntava também se a ordem das frases mudava o produto final, ele havia tentado várias combinações e todas pareciam levar para o mesmo raciocínio, independente da forma como era montada.
Envelope 19 = “De um baralho velho e manchado, um Ás emerge…”
Envelope 18 = “Todos temos um Ás na manga, ou será que não ?”
Envelope 17= “Corte seu envio pelo naipe do coração, e procure o Ás que traz o mesmo sobrenome.”
Envelope 16 =“Vamos desafiar essa narrativa”.
Envelope 15 = “Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge”.
Haviam duas frases chave, do envelope número 17 e 15, o restante não parecia muito importante, parecia estar lá apenas para complementar o que estava sendo dito. Pelo menos, era assim que o tenente estava interpretando no momento. Unindo as duas frases ele tinha algo mais coeso, mas ainda assim, não fazia muito sentido.
“Corte seu envio pelo naipe do coração, e procure o Ás que traz o mesmo sobrenome. Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge”
O que significava esse “naipe do coração" ? Quem era o Ás ? Mesmo sobrenome de quem ? O que significava “baralho da rede” ? E novamente, havia o número 8, cujo Castro era sua única pista. O tenente sentia que estava montando um quebra cabeças sem ter todas as peças. No entanto, ao mesmo tempo, sentia que tinha peças demais, peças que não se encaixavam.
Chuck recostou-se na cadeira, sentindo as costas protestarem. O barulho da madeira rangendo ecoou na sala quase vazia, misturando-se ao zumbido baixo da lâmpada. O café na caneca estava frio há horas, mas ele o bebeu assim mesmo, mais pelo hábito do que pela necessidade. A sensação amarga na boca se confundia com o gosto seco de frustração.
O problema não era só desvendar o enigma, era decidir qual parte dele realmente importava. Nos envelopes, cada frase parecia um convite velado para ir mais fundo, mas quanto mais ele avançava, mais o terreno se desfazia sob os pés. O “naipe do coração” poderia ser um símbolo, uma referência pessoal, ou apenas uma distração plantada para que ele perdesse tempo.
Chuck sabia que o Contador de Histórias gostava desse jogo, conduzir a presa para direções paralelas, manter a sensação de avanço enquanto, na verdade, ela girava em círculos. Ele esfregou o rosto com as mãos, sentindo a oleosidade acumulada do dia inteiro. Olhou para os envelopes novamente. Não eram apenas pedaços de papel com tinta, eram fios. E cada fio levava a um lugar que ele talvez não quisesse chegar.
O “mesmo sobrenome” martelava em sua cabeça. Em algum lugar, no meio de arquivos, depoimentos e listas de pessoal, aquele sobrenome tinha que estar. E o número 8... a ligação com Castro era a mais óbvia, mas será que óbvia demais? Parte dele sabia que seguir a pista de Castro podia ser exatamente o que o Contador queria.
A delegacia à noite tinha um silêncio estranho, quase cúmplice. As paredes pareciam absorver o som, como se estivessem acostumadas a segredos e mentiras. Chuck pensou em quantas histórias nunca saíram dali, quantas investigações foram enterradas, quantas verdades viraram estatísticas.
O tenente respirou fundo. Estava cansado, mas a exaustão não diminuía a clareza do raciocínio. Pelo contrário, naquela hora morta da noite, ele sentia que as peças começavam a se mover. Lentamente, mas se moviam. E, como sempre, cada passo à frente tinha o gosto amargo de um pacto silencioso com algo que ele ainda não compreendia.
Chuck folheou novamente as páginas impressas, cada registro de chamada, cada deslocamento de viatura, cada relatório mal preenchido. Àquela altura, ele já não via papéis, mas conexões. A “rede” que vinha mapeando nos últimos meses não era apenas uma organização criminosa.
O problema é que o “naipe do coração” insistia em martelar na sua cabeça. O coração, na cartomancia, era o naipe dos laços, de amores, afetos, famílias. Talvez o Contador quisesse dizer exatamente isso, olhe para aqueles que estão ligados não por conveniência, mas por origem. Mas o tenente não tinha certeza se era esse o raciocínio certo.
Ele passou o dia debruçado em cima dos 34 envelopes e estava exausto e ainda havia o desaparecimento de Richard Grayson, do qual o tenente não tinha nenhuma pista nova. Ele sabia que mesmo com a ajuda de Gordon não seria o suficiente, mas ele não podia pedir para Bruce, o ex-vigilante e ele não estavam em bons termos no atual momento. E só havia uma pessoa com a mente tão afiada quanto o ex-vigilante, afiada o suficiente para conseguir interpretar esse jogo doentio. Nashton.
No entanto, o tenente sabia que não conseguiria convencer o ex-charada a participar da investigação novamente, não sem o Batman, não sem a ajuda de Bruce. Isso irritava Chuck, estar tão de mãos atadas, ser tão dependente do ex-bilionário para resolver essa investigação.
Chuck largou os papéis na mesa sentindo o peso da madrugada sobre os ombros. No relógio, passava pouco das duas da manhã. A cidade lá fora estava afogada em um silêncio frio, quebrado apenas por sirenes distantes e o ronco de um carro solitário passando pela rua. Ele girou a caneca de café entre os dedos, como se o movimento mecânico ajudasse a clarear as ideias.
A ficha de Castro permanecia ali, no canto da mesa, olhando para ele como um rosto neutro numa fotografia antiga. James E. Castro. E isso não dizia nada para ele. A falta de respostas o deixava irritado. Ele sabia que precisava falar com alguém que pensasse em código. Alguém que visse as cartas antes de elas serem viradas. Mas isso significava descer até o nível de Nashton e conversar com Bruce. E ele odiava a ideia.
Do corredor, um rangido discreto o fez erguer a cabeça. Apenas um policial noturno atravessando para a copa. Mas mesmo esse som reforçava a sensação de que todos os passos ali eram medidos, observados. Ele não sabia em quem podia confiar, talvez fosse a hora de deixar a moralidade de lado. Pelo menos, até segunda ordem.
Notes:
Comentem para me deixar feliz :)
Chapter 47: The Gotham We Have (Parte 47)
Notes:
Bem, são mais de 12 mil palavras dessa vez, eu basicamente uni novamente o que era para ser 2 capítulos, porque estou insatisfeito e louco por alguma ação. Esperem o próximo capítulo, as coisas prometem explodirem. Porque ? Porque eu gosto :) Eu sei que a linha temporal é difícil de acompanhar, então eu vou dizer, esse capítulo abrange 2 dias.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A manhã estava cinza, e Gotham parecia ainda mais pesada sob aquele céu fechado. Gordon subiu os últimos degraus até o apartamento de Bruce Wayne com o cuidado de quem carrega um peso que não sabe se quer largar. O som distante do trânsito era abafado.
O ex-comissário bateu uma vez na porta e esperou, mas não houve resposta, então Jim bateu novamente, mais forte dessa vez. Um silêncio pesado respondeu do outro lado, o apartamento completamente em silêncio por alguns segundos, como se o tempo estivesse suspenso no ar. Somente depois de mais alguns segundos Gordon ouviu passos lentos, arrastados, como se a pessoa do outro lado estivesse decidindo se valia a pena atender.
Quando a porta se abriu, Gordon encontrou Bruce. O ex-comissário sabia a muito tempo que o homem diante dele não era o mesmo que um dia tinha sido o Batman, o vigilante que enfrentava a noite com punhos firmes e um olhar que perfurava qualquer mentira. O rosto do moreno estava marcado pela insônia, a barba malfeita, os olhos afundados como se carregassem semanas de preocupação e noites sem descanso.
-Gordon… - a voz de Bruce soou baixa, rouca - o que você quer?
-Te acordei ? - perguntou o ex-comissário arqueando uma sobrancelha.
-Não - falou o moreno simplesmente, abrindo espaço para que o outro homem adentrar no apartamento - eu estava…analisando algumas linhas investigativas, tentando encontrar o Grayson, aconteceu alguma coisa com Jason ?
-Não - se apressou o ex-comissário - Jason está bem, ele saiu cedo para a escola hoje.
O apartamento ao redor do ex-comissário era um reflexo do homem à sua frente. As cortinas estavam fechadas, deixando entrar apenas uma penumbra fria. Pilhas de jornais velhos se amontoavam sobre a mesa, muitos deles com matérias riscadas à caneta. No canto, uma garrafa de uísque meio vazia dividia espaço com três xícaras de café esquecidas. As paredes pareciam mais escuras do que realmente eram, como se a ausência de luz fosse uma escolha.
Mas o que mais chamava atenção era o silêncio. Antes, o lugar parecia vivo, quase pulsante, com aquela estranha e caótica energia que vinha do Coringa. O lugar parecia quase triste agora.
-Eu não vou enrolar - falou Jim com um suspiro - eu preciso que você fale com Nashton.
-Eu não sou mais o Batman - disse o ex-bilionário, seu tom era neutro - e Nashton odeia o Bruce Wayne, ele não vai me escutar.
O apartamento estava mergulhado num silêncio denso. Bruce não disse mais nada, apenas se afastou, indo até a janela. A cortina pesada deslizou alguns centímetros quando ele puxou, revelando a luz fria da manhã, que entrou tímida no cômodo. Lá fora, Gotham parecia um borrão cinza.
Gordon não precisava ouvir uma resposta. Sabia que Bruce já estava pensando no que fazer, mesmo que não admitisse em voz alta.
-Eu sei que está preocupado com ele - soltou o ex-comissário no silêncio - com o garoto, mas o Coringa vai ficar bem.
Bruce permaneceu parado, olhando para fora como se pudesse atravessar a névoa da manhã com os olhos. O nome parecia ecoar no apartamento, reverberando entre as paredes escuras. Não havia mais a risada cortante preenchendo o ar, nem as provocações que às vezes vinham como uma faca e, estranhamente, às vezes como um alívio. O silêncio agora era tão absoluto que parecia vivo, pressionando contra ele.
Gordon o observou, em silêncio. O homem diante dele parecia envelhecido, não pelo tempo, mas pelo peso de uma cidade que nunca dorme, que sempre encontra novas maneiras de se alimentar de quem tenta salvá-la. Eles compartilham desse sentimento, ele e Bruce. Gotham já os havia mastigado e cuspido mais de uma vez.
-Grayson está lá fora - continuou Bruce, desviando o olhar da janela e voltando para a mesa, espalhando alguns papéis - isso é minha culpa e cada hora que passa ele está mais longe, eu não tenho tempo para charadas de alguém que só quer provar que é mais inteligente.
Do lado de fora, uma sirene ecoou pela cidade, seguida por outra, mais distante. Gotham seguia respirando naquele ritmo irregular e doente. Bruce pensou no rosto de Richard, no olhar desconfiado, na forma como ele ainda era jovem o suficiente para acreditar que havia saídas, mas velho o bastante para saber que o mundo não jogava limpo. Bruce não acreditava que o aspirante a jornalista investigativo estava morto, não poderia estar, o moreno não admitiria isso para si mesmo, não sem ver um cadáver.
-Eu sei que você não quer voltar a usar o traje do morcego, sei que você tem seus motivos - continuou Gordon com pesar - mas talvez seja a única forma de ajudar Richard agora.
Bruce deixou o olhar vagar por um momento antes de suspirar e encarar o ex-comissário. Havia algo amargo em seu olhar
-Da última vez que o fiz… eu quase matei alguém - falou o moreno.
Gordon permaneceu imóvel. Não perguntou quem, não perguntou por quê. Sabia que se Bruce estava falando, era porque a memória o queimava por dentro.
-Eu não estou falando de perder o controle por um instante, Jim - continuou o moreno depois de um suspiro - eu estou falando de sentir… prazer nisso.
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Lá fora, um caminhão passou devagar, o ronco do motor abafado pelas paredes. Gordon não desviou os olhos, mas também não tentou consolá-lo. Palavras como “você é melhor do que isso” soariam ocas para alguém que já conhecia cada centímetro do próprio abismo.
-E quando percebi que queria fazer isso - continuou Bruce - eu percebi que não era mais o Batman, e sim só mais um homem com raiva nas mãos, tentando me vingar como se isso fosse meu próprio plano de justiça.
A luz cinzenta invadia o ambiente como uma confissão mal vinda, revelando o pó acumulado, o desgaste do espaço e do homem em frente ao ex-comissário.
-Eu não posso arriscar me tornar aquilo que sempre prometi a mim mesmo que nunca me tornaria - disse o moreno por fim.
Gordon assentiu levemente, não em concordância plena, mas como quem reconhece a gravidade de um medo legítimo.
-Entendo… - disse, embora soubesse que entender era apenas a superfície. Ninguém realmente entendia o que era ser o Batman, exceto o próprio Bruce.
Bruce voltou para perto da janela, e o vidro refletiu seu rosto com tanta fidelidade que ele quase não o reconheceu. Linhas de tensão marcavam sua testa, e havia um cansaço profundo que não vinha apenas da falta de sono, mas de anos acumulando pequenas e grandes derrotas. Ele se lembrou de uma noite em que olhou para esse mesmo reflexo, mas com o capuz na cabeça. Naquela época, a imagem parecia um símbolo.
-Talvez você só precise de uma pequena vitória - falou Jim no silêncio que se estendeu - você sabe que o Batman pode fazer o que a polícia não pode, e talvez essa seja a única forma de salvar o Richard Grayson.
A respiração de Bruce ficou presa no peito por um instante, como se Gordon tivesse tocado num nervo exposto. A expressão usada pelo ex-comissário era quase irônica, considerando que, em Gotham, vitórias sempre vinham manchadas, às vezes de sangue, às vezes de algo pior. Uma vitória nunca era de fato uma vitória, e sim um controle de danos.
Ele manteve os olhos no vidro, observando a cidade borrada pela condensação. Gotham estava sempre ali, sempre respirando pesado, sempre pronta para engolir mais um. E ele sabia que Gordon estava certo em uma coisa, a polícia não chegaria onde Richard poderia estar. Não por falta de vontade, mas porque o sistema era feito para falhar, para se enrolar nas próprias cordas enquanto os monstros passavam despercebidos.
-Eu não estou pedindo para você voltar - disse Gordon, com um tom mais suave agora - estou pedindo para você fazer algo que só você pode fazer, talvez dure um dia, talvez uma noite, mas talvez seja o suficiente para trazer o Grayson de volta.
Lá fora, uma rajada de vento fez bater alguma coisa no beco ao lado do prédio. Bruce não se moveu. Seus dedos se fecharam ao lado do corpo, e ele sentiu as unhas cravadas na palma, rangendo sob a pressão. Ele queria dizer não. Ele queria virar as costas, mergulhar de volta nas pistas, se agarrar àquilo que podia fazer como Bruce Wayne. Mas a verdade estava ali, nua e crua, o que Bruce Wayne podia fazer não estava funcionando.
O silêncio se prolongou. Gordon não insistiu. Apenas o observou, como um homem que já esteve em encruzilhadas demais e sabe que não se empurra alguém para alguma direção.
Bruce ficou imóvel, como se o peso das palavras de Gordon tivesse se espalhado pelo ar e grudado nele. Não era só a ideia de vestir o manto novamente que o prendia, era o reconhecimento tácito de que, no fundo, ele nunca o tirara completamente. O Batman era parte dele, assim como Wayne. No entanto, Bruce estava entre um e outro, sendo os dois e nenhum ao mesmo tempo.
O vidro da janela devolvia seu reflexo sobreposto ao cenário matinal e nebuloso de Gotham, como se dissesse que ele e a cidade fossem a mesma coisa. Ambos gastos, partidos, sobrevivendo mais por teimosia do que por esperança. A névoa ocultava os prédios ao longe, mas não escondia as cicatrizes próximas, fachadas descascadas, becos úmidos, a sombra de alguém dobrando a esquina apressado demais. Gotham não mudava. Será que ele mudava ? Sim, ele mudava. Ele, Bruce, e consequentemente, o Batman. Porque eles eram a mesma coisa, mas ao mesmo tempo não.
O apartamento parecia apertar ao redor dele. Cada pilha de jornais era um lembrete mudo do tempo perdido. Onde antes havia o caos vibrante e perigoso que o Coringa trazia, restava um vazio que não preenchia nem com trabalho, nem com álcool, nem com noites em claro. Porra, Bruce queria trazê-lo para casa, mas ele não podia, e isso o estava fazendo se encher de Wisky antes das 7 da manhã. Era mais fácil se perder no labirinto de pistas e recortes de jornal do que encarar o vazio que ficava quando nada funcionava.
O gosto amargo ainda queimava na boca, mas não era o álcool, era a impotência. O relógio na parede marcava uma hora que não importava, porque em Gotham o tempo não curava nada. Cada segundo apenas aprofundava o buraco em que Bruce sentia estar caindo. A cidade lá fora seguia com seu ruído abafado, um ciclo de sirenes, motores e passos apressados, como um coração doente que batia apenas para se manter vivo, nunca para se recuperar.
O ex-comissário olhava para o ex-bilionário como se tentasse ler o que se passava em sua mente. Gordon sempre achou que era bom em decifrar sentimentos, mas o rosto do moreno era um misto de sentimentos conflitantes. Algo que Jim não conseguia entender. O silêncio no apartamento era abafado, e mesmo que a manhã estivesse calma, esse silêncio não tinha nada de calmaria. Era como um recuo antes de um tsunami.
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Ainda era de manhã, mas para o Coringa não havia diferença alguma entre os horários do dia. O tempo naquele hospital sempre parecia um relógio quebrado, cada minuto esticado, cada segundo mastigado até perder o gosto. Ele ainda estava com a cabeça levemente confusa da quantidade massiva de sedativos e outros remédios.
Seus pulsos continuavam contidos pelas faixas, e havia uma dor surda atrás de seus olhos. O gosto dos remédios parecia ter impregnado em sua língua. Ele se sentia tão cansado.
O teto branco e descascado parecia zombar dele, como se houvesse rostos escondidos na pintura, observando. Às vezes, ele piscava devagar só para ter certeza de que ainda estava acordado, mas os rostos permaneciam lá, meio borrados, como um truque da visão periférica.
O som distante de passos ecoava pelo corredor. Enfermeiros? Guardas? Talvez médicos. Ele nunca conseguia diferenciar ao certo, e esse jogo de adivinhação já havia virado parte da rotina. Um rangido metálico, uma porta sendo aberta ou fechada em algum ponto. Os barulhos se confundiam na cabeça do ex-terrorista, era como uma névoa densa o puxando para baixo. Ele não conseguia formar raciocínios lógicos muito complexos, tão pouco pensar direito.
Os pensamentos se dissolviam como fumaça fina, escapando entre seus dedos. Isso o deixava inquieto, ele odiava não estar no controle de sua própria cabeça. Havia uma organização, mesmo que mórbida e caótica, nos pensamentos acelerados e cheios de mania. Uma organização que estava ausente.
O vazio dentro de si não era o silêncio, mas um ruído baixo, constante, como um zumbido de lâmpada prestes a estourar. Ele odiava isso. Odiava o torpor, odiava a lentidão que os remédios forçavam em sua mente. Era como estar dentro de um aquário, onde tudo ao redor parecia existir, mas distante, embaçado, inalcançável.
Quando os passos pararam diante da porta, ele abriu os olhos devagar. O clique do trinco, o arrastar metálico das chaves. Sons que imediatamente acenderam algo nele, uma fagulha de atenção. Dois policiais entraram, fardas escuras, semblantes cansados de rotina. Um deles carregava uma prancheta, o outro só segurava o cinto como se quisesse se certificar de que a arma ainda estava no lugar.
O ex-terrorista os conhecia, não por nome, mas lembrava de vê-los na delegacia. Não eram experientes, a forma como se portavam evidenciava isso, talvez fossem da turma que se graduou na academia junto com Jimmy. Ele não sabia, sua cabeça não estava raciocinando direito.
-Ele está acordado - murmurou um dos policiais, o tom era baixo - não disseram que ele iria estar consciente.
-Cala a boca, idiota - rosnou o outro em um tom baixo se aproximando da cama - ele não pode fazer porra nenhuma, está todo mole, drogado até o osso.
As mãos do primeiro policial desfizeram as faixas de contenção dos pulsos do palhaço com pressa mecânica, como quem faz um procedimento sem pensar muito. O corpo do Coringa caiu levemente para frente, inerte. O segundo policial, mais afastado disse alguma coisa, mas o ex-terrorista não conseguiu escutar.
O primeiro policial bufou baixo e se inclinou mais, tentando erguer o corpo mole do prisioneiro. O cheiro de desinfetante e suor se misturava no ar. O Coringa deixou a cabeça pender para o lado, os olhos semicerrados, como se fosse um boneco quebrado prestes a desmontar por inteiro.
-Vai, ajuda aqui, ele não fica em pé -murmurou o policial que o segurava pelos braços.
O braço do Coringa, antes mole como chumbo, se moveu num estalo brusco. A agulha foi arrancada da pele com um puxão rápido, deixando um filete de sangue escorrer pelo braço. O policial mal teve tempo de reagir. O Coringa se virou de repente, com um movimento brusco demais para alguém dopado até os ossos. O braço se enroscou no pescoço do homem, e a agulha foi cravada contra a pele dele, pressionando com força suficiente para ameaçar furar.
-Shhh… - o sussurro saiu arrastado, com o hálito amargo de remédio e bile, antes que o loiro passasse a língua no canto dos lábios secos - se encostar em mim de novo eu vou rasgar a sua garganta, me teste para você ver.
O outro policial arregalou os olhos, a mão indo instintivamente ao coldre, mas hesitou. O companheiro dele se debatia levemente, o metal pressionando contra a garganta. Uma gota de sangue já escorria no ponto onde a ponta da agulha arranhava a pele. O Coringa estava ofegante, o corpo tremendo, a visão ainda borrada. Ele não tinha um plano.
-Solta ele agora, seu filho da - tentou o segundo policial.
-Ah-ah… - o Coringa interrompeu com um risinho rouco, engasgado, quase uma tosse - quietinhos, vocês não querem ver o que eu posso fazer com uma agulha.
A agulha pressionou mais fundo, e o refém soltou um gemido involuntário. O palhaço fechou os olhos por um segundo, respirando fundo, como se aquele medo pulsando no corpo do policial fosse uma droga melhor que qualquer coisa que haviam lhe enfiado na veia. Ele deu um beijo zombeteiro no lado da cabeça do homem antes de dizer:
-Você vai me ajudar a sair daqui, não vai ?
O policial refém respirava rápido, o peito arfando contra o aperto do braço do Coringa. O cheiro ácido de medo subia como perfume barato, e o palhaço pareceu saborear aquilo, inspirando fundo como quem aspira fumaça.
O segundo policial mantinha a arma meio erguida, mas os olhos vacilavam, nervosos. O dedo não chegava a encostar no gatilho. Estava paralisado. Um erro de academia, um erro que agora custava caro. Ele não sabia o que fazer.
O Coringa abriu um sorriso estranho, seus dentes aparecendo num contraste grotesco. A agulha riscou a pele do pescoço do refém, e mais uma linha de sangue brotou, fina e vermelha. A hesitação aumentou, o silêncio no quarto se tornou insuportável. O ex-terrorista respirava fundo, arfando como um animal ferido, um animal mantido consciente somente pelo instinto. Ele estava confuso, sua cabeça nadava e ele não conseguia pensar direito. Isso o irritava
Ele rangeu os dentes, pressionando a agulha com um tremor involuntário. A visão oscilava, borrada nas bordas. O policial refém suspirou baixo, tentando controlar a respiração, enquanto o outro dava mais um passo, arma ainda erguida.
-Solta ele, agora, ou eu juro que atiro - ameaçou o segundo, a voz embargada.
O Coringa começou a rir. Baixo, gutural, quase uma tosse carregada. Cada gargalhada vinha entrecortada por respirações pesadas, como se o corpo não acompanhasse o delírio.
-Jura… mesmo? - disse o ex-terrorista passando a língua no lábio inferior, seus olhos semicerrados, vermelhos de cansaço, buscaram o do policial armado - você mal consegue segurar esse brinquedinho sem tremer.
O louco piscou algumas vezes, tentando afastar a névoa dos remédios. A raiva latejava em sua testa, junto da dor surda atrás dos olhos. Ele sentia sua visão ficando turva nas bordas entre as piscadas. Ele respirava rápido contra a cabeça do policial, ofegante e molhado. Havia um zumbido dentro da sua cabeça, como uma televisão sem sinal, cada vez mais alto, até quase se confundir com a voz embargada do segundo guarda.
O Coringa fechou os olhos por um instante, sentindo o corpo balançar para frente e para trás, sem controle. Ele pressionou a testa contra a cabeça do refém e fechou os olhos. Havia um brilho febril em suas pupilas, a mania lutando para rasgar a cortina pesada dos remédios, sem sucesso.
O mundo rodava em torno dele, e por um segundo não havia hospital, não havia policiais. Só o zumbido. O maldito zumbido que devorava qualquer pensamento claro. Era como se estivesse dentro da própria mente e, ainda assim, do lado de fora. Cada respiração parecia um esforço, cada piscada era um mergulho num breu onde não havia garantias de voltar. O corpo tremia, mas não era apenas de raiva ou esforço. Era cansaço, cansaço profundo, um peso nos ossos que nenhuma ameaça poderia sustentar por muito tempo.
Os pensamentos vinham quebrados, lentos, como se tivessem que atravessar quilômetros de água turva antes de emergir. Ele odiava aquilo. Odiava sentir-se vazio de si mesmo, como se os remédios tivessem arrancado as bordas afiadas que faziam dele quem era. Ele odiava ter sua mente embaralhada.
A agulha escorregou levemente em sua mão suada. O braço ainda enroscava o policial, mas a força parecia sumir a cada segundo. Ele abriu os olhos e tudo estava borrado, um borrão de cores que dançavam em torno de vultos. Ele se sentia embaixo da água.
O zumbido crescia como um ronco dentro da caixa craniana. O loiro fechou os olhos com força, tentando manter a realidade fixa, mas ela se partia em pedaços. Em flashes ele via rostos que não estavam lá, sombras se contorcendo no teto, sombras se movendo no canto da visão. Ele piscou de novo, e só restava o policial arfando contra seu braço.
Ele não podia ter um ataque psicótico agora. Era um péssimo momento para começar a alucinar. Ele sabia que esses remédios acentuavam certos traços que geralmente ficavam sob controle, entre eles, suas crises psicóticas.
A mania tentou borbulhar, tentou rasgar o véu dos remédios, mas só veio como calor febril, um suor frio escorrendo pela testa. Ele sentiu o corpo ceder de repente, um peso que não vinha da força ou da resistência, mas de dentro dele, como se cada músculo e cada pensamento resolvessem se render ao torpor imposto pelos remédios.
A agulha contra o pescoço do policial caiu de sua mão, tilintando contra o chão, mas ele mal percebeu. O policial se afastou em um segundo, arfando, confuso.
O quarto começou a girar, as paredes se distorcendo, o teto descendo em espirais que se misturavam com o zumbido nos ouvidos. O palhaço piscava e via flashes de lugares que estavam no fundo de sua mente, rostos que não conhecia. Mas no meio de tudo isso havia uma sombra. Bruce. Ou Jack, ele não sabia. Mas era uma voz calma, que cortava seu desespero interno.
-Bru…ce? - o sussurro saiu quase inaudível, engasgado, quebrado. A voz parecia vir de longe, como se tivesse que atravessar o oceano de torpor e dor para alcançá-lo. Ele queria se mover, agarrar algo, mas os braços eram chumbo, a mente um labirinto enevoado.
As sombras começaram a se misturar com a realidade. O policial arfava, mas por um instante se tornou um vulto indistinto, um reflexo de todos os que já tentaram contê-lo. Ele estendeu a mão, não para atacar, mas para tocar algo sólido, um ponto de ancoragem. Os remédios brigavam com a mania, e a batalha interna era exaustiva. Ele não sabia se era Bruce, podia ser Jack, mas ele não conseguia pensar direito. Um frio intenso percorreu a espinha, seguido por um calor febril que queimava a pele e confundia os sentidos.
Quando os enfermeiros entraram, a visão turva do Coringa mal conseguiu reconhecê-los como figuras humanas. Ele sentiu o toque frio de uma seringa, o cheiro metálico da medicação se misturando com desinfetante, e em poucos segundos todo o esforço consciente, toda a mania, toda a raiva, tudo se derreteu num sopro de inconsciência. O mundo escureceu, tudo se dissolveu num vazio absoluto, um torpor profundo.
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A chuva caía fina sobre Gotham, como se a cidade quisesse limpar a própria pele. Mas Bruce sabia que isso nunca aconteceria. Gotham não lavava seus pecados, apenas os arrastava de uma esquina para outra, como quem varre o sangue para debaixo do tapete. Ele mesmo não estava limpo. A máscara do morcego que agora cobria seu rosto parecia mais pesada, mas o peso não vinha do kevlar, da fibra ou do couro. Vinha das memórias, do medo de se tornar aquilo que jurou a si mesmo jamais de permitir ser.
A sensação de quase esmagar uma vida com as próprias mãos, de perder-se na violência crua, não saía de dentro dele. Voltar à máscara, depois daquilo, era um ato que parecia tão necessário quanto perigoso. Batman era sua promessa, seu juramento, mas também a personificação de um lado dele que estava sempre à beira de ruir. Ao encarar seu reflexo no vidro do prédio vizinho, viu o morcego, mas não tinha certeza se ainda era o mesmo símbolo de antes.
Ao limpar o caos que o Coringa deixara em seu apartamento, Bruce havia encontrado uma pilha de papéis jogados em cima da mesa em um envelope Ele inicialmente achou que parecia mero entulho, mas não eram. Eram informações sobre Tália, sobre Damian. As informações que fizeram o ex-terrorista cair em sua espiral de mania e paranoia.
Todavia, algo nos papéis chamou a atenção do ex-bilionário, era algo nas margens de pelo menos duas folhas, entre as páginas borradas de arquivos jogados sobre a mesa. Anotações curtas, quase discretas. Uma caligrafia que Bruce conhecia bem o suficiente para saber de quem era.
Bruce entrou no apartamento de Edward como uma sombra carregada de pressa, a capa escura balançando levemente enquanto ele atravessava a sala. Nashton estava encostado na parede, com o olhar avaliando cada passo do intruso mascarado. Um sorriso irônico se formou no canto da boca.
-Uau… você está nervoso, hein? - provocou, cruzando os braços - porque você está aqui ? Que eu saiba, estou sendo um cidadão pagador de impostos exemplar.
-Você investigou Bruce Wayne - a voz do Batman cortou o ar como lâmina - quer me dizer por quê?
-Foi um favor para um amigo - retrucou Nashton, o tom zombeteiro aumentando a cada palavra - não é minha culpa que o Wayne é um mentiroso de merda.
-Mentiroso? - Bruce avançou um passo, o peso da raiva contido apenas pelo autocontrole - você criou um problema que pode custar caro para pessoas inocentes, o Coringa, o seu amigo, está em uma cama de hospital, Nashton.
-E eu com isso ? - zombou Edward, já aborrecido com a conversa - eu falei para ele não surtar, mas é esperar muito que ele seja racional.
Batman respirou fundo, tentando se manter estável. A respiração soava mais alta do que deveria, como se cada fôlego fosse um lembrete de que ainda estava preso ali, naquele papel que tanto o consumia.
-Escute bem o que vou dizer - a voz saiu grave, baixa, cada sílaba pesada - se você colocar mais alguém em perigo com essa mania de mexer em segredos que não te pertencem, eu não vou voltar aqui para conversar.
-Você está nervoso demais para ser só o morcego preocupado com a cidade - o sorriso do ex-Charada voltou, mais fino, quase cruel - parece pessoal para você, quase como se…
A frase de Edward ficou no ar, inacabada, mas o brilho no fundo denunciava. Bruce sentiu uma fisgada que lhe roubou por um instante a respiração. Ele forçou o corpo a permanecer imóvel, como pedra, mas a mente fervia. Porque Edward não sabia, e nem poderia saber.
A sala pareceu encolher, o silêncio entre as frases mais pesado do que qualquer palavra dita. O som da chuva batendo contra a janela marcava o tempo como um metrônomo implacável. Finalmente, Batman se aproximou mais, até ficar a poucos centímetros de Edward. A sombra da capa engoliu o corpo do outro homem, e por um instante o ar pareceu se tornar mais denso.
-Sabe - continuou o ex-Charada - eu sempre me perguntei porque você sempre aparecia quando se tratava dele, sempre.
O nome do Coringa não foi dito, mas o peso pairava no ar. Um vínculo que, para Edward, parecia apenas uma estranha coincidência, uma obsessão mórbida de ambos os lados. Mas para Bruce, cada sílaba não pronunciada carregava o peso de uma confissão que jamais poderia existir. Por trás da máscara, Bruce sentiu a pele coçar, se sentiu sendo analisado. O coração bateu mais rápido, o sangue latejando nas têmporas. Não daria nada à ele. Nada. Nashton vivia da dúvida, da fissura, da mínima rachadura no silêncio.
-Você não acha que é muita coincidência ? - zombou Nashton, seus olhos analisando o moreno - quem diria que o morcego, no fim, seria o playboy do Bruce Wayne ? É um bom disfarce, eu admito, ninguém suspeitaria.
Bruce fechou os olhos por um segundo, uma fração apenas, como quem tenta conter o rugido dentro do peito. O impulso de esmagar Edward contra a parede, de calar aquele sorriso presunçoso com violência, percorreu seus músculos como corrente elétrica. O mesmo impulso que sentiu quando quase matou Andy. O mesmo que o assombrava desde então.
Bruce abriu os olhos lentamente. O mundo parecia mais estreito, como se a sala tivesse encolhido em torno dos dois. O olhar de Edward Nashton era afiado, penetrante.
-Você fala demais - disse Batman por fim, cada palavra medida, o tom grave e cortante - e não entende nada.
Edward inclinou levemente a cabeça, como quem saboreia a reação que provocou. Seus olhos brilharam com uma satisfação venenosa.
-Entendo o suficiente - o tom carregava provocação e certeza - entendo que agora as peças que não se encaixavam parecem muito mais…fáceis de encaixar, porque só isso explica porque o Coringa se casaria com um idiota como o Bruce Wayne.
A frase atravessou o ar como veneno. Bruce sentiu os músculos se contraírem, cada palavra de Edward soando como um prego cravado sob a pele.
-O Wayne é um covarde, sempre foi - continuou Nashton - ele é um personagem de revista de fofoca, nada além disso, mas quando olho para você… quando ouço você… algo não bate, ou…não batia até agora.
Bruce se aproximou, a capa arrastando no chão, a sombra engolindo o corpo de Edward. Um segundo a mais e ele poderia esmagar aquele pescoço, poderia acabar com a voz venenosa que o desafiava, poderia silenciar de vez as palavras. Mas o impulso queimava como fogo proibido, lembrando-o de Andy, lembrando-o do que quase aconteceu quando a linha quase foi ultrapassada.
Bruce respirou fundo. O som pareceu mais alto do que a própria chuva. O coração martelava no peito, a pressão subindo, como se a máscara o sufocasse. Ele não tinha tempo para isso, ele ainda precisava da ajuda de Nashton para o caso do Contador de Histórias, é por isso que ele estava ali. Gordon havia pedido para que ele tentasse convencer o outro homem a colaborar na investigação.
A tensão latejava como um fio prestes a arrebentar. Cada palavra cuspida por Edward soava como um desafio, como se quisesse ver até onde poderia dobrar o morcego antes de quebrá-lo. Bruce sabia que esse era o jogo do ex-Charada: provocar, insinuar, cutucar as fissuras até transformá-las em rachaduras. E naquele instante, o maior inimigo que Batman enfrentava não era Edward Nashton, mas sim o próprio reflexo no vidro da janela, o eco daquele impulso violento que ainda queimava em sua memória.
Ele fechou os punhos por baixo da capa, os nós dos dedos estalando contra a pressão. O desejo de reagir com brutalidade, de calar o outro homem pela força, cresceu dentro dele como uma maré escura. Era o mesmo desejo que quase o fez matar Andy. A lembrança era um punho invisível fechando-se em torno de sua garganta, sufocando-o. Ele não podia ceder de novo. Se cedesse, se desse mais um passo nesse caminho, a máscara não seria mais um juramento, seria apenas a sombra de um monstro escondido atrás de um símbolo.
O ex-bilionário respirou fundo. O ar parecia cortado em lâminas dentro do peito
-Eu não vim aqui para discutir sua teoria sobre coincidências, Nashton - continuou o moreno, seu tom era duro - eu vim porque você mexeu em algo que não devia, e porque preciso da sua cabeça funcionando em outro lugar.
Edward arqueou as sobrancelhas, um sorriso preguiçoso se desenhando no rosto antes de zombar:
-Acha que eu vou trabalhar de graça para você e aqueles infelizes do departamento de polícia ?
Bruce não respondeu de imediato. O silêncio entre eles se estendeu, pesado, interrompido apenas pelo som da chuva escorrendo pela janela. O morcego aproximou-se ainda mais, a sombra de sua presença engolindo o espaço em torno de Edward. Quando falou, sua voz tinha o peso de uma ordem que não admitia réplica:
-Eu não vim aqui pedir.
Edward deixou escapar uma risada curta, quase seca, como se a frase fosse uma piada privada apenas para ele.
-Ah…então é disso que se trata, o morcego resolveu brincar de autoridade dentro da minha sala - murmurou como se saboreasse o clima pesado que enchia o apartamento - deve ser difícil viver sem um cheque em branco para resolver os problemas, não é, Wayne?
A última palavra foi dita como uma faca deslizando na pele. Bruce não se moveu, não confirmou, nem negou. Apenas ficou ali, parado, imóvel, uma estátua de sombras diante de Edward. Mas, por dentro, o estômago parecia revirar em fogo. Ele sabia que não devia reagir.
-Você acha que vai me dobrar com essa pose? - continuou Edward, a voz cada vez mais cheia de veneno.
A palavra soou carregada, como se fosse cuspida com desdém. Bruce apertou os punhos mais forte, sentindo os nós dos dedos rangerem abaixo da luva. O reflexo no vidro do apartamento o devolveu uma imagem que não queria ver. Não era o símbolo, não era, mesmo que tentasse, mesmo que estivesse fazendo isso para salvar a cidade.
-Eu não estou te pedindo, estou dizendo que você vai colaborar - a voz do morcego era baixa, rouca, cada sílaba medindo a distância entre autocontrole e explosão - o caso do Contador de Histórias não vai esperar a sua vaidade, pessoas já morreram, e mais vão morrer se isso continuar.
Edward piscou devagar, como se saboreasse cada palavra.
-Pessoas já morreram… - repetiu, o tom carregado de sarcasmo - sempre morrem em Gotham, é o que a cidade sabe fazer de melhor, não é a minha vaidade que está em jogo aqui, é a sua, afinal, você precisa de mim, e isso te irrita mais do que admite.
Bruce permaneceu imóvel, a sombra cobrindo Edward por inteiro. No entanto, por trás da máscara, sentia o peso da verdade daquela frase. Ele precisava de Edward, precisava de mais suporte para desvendar aquele maldito caso. Era isso que o corroía, não depender de alguém, mas depender de alguém que representava justamente o tipo de mente que jurara combater. Maldito narciscista.
-Você brinca de ser o juiz desta cidade - continuou Edward, inclinando a cabeça como um animal curioso - mas não é diferente de mim, ou de todos os criminosos que você caçou por anos.
O silêncio entre eles estalou como vidro prestes a se partir. Bruce se inclinou mais, até que a distância entre os dois fosse quase inexistente. Seu olhar, invisível sob a máscara, queimava como brasas, mas sua voz manteve o tom grave, firme:
-Eu não sou como vocês.
-Claro, vamos ver quanto tempo dura, já ouvi seu palhaço dizer que a loucura é contagiosa, e talvez, ele esteja certo - Edward zombou, passando por Bruce como se não temesse a sombra que o engolia antes de fazer uma pausa - e sobre a investigação, se quer minha ajuda, vai ter que aceitar uma verdade, eu não colaboro por ordens, eu colaboro porque quero.
Bruce respirou fundo, sentindo a tensão pulsar em cada músculo. A capa parecia mais pesada do que nunca, como se carregasse todo o peso do passado, do presente e do que ele ainda poderia se tornar. Mas não havia escolha; precisava da mente de Edward, precisava daquele jogo de lógica retorcida para encontrar o Contador de Histórias antes que mais sangue fosse derramado. A chuva continuava a cair, fina e insistente, lavando a cidade apenas por fora. Por dentro, Gotham continuava a ser um lugar de monstros, sombras e escolhas impossíveis, se escondendo entre os becos e a escuridão não só da noite, mas do dia.
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De manhã cedo a van sacudia pelo asfalto molhado enquanto se aproximava da imponente estrutura de Blackgate. Coringa, deitado no banco, sentia cada solavanco reverberar nos ossos como lembranças de guerras passadas. O cheiro de sangue, desinfetante e medo pairava no ar mesmo antes de abrir os olhos. Observava em silêncio, o olhar fixo na grade da janela estreita, enquanto os policiais ao lado falavam baixinho, como se quisessem manter o mundo longe dele.
-Ei… você ouviu falar do 0087? - disse um deles, sem se aproximar demais - parece que alguém tentou acabar com ele, achei bem estranho, e dizem que ele recebeu visita, um garoto.
Coringa ergueu a cabeça lentamente. Um garoto? Estranho? 0087? Isso não despertava nada. Ele não sabia ainda quem era, mas a curiosidade já provocava um riso baixo, quase involuntário, que ele imediatamente engoliu. Dentro da van, a tensão era quase tangível. Coringa sentia os olhares dos policiais, do motorista, mas mais do que isso, sentia a cidade viva do lado de fora, pulsando através das paredes de aço.
O loiro sabia que Blackgate era um território diferente, do qual ele não tinha cartas boas na mão. Era como um aquário, cada tanque cheio de predadores com dentes afiados, mentes afiadas e rancores antigos. Ele podia sentir de longe as gangues, os prisioneiros que já cochichavam sobre ele antes mesmo de pisar no pátio. O lugar pelo menos não o deixaria entediado, algo dizia que, mesmo naquele lugar, ele ainda teria o poder de bagunçar o jogo. Porque o Coringa nunca chegava para seguir regras .
A van parou com um estrondo metálico. Coringa endireitou-se lentamente, sentindo o peso da mão de cada policial sobre ele. O portão se abriu, revelando as grades, os muros altos. Blackgate estava lá, austera, impenetrável para qualquer um… exceto para ele. Um sorriso torto se formou em seus lábios, invisível aos que o cercavam. Ele não estava impressionado.
O portão de ferro se fechou atrás da van com um estrondo que reverberou no peito de Coringa, como um tambor anunciando sua entrada em território inimigo. Os policiais o puxaram para fora, as correntes em seus pulsos tilintando como uma melodia irritante. O ar ali era diferente, mais denso, mais sujo, impregnado de suor, ferrugem e ódio acumulado. Blackgate respirava através de suas paredes, e cada tijolo parecia encharcado da raiva de centenas de homens esquecidos pelo mundo.
Os primeiros olhares vieram logo, assim que ele cruzou o portão interno. Prisioneiros empoleirados atrás das grades, observando em silêncio, olhos faiscando como lâminas. Reconhecimento imediato. Não era preciso dizer seu nome, as cicatrizes que cortavam suas bochechas de forma quase grotesca dispensavam qualquer apresentação.
O olhar dos outros prisioneiros não era reconhecimento respeitoso. Era ódio, era rixa, era a lembrança de negócios desfeitos, de aliados traídos, de gangues inteiras destruídas. Ele tinha fodido com muitas pessoas, muitos negócios e organizações.
Conduzido pelos corredores estreitos, ele deixava o olhar vagar de cela em cela, como se estivesse analisando um público potencial. Caras tatuadas, corpos marcados por cicatrizes, olhos vazios de quem já não espera nada. E, em alguns deles, brilhos de oportunidade. O ex-terrorista sabia que só precisava apenas semear dúvida, mexer as peças, soltar a centelha. O caos sempre fazia o resto.
Quando atravessaram o pátio, a reação foi imediata. Silêncio. O tipo de silêncio que não é vazio, mas carregado, pesado como uma tempestade prestes a estourar. Olhos o seguindo, dentes trincando. Ele podia ouvir o ranger de correntes, o bater de botas, a tensão acumulada. Era ódio puro, mas era também atenção. E atenção era algo que ele gostava.
O guarda que o conduzia parecia nervoso, o aperto em seu ombro mais firme do que o necessário. O Coringa se deixou arrastar sem resistência, o sorriso agora escancarado. Estava cercado por inimigos, cercado por predadores que o queriam morto… e aquilo o deixava vivo. Fazia tempo que ele não tentava mexer com a cabeça de pessoas tão limitadas. Aquilo seria divertido.
As celas se fechavam em ecos metálicos à medida que ele era conduzido para o bloco principal. O som das trancas pesadas parecia uma orquestra feita para ele, cada batida um compasso do espetáculo que estava prestes a começar. Coringa absorvia cada detalhe, o cheiro de óleo velho nas grades, o eco distante de gritos abafados, o gotejar persistente de um cano que pingava como uma tortura lenta.
Blackgate não era Arkham. Arkham era um manicômio travestido de prisão, cheio de médicos com ilusões de controle. Aqui não havia controle. Havia só homens que se devoravam mutuamente, dia após dia, como ratos presos numa caixa. Os guardas o empurraram escada acima, para uma ala mais isolada. Ele podia ouvir os cochichos carregados de veneno, e isso o fazia sorrir internamente. Era um bom destino de férias, se Chuck achava que poderia acabar com ele desse jeito, estava bem enganado.
Os passos ecoaram no corredor estreito até que a marcha abrupta parou diante de uma porta de ferro marcada com ferrugem e números quase apagados. O guarda bateu duas vezes com o cassetete, um sinal qualquer para o operador da ala. O portão deslizou com um gemido longo e agudo, como se o próprio metal reclamasse de ter que abrir espaço para ele.
Empurraram o Coringa para dentro com um empurrão seco, mas não o suficiente para que o loiro tropeçasse e caísse. Era uma cela ampla, úmida, iluminada por lâmpadas que piscavam de tempos em tempos. Seis pares de olhos já estavam sobre ele.
Eram homens grandes, corpos moldados por anos de ferro e violência. Ombros tatuados, braços riscados com símbolos de gangues que ele conhecia bem demais. Reconhecimento imediato. Inimigos de ontem, de anteontem, de muito antes. Ele riu baixinho, quase como uma criança. Ele não conhecia os caras propriamente, mas sabia que eles o conheciam.
O guarda não disse nada. Só fechou a grade e se afastou depressa, como quem joga carne num tanque cheio de tubarões e não quer assistir ao banquete. O Coringa apenas estalou o pescoço e passou a língua pelos cantos dos lábios, como se estivesse entediado, antes de dar de ombros. Isso seria divertido.
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Ainda era cedo quando o ex-comissário bateu na porta de Bruce. Estava ficando habitual pegá-lo pela manhã. O moreno abriu a porta depois de algumas batidas, estava mais apresentável do que no dia anterior, mas ainda carregava um cansaço sólido nos ombros, como um peso invisível que o puxava em direção ao chão.
Gordon não precisou dizer uma única palavra, o ex-bilionário apenas o deixou entrar sem um único ruído. Ambos sabiam do que a visita se tratava, nunca era apenas uma visita entre duas pessoas que se conheciam muito bem. O ex-comissário somente aparecia para pedir ajuda em alguma coisa.
Jim estava no meio da sala quando notou uma criança, de aproximadamente dois anos sentado no tapete, colorindo alguns desenhos impressos com giz de cera. Giz de cera que o ex-comissário reconhecia, possivelmente do Coringa. O olhar de Gordon se demorou no garoto, ele não entendia direito o que estava acontecendo. Bruce, como quem lê os pensamentos do outro homem apenas disse:
-Esse é Damian, meu filho.
-Seu filho ? - questionou Gordon sem entender.
-É uma longa história - disse o moreno olhando para o garoto, que parecia não prestar atenção no que eles diziam - ele é filho de Talia, eu não..bem, eu não sabia da existência dele até poucos dias atrás.
-Bem - respondeu o ex-comissário - é uma surpresa.
O silêncio se estendeu por um momento, ainda tentando digerir aquela informação, Gordon respirou fundo, mas não se deixou perder no detalhe. Ele ajeitou os óculos e voltou ao motivo da visita:
-Dias atrás, quando estava saindo do hospital depois de conversar com você, tentaram matar o Chuck - disse Gordon, sua voz era sombria - no entanto, os dois homens que realizaram o atentado tinham uma mochila onde havia 34 envelopes.
O moreno franziu a testa por um momento, ouvindo as palavras ditas pelo ex-comissário.
-Eu queria que você desse uma olhada nesses envelopes, e diga o que você acha - continuou Jim, seu semblante era sério - você conversou com Nashton ?
-Sim - confirmou o moreno - ele vai colaborar.
-Bom - respondeu Gordon - eu tenho um desafio para ele.
Com essas do ex-comissário, Bruce se aproximou da pasta que Gordon trazia, os olhos fixos no detalhe do lacre mal fechado. O ex-comissário abriu o fecho e espalhou os envelopes sobre a mesa de centro da sala. Eles eram idênticos, padronizados, como se tivessem saído de uma mesma máquina ou de uma mente obcecada pela precisão. Apenas números em contagem regressiva de 34 à 1
Bruce os analisou em silêncio, tocando o papel com cuidado. Nada era gratuito, nunca era, não em jogos como esse.
Jim apontou o primeiro bloco de envelopes antes de entoar:
-34 ao 29, temos somente fotografias de policiais… Taylor, Sarah, Martin, John Paul Smith, todos marcados como “peões”, peões de um jogo de xadrez, Smith e Martin, desaparecidos, Sarah e Taylor corruptos, Castro aparece como peão também, mas com o número 8 ao lado.
Bruce estreitou o olhar, analisando o bloco antes de entoar:
-Oito… promoção de peão, que ao chegar ao final do tabuleiro, pode ser promovido a outra peça da escolha do jogador.
-Exato, Chuck também chegou nessa conclusão - Gordon confirmou - Só que não para aí, porque do envelope 28 ao 20 temos bispos e cavalos, sendo representados por Matthew Cole, Talia, Jason Todd, Dick Grayson, você, Coringa, e até Julian Backwood, mas como se fossem duplicados, dois tabuleiros jogando ao mesmo tempo.
-Dois jogos, em paralelo ? - se perguntou o moreno - o que isso quer dizer ?
-Ainda não fazemos ideia - admitiu o ex-comissário entregando uma nova pasta para o moreno - aí dentro tem algumas charadas, elas aparecem nos envelopes 19, 18, 17, 16 e 15.
O ex-bilionário abriu a pasta dada por Jim rapidamente. Ele não disse nada de imediato, apenas leu o que havia no arquivo algumas vezes, vendo se em algum lugar da sua cabeça aquilo fazia algum sentido. Eram frases que pareciam não respeitar uma ordem exata. E elas, por si só, não pareciam todas importantes.
-Elas não parecem todas importantes - disse o moreno em um tom neutro - se eu tivesse que chutar alguma coisa, eu diria que somente duas delas realmente importam, “Corte seu envio pelo naipe do coração, e procure o Ás que traz o mesmo sobrenome” e “Prossiga até o baralho da rede, onde o 8 ressurge”.
-Porque ele mandaria as outras então ? - perguntou Gordon - ele nunca faz nada por acaso.
-Acho que elas estão lá, não para nos dizer alguma coisa, mas para conversar com a gente - respondeu o moreno - principalmente se olharmos para o envelope 18 e 16.
Envelope 18 = “Todos temos um Ás na manga, ou será que não ?”
Envelope 16 =“Vamos desafiar essa narrativa”.
Bruce deixou os dedos repousarem sobre o papel, a textura áspera do envelope lembrando-lhe que aquilo não era apenas um jogo, era uma provocação. Um tabuleiro montado não só para confundir, mas para cutucar. O Contador de Histórias não enviava mensagens ao acaso; ele escrevia para o leitor, para o interlocutor, quase como se estivesse na sala com eles.
-“Todos temos um Ás na manga, ou será que não?”… - repetiu Bruce em voz baixa, o cenho ainda mais franzido - Isso não é uma pista, é uma provocação, ele quer que a gente duvide do que sabemos, mas ao mesmo tempo pede para que desafiamos a narrativa,como quem diz nós deveríamos desconfiar da história.
-Então ele está mentindo ? - Gordon perguntou, ajeitando os óculos enquanto analisava o que o moreno disse - é isso ?
-Não - esclareceu o moreno - quer que duvidamos do que já temos, do que construímos até aqui, e ao redor dele.
Gordon soltou um resmungo, quase um suspiro cansado:
-Eu não entendo como você chega nessas deduções.
-Uma coisa me chamou atenção nas anotações de Chuck - continuou o moreno olhando as anotações que estavam junto com os envelopes - o fato de Castro sendo o peão número 8 e se ligando de alguma forma com o envelope 8, que está vazio, e se conectando também com uma das charadas “..onde o 8 ressurge”
-O que você quer dizer ? - o ex-comissário franziu o cenho, confuso.
-Acho que o 8 está desaparecido, ou pelo menos a informação - explicou o moreno - a informação que deveria estar no envelope 8, ela ressurge, como mencionado na charada do envelope 15.
Gordon se inclinou sobre a mesa, olhando com mais atenção os envelopes como se pudesse ver neles o que Bruce via. Ele não conseguia. Talvez fosse limitado demais para entender como a mente do moreno trabalhava.
-Ok - disse o ex-comissário por fim - mas como isso se liga com o que temos até aqui ?
-Eu acho que essa informação que está faltando tem haver com Castro - disse o moreno simplesmente - ele é o peão número 8, tudo isso está relacionado com ele.
-Eu e Chuck conseguimos a ficha de Castro no estado de New Jersey - falou o Jim olhando para o moreno - ele não trabalhou onde disse que trabalhou, mas fora isso, não há nada de irregular na ficha dele.
-E onde ele trabalhou ? - perguntou o moreno, seu cenho franzido.
-Pode ser coincidência, mas ele era agente do estado, no Texas - respondeu o ex-comissário - não sei se isso tem ou não relação com Jason.
-O que tem na ficha dele ? - questionou o moreno.
-Nada demais, nada irregular, apenas locais onde trabalhou, há poucas informações - respondeu Gordon dando de ombros - ele parece um oficial normal, nenhum processo investigativo contra ele, nada.
-Acho que estamos olhando para o lugar errado - disse o moreno depois de um momento.
-E qual seria o lugar certo ? - Gordon arqueou as sobrancelhas.
Bruce não respondeu de imediato. Ele ainda não sabia, mas ele iria descobrir. No entanto, havia outra coisa que chamou sua atenção, o número 34. Porque 34 ? Era como se estivesse perseguindo fantasmas. Porque o Contador de Histórias tinha usado aquele mesmo número, 34 linhas de telefone, quando Bruce tentou rastrear a chamada.
-Trinta e quatro… - ele murmurou, quase para si mesmo.
Gordon ergueu o olhar, atento, seu cenho franzindo pela mudança em Bruce.
-Esse número significa alguma coisa pra você?
Bruce respirou fundo, os dedos parando sobre a mesa.
-Quando eu tentei rastrear o número que o Contador de Histórias me contatou, depois que Richard foi sequestrado - começou o moreno, a voz baixa, grave - caí em 34 linhas diferentes, sinais falsos, redirecionamentos, duplicações perfeitas, e era impossível encontrar a origem do sinal.
-E o que você acha que isso significa ? - perguntou o ex-comissário.
-Acho que isso é uma prova de que Grayson está vivo - falou o moreno, seu tom sério - uma prova de que temos uma chance de salvá-lo.
-Como o Contador de Histórias saberia disso ? - perguntou Gordon desacreditado - Grayson teoricamente foi sequestrado pelas pessoas envolvidas com o tráfico de pessoas.
-Eu acho que é bem simples - falou Bruce, seu tom ficando sombrio - acho que estamos lidando com alguém de dentro da estrutura do tráfico de pessoas, isso explicaria como ele sabe tanto, como tem tantas informações.
-Mas porque alguém de dentro faria isso ? - perguntou o ex-comissário voltando a olhar para os envelopes.
-Eu não sei, mas eu vou descobrir.
-Eu vim pedir a sua ajuda, mas não é para você fazer tudo sozinho - suspirou Gordon - você tem problemas suficientes na sua vida pessoal no momento.
-Eu estou bem - falou o moreno, estreitando os olhos - Grayson precisa de ajuda, não é como se eu pudesse virar as costas.
-Não é virar as costas, Bruce - rebateu o ex-comissário - você tem o seu filho pequeno agora, tem Jason, e o Coringa também.
-Damian está bem - falou o ex-bilionário olhando para o garoto no tapete - ele está se adaptando, mas estamos bem, e eu vou buscar Jason também, e o Coringa logo vai sair do hospital.
A convicção com que o moreno falava deixava o comissário com um gosto ruim na boca. Porque ele não tinha boas notícias. Ele não queria ser quem iria falar para Bruce que as coisas não ficariam bem. Que as coisas estavam longe de ficarem bem.
-Bruce - falou o ex-comissário, fazendo uma pausa - eu sinto muito em te dizer, mas o Coringa foi transferido hoje mais cedo para Blackgate, e Jason…bem, Chuck está pedindo a revogação do seu título como lar temporário dele, Jason vai voltar para a instituição para menores infratores.
As palavras de Gordon pareciam não ecoar apenas na sala, mas dentro da mente de Bruce, reverberando em um espaço que ele lutava para manter firme. Por um momento ninguém disse nada, o silêncio se instalou como uma névoa de tensão pesada. Por alguns segundos, ele permaneceu imóvel, como se a própria imobilidade fosse a única defesa contra a avalanche que ameaçava enterrá-lo. Damian riscando o papel com cores vivas no tapete contrastava cruelmente com a sombra que se erguia no coração do moreno.
Bruce fechou os olhos, aspirando fundo, como quem tentava conter um grito que não deveria escapar. Ele se forçou a abrir os olhos, encarando os envelopes sobre a mesa. O jogo continuava, as peças ainda se moviam, mas agora a mão que mexia nelas parecia segurar também sua própria vida pessoal.
-Chuck não pode fazer isso - disse o moreno, seu tom era duro, tentando segurar a irritação.
Jim ficou em silêncio, apenas o observando. Sabia que Bruce não buscava consolo, nunca buscava. O que ele queria era transformar dor em combustível. Mas, ao ver a sombra crescendo nos olhos do amigo, o ex-comissário se perguntou quanto tempo ele conseguiria continuar assim sem ceder ao abismo.
-Vou acabar com a carreira dele na polícia por isso - rosnou o moreno, seu ódio vazando pelas rachaduras - se ele acha que vou me dobrar e lamber o sapato dele, ele está muito enganado, se ele quer medir força, vamos medir força.
O silêncio se estendeu, mas não era vazio: estava cheio do som da respiração pesada de Bruce, das batidas do giz de cera contra o papel, do peso invisível que preenchia cada canto da sala. Gordon, por um instante, viu nos olhos dele algo que o preocupava, não a fúria bruta de quem reage a uma injustiça, mas a determinação fria de quem decide que vai esmagar quem estiver no caminho.
-Bruce… - começou Gordon, mas a voz morreu na garganta.
O moreno tinha o corpo rígido, os punhos cerrados. Havia algo no tom dele, no olhar endurecido, que lembrava menos o filho dos Wayne e mais o mito noturno que Gotham conhecia por outro nome.
Gordon retirou os óculos, esfregando os olhos cansados. Ele conhecia esse tom. Era o mesmo que já ouvira outras vezes, sempre às vésperas de decisões que mudariam tudo.
-Você precisa pensar, Bruce - a voz de Jim era firme, mas soava quase como um pedido - não se pode deixar entrar nessa guerra pessoal com Chuck, vocês estão do mesmo lado.
-Não vou deixar Chuck mexer com a minha família - rosnou o moreno em resposta.
O ex-comissário manteve o olhar fixo nele, havia uma raiva crua ali. O ex-comissário sabia que o tenente estava se movendo um em território perigoso para Bruce. A família sempre foi importante para o ex-bilionário.
-Família… - repetiu Gordon, devagar, como se testasse o peso da palavra - Bruce, você sempre protegeu Gotham porque acreditava que havia algo maior que você, e se você transformar isso numa guerra particular… vai perder o que te faz diferente.
Bruce desviou o olhar para Damian, que agora desenhava algo parecido com uma casa de telhado torto, rabiscada de vermelho. Ele sabia que Gordon tinha razão. Sabia, mas também sabia que não suportaria assistir sua vida ser desmontada peça por peça.
-Já perdi demais, Jim - murmurou, a voz baixa, quase um sussurro que mais parecia uma confissão - eu não vou deixar que levem mais nada.
-Não estou te pedindo para perder, Bruce - suspirou o ex-comissário - só quero te pedir para não bater de frente com Chuck agora, tente deixar as coisas se ajeitarem um pouco primeiro.
Bruce não respondeu de imediato. O pedido de Gordon ecoava em sua mente, mas não encontrava espaço para repousar. Era como tentar segurar uma represa com as mãos nuas. Ele respirou fundo, mas o ar parecia pesado demais, como se cada inspiração fosse um fardo adicional sobre o peito.
-As coisas não se ajeitam sozinhas, Jim - disse, por fim, sua voz grave, arrastada, quase amarga - Gotham nunca ajeitou nada por conta própria.
Gordon suspirou. Não havia mais nada a dizer. Ele sabia que a decisão estava tomada, e qualquer palavra dali em diante seria apenas vento contra um muro. O silêncio voltou a cair, pesado. Um silêncio que, não pela primeira vez, Jim não sabia como quebrar.
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A tarde em Blackgate arrastava-se pesada, com o sol entrando pelas grades como uma ironia dourada. O Coringa estava encostado na parede fria da cela, o joelho balançando nervoso, o olhar fixo em nada, mas cada mínimo detalhe passava pelo crivo dos seus olhos.
Havia seis homens ali com ele. Ninguém precisava dizer nada, o ódio estava no ar, no jeito como o observavam de soslaio, como cães roendo o freio, esperando o instante certo para saltar na jugular. O palhaço sentia aquilo como quem sente a mudança do clima antes da tempestade.
O ranger das botas no corredor interrompeu o silêncio carregado. Dois guardas passaram devagar, conversando baixo demais para os outros, mas não para ele. O Coringa sempre teve ouvido para o que não era para ser ouvido.
-Ficou sabendo do que aconteceu com o 0087 ? - disse um dos guardas no corredor - quem tentou matá-lo foi alguém da segurança, Cole escapou por pouco.
Matthew Cole. Andy. Sempre Andy. Até em Blackgate o nome dele grudava na mente do Coringa como um inseto na sola do sapato. Mas quem teria ido até Andy ? Com que propósito ? Quem o teria visitado ?
O Corredor inteiro parecia segurar a respiração depois daquela frase. O Coringa fechou os olhos por um instante, como se pudesse afastar a sensação de que Andy estava sempre ali, mesmo quando não estava.
Dentro dele, a tensão não vinha só dos homens ao redor. Vinha da imagem insistente de Andy, daquele fio invisível ligando os dois em algum lugar de Blackgate. Era como se o mundo estivesse conspirando para irritá-lo, para cutucar suas feridas ainda abertas. O ex-terrorista o mataria dessa vez, estava cansado do ex-psiquiatra, que até o momento tinha tido sorte quando se tratava da morte. Não que o loiro pudesse culpá-lo, ou recriminá-lo, o próprio Coringa não era do tipo que sabia morrer.
Coringa passou a língua pelos dentes, os olhos fixos no chão de concreto rachado, e disse com um desprezo gelado:
-Dessa vez vou fazer um cachecol com as suas vísceras, filho da puta.
O silêncio veio de novo, mas agora era um silêncio com dentes. Ele podia sentir o momento se aproximando, como a vibração no trilho antes do trem.
-O que você está resmungando sozinho aí, maluco ? - rosnou um dos homens, seus olhos se estreitando na direção do ex-terrorista.
O palhaço ergueu o rosto devagar, os olhos faiscando debaixo da sombra. O sorriso veio primeiro, aquele sorriso lento e sem alegria, feito só para provocar.
-Eu? - disse ele passando a língua no canto dos lábios, a voz arrastada, carregada de sarcasmo - não é nada que a sua cabecinha consiga entender, é preciso ter mais do que dois neurônios para formar um raciocínio.
O silêncio ficou mais espesso. Os seis homens trocaram olhares rápidos, como feras decidindo se avançavam juntos ou esperavam o primeiro idiota ter coragem. O Coringa não desviava o olhar, não cedia espaço. Estava imóvel, mas o corpo todo parecia prestes a se contrair, como um arco tensionado.
O primeiro a se mover foi um cara de ombros largos, que se adiantou dois passos e cuspiu no chão, o cuspe quase tocando o pé do palhaço.
-Chega de gracinha, palhaço.
Coringa riu, um som fino, metálico, que escorreu pelas paredes da cela como uma navalha arranhando vidro.
O segundo homem não esperou mais. Avançou, o punho fechado, mirando o rosto do ex-terrorista. O soco explodiu contra a boca do Coringa com um estalo seco, antes que o loiro sentisse a outra mão do homem agarrando seu cabelo em punho, o puxando para baixo, fazendo seu rosto se chocar violentamente contra o joelho do prisioneiro. A dor explodiu em ondas, e isso era viciante, ele sentia falta dessa adrenalina correndo suas veias.
O Coringa cuspiu no chão e gargalhou, a risada estridente cortando o ar abafado da cela como uma serra enferrujada. Ele estava se divertindo. Um chute certeiro explodiu contra suas costelas, contra seu lado que ainda estava sensível, e ele quase perdeu o fôlego. A visão piscou em preto e branco, mas a risada voltou logo depois, mais rouca. Havia algo de acolhedor na violência, como um abraço de uma velha conhecida.
Os punhos que esmagavam seu rosto, as botas que afundavam em seu abdômen, tudo isso lhe devolvia pedaços esquecidos de si mesmo. A criança com os dentes arrancados em um quarto escuro, o adolescente sujo de terra com a pá nas mãos, o assaltante faminto com um capuz vermelho, o soldado que marchou pelo iraque, o homem que foi desmontado e remontado por meses de tortura física e psicológica. Haviam tantos deles, cada parte de sua vida era um personagem diferente, um fragmento amputado de si, para que outra versão pudesse emergir.
Havia o homem que se infiltrou como refugiado no Iraque, assumindo a identidade de um homem qualquer que ele mesmo matou na sarjeta. Havia o que voltou para New Jersey em um navio de carga, escondido entre as mercadorias, que conseguiu emprego em uma lanchonete, que aprendeu a ler e escrever, que conheceu Emma, e o mesmo que a viu morrer e não sentiu nada com isso. Havia o que voltou para Gotham, retirou o pouco dinheiro que havia no banco no nome de Jack Napier e voltou a cometer assaltos. E então, havia o que conheceu o Batman, que foi atraído como uma mariposa para o fogo por sua violência, e mais do que isso, por sua forma quase dolorosa de colocar o peso do mundo nos ombros e não sucumbir a isso.
O golpe seguinte o jogou contra a parede, a cabeça ricocheteando no concreto com um baque surdo. A dor se espalhou pela nuca como uma onda morna, quase anestésica. Ele sorriu, satisfeito com o desenrolar dos acontecimentos. Cada vida morta, cada vida que ele mesmo assassinou dentro de si, se erguia agora como um coro. Ele não era um homem só. Nunca tinha sido. Porque cortar um membro infeccionado era uma forma de proteger o restante do corpo. Era uma estratégia de sobrevivência, um jeito de afastar a dor, porque a dor passaria a ser de outra pessoa. E a cada momento que marcava sua vida de forma irreversível, uma parte dele morria, mas era substituída por outra, mais dura, mais fria.
O palhaço olhou para o homem à sua frente, os dentes do louco já estavam tingidos de vermelho. Ele gargalhou como quem acabara de ouvir a piada mais obscena do mundo. E aquele som não era humano, era metálico, áspero, uma lâmina arranhando vidro. E por um instante, até os outros recuaram. Não porque o palhaço pudesse vencê-los, não porque fosse mais forte, mas porque estavam diante de alguém sem o menor resquício de autopreservação.
Ele era uma casca. Uma carcaça andando, falando, rindo. Não havia nada dentro. Tudo que um dia existiu nele, a criança, o adolescente, o assaltante, o soldado, o refugiado, e até mesmo o homem que acreditou por um instante no calor de um corpo ao lado do seu, todos eles haviam sido executados, um por um, como animais doentes. Ele os matou sem piedade, porque carregar aquilo era pior do que arrancar fora.
Não havia espaço para arrependimento. Ele sabe que é oco, vazio. O que restava? A fome, a sede, a mania que o movia como um motor desregulado. Um apetite insaciável por carne fresca e sangue quente nas mãos. Ele nascera assim, e sabia disso. Um monstro não era algo em que se tornava, era algo que se carregava desde o princípio. E cada vez que tentava ser qualquer outra coisa, ele falhava, não importava o quanto tentasse. Não porque o mundo fosse cruel, mas porque dentro dele não havia nada que sustentasse isso.
O próximo soco o atingiu de lado, abrindo mais sangue em seu lábio. Ele gargalhou, cuspindo vermelho na cara do outro prisioneiro, e por um instante, o homem hesitou. Não era coragem o que via nos olhos do palhaço. Não era ódio. Era um vazio, um vazio profundo. Aquela espécie de vazio que engolia tudo, que transformava a dor em prazer, o ódio em combustível e a vida em piada.
O ex-terrorista gostava da violência porque ela era a única linguagem que não lhe parecia uma mentira. A sua linguagem primária, a primeira que ele conheceu. Até a pessoa que disse que o amava, o deixou ser torturado porque era mais fácil.
O amor, a segurança, ambas eram palavras muito abstratas, e ele sabia que se sabotava, mas não conseguia evitar. Havia uma vozinha dentro do seu crânio, a mesma voz suave que sussurrava para ele matar Bruce, que dizia que ele deveria colocar fogo em tudo. Nele mesmo, em Bruce, em Jason, em Damian. Colocar fogo e assistir tudo queimar até ser reduzido à nada. Porque no fundo, era isso o que era. Nada
Mas ele jamais faria isso, ele preferia viver essa mentira, porque ele amava Bruce, como amava Jack. E ele não podia perder de novo essa pequena coisinha, tão frágil e trêmula que existia em seu peito. Uma coisinha que o fazia se importar o suficiente para não ouvir a vozinha que sussurrava dentro de sua cabeça.
O próximo golpe veio como uma chuva rápida e pesada. O Coringa cambaleou, sentiu o concreto vibrar contra suas costas, mas a risada não se interrompeu. Ela era mais alta, mais cruel, mais cheia de ar cortante, atravessando a cela como uma lâmina invisível que cortava nervos e medo. O homem que atacava hesitou, só por um instante, mas foi suficiente para o palhaço se erguer com a força de um animal selvagem sedento por sangue.
Os olhos dele brilharam, vazios e penetrantes, fixando cada um dos seis homens ali presentes. Eles estavam observando a loucura em carne viva, sentindo o peso de cada vida arrancada, cada pedaço de humanidade que se foi e deixou espaço apenas para a fome. Um dos homens recuou, sentindo o frio percorrer sua espinha, mas o Coringa sorriu para ele, um sorriso de ferro, retorcido e esquisito. Era meio assustador.
-Você é completamente maluco - disse o homem, dando um passo para trás com nojo, antes de olhar para o colega de cela - não bate mais nesse filho da puta, acho que esse doente está até excitado com essa merda.
O Coringa inclinou a cabeça, estudando cada reação. Ele respirava pesado, sentindo o gosto metálico do próprio sangue misturado à adrenalina. O sorriso torto se abriu ainda mais, rasgando o rosto ensanguentado, e a risada voltou, agora lenta, deliberada, como se cada sílaba fosse uma lâmina girando no ar:
-Excitado? - repetiu passando a língua no lábio inferior, com a voz carregada de sarcasmo e desprezo - oh, meus queridos amiguinhos…vocês não fazem ideia do quanto.
Um dos outros homens, avançou e agarrou o loiro pelo colarinho, o punho levantado cheio de nojo. No entanto, parou no instante em que percebeu que o Coringa não apenas esperava o golpe, mas o provocava com um sorriso de escárnio. Era como se o próprio ar ao redor do louco estivesse contaminado, uma força invisível que tornava qualquer ação contra ele inútil, ridícula.
O palhaço deu um passo à frente se aproximando do preso ainda mais, seus olhos estreitos de diversão e mania mal contida. Ele estava adorando provocar os caras, cada movimento era calculado com a precisão de alguém que já havia vivido milhares de vidas em um único corpo. O Coringa estava a centímetros do homem, o sorriso cruel, alongado pelas cicatrizes, lhe dava ares bizarros. O prisioneiro o empurrou para o chão com nojo antes de cuspir na sua direção:
-Não chegue perto de mim seu desgraçado, eu te mato.
O Coringa se sentou no chão com um movimento pesado, rindo baixinho antes de zombar:
-Masculinidade frágil, previsível - zombou o loiro - mas você não faz o meu tipo, além disso, eu sou casado, e meu marido é muito ciumento.
O Coringa continuava sentado, o sangue escorrendo pelo rosto, os cabelos grudados na testa, mas com o olhar brilhando de uma mania que não pedia permissão para existir. O homem engoliu em seco, o rosto contorcendo-se entre raiva e nojo, mas não recuou. O palhaço inclinou a cabeça e estalou o pescoço, observando cada reação, cada músculo tenso, cada gesto que denunciava vulnerabilidade. Ele adorava isso, o controle sutil sobre o caos, a manipulação de algo tão básico quanto o instinto de autopreservação. Ele sabia usar suas cartas.
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Era noite quando a sombra adentrou a delegacia. Seus olhos faíscavam como um mito retornado da aposentadoria. O corredor da delegacia estava engolido por um silêncio pesado, quebrado apenas pelo eco distante de passos apressados e sirenes que ainda ressoavam lá fora. O morcego entrou sem pressa, o manto pesado encostando levemente no chão frio. Cada som parecia atravessar sua pele, mas ele não se moveu para se proteger; estava acostumado a andar por lugares onde o perigo era palpável, mas invisível. Agora, a ameaça era concreta, burocrática, suja.
Ele parou diante da porta da sala do tenente Chuck. A luz fluorescente lançava sombras longas sobre o chão, deixando o ambiente com um tom de prisão improvisada. Bruce respirou fundo, sentindo o ar gelado cortar seus pulmões. Não era o frio de Gotham, mas o frio da raiva contida, silenciosa. Ele não estava lá pela cidade, não dessa vez
O tenente sentiu o ar mudar quando o morcego adentrou em sua sala, no entanto, ele não lançou nenhum olhar em sua direção. Ele não tinha medo do Batman. Havia uma irritação entre eles, algo que não era de agora, mas desde que o morcego havia aparecido e dobrado a justiça a sua maneira dentro do departamento, tendo Gordon como seu apoiador. Chuck não o suportava.
-Se veio aqui por causa daquele maldito sociopata, perdeu a viagem - falou o tenente sem levantar os olhos dos documentos à sua frente.
-Você não tinha o direito de fazer isso - rosnou o moreno se aproximando da mesa - você sabe que o Coringa não é um criminoso normal, ele não pode ir para Blackgate.
-Ele diz que não é louco - retrucou o tenente, ainda sem olhar para o morcego.
-Mas ele é - retrucou o moreno, seu tom duro, reverberando na voz do morcego - você sabe disso, e eu sei disso.
-Transtorno de personalidade antissocial, ou talvez só perversidade mesmo - devolveu o tenente, ainda sem olhar para o morcego, o tom duro e medido - às vezes as pessoas não são doentes, só são ruins mesmo, talvez nem tudo possa ser explicado por psiquiatras.
-Coringa não é só uma pessoa ruim - rosnou o moreno, seus olhos faiscando - ele precisa de apoio psiquiátrico, de remédios, de ajuda, vão machucar ele em Blackgate e você sabe disso, Chuck.
-Ele me parece dentro de suas faculdades mentais o suficiente para entender as coisas que faz - retrucou o tenente, sua voz gotejando veneno - ele sabe exatamente o que faz, ele gosta disso.
Bruce inclinou-se sobre a mesa, as sombras de sua capa caindo sobre os papéis que Chuck mantinha entre os dedos. O ar pareceu pesar ainda mais, como se a sala se fechasse ao redor deles. O tenente finalmente ergueu os olhos, e por um instante, seus olhares se encontraram com uma violência muda. Chuck não se intimidou.
-Até quando vai brincar de casinha com ele ? - desafiou o tenente - até que ele te mate ? O Coringa não precisa de remédios, precisa de uma bala na cabeça.
O punho de Bruce fechou-se sobre a mesa com um estalo seco. Papéis tremeram.
-Não ouse falar dessa forma - rosnou o moreno, sua raiva vazando pelo capuz do morcego.
O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Bruce sentiu o golpe daquelas palavras ditas pelo tenente mais do que gostaria de admitir. O rosto de Gordon passou por sua mente, o velho aliado, o homem que tantas vezes acreditara no morcego. Mas ali, com Chuck, não havia confiança. Havia apenas atrito. Um ressentimento velho e cansado.
Bruce se endireitou lentamente, cada músculo rígido como aço, como se a simples postura fosse o único fio que o impedia de atravessar a mesa e calar Chuck com as próprias mãos. Ele não precisava da máscara para intimidar, mas naquela noite, a máscara parecia mais um espelho da sua raiva do que qualquer coisa.
Batman avançou meio passo, a sombra engolindo a mesa, o corpo curvado sobre o tenente como uma ameaça viva. O coração batia acelerado, não de medo, mas de cólera. As palavras de Chuck arranhavam como vidro em sua pele.
-Você não entende nada - a voz de Bruce saiu como um rosnado abafado, cada sílaba carregada de rancor - eu conheço ele melhor do que você, melhor do que qualquer pessoa e onde você vê um monstro, eu vejo o que sobrou depois que o mundo acabou de mastigar uma pessoa até os ossos.
-Diga isso para todas as pessoas que ele matou - retrucou o tenente.
Bruce cerrou os dentes, e por trás da máscara, os olhos queimavam. O silêncio entre eles tornou-se sufocante. Chuck não desviava o olhar, como se desafiasse Bruce a admitir o que ambos sabiam. O morcego respirava fundo, pesado, como se cada inspiração fosse um esforço para não explodir.
-Não me culpe por ter medo do que ele pode fazer - disse Chuck quebrando o silêncio.
O silêncio retornou, mais pesado do que antes. Chuck apoiou-se de volta na cadeira, os olhos frios, mas a mandíbula tensa. Bruce se virou em direção à porta, o manto ondulando atrás de si como um corte de sombra. Mas antes de sair, lançou por cima do ombro:
-Se alguma coisa acontecer com ele lá dentro… não vai ser o Coringa que você vai ter que temer, vai ser a mim.
E com essas palavras o morcego saiu, deixando a sala mergulhada em um silêncio que parecia ainda mais hostil que sua presença.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui :) Sério, vocês são demais, poucas pessoas aguentam histórias com mais de 250 mil palavras, estão de parabéns. Eu sei que é arrastado, eu sei kkkkkk
Chapter 48: The Gotham We Have (Parte 48)
Notes:
Mais um capítulo saindo. Gente do céu as coisas estão loucas, não sei que vou conseguir postar na semana que vem. Estou começando a fazer estágio, somado com família, trabalho, aulas da Universidade. Enfim, é bastante coisa, mas eu juro, que pelo menos 2X por mês eu consigo postar. Tenham paciência comigo, é que eu demoro muito para escrever, e apago muito, além do material extra, que eu preciso para não esquecer as coisas, porque é uma história enorme e seria fácil cometer um erro de continuação. Desculpem erros de digitação, não tenho tempo de revisar.
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Chapter Text
A manhã entrou pelas frestas da cortina como um intruso indesejado. A luz cinzenta de Gotham não trazia promessa de nada, apenas mais um dia igual aos outros, mais um dia de fardos acumulados. Bruce estava sentado na ponta do sofá, ainda com a mesma roupa de ontem, o olhar fixo nos papéis espalhados sobre a mesa de centro. Envelopes, anotações, recortes de jornais, relatórios da polícia, uma tapeçaria de dor e mistério que não se fechava em nenhum padrão lógico.
Ele não dormira. Não sequer piscava mais do que alguns segundos por vez. Cada linha repassada, cada pista anotada, voltava a se fragmentar como vidro, e ele recomeçava do zero. Uma obsessão que consumia tudo, até o que restava da sua humanidade. Ele estava cansado, mas não conseguia desligar. Ele sentia que estava deixando algo passar, alguma coisa na investigação não estava se encaixando. Era como ter peças demais em um quebra cabeças que não fazia sentido.
O som que o puxou de volta foi o arrastar hesitante de pés descalços no carpete. Damian surgiu no batente da porta, o cabelo bagunçado, os olhos grandes ainda meio turvos de sono. A expressão de confusão era quase permanente em seu rosto quando olhava para aquele homem que diziam ser seu pai.
Bruce ergueu os olhos para ele por um instante. Só um instante. O suficiente para perceber a fragilidade da cena, uma criança pequena, em um apartamento sem brinquedos, sem nada que lembrasse uma infância além de giz de cera barato e outras porcarias que na verdade eram de um sociopata.
Damian não disse nada. Não sabia bem o que dizer, a palavra “pai” não lhe vinha naturalmente aos lábios. Ficou apenas parado, encarando Bruce como se esperasse algum gesto, algum reconhecimento. Mas Bruce já havia baixado os olhos de volta para a papelada. O ex-bilionário estava sobrecarregado demais, e era isso que fazia quando estava sobrecarregado. Ele se afastava.
O moreno ouviu a voz de sua consciência, que pingava venenosamente na voz do Coringa, que Bruce estava sendo um pai de merda, que ele nem conseguia olhar para o filho. Não conseguia interagir com ele.
Ele se recriminava em silêncio. Alfred tinha razão, Alfred sempre tinha. Damian deveria estar na casa do ex-mordomo, e não ali, preso em um apartamento sufocado pelas sombras de investigações que pareciam não levar a lugar algum. Bruce não confiava mais em si para tomar a decisão certa. Não com Richard desaparecido, não com Jason cada vez mais distante e não com o Coringa em Blackgate.
-Você está com fome? - perguntou o ex-bilionário por fim, a voz baixa, sem tirar os olhos do relatório à sua frente.
Damian não respondeu. Apenas se aproximou da mesa, os passos pequenos ecoando no silêncio. Olhou os papéis espalhados como se fossem peças de um quebra-cabeça que não entendia. Por um instante, Bruce se permitiu encarar Damian, sentiu o peso de todas as falhas amontoando-se sobre os ombros.
Ele fechou os olhos, respirando fundo, como se o ar pudesse mantê-lo de pé. Mas a verdade era clara, ele não estava com cabeça para nada. Nem para a cidade. Nem para os filhos. Nem para o homem que ele amava. E ainda assim, tinha que continuar, porque tudo dependia dele para não ruir.
Bruce sentia a raiva borbulhar, mas ele não sabia para onde direcionar isso, era raiva do Contador de Histórias, de Chuck, de si mesmo. As 34 linhas de telefone ainda ecoavam em sua cabeça, o mesmo número de envelopes, tudo isso relacionado com Richard de alguma forma. Cada vez mais as coisas se alinham de forma distorcida. Havia alguma coisa que ele não estava vendo.
O ex-bilionário olhou para os envelopes, eles tinham uma lógica de organização. Estavam organizados do 34 ao 29, do 28 ao 20, do 19 ao 15, do 14 ao 12, do 11 ao 9, do 8 ao 7, do 6 ao 2, é havia o 1 sozinho. Com o contador de Histórias nada era por acaso, sempre havia um motivo, e com a organização dos envelopes não era diferente. Haviam números escondidos. Do envelope 34 ao envelope 29 haviam 6 envelopes. Eram um grupo de 6 envelopes. Assim como, do envelope 28 ao 20, havia 8.
34 ao 29 = 6
28 ao 20 = 8
19 ao 15 = 5
14 ao 12 = 3
11 ao 9 = 3
8 ao 7 = 2
6 ao 2 = 5
1 = 1
O moreno olhou para os números, eles por si só não diziam nada, era apenas um emaranhado de números soltos. Se ele substituísse os números por suas respectivas letras do alfabeto também não encontraria nada. Não parecia ter uma mensagem escondida.
34 ao 29 = 6 (F)
28 ao 20 = 8 (H)
19 ao 15 = 5 (E)
14 ao 12 = 3 (C)
11 ao 9 = 3 (C)
8 ao 7 = 2 (B)
6 ao 2 = 5 (E)
1 = 1 (A)
Bruce permaneceu imóvel por alguns segundos depois de escrever as equivalências no papel, como se colocar aquelas letras à vista tivesse, por si só, a capacidade de obrigá-lo a enxergar algo novo. F,H,E,C,C,B,E,A. Um amontoado de consoantes e vogais que não eram palavras. Não era isso. O caminho não era tão simples assim, o Contador de Histórias não daria as respostas de forma tão simples. Não, não era o estilo dele. Tinha que haver outra forma, porque esses números com certeza tinham um significado.
O relógio se arrastava de forma lenta no apartamento, o silêncio era denso como fumaça. Bruce não sabia o que esse amontoado de números queriam dizer. Eles pareciam gritar em seu rosto, mas ele não sabia o que fazer com isso. O moreno abriu seu email e mandou a sequência de números para Nashton. Ele sabia que o ex-Charada daria uma olhada, não para ajudá-lo, mas porque Edward não podia simplesmente ignorar um enigma, não estava em sua natureza. Como um clássico narcisista, ele precisava provar a si mesmo para os outros.
O moreno olhou para o filho parado no corredor olhando as fotografias dispostas por ele. Eram diversas fotos dele e do Coringa, algumas com Bud. Haviam as fotos de família de Bruce, com Martha e Thomas Wayne, assim como a fotografia do palhaço com Jack, na guerra do Iraque. Ele parou ao lado da criança que continuava olhando para as fotografias em silêncio. Nada era dito entre eles, o moreno nem sabia o que dizer ou como dizer. Talia tinha desaparecido, e mesmo com Alfred tentando encontrá-la, Bruce sabia que a mulher não deixaria outra brecha para eles novamente. Talia só seria achada se ela quisesse.
Bruce suspirou fundo, tentando organizar o caos que tinha em sua cabeça, Damian ainda permanecia parado, curioso, mas em silêncio, como se soubesse que qualquer pergunta seria recebida com distração ou impaciência. O ex-bilionário finalmente se abaixou, ficando na altura da criança, sem forçar um sorriso, apenas tentando estabelecer algum contato visual.
-Olha…eu sei que você sente falta da sua mãe - começou o moreno, seu tom firme, mas não agressivo - e eu vou encontrá-la, mas eu quero que você saiba, que você tem um pai agora, eu estou aqui, e logo vai ter fotos suas aí, e fotos de Jason também.
Damian ergueu os olhos, grandes e silenciosos, como se estivesse medindo cada palavra de Bruce, tentando entender se podia confiar ou apenas observar o movimento das sombras que aquele homem carregava. Não respondeu, mas por um instante o corpo pequeno relaxou, e o gesto, mínimo, mas que já dizia algo, que ele estava escutando.
Bruce passou a mão pelo cabelo do filho, um movimento hesitante, quase mecânico, mas que trazia a intenção de algum conforto. A própria sensação de fragilidade o atingiu de repente. Ele não podia mais negar que a criança ali dependia dele, mesmo que ele não soubesse exatamente como ser esse pai.
-Eu sei… que as coisas estão confusas agora - continuou Bruce, com a voz mais baixa, quase quebrada - mas precisamos ser fortes, você e eu.
Damian permaneceu em silêncio, apenas olhando, absorvendo cada palavra sem conseguir reagir. Ele queria acreditar naquelas palavras.
-Eu gosto dos desenhos - falou a criança se virando para o fim do corredor, apontando para o quarto de Bruce.
-Eu também gosto deles - ofereceu o moreno olhando para a direção onde o garoto apontava -você quer ver o meu favorito ?
A criança assentiu, estranhamente interessada. Bruce levantou-se devagar, o corpo pesado de exaustão, mas firme o suficiente para não demonstrar fraqueza diante do filho. Pegou a mão de Damian e o guiou até o quarto.
Ao entrarem, o garoto foi imediatamente envolvido por uma avalanche de cores e formas que preenchiam as paredes. Os desenhos eram todos obra do Coringa, um caos organizado de giz de cera. Uma decoração bizarra e enlouquecedora. Haviam desenhos realmente perturbadores, havia palhaços de sorrisos desproporcionais, criaturas alongadas que pareciam surgir de pesadelos, monstros com olhos demais, cores que gritavam sem som. Cada canto exalava uma energia frenética, quase palpável, que poderia facilmente enlouquecer qualquer um.
Mas, no meio de toda a loucura, havia algo que Bruce não podia deixar de admirar, o desenho de palito de um homem com capa e máscara pontuda, erguido sobre um prédio, olhando para a cidade. Bruce se aproximou do garoto, apontando para o desenho com delicadeza, como quem revelasse um segredo.
-Olha… este é o meu favorito - disse ele, a voz baixa, mas firme - aqui… em Gotham, a cidade tem um guardião, ele protege as pessoas.
Damian franziu a testa, os olhos grandes se enchendo de curiosidade. Ele parecia pequeno diante da parede enlouquecedora de cores, mas os olhos brilhavam com atenção, tentando captar o significado daquelas palavras.
-Qual o nome dele ? - perguntou a criança, a voz pequena quase se perdendo na vastidão de imagens.
-Batman - falou o moreno, ainda sem tirar os olhos do desenho.
-E onde ele está ? - perguntou Damian.
Bruce engoliu em seco, sentindo o peso da verdade e da incerteza. Procurou palavras que não traíssem o medo ou a dúvida que sentia, palavras que pudessem alimentar uma centelha de esperança sem mentir.
-Eu… não sei exatamente onde ele está agora - falou o ex-bilionário - mas quando a cidade precisa, ele sempre aparece.
O garoto voltou os olhos para o desenho, traçando com os dedos a capa e a máscara do herói, antes de erguer a cabeça novamente para Bruce.
-Ele poderia encontrar a minha mãe?
Bruce sentiu o peito apertar. A pergunta simples, direta, cortou qualquer distração, qualquer emaranhado de envelopes, números ou códigos que ainda o assombravam. Ele se abaixou levemente, ficando ao nível do garoto, e, com firmeza e convicção, respondeu:
-Sim… ele vai encontrá-la.
Damian assentiu, pequeno e silencioso, mas por um instante, a expressão no rosto dele mudou. Um fio tênue de esperança pareceu acender em seus olhos, iluminando-os com uma luz frágil, mas real. Bruce percebeu naquele instante que, apesar de Gotham estar mergulhada em sombras e caos, ainda existia algo que podia transmitir para o filho.
O garoto se aproximou mais do desenho do Batman, os dedos traçando as linhas do herói, e Bruce ficou ao lado dele, silencioso, sentindo o peso das responsabilidades se equilibrar momentaneamente com aquele instante de simplicidade e confiança silenciosa. Pela primeira vez naquela manhã cinzenta, havia algo pelo qual ele podia realmente lutar, não apenas a cidade, não apenas os números e envelopes, mas a esperança de Damian.
-Porque a gente não vai ver a cidade ? - perguntou o moreno olhando a criança - aqui tem algumas sorveterias e um parque bem legal.
Damian ergueu os olhos, surpreso com a proposta. Ele piscou algumas vezes, como se estivesse tentando processar a ideia de sair daquele apartamento sufocado de sombras e cores desencontradas.
-A cidade? - murmurou, ainda inseguro - mas… e a mãe? E o Batman?
Bruce se inclinou, apoiando uma mão no ombro do garoto, tentando transmitir firmeza sem pressionar.
-Eu e você precisamos ver algumas pessoas, tomar um sol - ele fez uma pausa, escolhendo cuidadosamente as palavras - você e eu precisamos dar um tempo.
Damian olhou para o desenho mais uma vez, a mão pequena descansando sobre o contorno da capa do herói antes de dizer:
-Então a gente vai passear ?
Bruce assentiu, um gesto silencioso que carregava mais promessas do que palavras poderiam dizer. Ele pegou o casaco, olhando rapidamente para os desenhos que preenchiam o quarto. Cada traço, cada cor, cada ponta da mente enlouquecida do Coringa, parecia observar a cena, como se pensasse, por um momento, se aprovava ou reprovava a decisão de Bruce de tentar oferecer uma normalidade mínima para Damian.
-Sim - respondeu Bruce finalmente, estendendo a mão novamente para o filho - a gente vai passear.
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O corredor de Blackgate cheirava a ferro velho, suor e alvejante barato. As lâmpadas altas piscavam em intervalos regulares, como se zombassem da ideia de segurança. O Coringa caminhava sem pressa, as mãos no bolso da calça bege, a boca ainda amarga da refeição insossa que havia empurrado garganta abaixo no refeitório. Aquela comida sem gosto lhe lembrava serragem molhada. Até a fome parecia mais interessante que aquilo.
Os guardas estavam mais atrás, conversando entre si, distraídos. O palhaço conhecia aquela distração, não era acidente. O barulho veio como um sopro, um passo acelerado, o atrito seco do tecido contra a parede. Não deu tempo para pensar. Algo deslizou pelo pescoço dele e apertou com força brutal. Um cadarço.
A garganta do ex-terrorista se fechou em um instante, o ar cortado como se tivesse engolido vidro. Os olhos arderam, e o mundo se transformou em pulsação e instinto. O corpo foi puxado para trás com violência, o cadarço cavando sua pele como uma lâmina, a boca se abrindo em um grito que não saiu. O sangue martelava nos ouvidos. Ele levou as mãos ao pescoço, unhas arranhando a pele, tentando aliviar a pressão.
Não era a primeira vez, ele reconhecia o gosto da asfixia. Lembrou-se de noites em que a morte rondava de perto, de mãos maiores que a sua, fechando-lhe a traqueia até o limite. O desespero tinha uma textura, e ele a conhecia bem. O assassino anônimo que não queria só bater, queria vê-lo apagar.
O corpo do palhaço reagia sozinho, o instinto em carne viva, unhas cravando no pescoço, tentando enfiar um dedo entre o cadarço e a pele, qualquer fenda microscópica que lhe devolvesse um fiapo de oxigênio.
A cada segundo, o mundo encolhia. Primeiro as bordas da visão escureceram, depois as lâmpadas que piscavam no teto se multiplicaram como lâminas líquidas. Ele chutava para trás, as botas batendo contra a parede e contra pernas que não cediam.
O gosto de sangue invadiu sua boca quando mordeu a própria língua. A cabeça latejava, a veia do pescoço saltando como um tambor acelerado. O som dos guardas lá no fundo parecia cada vez mais distante, abafado, como se estivesse debaixo d’água.
O corpo tremia, cada espasmo uma súplica muda de sobrevivência. Ele se debatia, mas já não havia força, somente reflexos quebrados, como um animal em agonia.
E então, no meio do torpor, algo rompeu a atmosfera pulsante. Um estalo seco ecoou pelo corredor, carne contra carne, um grito sufocado, outro corpo caindo. O laço se afrouxou de repente, e o ex-terrorista caiu de joelhos, o ar irrompendo em seus pulmões com violência, rasgando sua garganta como vidro. Ele tossiu, as mãos ainda agarradas no vazio, como se o cadarço continuasse ali.
A visão voltou aos poucos, turva, borrada por manchas pretas. Ele levantou o rosto, a confusão continuava ao seu redor. Ele somente conseguiu levantar as mãos na frente do rosto antes que um chute o aceitasse, o jogando deitado de costas no chão frio do corredor. O impacto contra o chão roubou dele o pouco ar que havia recuperado, a cabeça latejou, cada batida do coração um trovão abafado dentro do crânio.
O palhaço ergueu os braços instintivamente, como se ainda houvesse corda em seu pescoço, como se a luta não tivesse acabado. Tudo era reflexo, o corpo reagindo antes da mente, como se a morte tivesse deixado nele uma marca invisível. A bota desceu de novo, pesada, certeira. Dor cravou-se em suas costelas, espalhando-se em ondas mornas que beiravam a inconsciência. Ele riu, ou tentou rir.
A confusão que se desenrolava tomou a cena. Havia gritos, passos correndo, corpos em choque, mas para ele era tudo distante. O tempo havia se distorcido, elástico, os segundos se alongando, se partindo. E no meio disso, uma silhueta se abaixou ao lado dele, familiar demais. O rosto que o loiro odiava reconhecer, Andy.
O ex-terrorista olhou para o ex-psiquiatra com um misto de nojo e violência contida. Mas no momento seguinte, Andy estava sendo jogado no chão como um pedaço de merda por um dos guardas que havia aparecido para acabar com a confusão. Os outros dois homens estavam sendo contidos no chão por outros dois guardas. O palhaço rapidamente sentiu o ferro das algemas mordendo seus pulsos com crueldade automática, fria, indiferente. O joelho pesado em suas costas esmagava sua caixa torácica contra o concreto.
Andy estava no chão, tossindo, o rosto machucado distorcido pela poeira e pela humilhação. Ver aquilo incendiou o peito do Coringa, não de solidariedade, essa palavra nunca lhe coube, mas de fúria. Fúria porque o mundo parecia conspirar para colar os dois, costurar suas trajetórias em linhas que ele não queria compartilhar. Até ali, no corredor de ferro e alvejante de Blackgate, Andy surgia como um maldito verme colado em seu sapato.
O loiro tentou se virar, os olhos fixos na figura caída do ex-psiquiatra. Ele queria cravar as unhas em sua garganta, rasgar aquele rosto até não sobrar nada, mas a pressão nas costas não deixava.
O coro dos guardas gritando ordens se misturava ao som das botas no chão, ao atrito dos corpos sendo arrastados. Tudo era ruído, um ruído que batia contra seu crânio como marteladas. Ele foi erguido à força e arrastado como um maldito cachorro pelo corredor. O guarda rosnou o empurrando para dentro de outra cela:
-Se querem se matar pelo menos que não seja no meu turno, façam menos barulho, seu amigo grita demais, a penitenciária inteira ouviu ele gritar por ajuda.
A porta da cela se fechou com um estrondo metálico, o som ecoando como uma sentença. O Coringa tropeçou para dentro, as mãos ainda presas atrás do corpo, os pulsos latejando onde o ferro mordera a pele. Em menos de um minuto Andy também foi jogado para dentro como um saco de carne. O sangue escorria de seu nariz, a respiração áspera denunciando o impacto das botas e dos socos.
O ex-psiquiatra ergueu o olhar, apenas por um segundo, na direção do loiro. E aquele segundo foi suficiente para reacender o ódio e a repulsa no peito do Coringa.
-Até aqui você está me perseguindo ? - rosnou o palhaço passando a língua no canto dos lábios - está procurando uma forma de ir para o andar de baixo mais cedo ?
Andy não respondeu de imediato. Apenas se arrastou até o canto, o peito subindo e descendo num ritmo lento, tentando se recompor. O silêncio que se formou entre eles não tinha nada de vazio; era um silêncio carregado, cortante, como se a própria cela fosse pequena demais para conter tanto ressentimento, cultivado de formas diferentes por ambas as partes.
O Coringa fechou os olhos por um instante, não para descansar, mas para sentir melhor a própria fúria. O gosto de sangue ainda estava forte em sua língua. A pele do pescoço queimava onde o cadarço havia cavado. E mesmo assim, mesmo naquele estado, havia uma coisa que incomodava mais do que tudo, o fato de Andy ter aparecido ali.
-Antes que queira pular no meu pescoço, de nada - falou o ex-psiquiatra se levantando - você está bem ?
-Eu não pedi a porra da sua ajuda - falou o loiro entre os dentes, ainda com os olhos fechados, sua cabeça estava explodindo.
-Você não pediu - respondeu Andy, a voz rouca, gasta - mas se eu não tivesse aparecido, estariam arrastando o seu corpo gelado para o necrotério agora.
O Coringa riu. Uma gargalhada seca, que saiu mais como um arranhar de garganta ferida. Ele tombou a cabeça para trás contra a parede e abriu os olhos apenas o suficiente para mirar o ex-psiquiatra com o canto dos olhos antes de entoar:
-Não vou te agradecer se é isso que está esperando, pode brincar de cavaleiro de armadura prateada o quanto quiser, ainda vou te matar quando tudo isso acabar.
As palavras cortaram a cela como uma lâmina. Andy fechou os punhos, mas não se moveu. O silêncio que se seguiu era sufocante, mais pesado que o ferro das grades. O Coringa respirava com dificuldade, cada movimento da caixa torácica acompanhado da dor que irradiava das costelas.
-Não estou tentando te machucar - falou o ex-psiquiatra com um suspiro - eu só quero conversar, eu s-
-E eu não quero conversar - devolveu o loiro com um rosnado baixo, interrompendo o ex-psiquiatra.
O silêncio voltou, pesado, preenchendo cada fresta da cela. O Coringa respirava com esforço, a dor martelando nas costelas. Andy permanecia imóvel, preso no próprio olhar fixo, como se encarasse algo que não tinha forma.
-Meu psiquiatra me ajudou a entender certas coisas que estavam nebulosas, quando eu estava na minha condicional - divagou o ex-psiquiatra no silêncio da cela.
-Me poupe da sua conversa fiada - disse o palhaço com desprezo, passando a língua no lábio inferior - eu não quero ouvir você falar, se abrir essa boca de novo, eu arranco a sua língua.
Andy respirou fundo, o nariz ainda sangrando, e por um instante pareceu quase sorrir, um sorriso fraco, que desapareceu tão rápido quanto surgiu.
-Você sempre fala como se pudesse me destruir, mas a verdade é que você já tentou - entoou Andy, sua voz neutra e analítica - e ainda assim, eu continuo aqui.
O Coringa virou o rosto para encará-lo, os olhos estreitos, faiscando.
-Você não entende ? Eu te odeio - as palavras saíram com força, cuspida como uma faca - eu odeio cada segundo que você respira perto de mim.
Andy manteve o olhar fixo, como se estivesse vendo outra coisa além dele, algo muito além daquela cela.
-Eu sei - disse o ex-psiquiatra, a voz cansada, mas firme.
-Então pare de me perseguir - rosnou o loiro, a língua passando no canto dos lábios furiosamente - isso já está ficando assustador, até para mim.
Andy ergueu um pouco o corpo, apoiando-se nas mãos, os pulsos ainda latejando de dor, presos atrás das costas. O olhar preso ao do Coringa como se quisesse atravessá-lo.
-Jason esteve aqui - falou Andy depois de um momento de silêncio - ele veio conversar comigo.
-Porque ? - entoou o ex-terrorista franzindo o cenho - ele não tem motivos para querer fazer com você, ele é agraciado por nem saber da sua existência
-Ele fez a ligação entre mim e Sam - o ex-psiquiatra deu de ombros - ele deve ter lido alguma coisa da investigação do Contador de Histórias, estava aqui procurando pela mãe dele.
O loiro estreitou os olhos, deixando a voz de Andy rolar dentro da mente como um prego enferrujado arranhando metal, antes de dizer em um tom áspero:
-E o que você disse pra ele?
-Falei onde ele pode encontrar pessoas que podem ajudá-lo a achar a mãe dele - respondeu Andy - em Narrows, você sabe, bem, não preciso te dizer que ele está em perigo real agora.
As palavras caíram como ácido no estômago do loiro. Aquelas palavras soavam como uma sentença, porque Narrows não era lugar para um garoto. Aquele era um lugar barra pesada.
-Você mandou o meu filho para um emboscada ? - entoou o ex-terrorista irritado, a palavra filho soava estranha na boca dele, como se ele tentasse o termo pela primeira vez.
-Eu não tive escolha - retrucou Andy, seu tom urgente - o Contador de Histórias tem feito da minha vida um inferno desde que saí de Blackgate pela primeira vez, porque acha que eu estava te seguindo por aí ?
-Porque você é estranho - zombou o loiro, passando a língua no cantos dos lábios.
-Tenho recebido fotos suas - suspirou o ex-psiquiatra - tem câmeras na sua casa, na delegacia, no consultório da sua psiquiatra, em todo lugar.
O Coringa arregalou os olhos, o rosto se crispando em algo entre riso e raiva.
-Fotos minhas? - ele rosnou, inclinando-se para a frente como uma fera presa, o brilho enlouquecido nos olhos - você disse que as câmeras no apartamento eram do Grayson.
-Sim, as mais fáceis de achar - assentiu Andy, seu tom neutro - mas o Contador de Histórias não é um amador como Grayson, que deixa as coisas tão visíveis ao ponto do Bruce conseguir identificar sem precisar suar.
-Porque esse cara te mandaria fotos minhas ? - o loiro estreitou os olhos, seu tom escorrendo zombaria - se você quer fotos minhas, eu estou cobrando um dólar, não precisa dessas medidas tão drásticas.
Andy não deu importância para a provocação, se contorceu, puxando com esforço do bolso do uniforme um maço amassado de papéis, fotos granuladas de câmeras de segurança, impressões borradas de ruas, em seu apartamento, na delegacia, lugares reconhecíveis demais. O loiro viu o próprio rosto ali, às vezes de costas, às vezes caminhando, outras parado. Andy jogou tudo no chão, as folhas se espalhando pelo cimento imundo.
-Eu tentei falar com você meses atrás, foi por isso que te sequestrei, mas eu... - a voz do ex-psiquiatra falhou, carregada de exaustão - eu não consegui, porque o Contador de Histórias já tinha deixado claro mais de uma vez que ia me matar se eu abrisse a boca, então eu…eu só fiz o que estava ao meu alcance.
-Me manter por dias em cárcere privado, acorrentado a uma pia dentro de um banheiro como se eu fosse um bicho ? - zombou o loiro, passando a língua no canto dos lábios.
Andy fechou os olhos por um instante, o corpo tremendo de cansaço, mas manteve a voz firme:
-Na época não parecia uma ideia tão ruim, você estava em perigo e eu…eu não sei, eu só fiz o que consegui pensar naquele momento, não foi nada planejado.
As fotos espalhadas no chão pareciam respirar junto com as palavras. O olhar do loiro correu por elas outra vez, sua silhueta num beco, um reflexo num vidro, a sala do seu apartamento, ele e Bruce tomando café de madrugada na cozinha. O peito dele ferveu com uma fúria que não sabia para onde correr.
Ele voltou os olhos para Andy, e o ódio brilhou em cada linha do seu rosto.
-Você acha que eu vou acreditar nessa historinha? - sibilou, cuspindo as palavras.
Andy ergueu a voz, um tom áspero, mas carregado de algo que parecia frustração genuína:
-Escuta idiota, se quer salvar o garoto precisa acreditar no que eu estou te falando, o Contador de Histórias tem olhos em todos os lugares, e isso não é uma metáfora.
-E porque você resolveu falar isso agora ? - devolveu o loiro, seus olhos estreitos - você disse que o Contador de Histórias te mataria, então porque ?
-Dias atrás tentaram me matar - falou Andy desviando o olhar - acho que sou peça marcada para morrer agora, então tanto faz.
-Se você já era uma peça marcada para morrer porque mandou Jason para Narrows ? - questionou o loiro, sua língua umedecendo o lábio inferior.
Por um instante, no silêncio carregado da cela, parecia que a violência voltaria a explodir de novo. No entanto, isso não aconteceu. Matthew apenas olhou para o ex-terrorista antes de dizer:
-Recebi fotos suas no hospital, eu não sabia se era verdade, mas…já era uma ameaça suficiente, porque Jason me disse que não se encontrava com você a 4 dias, então eu presumi que a fotografia era verdadeira, e eu não poderia arriscar a sua vida, você sabe disso.
O loiro soltou uma gargalhada rouca, quase um engasgo, que reverberou nas paredes da cela. Era uma piada, o ex-terrorista achava engraçado, mas havia algo que o incomodava de verdade nessa fala do ex-psiquiatra.
-Você sabe que eu me importo com você - falou Andy, seu tom era neutro, mas havia algo esquisito, algo que deixava o loiro incomodado.
O silêncio que seguiu era mais cruel do que qualquer palavra. O Coringa inclinou a cabeça para o lado, os olhos semicerrados, mirando Andy como se buscasse ali uma brecha, um erro, algo que entregasse a verdadeira intenção por trás daquela frase. Mas Andy apenas o olhava com aquele olhar clínico.
-Você quer brincar de melhores amigos esquisitos, é isso ? - zombou o loiro - não me faça rir, me poupe e se poupe dessas suas besteiras.
-Você sabe que não são besteiras, eu me importo com você - reforçou o ex-psiquiatra.
O loiro fechou os olhos e encostou a cabeça na parede, como se quisesse esmagar o crânio contra o concreto. A risada não veio, somente um ranger de dentes. Dentro dele, algo se revirava com violência.
-Besteira - rosnou ele, seu tom irritado.
-Eu sei que tem muito sangue entre a gente, muita merda - recomeçou o ex-psiquiatra - e eu sei que é difícil, e que vamos precisar de muito tempo de terapia para conseguir superar isso, mas…eu me importo com você, de verdade, e eu gostaria que a gente tentasse pelo menos não matar um ao outro por agora.
As palavras de Andy pairaram no ar como um veneno doce, viscoso, que o loiro não queria, mas que inevitavelmente escorria garganta abaixo. O Coringa manteve os olhos fechados, como se pudesse trancar Andy para fora. As frases do ex-psiquiatra vinham e voltavam, ricocheteando contra as paredes internas de sua mente como uma moeda girando sem parar. O loiro sabia, em algum grau, que não era mentira. Ele somente não queria reconhecer aquilo, não depois de tudo que eles fizeram um ao outro.
-Eu não quero te machucar - falou Andy no silêncio estabelecido na cela - na época eu não sabia o que fazer, eu estava tão confuso e tão irritado que eu fiz coisas realmente terríveis…meu psiquiatra e eu trabalhamos isso, me ajudou a entender muitas coisas que eu senti e que eu sinto.
O loiro abriu os olhos devagar, encarando o teto rachado, e deixou escapar um suspiro pesado, mais um rosnado que um sinal de rendição:
-Você consegue pegar o que já era ruim e transformar em algo pior.
-Eu sei que você me odeia - falou o ex-terrorista como se contasse apenas um fato, antes que sua voz se tornasse menos monótona - e tudo bem, eu também deveria te odiar, mas eu não consigo, você…você se parece tanto com ela.
As palavras pairaram na cela como uma lâmina cega sendo empurrada contra a carne. Lentamente, dolorosamente. O Coringa manteve o olhar fixo no ex-psiquiatra, como se quisesse atravessá-lo com pura fúria. Havia algo de insuportável naquela frase.
-Isso é coisa da sua cabeça, maluco - respondeu o loiro entre os dentes, antes de passar a língua no lábio inferior com raiva.
O silêncio que caiu foi quase insuportável. O Coringa sentia o ar da cela pesar sobre sua pele, sufocante. O peito subia e descia devagar, cada respiração atravessada por uma dor que não vinha só das costelas. Ele virou o rosto, encarando o concreto ao lado, como se aquilo fosse menos ameaçador do que os olhos do ex-psiquiatra.
-Você é um verme… - murmurou, com a voz rouca - e eu vou te matar quando eu tiver chance, vou arrancar todos os seus órgãos com você ainda vivo, e eu vou gostar de cada segundo disso.
-Tudo bem, mas a gente podia deixar isso de lado até sair desse lugar de merda - falou o ex-psiquiatra - eu sei que você quer ir atrá do garoto, e eu preciso sair daqui, o Contador de Histórias vai tentar me matar de novo.
As palavras de Andy ficaram pairando no ar, mas o loiro não respondeu. O silêncio tomou a cela de novo, mas dessa vez não parecia um vazio, era uma presença, sufocante, quase física. O ex-psiquiatra ficou imóvel no canto, e ainda assim seus olhos não deixavam o Coringa. Era um olhar pesado, como se tentasse decifrá-lo até a última fresta.
O contorno do palhaço, as feições, até mesmo a respiração cansada, tudo misturava-se com uma memória que Andy não conseguia matar. O loiro sentiu esse peso, essa transferência nojenta que escorria de Andy para cima dele. O Coringa sabia reconhecer obsessões, eram o combustível da própria existência, e o que via ali em Andy tinha a mesma textura doentia.
Os dois ficaram assim, imóveis, como dois cadáveres respirando, cada um devorado por seus próprios fantasmas. O único som era o pingar lento de uma goteira invisível em algum ponto da cela, um som ritmado que parecia marcar o tempo.
Quando o loiro finalmente se moveu, foi apenas para encostar a testa contra o joelho dobrado, os pulsos ainda presos atrás do corpo. Os lábios se moveram num murmúrio baixo, quase inaudível, mais para si mesmo do que para o outro:
-Ok, só até sairmos daqui.
Andy não respondeu, apenas fechou os olhos e deixou a cabeça pender contra a parede. Por um instante, parecia que ambos estavam no mesmo limbo, esmagados pelo peso de uma memória que não pertencia a nenhum dos dois, mas que os prendia na mesma cela de forma mais cruel que as grades de ferro.
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O sol da tarde filtrava-se entre as árvores do parque, tingindo o gramado com manchas douradas que se moviam devagar com o vento. Bruce caminhava ao lado de Damian, o garoto segurando um sorvete de casquinha que já começava a derreter na ponta dos dedos. A cena era banal, comum, mas para Bruce parecia algo extraordinário, um recorte de vida que ele nunca soube como ter.
Damian, no entanto, parecia absorver aquilo com uma naturalidade surpreendente. Ele lambia o sorvete devagar, os olhos atentos aos outros garotos correndo pelo parquinho, gritos de alegria e o barulho do escorregador ecoando pelo espaço aberto. Por um instante, Bruce percebeu que o filho não era só o reflexo das sombras que os cercavam. Ele ainda podia ser uma criança.
Bruce respirou fundo, sentindo pela primeira vez em dias que o peso em seus ombros se suavizava, mesmo que fosse só por minutos. Não havia números, nem fotos, apenas um garoto lambendo sorvete e tentando entender onde se encaixava no mundo. No entanto, no fundo da sua mente, o moreno repassava as linhas de investigação. O rosto do Coringa invadia seus pensamentos de momentos em momentos, ele ainda precisava dar um jeito de reverter a prisão do ex-terrorista, mas tinha tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. Bruce não sabia ao certo em que deveria se focar primeiro.
Damian o olhou de repente, os olhos sérios, como se buscasse uma confirmação:
-A gente pode vir aqui de novo?
Bruce demorou alguns segundos antes de responder. O pedido era simples, mas o eco dele parecia imenso, ele não pensou que Damian diria algo assim para ele, não era um “eu quero ficar com você”, mas no momento, bastava.
-Podemos - respondeu o ex-bilionário - sempre que você quiser.
Damian voltou a atenção para o sorvete, deixando o silêncio pairar entre eles. Não era um silêncio pesado como o dos corredores do apartamento ou das longas noites sem respostas; era um silêncio quase leve, quebrado apenas pelas gargalhadas de crianças desconhecidas.
Bruce se recostou no banco, os olhos seguindo o movimento do filho. O garoto não sorria abertamente, mas havia algo diferente em sua expressão — uma calma estranha, como se aquele espaço aberto fosse um território onde as sombras não conseguiam alcançá-lo.
-Posso brincar ali? - perguntou Damian de repente, apontando para o escorregador, onde outras crianças se empurravam em fila.
Bruce hesitou por um segundo,Não era seu costume soltar as rédeas, ainda mais com o mundo desmoronando em volta, mas assentiu devagar.
-Pode, eu vou ficar aqui te olhando.
Damian correu, Bruce o seguiu apenas com o olhar, os músculos tensos, cada sentido alerta. Parte dele queria se levantar e acompanhar de perto, mas outra parte, talvez a parte mais humana, o obrigava a ficar quieto, a apenas observar como qualquer outro pai faria. O tempo se arrastou, o ex-bilionário não se deu conta dos minutos. De repente, ele baixou os olhos para o celular no bolso, a vibração discreta denunciando uma nova chamada. O nome que apareceu na tela fez o estômago dele se contrair, Gordon.
O moreno franziu o cenho, o que o ex-comissário queria com ele agora ? A investigação e todos os problemas se acumulavam acima de sua cabeça como uma nuvem carregada. Ele estava exausto, uma parte dele queria apenas ignorar e continuar ali, naquela pequena bolha de calmaria.
Bruce respirou fundo, os olhos presos na tela do celular. O nome de Gordon parecia pulsar como um aviso, uma sirene muda. Por um instante, pensou em deslizar o dedo para ignorar, em se dar o luxo de mais alguns minutos de silêncio, apenas vendo Damian correr no parquinho como uma criança qualquer. Mas não conseguiu. Aquele nome era a prova de que a realidade nunca o deixaria em paz, então ele atendeu.
-Gordon - disse o ex-bilionário.
Do outro lado da linha, a voz do ex-comissário não tinha o peso protocolar de sempre, mas algo mais áspero, uma tensão mal contida:
-Bruce… Jason não está aqui.
A frase caiu como um soco no estômago. Bruce endireitou-se no banco, os olhos imediatamente procurando Damian, que subia de novo os degraus do escorregador. Ele precisava vê-lo ali, inteiro, para não ser engolido de vez pelo pânico.
-Como assim não está aí? - a voz dele saiu mais dura do que queria.
-Fui acordar o garoto pra ir pra escola - começou Jim com um suspiro - quando abri a porta, o quarto estava vazio, e pela cama, pelo jeito das coisas… acho que ele nem chegou a passar a noite aqui.
As palavras reverberaram em Bruce como um eco interminável. Ele fechou os olhos por um segundo, a respiração pesada, o peito apertado. Uma lembrança cruel atravessou sua mente, o rosto de Jason, o olhar arredio, a confiança frágil construída a duras penas.
-Tem certeza? - insistiu o moreno, mas a pergunta soou vazia, como se já soubesse a resposta.
-Absoluta -Gordon respondeu rápido, a voz apreensiva - não sei onde ele passou a noite, mas não foi aqui.
Bruce levou a mão livre ao rosto, pressionando as têmporas. O parque parecia distante de repente, como se as risadas das crianças, o balanço rangendo, o vento passando entre as folhas, fossem parte de um mundo inacessível, uma bolha que não lhe pertencia. Ele abriu os olhos novamente apenas para confirmar, Damian ainda estava ali, no balanço agora, rindo sozinho com a força do impulso.
Por dentro, Bruce sentia o chão se desfazer. Dois filhos, dois mundos colidindo. Um, desaparecido em algum ponto sombrio da cidade. O outro, bem diante dele, precisando de uma presença firme, precisando de um pai. Ele não sabia como equilibrar as coisas, estava tão cansado.
-Eu vou encontrá-lo - disse, firme, quase cuspindo as palavras para se convencer da promessa - procure no quarto qualquer pista que possa me ajudar a chegar até ele, Jim.
Do outro lado, Gordon apenas suspirou, a respiração cansada de quem já conhecia o peso daquela missão.
-Tudo bem Bruce, farei isso, eu retorno a te ligar.
A linha caiu, deixando apenas o som ambiente do parque e o peso da ausência pairando sobre seus ombros. Bruce guardou o celular devagar, o gesto mecânico. Ele sabia que, em algum momento, teria que se levantar dali, mergulhar de volta no abismo da investigação.
Seus olhos voltaram para Damian, mas não o encontraram. O moreno franziu o cenho e olhou em volta. Seus olhos voltaram para Damian, mas não o encontraram. O balanço ainda oscilava, vazio, como se zombasse dele com o movimento lento que restava. O coração de Bruce parou por um instante, aquele vazio era mais ensurdecedor que qualquer grito.
Ele se ergueu num salto, os olhos varrendo o parque com precisão predatória. As crianças continuavam brincando, alguns pais olhavam distraídos para celulares, mas uma cena, distante poucos metros, cortou sua visão, uma figura arrastando Damian até um carro preto parado rente à calçada.
Bruce correu. Cada fibra do corpo se contraiu, os músculos respondendo como aço vivo. Não havia mais ex-bilionário cansado, não havia pai hesitante, somente havia o instinto nu e bruto de caçador. A distância parecia se multiplicar, cada passo arrancando o chão debaixo de seus pés.
-Damian !! - a voz dele explodiu, rasgando o ar como um trovão.
O garoto se virou, o olhar desesperado encontrando o do pai por uma fração de segundo, antes de ser empurrado para dentro do carro. A porta bateu com violência.
Bruce acelerou. Ele não pensava, só corria, atravessando o parque, ignorando olhares confusos, empurrando quem estivesse no caminho. O motor do carro rugiu, as rodas rasgando o asfalto.
Ele saltou, as mãos tocaram o porta-malas, os dedos tentando agarrar qualquer fresta, mas o carro ganhou velocidade. Bruce caiu sobre os pés, sem perder o ritmo, e continuou correndo atrás, os pulmões queimando, o corpo em fúria. Ele já havia perseguido criminosos em telhados, atravessado esgotos. Mas nunca, nunca, sentiu o desespero mastigar seu estômago como agora. Cada segundo era uma eternidade. Cada metro perdido era uma faca cravada. O carro dobrava a esquina e Bruce forçava o corpo mais do que achava possível, as pernas movendo-se como se fossem devoradoras de chão, tentando memorizar a placa.
Mas, por dentro, no silêncio entre cada batida do coração, uma voz fria lembrava, o Contador prometeu, se Talia fugisse, ele iria atrás de Damian, e agora ele cumpria. Como Talia disse para Bruce que o Contador de Histórias faria. Ela confiou no ex-bilionário para proteger o filho deles.
Bruce não sabia se gritava, se chorava, ou se deixava que a raiva o consumisse até virar pura violência. Mas uma certeza o corroía enquanto dobrava a esquina, os olhos queimando com a visão do carro desaparecendo na avenida movimentada, ele não podia perder Damian também, mas o carro já estava longe, perdido no meio de outros.
Bruce parou no meio da rua, o peito arfando como se o ar tivesse se tornado concreto. O carro desaparecera entre buzinas e faróis, engolido pelo fluxo indiferente da cidade. Ele chutou uma lata de lixo no canto da rua como se pudesse rasgar o espaço e trazer Damian de volta pela força da própria fúria.
O mundo girava em torno de um único vazio, o banco de balanço oscilando, o sorvete derretido no chão, o grito preso em sua garganta. Ele falhou, de novo. As unhas se cravaram em suas palmas, os punhos fechados até o sangue querer romper a pele. Gotham parecia rir dele em silêncio, aquela cidade ingrata que lhe devorava tudo o que ele ousava amar.
Bruce respirava fundo, mas o ar não entrava. Ele não conseguia parar de pensar no rosto do filho virando-se para ele pela última vez, o olhar de súplica atravessando o vidro escuro. Bruce o perdeu, porra, ele não conseguiu.
O Contador cumpriu a promessa. Talia avisara. Ele jurou que iria atrás do menino se ela ousasse correr, e agora Bruce sentia o gosto amargo de estar sempre um passo atrás, como um fantoche quebrado dançando no ritmo do inimigo.
-Maldição! - ele explodiu, o rugido arrancando olhares assustados de alguns transeuntes. Mas ninguém se aproximou. Ninguém ousava. A fúria que irradiava dele era quase palpável.
Ele apoiou as mãos nos joelhos, tentando forçar o ar de volta aos pulmões. A cabeça latejava, martelada por imagens do passado, ele não podia perder mais nada, estava farto de perder. Era tudo um ciclo. Ele sempre corria, sempre chegava tarde demais.
Bruce se ergueu devagar, o corpo ainda tremendo, e encarou o ponto onde o carro sumira. O reflexo no vidro de uma loja lhe devolveu um rosto que já não era o de um homem comum, os olhos ardiam em sombra, a mandíbula contraída, a fúria talhando cada linha do semblante. O Batman estava ali, sob a pele, rastejando.
Notes:
Obrigado a quem leu até aqui :) Comentem para me deixar feliz.
Chapter 49: The Gotham We Have (Parte 49)
Notes:
Bem, semana que vem eu provavelmente não vou conseguir postar, por conta do meu estágio e tudo o que já comentei. No entanto, pelo menos 2 vezes por mês eu prometo mandar um capítulo novo. Eu sei bem o que é estar lendo um negócio e não ter atualizações à séculos kkkkk Também me irrita. Tenham paciência comigo, eu gosto de escrever capítulos longos, mesmo que sejam mais cansativos de ler, acho que a história flui melhor, então por isso, eu demoro muito para escrever. Desculpem alguns erros de digitação se tiver, eu não tenho tempo de reler.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A escuridão da cela parecia respirar com eles, o silêncio tão espesso que até o gotejar distante soava como um tiro. O Coringa não se mexia muito, apenas fechava e abria os dedos, testando a resistência do ferro. Andy já sabia que não havia como se soltar só na força bruta, mas quando viu o loiro começar a girar o punho devagar, uma náusea discreta subiu por sua garganta.
Era uma cena absurda. O Coringa, com uma calma quase meticulosa, forçava o próprio pulso contra o metal até o ângulo se tornar antinatural. A pele ficou vermelha, depois roxa. O estalo veio abafado, úmido. O osso saiu do encaixe.
Andy desviou os olhos por um instante, mas não conseguiu não olhar de volta. A naturalidade com que o loiro se mutilava para se libertar era uma coisa que ultrapassava a compreensão clínica, não era coragem, nem desespero. Era um tipo de intimidade com a dor que Andy não queria entender. O palhaço soltou um rosnado baixo, quase um riso contido, e puxou a mão para fora da algema. No momento seguinte, apoiou a palma na parede e com um movimento rápido colocou o osso de volta para o lugar.
O silêncio voltou a engolir tudo, mas dessa vez parecia ainda mais pesado. Andy continuava imóvel, os olhos fixos no gesto grotesco, o estalo ecoando dentro da cabeça dele como se tivesse acontecido em seu próprio corpo. O Coringa, com a respiração irregular, ergueu a mão recém-liberta e a flexionou, como se testasse o quanto ainda tinha de força nos dedos. Então de repente, o loiro se virou para o ex-psiquiatra e disse:
-Sua vez, vai doer.
Andy franziu o cenho, instintivamente afastando o corpo contra a parede fria.
-Não… eu não vou, eu..
O Coringa se aproximou em silêncio, um animal cansado, mas com os dentes sempre prontos. Ele se agachou na frente do ex-psiquiatra, e Andy sentiu o cheiro metálico do sangue misturado ao suor e à sujeira. O loiro olhou para o homem à sua frente com uma expressão entediada antes de dizer:
-Escuta idiota, não tem outra forma, quer sair daqui ou não ?
-Eu não vou torcer minha própria mão - disse o ex-psiquiatra.
O loiro soltou uma risada curta, seca, que reverberou pelas paredes como uma lasca de ferro arranhando pedra.
-Claro que não vai - murmurou passando a língua no canto dos lábios, inclinando-se ainda mais perto - mas eu vou.
Antes que Andy pudesse reagir, a mão do palhaço já segurava seu pulso com força. Os dedos manchados de sangue se cravaram contra a pele, como se quisessem furar até o osso. Andy tentou recuar, mas não havia espaço, apenas o concreto gelado da parede.
-Não… espera - disse, mas o loiro ignorou.
O movimento veio seco, calculado. Um giro brusco, violento. O estalo reverberou pelo corpo de Andy como um trovão dentro das veias. O mundo se apagou por um segundo, a dor latejante preenchendo cada canto de sua mente. Ele não conseguiu gritar, a mão do ex-terrorista cobriu sua boca com um movimento brusco.
O Coringa puxou o braço dele e deslizou a mão livre para fora da algema, como se estivesse apenas tirando uma luva apertada. O ex-psiquiatra arfava, os olhos arregalados, o peito subindo e descendo rápido de dor. Na sequência o loiro apenas deu um puxão rápido e o mundo girou novamente, a dor explodindo como ondas grossas de calor.
Andy mordeu o ar, a boca abafada pela mão suja do palhaço, o corpo tremia, cada fibra latejando em choque pela dor que ainda reverberava do estalo. Não havia espaço para racionalidade e nem para análise clínica.
Quando o loiro o soltou, Andy tombou de lado, a respiração curta, pesada, tentando reorganizar a mente em meio ao turbilhão de dor. O silêncio voltou a tomar a cela, mas agora não era vazio, era uma cumplicidade deformada, quase nauseante.
-Viu agora a gente combina - zombou o loiro levantando o pulso que ainda estava preso pela algema.
Andy disse nada, apenas encostou a cabeça contra a parede fria, tentando sufocar o impulso de vomitar. Parte dele queria recuar, mas sabia que não podia, não agora.
O loiro então se levantou, o corpo ainda curvado de exaustão, mas movendo-se com a precisão de quem nunca havia desaprendido o instinto da fuga. Com um olhar rápido para a porta, ele se aproximou, ouvindo o eco distante das botas e a cadência dos passos que se alternavam no corredor. Um sorriso lento cortou seu rosto.
-Hora do recreio - sussurrou olhando por cima do ombro, como se fosse um segredo só deles.
O ex-psiquiatra fechou os olhos por um segundo, como se buscasse forças em um vazio profundo. Depois se ergueu devagar, cada movimento denunciando a dor ainda viva no pulso. Aproximou-se, a respiração trêmula.
-Qual o plano ?
-Plano ? - zombou o loiro - vamos esperar alguns desses idiotas nos levar até nossas celas, e então…bem, deixamos alguma família triste.
A sensação não era de alívio. Andy esfregou o pulso ferido, a liberdade parecia carregada demais, como se o ar ao redor ficasse mais pesado com o gesto. Ele olhou para o loiro que estava recuando da grade e voltando a se sentar no chão frio. O Coringa parecia tranquilo, quase divertido com a situação.
Não demorou muito para que um dos guardas fosse até a cela. Cedo ou tarde isso aconteceria, ambos deveriam ser colocados de volta em suas respectivas celas. Estavam ali por conta da confusão na qual tinham se metido. O outro homem envolvido ? Nem sinal dele.
O ranger metálico ecoou pelo corredor antes que a pequena janela da porta se abrisse. Um par de olhos cansados espiou lá dentro, confirmando que os dois ainda estavam no chão, aparentemente algemados, com os pulsos para trás. O guarda bufou, murmurou algo baixo e começou a girar a chave.
Andy manteve a cabeça baixa, os olhos fixos no cimento, tentando parecer derrotado. Mas dentro do peito, o coração batia com força quase dolorosa. A porta abriu com um chiado áspero, e o guarda entrou, a molho de chaves preso na lateral do cinto, o olhar pesado de quem fazia aquilo no automático. Ele apontou com o queixo para o corredor:
-Levantem, agora.
Andy obedeceu, o corpo lento, tentando disfarçar a tensão. O Coringa também se ergueu, mas havia algo nos movimentos dele que Andy reconheceu de imediato, uma calma estudada, falsa.
Eles caminharam para fora, os pulsos ainda atrás das costas. O guarda se aproximou para empurrar o loiro primeiro, a mão firme em seu ombro. Foi nesse instante, em uma fração de segundo, que o ex-terrorista girou o corpo com a precisão de uma víbora. As mãos, livres, deslizaram para o pescoço do guarda com uma rapidez quase impossível de acreditar.
Andy congelou por um momento, os dois caíram no chão com um baque surdo e o estalo veio logo depois, não como o som seco de um galho quebrando, mas como algo úmido, interno, grotesco. O guarda tombou sem gritar, apenas um soluço preso na garganta antes do corpo perder toda a força. Seu pescoço havia sido quebrado.
O silêncio caiu como um peso. Andy ficou paralisado, o estômago virando em ondas, a bile subindo pela garganta. Ele sentia o mundo girar ao redor, mas não conseguia mover um músculo. O corpo do guarda jazia no chão, os olhos ainda abertos, a boca entreaberta em um último reflexo que nunca se completaria.
-Você… você matou ele… - a voz de Andy saiu rouca, quase um sussurro sufocado.
Ele recuou um passo, a mão instintivamente cobrindo a boca. Não era só o medo da violência, mas o fato de ter presenciado aquilo de tão perto, de sentir o ar ainda vibrando com o som do pescoço sendo partido. Ele não era um assassino, nunca foi. Ele nunca tinha chegado nem perto de matar uma pessoa.
O Coringa se levantou de cima do cadáver com naturalidade, como quem deixa uma ferramenta. Passou a língua pelos lábios, os olhos brilhando na penumbra antes de dizer:
-Está com pena agora ? Se estiver eu te deixo aqui.
Andy não respondeu. Não conseguiu. As palavras simplesmente não saíam. O corpo do guarda parecia maior do que era, preenchendo todo o espaço da porta estreita, como um lembrete grotesco do que havia acontecido ali em segundos. A respiração de Andy acelerava, descompassada, e ele teve que encostar a mão na parede para não perder o equilíbrio.
O Coringa, por outro lado, parecia quase renovado. Limpou as mãos na calça imunda, como quem sacode o pó depois de um trabalho trivial. O sorriso que se abriu em seu rosto não era largo, mas carregava uma calma obscena, uma certeza de que aquilo era o único caminho possível.
-Olha pra ele - disse, chutando levemente o corpo inerte do guarda, que virou de lado com um baque surdo - um idiota a menos no mundo.
Andy fechou os olhos com força, mas as imagens não desapareciam. O som doentio do estalo ainda inundava seus ouvidos. Era uma pessoa que jazia morta ali, alguém que nunca mais voltaria pra casa. Uma vida esmagada como se fosse nada.
-Você não… - a voz dele falhou, e precisou engolir seco antes de continuar - você não precisava matar o cara.
-Não - zombou o loiro, passando a língua no canto dos lábios - mas eu quis fazer.
Andy engoliu o gosto amargo que subia pela garganta. Parte dele queria gritar, correr dali, mas não havia para onde correr. O cadáver ao lado era a prova mais concreta de que estava preso em algo que não controlava.
-Vem - continuou o loiro, caminhando pelo corredor - ainda não estamos fora desse lugar.
Andy permaneceu parado por alguns segundos, as pernas presas ao chão como se o concreto tivesse se fundido a seus ossos. Cada fibra do seu corpo gritava para não seguir o palhaço, para virar as costas e se afundar em qualquer sombra que o afastasse da cena grotesca. Mas ele sabia que não podia. O corredor à frente parecia mais estreito do que realmente era, e o silêncio agora carregava o peso de uma culpa que o esmagava mais do que qualquer algema.
Engoliu em seco, respirando fundo para não vomitar sobre o cadáver. O gosto metálico da bile queimava sua garganta, mas ainda assim deu um passo, depois outro, acompanhando o loiro. O som dos próprios passos parecia uma traição.
O Coringa andava alguns metros à frente, os ombros levemente curvados, mas o andar seguro, quase leve, como se não tivesse acabado de esmagar uma vida com as mãos nuas. Andy observava cada movimento, e quanto mais olhava, mais sentia o estômago revirar. A naturalidade com que o loiro caminhava pelo corredor era a prova de algo inumano, uma ausência de peso, de culpa.
O silêncio entre os dois era tão espesso que parecia cortar a pele. Até que o loiro falou com um tom zombeteiro, sem olhar para trás:
-Você parece assustado, é sempre você que começa às nossas conversas.
-Só estou um pouco chocado - respondeu o ex-terrorista - não é todo mundo que vê um homem ter o pescoço quebrado em sua frente.
O corredor parecia se alongar diante deles como um pesadelo úmido, cada lâmpada oscilante lançando sombras que tremiam nas paredes descascadas. Andy caminhava com passos hesitantes, como se seus pés pertencessem a outra pessoa, arrastados por uma decisão que ele não tinha realmente tomado. O ar estava denso, pesado, carregado de ferro e silêncio. O comentário do Coringa ainda queimava em seus ouvidos, como se a crueldade tivesse ganhado forma física. Andy sentia seu pulso bater como um coração em seu braço, dolorido e constante
- “Um pouco” chocado… - repetiu o loiro com um tom de escárnio antes de passar a língua no lábio inferior, degustando as palavras como se fossem um vinho caro - achei que nessa altura do campeonato você já estivesse pronto para qualquer coisa, mas você sempre foi o pior tipo de frouxo.
O insulto ecoou no corredor vazio, e Andy sentiu o peso dele se alojar em algum lugar fundo, onde a raiva e a vergonha se confundiam. Ele apertou o maxilar, mas não respondeu de imediato. Sua respiração era o único som além dos passos que seguiam o ritmo quase despreocupado do Coringa.
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Já era noite, o ex-bilionário estava empoleirado na frente do notebook analisando câmeras de trânsito. Até aquele momento nada, nada daquele carro preto. Ele tinha procurado pela placa, ela estava no nome de um homem chamado Simon Erost Garden. De acordo com o que ele tinha encontrado, não havia nada de muito útil. O homem havia morrido a alguns anos, foi residente de Gotham, mas passou seus últimos dias de vida em cidades próximas. Não havia muito. A placa do carro, no entanto, parecia gritar para ele.
“JST - 178”
Ela era uma placa de New Jersey, atendia a todas as regularidades, mas algo se destacava, o seu final “78”. O moreno rapidamente pensou que isso poderia estar relacionado com os envelopes, com o envelope 8 e 7. Mas o que seria esse 1 ? E o emaranhado de letras ? “JST” não lhe diziam nada exatamente. O moreno não conseguia pensar, ele precisava achar seu filho, mas não sabia como.
O ex-bilionário sabia que sua única pista era o falecido dono do carro, já que ele não tinha nenhuma imagem do carro em nenhuma avenida nas últimas horas. Ele precisava encontrar um jeito de encontrar Damian.
Bruce foi retirado de seus pensamentos com um email de Nashton, ele havia respondido o de Bruce, que o moreno havia enviado mais cedo, antes de sair de casa. O moreno havia mandado para o ex-cyberterrorista sua hipótese acerca da organização dos envelopes. Nashton havia respondido o que Bruce já suspeitava, não se tratava de substituir os números por suas respectivas letras do alfabeto. Era algo mais.
“Acho que é um código essa sequência de números (6, 8, 5, 3, 3, 2, 5, 1). Se substituirmos os números pares pelo primeiro número par existente, 0 e os ímpares pelo primeiro número ímpar, 1, temos um código binário. Não vou resolver o código, acho que isso é uma coisa que a sua cabeça limitada consegue fazer sozinha”.
O moreno revirou os olhos para as últimas palavras na mensagem de Edward, mas o que ele havia escrito fazia sentido até certo ponto. Podia sim ser um código binário. Bruce digitava devagar, os olhos fixos na sequência que agora se transformava diante dele. Cada número deixava de ser apenas um traço em papel para se converter em algo mais concreto, quase vivo. Ele rabiscou no canto de uma folha ao lado do notebook
“00111011”
Convertendo o binário para decimal (peso dos bits 128–64–32–16–8–4–2–1)
0·128 + 0·64 + 1·32 + 1·16 + 1·8 + 0·4 + 1·2 + 1·1
= 0 + 0 + 32 + 16 + 8 + 0 + 2 + 1
= 59
Convertendo o decimal 59 para ASCII: 59 → “;” (ponto e vírgula).
Bruce parou por um momento, o sinal parecia zombar do moreno, o desafiando. Ele encarou a tela como se ela pudesse oferecer mais do que o óbvio. “;”. Um simples ponto e vírgula. O cursor piscava ao lado do caracter, uma pausa que não era fim, mas também não era começo. Apenas um corte no meio do fluxo. O Contador de Histórias não deixava nada ao acaso. Um ponto e vírgula era silêncio interrompido, era continuação forçada, era a negação de uma conclusão.
Bruce se recostou na cadeira, as mãos cobrindo o rosto por um instante. O cansaço queimava seus músculos, mas o que mais doía era a ideia de que ele estava preso num jogo em que até a pontuação tinha propósito. Ele só queria achar o seu filho. Achar os seus filhos. O que Gordon disse ainda serpenteava na mente do ex-bilionário. Jason não tinha dormido na casa do ex-comissário. Bruce se sentia sobrecarregado, era o desaparecimento de Richard, o desaparecimento de Tália, agora o de Jason e de Damian. O moreno ainda pensava no Coringa, em Blackgate. E ainda, havia a investigação do Contador de Histórias que de alguma forma se ligava com tudo.
As imagens das câmeras de trânsito continuavam passando pela tela, mas o moreno já não via carros. Via apenas o reflexo da própria falha, o filho sumido, o rastro frio de uma placa que não levava a lugar nenhum. Ele respirou fundo, mas o ar parecia curto demais, como se até isso tivesse sido sequestrado.
Ele sabia que precisava dormir em algum momento, estava exausto, mas tinha tantas coisas na cabeça que o moreno simplesmente não conseguia desligar, nem mesmo para um breve cochilo. Então ele continuava olhando as câmeras de trânsito, olhando a placa do carro que para ele não queria dizer nada. Será que era a placa ? Será que ele estava olhando para isso da perspectiva certa ? O moreno não sabia, mas no momento era a única coisa que ele tinha, a placa, e o nome do falecido dono do carro.
O silêncio do apartamento era um inimigo constante, cada estalo da madeira, cada sopro do vento contra as janelas soava como um lembrete de que ele estava sozinho naquele instante. Sozinho com falhas que não cessavam de se multiplicar.
O nome de Simon Erost Garden ainda piscava na tela, frio, burocrático. Morto há anos. Um homem que não tinha mais nada a oferecer, mas ainda assim sua sombra surgia na única pista concreta. Bruce não conseguia deixar de pensar que talvez essa fosse a ironia cruel do Contador de Histórias, guiar o caminho através de vozes que não podiam mais responder.
Ele olhou outra vez para a placa anotada em um pedaço de papel, JST - 387. O ponto e vírgula agora parecia se fundir com aquelas letras, como se a vida dele tivesse se tornado uma sucessão de fragmentos sem conclusão. Jason, Damian, Dick, Tália… Todos arrastados para fora de seu alcance, enquanto ele se via enterrado em números, sinais e nomes.
E se ele estivesse lendo as pistas errado? E se, nesse exato momento, a única linha que poderia levá-lo ao filho estivesse se apagando, sufocada pelo tempo que ele perdia na frente de uma tela? O cursor do notebook piscava. O ponto e vírgula significava uma pausa ? Uma respiração suspensa. Uma promessa de que algo ainda estava por vir.
Bruce se inclinou para frente, os dedos firmes sobre o teclado, mas o olhar distante. Não podia se dar ao luxo de parar. O ponto e vírgula pulsava em sua mente como um metrônomo cruel, marcando um compasso entre o fracasso e a possibilidade, e haviam muitas possibilidades.
As possibilidades eram como lâminas afiadas rondando sua mente, cada uma prometendo um corte diferente. Bruce encarava o ponto e vírgula como se fosse mais do que um símbolo, como se fosse uma cicatriz deixada no texto, um vestígio de que a história ainda não tinha acabado. O Contador de Histórias queria que ele sentisse isso, que não havia encerramento, apenas continuações forçadas. Ele respirou fundo, mas o ar era seco demais, queimava como poeira nos pulmões.
O moreno sabia que não podia parar ali, mesmo que a placa ainda parecesse um enigma trancado, mas sabia que não conseguiria encontrar Damian, Jason e Richard nesse compasso. Ele estava enferrujado, sem recursos financeiros, sem contatos. Tudo o que ele tinha era a imagem do morcego, se é que isso ainda servia para alguma coisa. Ele era apenas um homem cansado, com um notebook velho se entupindo de café forte.
Havia um eco no apartamento, uma ausência. Bruce estava tão cansado de tudo, sua mente já não suportava as horas ininterruptas em frente a tela, com o caso piscando em seus olhos. O moreno sabia que o Coringa estaria rindo dele se estivesse lá, o ex-terrorista zombaria da sua obstinação e diria que ele estava sendo dramático. Ele irritaria o ex-bilionário até que esse largasse o notebook por alguns minutos.
O moreno suspirou, anos atrás se alguém dissesse que ele sentiria falta do Coringa o irritando, o moreno chamaria a pessoa de louca. Mas agora, no silêncio sufocante do apartamento, ele percebia que até a zombaria do palhaço seria melhor que esse vazio. O silêncio era um espelho, e nele Bruce só via um homem falhando, falhando em manter os filhos perto, falhando em proteger sua família. Ele sentia tudo desmoronando em sua cabeça.
A placa ainda estava diante dele, as letras e números queimando sua mente como ferro em brasa. JST-178. Por mais que tentasse, não conseguia arrancar um sentido imediato dali.
Bruce se inclinou de novo sobre o teclado. Seus dedos tremeram antes de tocar nas teclas, e o moreno se deu conta de que não lembrava da última vez que havia dormido mais do que três horas, talvez no hospital, ele não se lembrava com exatidão. Café, noites em claro, corridas atrás de rastros que evaporavam. Ele estava corroendo a si mesmo, e sabia disso.
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O corredor de Blackgate parecia não ter fim. Cada lâmpada oscilava, lançando sombras que dançavam sobre as paredes sujas, como se a própria prisão tentasse mantê-los dentro. Andy seguia atrás, os passos pesados, cada músculo dolorido, o pulso latejando como um tambor de guerra. O gosto de bile ainda queimava sua garganta. O corpo do guarda caído parecia acompanhá-lo, mesmo à distância, como uma sombra que não desgrudava da pele.
O Coringa, por outro lado, avançava com um ritmo quase leve, como se estivesse em um passeio. O sangue nas mãos já havia secado em manchas escuras de momentos atrás, mais dois guardas mortos, mas ele não parecia carregar peso algum.
Eles dobraram um corredor e o eco metálico de portas se abrindo ressoou atrás deles. Um grupo de três guardas surgiu ao fundo do corredor. Lanternas varreram a escuridão, refletindo no metal enferrujado das portas.
-Ali estão eles! - uma voz gritou.
O tempo pareceu se contrair. Andy congelou, mas o Coringa avançou como se tivesse esperado aquele momento, o sorriso desagradável pintava suas feições.
-Vamos nos divertir - entoou o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios zombeteiramente antes de dar um passo para trás - pega pega ? Faz tempo que não brinco disso.
O primeiro tiro estourou o ar, ricocheteando contra a parede ao lado. Andy instintivamente se abaixou, as mãos indo à cabeça, mas o Coringa não se moveu, ele apenas olhava para os guardas com uma expressão estranha.
Os guardas se espalharam pelo corredor, as lanternas tremendo com os disparos. Um deles tentou avançar pela lateral, mas em segundos o Coringa estava em cima dele, arrancando a arma de sua mão e estourando seu rosto com um disparo. No momento seguinte, o loiro atirou contra a lâmpada fraca acima deles, que mal iluminava o local, deixando tudo em um breu cego.
Andy respirava ofegante, com os olhos fixos no escuro. O corredor agora cheirava a pólvora, sangue e ferro oxidado. Ele tentava controlar a respiração, mas cada inspiração era um arranhar áspero na garganta. As imagens dos guardas mortos ainda se projetavam por trás das pálpebras, mesmo no escuro. Ele queria acreditar que era apenas sobrevivência, mas já não sabia se essa desculpa se sustentava. Uma escolha que o aproximava cada vez mais do mesmo abismo que ele dizia temer.
O breu o engoliu inteiro. Andy piscou várias vezes, mas não havia diferença, a escuridão era total, densa, como se tivesse peso próprio. O som dos passos apressados, dos gritos abafados e o estalo seco das armas sendo engatilhadas e os disparos ressoavam por todos os lados. Ele sentia o coração disparado, batendo mais alto do que as próprias balas. No escuro, o Coringa parecia ter se tornado parte da prisão, um vulto que se movia rápido demais para ser humano.
Andy só escutava os estalos, os gritos cortados pela metade, o baque de corpos contra o chão e a parede. Ele engoliu seco, a bile subindo outra vez. Parte dele queria parar ali, se largar no chão frio e deixar os guardas acabarem com aquilo. Mas ele sabia que não era uma escolha viável.
De repente os disparos acabaram, o eco zunia em seus ouvidos. Andy escutava apenas um farfalhar de tecido no chão. No momento seguinte o ex-terrorista entoou:
-Vai ficar aí parado ?
O ex-psiquiatra não respondeu. O silêncio depois da matança era pior do que os tiros. Andy permanecia imóvel, os músculos travados, como se qualquer movimento pudesse chamá-los de volta. O farfalhar que ouvira era o Coringa recolhendo algo do chão, talvez uma arma, Andy não sabia.
Ele escutou o loiro engatinhar uma das pistolas antes de xingar baixo, sua voz transbordando veneno em forma de zombaria:
-Sem munição, você tem sorte.
O ex-psiquiatra respirava com dificuldade, cada inspiração queimando como vidro dentro da garganta. Não queria levantar os olhos, mas o silêncio exigia. O breu ainda cobria o corredor, mas Andy conseguia sentir o loiro à frente, abaixado, com o corpo curvado levemente para frente, como um predador em repouso. O sangue seco e o suor exalavam no ar quente e denso, tão próximos que pareciam grudados na pele.
A tensão foi cortada por um farfalhar de botas no fim do corredor. Seria outro grupo de guardas ? O ex-psiquiatra não teve tempo de descobrir, ele escutou o loiro se levantar com um movimento rápido, começando a ir no caminho contrário.
Andy demorou alguns segundos para processar o movimento. O som das botas ecoava atrás, firme, implacável, e o Coringa já avançava pelo corredor oposto com a naturalidade de quem escolhe o caminho de um parque. O ex-psiquiatra engoliu em seco, as pernas hesitando, mas acabaram se movendo por reflexo.
No escuro, Andy só tinha o som para guiar, a respiração descompassada, os passos leves demais do loiro, e os ecos metálicos da prisão que transformavam cada ruído em labirinto. O medo tinha cheiro, e era ferro. Tinha gosto de bile.
Andy tentava acompanhar, mas cada passo parecia o arrastar para dentro de algo mais profundo que a prisão, como se o corredor fosse um organismo vivo engolindo-o devagar. O som das botas atrás crescia, uma caçada que não cessava. O Coringa, por sua vez, mantinha a mesma cadência, como se soubesse exatamente para onde ia, ou como se não importasse o destino.
Os gritos dos guardas ecoaram mais próximos, acompanhados pelo som metálico de uma grade sendo forçada. Andy tropeçou em algo no chão, mas não quis olhar, não quis saber se era apenas um entulho ou outra coisa. O Coringa o puxou pelo colarinho antes que caísse por completo, como quem recolhe um brinquedo prestes a quebrar.
-Se eles te pegarem eu não volto para buscar - falou o loiro passando a língua no lábio inferior e empurrando o ex-psiquiatra para frente, para continuar caminhando - me dê um motivo para não quebrar sua cabeça, você está sendo um peso morto aqui.
-Você precisa da minha ajuda - falou o ex-psiquiatra, tropeçando no ar, mas continuando a colocar um pé na frente do outro - para encontrar Jason.
-Eu não preciso de você para isso - zombou o loiro.
-Vai procurar ele por todo o Narrows ? - falou Andy - até você encontrá-lo não vai ter sobrado nada desse moleque.
-Eu tenho meus contatos - respondeu o loiro.
-Mas você não vai querer arriscar, não com a vida do garoto em jogo - constatou o ex-psiquiatra, seu tom falsamente neutro escondia apreensão - você sabe que Bruce se importa com ele, e você se importa com Bruce
O silêncio que seguiu pareceu mais pesado do que o barulho das botas atrás deles. Por um instante, Andy pensou que o loiro fosse rir, soltar algum comentário venenoso, mas não. O Coringa apenas continuou andando, o som dos próprios passos ecoando no corredor como um compasso de aço.
O Coringa parou. O som das botas atrás deles também se interrompeu por um segundo, como se até os guardas tivessem sido engolidos por aquela pausa. Andy quase esbarrou nele, sentiu a tensão no ar, o cheiro de suor azedo, de pólvora e sangue coagulado.
-Não fale como se entendesse a forma como eu penso - disse o ex-terrorista, seu tom era sério, frio.
Andy sentiu o ar rarefeito, como se cada palavra tivesse sugado o oxigênio do corredor. O tom sério, sem zombaria, sem o riso costumeiro, era muito mais perturbador do que qualquer piada mórbida. Era o loiro em sua própria essência, o que existia por baixo da faceta de zombaria que ele usava.
O silêncio voltou, pesado. O som das botas atrás deles retomou, ecoando no corredor como marteladas. O ex-terrorista virou a cabeça ligeiramente, sem encarar Andy, mas o ex-psiquiatra podia sentir o olhar dele queimando na escuridão, avaliando, dissecando cada sílaba, cada respiração.
-Você se acha esperto demais - entoou o loiro no silêncio - cala essa boca antes que eu mude de ideia sobre a nossa trégua e te mate antes de sair desse maldito lugar.
O corredor parecia nunca terminar, mas de repente o ar mudou. Andy sentiu. Um vento frio, fraco, mas diferente do ar viciado da prisão. Era a saída. Ou, ao menos, uma promessa dela.
O Coringa também percebeu, porque desacelerou, inclinando a cabeça como um animal farejando o caminho. Sem uma palavra, ele seguiu o rastro invisível, os pés leves no chão de concreto. Andy, por outro lado, tropeçava no próprio peso. Cada músculo gritava, cada passo era uma negociação entre dor e necessidade.
Atrás deles, as botas ainda ecoavam, mas mais distantes. Não havia mais tiros, só ordens abafadas, o som metálico de grades sendo abertas. Eles não estavam livres, apenas alguns passos à frente de uma perseguição que cedo ou tarde voltaria a alcançá-los.
Eles encontram uma escada de ferro, enferrujada, que sobe em espiral. O Coringa começa a subir sem hesitar, os degraus gemendo baixo sob o peso dele. Andy o seguiu, cada passo ecoando como um trovão em seus ouvidos. Ele imaginava os guardas ouvindo aquilo, correndo em sua direção.
No topo da escada, uma porta metálica semi aberta deixava entrar uma linha de ar noturno, frio e úmido. Gotham. A vida lá fora. Eles estavam no topo do imponente prédio que era Blackgate. O ar frio da madrugada atravessava as roupas da prisão como lâminas finas. Mas, a liberdade ainda era frágil, eles ainda tinham um caminho a fazer, passar por todo o perímetro amplamente vigiado até o muro alto, coberto de arame farpado e cerca elétrica.
Ele olhou para o Coringa, que permanecia à frente, observando a cidade com um sorriso torto. Não havia pressa, apenas uma calma predatória, o sorriso retorcido se desfazendo por um momento. Andy permaneceu atrás, respirando pesado, tentando recuperar o controle sobre o corpo e a mente. A fuga ainda não tinha acabado, estava apenas começando.
Eles avançaram abaixados pelo telhado. O palhaço olhava para os lados procurando uma das guaritas de vigia, as luzes zuniam acima de suas cabeças. Nessa altura, todos sabiam que eles estavam tentando escapar da penitenciária, eles tinham que ser rápidos.
-Vamos descer, aquele ponto alí - falou o loiro apontando para uma borda do vasto telhado - as luzes não chegam, e eles terão mais dificuldade em nos interceptar.
-E como vamos descer daqui ? - perguntou o ex-psiquiatra - é muito alto para pular, e não tem nada para a gente se segurar.
-E onde estaria a graça de escapar se estivesse tudo estrategicamente posicionado? - falou o loiro passando a língua no canto dos lábios, aproximou da borda do telhado, examinando o perímetro com olhos afiados - mas eu já pensei nisso.
Por um momento o ex-psiquiatra achou que o loiro iria pular, sua expressão parecia um pouco desconecta e por um momento Andy pensou que aquele maluco não sabia o que estava fazendo. No momento seguinte o loiro se abaixou, antes de sumir pela borda do telhado. O ex-psiquiatra gelou por um momento, correndo até a borda para olhar para baixo. O loiro estava a uns três metros abaixo, em uma escada de incêndio.
Andy prendeu a respiração, o estômago revirando. Três metros pareciam o dobro naquela altura, cada centímetro amplificando o risco. O Coringa olhou para cima, sorrindo torto, como se aquilo fosse o mais natural do mundo.
-Vai encarar ? - zombou o palhaço antes de começar a descer a escada para o próximo andar, as costas contra o concreto do prédio para não ser notado pela luz das torres de vigia.
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A madrugada estava fria, uma neblina chuvosa pintava as vidraças do apartamento. Bruce ainda estava sentado em frente ao notebook. Ele estava cansado, exausto. As anotações e as câmeras de trânsito engoliram seus olhos lentamente. Ele pensava na placa, pensava em Damian, no olhar do filho, na sua impotência frente ao que aconteceu. O momento se repetia em sua mente como um rolo de filme quebrado.
JST-178
O que isso queria dizer ? O ex-bilionário pegou os envelopes 1, 7 e 8. O envelope 1, onde havia apenas um desenho palito, um homem enforcado, o jogo de forca, um jogo de Oito espaços, uma palavra de oito letras. O envelope 7, com a frase “A peça esquecida nunca deixou o tabuleiro”, e então o envelope 8, o envelope vazio. O moreno refletiu por um momento. O jogo da forca, a frase e o vazio. O que o Contador estava tentando dizer ? Seria “JST” uma abreviação para “Justiça” ? O moreno não saberia dizer.
Oito letras, uma forca. A peça esquecida que nunca deixou o tabuleiro. O vazio do envelope 8, o envelope com o número da justiça. Bruce não sabia o que isso queria dizer.
Mas ele sabia do silêncio que vinha junto. Um silêncio que não era descanso, era a ausência de respostas. Cada pista parecia querer puxá-lo para um poço mais fundo, e a sensação era de que o Contador não estava apenas deixando mensagens. Estava conduzindo-o, linha por linha, para um destino onde as palavras perderiam sentido.
Mas talvez, não fosse 1,7,8. O Contador de História nunca deixava as coisas tão à mostra. Mas o que seria ? 17 e 8 ? O envelope 17 tinha uma das charadas, aquela do mesmo sobrenome.
“Corte seu envio pelo naipe do coração, e procure o Ás que traz o mesmo sobrenome.”
Mesmo sobrenome ? Naipe do Coração ? Ás ? De que forma isso se ligava com o envelope 8 ? O mesmo número 8 que sempre aparecia como uma sombra constante, o número da justiça. E mais ainda, de que forma as letras “JST” se relacionavam com isso ? Seria muito óbvio que fosse Justiça, e obviedades não faziam parte dos jogos. Deveria ser outra coisa. Mesmo sobrenome ? Sobrenome de quem ? Quem tinha o mesmo sobrenome ? Seria um sobrenome real ou uma metáfora ?
Bruce girava a caneta entre os dedos, a ponta batendo no caderno de anotações em um ritmo irregular. O som seco parecia marcar o compasso da própria mente, como se fosse a trilha de um labirinto interno. Ele releu a frase três vezes, sentindo o peso das palavras. Cada metáfora era um fio de ferro que apertava, cada enigma, uma maneira de testar até onde ele suportaria antes de quebrar.
Naipe do coração, a carta vermelha. O Ás. Amor, talvez sangue. Ás de Copas ? Quem seria ? De que forma isso se ligava com a outra parte da charada ? Mesmo sobrenome de quem ?
Bruce passou a mão pelo rosto, a barba arranhando a palma. Era esse o jogo: tornar o óbvio irreconhecível, fazer o simples parecer um labirinto. Olhou novamente para a placa, tinha alguma coisa que ele não estava entendendo.
O ex-bilionário fechou os olhos por um instante, o cansaço arrastando os pensamentos como lama. Mas a imagem do jogo da forca permanecia ali, imóvel. O Contador queria que ele jogasse. Que errasse. Que cada letra errada fosse um passo a mais em direção a forca. Errar significava a morte, talvez não a dele, mas de alguém e o moreno não suportava mais ter sangue em suas mãos, mesmo que indiretamente.
Talvez as letras da placa não estivessem lá para formar a palavra Justiça. O moreno olhou para os nomes que tinha associado. Simon E. Garden, o dono já morto do carro, o tenente Castro, o peão número 8. Eram dois nomes que o moreno facilmente associaria. O moreno refletiu por um momento. Ele estava deixando alguma coisa passar. De repente, ele olhou para os nomes com mais atenção. Ambos tinham o segundo sobrenome com a letra “E”. James E. Castro e Simon E. Garden. JS, mas e o T ? Era alguém que tinha o mesmo sobrenome de ambos ? Será que ambos tinham o mesmo sobrenome ? O moreno rabiscou no canto da folha apressado.
J= James E. Castro
S= Simon E. Garden
T=?
Isso mostrava que de alguma forma o comissário Castro tinha alguma relação com Simon E. Garden ? Será que era apenas coincidência ? O moreno sabia que com o Contador de Histórias nada era uma coincidência, não existiam coincidência. Ele apoiou os cotovelos na mesa, as mãos pressionando a testa. James, Simon… dois nomes unidos pela mesma letra intermediária. O “E.”. O sobrenome compartilhado era como um fio de arame tensionado no meio da escuridão. Mas ainda faltava a última peça, a letra T.
O primeiro passo era descobrir qual era o sobrenome, e se o “E” que ambos compartilhavam era o mesmo. E só havia uma forma do moreno descobrir isso mais rápido, ele tinha que falar com o comissário Castro, mas não podia fazer isso como Bruce Wayne.
Bruce se recostou na cadeira, os olhos fixos na janela enevoada. A chuva escorria em linhas tortas pelo vidro, como se fossem letras deformadas tentando compor uma palavra que ele ainda não conseguia ler.
O silêncio no apartamento pesava. O cursor piscava na tela como um olho impaciente. Bruce fechou os olhos, e em sua mente, o desenho da forca se projetou outra vez. Oito espaços. O Contador de Histórias estava brincando com o tempo, transformando cada segundo de dúvida em corda apertada. E se o moreno queria respostas, teria que sair do apartamento, não como homem, mas como sombra.
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A respiração dos dois ainda era curta quando alcançaram o terreno baldio atrás da prisão. O ar ali tinha um peso quase sólido, impregnado de ferrugem, fumaça distante e o cheiro úmido de terra abandonada. A noite parecia mais escura naquele espaço, como se o próprio céu tivesse se contraído para engolir seus passos. O Coringa correu sem olhar para trás, como se a tensão fosse apenas um tempero a mais. Andy tentava acompanhar, cada músculo implorando por descanso.
Mais adiante, no limite da rua, um carro solitário estava estacionado, provavelmente de algum funcionário noturno da prisão ou alguém distraído demais para perceber onde deixava a vida. O Coringa parou diante dele, arqueou a sobrancelha e estalou os dedos.
-Quer ver mágica ? - disse, agachando-se ao lado da porta.
O loiro tirou do bolso do uniforme da prisão um pedaço de ferro retorcido, improvisado, e em segundos a trava saltou com um estalo seco. Andy observava com o coração disparado, não sabia se pela eficiência criminosa ou pela ideia de realmente seguir viagem naquele carro roubado. Ele não era um criminoso, pelo menos, ele não se considerava um.
-Entra logo, antes que o espetáculo ganhe plateia - o loiro ordenou, deslizando para o banco do motorista e fazendo sinal para que o ex-psiquiatra entrasse no banco de carona.
Andy obedeceu, sentindo o banco duro, o cheiro de couro velho e gasolina invadindo os pulmões. O motor roncou após alguns giros forçados e eles se lançaram na estrada, a cidade de Gotham brilhando ao fundo, como uma fera esperando para devorá-los.
Enquanto dirigia, o Coringa mexia no painel. Ele abriu o porta-luvas, revirando objetos até encontrar um celular barato, esquecido pelo dono. Ele sorriu largo, quase infantil, e discou um número de memória.
-Vamos ver se meu querido está acordado - disse o ex-terrorista passando a língua no canto dos lábios.
Andy desviou o olhar para a janela, mas cada segundo da chamada reverberava dentro dele como uma ameaça. O celular tocou algumas vezes, antes de cortar abruptamente. O moreno não atendeu, o que deu lugar a uma sombra de frustração no rosto do loiro. Ele girou o celular nos dedos e riu sem humor, antes de jogar o telefone no banco de trás.
Andy sentiu a tensão no ar mudar, como se a rejeição silenciosa do outro lado da linha tivesse aberto uma ferida invisível. O carro seguiu adiante, engolido pela estrada, Andy não sabia o que dizer naquele silêncio opressor. O motor era o único som que preenchia o espaço entre eles, roncando baixo, pesado, como se acompanhasse o ritmo da respiração tensa dos dois.
O Coringa apertava o volante com mais força do que o necessário, os dedos longos marcando o couro já gasto. Havia um riso preso na garganta dele, um riso sem graça, e Andy sabia que aquilo não era bom sinal.
-Nossa parceria termina aqui pelo que parece - disse o loiro quebrando o silêncio espesso - posso pensar cuidadosamente na forma mais satisfatória de te matar, eu tenho boas ideias.
Andy engoliu seco, sentindo o frio da noite atravessar o couro do banco, misturado à adrenalina ainda crua pulsando nas veias. Ele sabia que cedo ou tarde essa conversa tornaria a voltar.
-Sabe o que mais me irrita? - disse o loiro, mais baixo, quase falando para si mesmo - é que você ainda pensa que existe escolha, que pode negociar comigo.
O carro virou em uma rua deserta, onde os postes eram raros e o breu engolia a paisagem. O Coringa segurava o volante com firmeza, os olhos fixos na estrada, mas a mente de Andy estava presa ao que viria a seguir.
-Se me matar agora, vai precisar procurar pelo garoto sozinho - barganhou o ex-psiquiatra.
-Eu sei onde conseguir informações - zombou o loiro passando a língua no canto dos lábios - eu não preciso de você, nunca precisei.
Andy sentiu o peso da afirmação como um soco silencioso no estômago. Cada palavra do Coringa era medida, calculada para perfurar camadas de racionalidade e autoengano. O loiro não apenas dirigia; ele dominava o espaço, o tempo e a mente do ex-psiquiatra. O carro avançava devagar, como se o motor próprio sentisse a gravidade daquele momento, cada curva um lembrete de que não havia volta.
De repente o Coringa soltou um riso seco, sem humor, que ecoou dentro do carro como vidro quebrando. Um riso que não brincava, que não zombava, apenas existia como uma lâmina fina cortando o silêncio. Andy podia sentir o olhar dele atravessando seu próprio corpo, julgando cada reação, medindo cada hesitação, antes de voltar para a estrada.
-Eu ainda não decidi como vou te matar - zombou o loiro, seu tom transbordando mania - você vai ficar vivo enquanto eu penso.
Andy engoliu, o coração martelando, cada respiração ainda áspera, quente e metálica. Ele se perguntava quanto tempo ainda suportaria esse equilíbrio instável, andando lado a lado com alguém que podia rasgar sua vida em segundos.
O carro continuou, engolindo a noite, avançando em direção a uma cidade que parecia menos real e mais um palco para o que estava por vir. Cada quilômetro deixava Andy mais consciente de que não havia retornos, apenas decisões e consequências, e o Coringa sorria, como se cada uma delas fosse apenas mais um brinquedo em suas mãos.
-Acho que vou deixar você escolher entre algumas opções - riu o loiro, sua língua passando no lábio inferior, o canto dos olhos fixos no ex-psiquiatra.
Andy sentiu o estômago revirar. “Escolher” com o Coringa era um conceito tão ilusório quanto respirar no fundo de um poço sem oxigênio. Cada palavra dele carregava armadilhas, cada pausa uma ameaça silenciosa. Ele respirou fundo, tentando encontrar alguma racionalidade no caos que se arrastava à sua frente, mas a tensão tornava impossível pensar direito.
O loiro inclinou o corpo levemente para trás, ainda com um sorriso torto, observando Andy com interesse predatório. O farol do carro iluminava postes esparsos, criando sombras longas que se arrastavam pelo asfalto. Cada curva da estrada parecia absorver a luz, deixando o carro numa penumbra instável, e Andy sentia a cidade toda como se estivesse assistindo a própria vida se dissolver em preto e cinza.
-Que tal a gente parar para comer ? - disse o ex-psiquiatra em um tom leve em um suspiro, tentando mascarar o medo que corria em suas veias - tem uma lanchonete 24 horas aqui perto que vende um bom Junk Food.
O silêncio que se seguiu pareceu um abismo. O Coringa não respondeu de imediato, apenas continuou dirigindo, o volante rangendo sob a pressão dos dedos. Andy quase se arrependeu das próprias palavras, talvez tenha soado ridículo, uma tentativa frágil demais para quebrar a tensão.
Mas então o loiro soltou um sopro de riso curto, seco, como se tivesse sido arrancado à força.
-Junk Food, hã? - murmurou, sem desviar os olhos da estrada.
-Eu te devo um maldito jantar depois de todas as nossas merdas - disse o ex-psiquitra em um tom neutro.
O Coringa virou o carro em outra rua, mais iluminada. Os faróis refletiram em placas molhadas de chuva. O brilho revelava o contorno da cidade adormecida, suas entranhas abertas pela madrugada. Gotham parecia respirar junto deles, irregular, pesada, feita de concreto e cansaço.
-Talvez você esteja certo - disse o loiro depois de alguns segundos, a língua passando no canto dos lábios, a voz baixa, arrastada, quase como se falasse sozinho - toda execução merece um último jantar, não é?
Andy engoliu seco. Não sabia se aquilo era um deboche ou uma trégua temporária. Talvez fosse os dois. O carro seguiu em direção às avenidas centrais, onde a névoa se misturava ao brilho das luzes. Andy observava pela janela, mas não via realmente a cidade.
-Achei que você quisesse conversar comigo - zombou o loiro em um tom de escárnio - porque você está tão calado ?
Andy manteve os olhos fixos no reflexo do vidro, como se a própria imagem distorcida fosse um escudo contra o que o esperava ao lado. A cidade passava em borrões de luz e sombra, mas nada nele registrava de fato o caminho. O silêncio não era vazio, era um campo minado. Cada palavra que pudesse sair de sua boca tinha o peso de um estopim, e ele sabia que o Coringa se alimentava disso, da hesitação, do medo.
-Não importa se eu quero conversar com você, você não quer conversar comigo - disse o ex-psiquiatra.
O loiro riu, mas não era o riso estridente que ecoava como uma explosão. Era baixo, contido, e por isso mesmo mais perigoso.
-E desde quando você se importa com o que eu quero ?
Andy não respondeu. Sentia o nó na garganta apertar, mas também uma estranha lucidez atravessando a mente. Aquele diálogo, por mais insano e torto que fosse, ainda era um fio de controle, uma forma de se manter vivo.
O carro diminuiu de velocidade ao se aproximar da lanchonete. Um letreiro em neon piscava intermitente, como um coração prestes a falhar. Havia apenas dois carros estacionados na frente e uma bomba de gasolina antiga, iluminada por uma luz amarelada que tremia com a brisa.
O Coringa desligou o motor, mas permaneceu imóvel por alguns segundos, os dedos batucando no volante em um ritmo irregular. O silêncio entre eles se transformou em algo mais denso, como se a noite inteira tivesse prendido a respiração à espera de um desfecho.
O ex-psiquiatra pensou em correr. Em abrir a porta, sentir o asfalto frio sob os pés e desaparecer na escuridão. Mas sabia que não havia fuga. Não do ex-terrorista. Andy virou lentamente o rosto e encontrou o olhar do loiro, intenso, predatório, um brilho febril que o atravessava como lâmina.
-Não importa o que eu diga, você não vai me ouvir - continuou Andy, seu tom tentando soar neutro - você ainda acha que sou seu inimigo, que quero te machucar, não importa o quanto minhas ações tentem te mostrar o contrário.
O Coringa inclinou a cabeça de lado, os olhos semicerrados, como se examinasse Andy por dentro. O silêncio que se seguiu era tão cortante quanto qualquer riso histérico que ele pudesse soltar.
-Você não vai conseguir me manipular com essa conversinha - falou o loiro abrindo a porta do carro e saindo deste.
Andy suspirou e fez o mesmo, batendo a porta do automóvel levemente. O ar frio da madrugada o envolveu, carregado de cheiro de chuva e gasolina velha. Cada passo até a entrada da lanchonete parecia marcado por uma contagem invisível, como se estivesse caminhando até um veredito.
Dentro do estabelecimento, o som de talheres contra pratos, o murmúrio distante do rádio ligado e o cheiro de fritura encheram o espaço. Era banal. Quase reconfortante. Não havia muitas pessoas ali, o que era compreensível pelo horário da madrugada.
Os olhares ao redor se fixaram nele por um momento antes de se dispersarem. Afinal, eram dois homens com uniformes de prisão adentrando em uma lanchonete no meio da madrugada. Mas Gotham, em toda a sua glória, já havia aprendido a não olhar muito, fazer vista grossa para alguns acontecimentos.
O Coringa abriu um sorriso largo, para a garçonete sonolenta atrás do balcão.
-Mesa para dois, e capricha no café - disse, como se fosse apenas mais um cliente excêntrico na madrugada.
Andy se sentou de frente para ele na mesa, o coração ainda acelerado. A banalidade do lugar criava uma dissonância quase insuportável. Ali, na mesa de fórmica riscada, sob luzes baratas, sentar-se diante do Coringa parecia ainda mais irreal.
-E então, que porcaria você quer comer ? - perguntou o ex-terrorista pegando o cardápio engordurado na mesa - aproveite que será por conta da casa.
-Posso te pedir uma coisa ? - falou o ex-psiquiatra de repente, seu tom era calmo, apesar das circunstâncias.
-Você pediu para comer, eu já fiz minha boa ação do ano - zombou o loiro passando a língua no lábio inferior, antes de seu tom se tornar seco - está me achando com cara de Papai Noel ? Pede logo a porra da comida.
-Quero que seja uma morte rápida - falou Andy de repente.
O silêncio que se seguiu não parecia caber dentro da lanchonete. O rádio tocava uma música country arrastada, a cozinha chiava com o óleo fervendo, mas tudo isso se dissolveu em segundo plano. Só restava o espaço entre eles, suspenso, pesado.
O Coringa parou de folhear o cardápio engordurado e ergueu os olhos lentamente. O sorriso habitual não estava ali. Ele apenas encarava Andy, como se medisse o peso de cada palavra dita.
Por um instante, o loiro inclinou a cabeça, estudando-o com olhos estreitos, como quem avalia um animal ferido que, ao invés de fugir, escolheu se oferecer. Então, de repente, soltou um riso baixo, sem humor, que não ecoava como os costumeiros. Um riso contido, seco, que parecia vir de algum lugar mais profundo e menos teatral.
-Você não é nada divertido - disse por fim, encostando-se no banco de fórmica, como se aquela declaração tivesse roubado um pedaço do espetáculo que ele esperava - pede um lanche e, no lugar de ketchup, quer morrer rápido? Você está estragando a brincadeira.
Andy manteve os olhos fixos na mesa, no reflexo fosco das luzes fluorescentes sobre a fórmica riscada. O som do rádio parecia distante, abafado por aquela tensão que não cabia no espaço.
-Você quer que eu sofra e eu entendo isso - disse o ex-psiquiatra por fim - é por isso que estamos aqui nessa lanchonete decadente, você poderia ter me matado assim que saímos de Blackgate, mas não fez isso, porque você não quer apenas me matar, você quer tirar alguma satisfação doentia disso.
O silêncio que se seguiu foi como vidro prestes a estourar. O Coringa parou de bater os dedos, parou até de respirar por um segundo. O sorriso torto voltou lentamente, mas havia algo diferente nele, mais sombrio, menos teatral.
-Você está começando a me irritar… - disse o loiro em um tom baixo, mas os olhos brilhavam, predatórios.
Andy não desviou o olhar, mesmo sentindo o peso daquela fúria quase contida. Por dentro, o medo latejava como uma ferida exposta, mas havia também algo mais, uma estranha ternura, um fio distorcido que ligava aquele homem à memória de alguém que não voltaria. Ele não via só o Coringa à sua frente, via os traços borrados de Annie, a mesma chama nos olhos, só que agora envolta em ódio maníaco.
-Se eu estou te irritando é porque falo o que você já sabe - respondeu o ex-psiquiatra em tom baixo, a voz trêmula só no limite, como quem anda na beira de um abismo.
O loiro sorriu, mas era um sorriso frio, como lâmina deslizando pelo metal. No entanto, o Coringa não disse nada. A garçonete interrompeu trazendo dois pratos baratos com hambúrguer e fritas. O cheiro de gordura se espalhou pela mesa. No entanto, a expressão do loiro não mudou, era fria e cortante, apenas olhando para o ex-psiquiatra.
-Sabe de uma coisa? - disse o loiro interrompendo o silêncio, pegando uma batata com os dedos e girando-a como se fosse um fósforo prestes a acender - talvez eu não precise te matar agora, talvez seja mais divertido deixar você viver um pouco mais… com essa cara de cachorro perdido, tremendo o momento em que vou apagar as luzes.
O Coringa mordeu a batata e sorriu torto, os olhos fixos em Andy.
-Aproveita o lanche, nunca se sabe quando vai ser o último.
Notes:
Comentem para me deixar feliz :) Provavelmente semana que vem não teremos um capítulo novo, mas vou dar um jeito de postar pelo menos 2 vezes por mês.
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Daydream_ofLouis on Chapter 2 Sat 15 Jun 2024 01:34AM UTC
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