Actions

Work Header

Atraída Pela Noite

Summary:

Catra é uma vampira que depende de um clã para sobreviver. Pela primeira vez desde a transformação foi designada para atrair Adora, uma humana solitária do outro lado do mundo, até Transilvânia, e assim garantir a captura em troca de sua permanência no grupo. Apesar de questionar se realmente queria fadar uma jovem mulher à morte cruel, a vampira sabia que perderia tudo caso não concluísse a missão. Adora passou a ser um nome recorrente em seu pensamento, quase sempre de dúvida, sobre o certo a se fazer. Salvaria a humana ou a levaria à morte? E essa humana? Seria ela sua salvação ou sua própria morte?

!! ATENÇÃO !!
A história contém gatilhos mentais de rejeição, não pertencimento, abuso psicológico e ansiedade.

Chapter 1: Prólogo

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

Toda história de vampiro tem um certo glamour , não importa qual gênero da obra. Do terror ao romance, há sempre um ponto alto para destacar o ar de superioridade da temida e amada criatura da noite. Foi o que Catra sempre ouviu falar.

Vampiros têm riquezas, mil e uma aventuras, conhecimento infinito, uma inteligência emocional de quem viveu séculos para evoluir tanto nesse aspecto. Literalmente. Às vezes não parece que são os mesmos que, em momentos de sede, deixam-se dominar pelo instinto feral quase demoníaco para aniquilar a primeira (ou as cem primeiras) vítimas ao redor.

Ela, que agora possui juventude eterna, por experiência própria, pode afirmar que há um pouco de ficção nesses argumentos. Não sobre vampiros. É sobre a vida plena dos vampiros, que fique bem claro. 

Aliás, a dúvida sobre tal espécie existir ou não é benéfica, proposital até. Uma das poucas regras universais desses seres é que eles jamais podem ser oficialmente descobertos pela humanidade. Um grupo aqui ou ali que sabe não faz mal, desde que para o todo continue se passando por uma teoria da conspiração doida. Pois é esse anonimato que permite a respectiva longevidade de ambas vidas humanas e vampirescas. Aprenderam depois de muitas guerras silenciosas há séculos atrás que era melhor coabitar os espaços.

Outro grande aprendizado foi a sobrevivência grupal entre vampiros, ainda que oculta. Tudo fluía melhor em bando. No mundo moderno chamam-se coletivos vampíricos, convenientemente apelidados de clã. 

Esses grupos habitam lugares enormes e altamente desenvolvidos, tendo acesso a montanhas de dinheiro e status por todos os setores sociais, culturais e econômicos. A premissa é basicamente a de sociedades secretas nos subsolos alheios do mundo. Tem espalhado por todos os continentes, quiçá, todos os países. Quase não existe vampiro no mundo que esteja fora de uma associação, pois são nelas que conseguem moradia, alimento, acesso a bens materiais quase que infinitos, informações, treinamento, terapia até. Alguém na face da Terra já imaginou vampiro fazendo terapia? Pois é. Eles têm tudo ao dispor desde que colaborem com as regras de onde escolheram se associar.

Uma vez em um coletivo, é opcional conviver entre humanos. Porém, a maioria opta por continuar camuflada no mundo dos mortais por diversão. Andam pelas ruas quando o Sol se vai, frequentam festas, e, eventualmente, fazem suas vítimas na calada da noite. 

No caso do clã de Catra, era impossível só depender do alimento que lhes era oferecido. Todos praticamente precisavam sair para o mundo, e não era só por diversão. Para ela, o erro estava no método de sustento escolhido pelos respectivos líderes.

Lamentável como ninguém nunca deu espaço para suas sugestões de como mudar essa realidade deprimente do clã. Afinal, como podia se atrever? Era a mais jovem criatura de todas que conhecia dali. Tinha se tornado vampira há 50 anos apenas, ainda tinha muito o que aprender segundo seus coleguinhas dentuços. Não enxergavam que, diferente dos secularmente atrasados com quem convivia, ela já tinha muito da socialização e mentalidade do mundo moderno em suas veias. A começar pela noção de que os recursos do planeta não são infinitos, e isso inclui o que seria o oxigênio do vampiro: o ser humano. O sangue humano, no caso. Uma pena que Catra talvez tenha chegado muito tarde naquele lugar para espalhar a tão óbvia novidade de que eles não necessariamente precisavam matar as fontes de alimento. 

A estupidez de seu líder, Prime, foi o que provavelmente condenou a maioria dos associados à fome descontrolada por anos a fio. Entre os mil e um formatos de se obter sangue, ele optou pelo mais estúpido e atrasado. E com o apoio de outra grande favorita ao posto de lideranças burras do século, a co-líder Shadow Weaver, ele organiza sequestros de humanos invisíveis na sociedade para criar o próprio banco de alimentos drenando-os até a última gota de uma só vez. Depois, distribuem as bolsas de sangue de diferentes tamanhos para os membros da sociedade secreta. Os que mais colaboram com as capturas e outras atividades para manter o grupo recebem as maiores. Quem decide os membros mais ou menos merecedores com históricos de missões é Shadow Weaver, pondo em prática sua falsa meritocracia. Ela e Prime dizem se basear sempre na ‘troca de favores’. Esse é o termo utilizado. Catra desconfia que é proposital, para deixar em aberto inclusive para ‘favores’ um tanto quanto corruptos.

Aliás, a jovem criatura sempre questionou se algum dia esse sistema funcionou de verdade, alimentando igualmente os vampiros e não ameaçando a espécie humana, sobretudo em períodos de guerra, o que por si só já eliminava milhões de vidas em um curto período de tempo. Parecia que não. 

Até porque a situação atual era deprimente. Se existem uns 40 vampiros andando pelos enormes corredores agora seria até muito. Os outros 200 ou 300 estão adormecidos  em pilhas de caixões devido à hibernação involuntária por falta de sangue. Desde que chegara ali, Catra sabia que o clã girava em torno de uma quase eterna missão: gerar alimento o suficiente para manter os que restaram acordados e reanimar os adormecidos. O que ela tem certeza que só vai acontecer pelo menos depois de uns 2 mil anos, e se até lá os humanos não causarem a própria extinção.

Tudo ali era tão patético. Nunca gostou de lá. Nunca nem quis ser vampira. Mas, um gene raro em seu DNA fez com que a noite em que morreria nas mãos de uma faminta Shadow Weaver se tornasse o dia 0 do seu vampirismo. A indefesa mulher, assim como toda sua família, foi uma das vítimas capturadas pelo coletivo enquanto viajavam pela região da Transilvânia para virarem as mais novas bolsas de sangue. Enquanto todos morreram conforme definhavam sem circulação nas veias, Catra teve todos os sintomas da transformação. Mais tarde descobriu que a mordida de Shadow Weaver, a única que se alimentava diretamente das fontes sem ser por bolsas, teve um efeito incomum. 

Para transformar um humano em vampiro, é preciso que este beba um pouco do sangue de quem o mordeu induzindo à tal transfusão sobrenatural. No caso dela, bastou a saliva retida nos caninos afiados de um para que seu organismo fundisse as codificações genéticas. E assim se viu garantindo a imortalidade de seus cabelos castanhos longos e ondulados, de seus olhos azul e âmbar tão brilhantes devido à juventude, da pele mestiça levemente pontilhada com sardas no rosto sem nenhum sinal de velhice. Garantindo, também, a fome eterna de sangue, algo que por muito tempo se recusou a consumir até sentir os efeitos cruéis da fome. Odiava saber que para viver, humanos como seus pais e irmãs tiveram que morrer.

E como ela entrou no clã? Bom, foi um ato de conciliação, um pedido de desculpas por acidentalmente terem a transformado em um deles. Ou foi interesse em ter mais um no time para continuar a caçada aos humanos. Sendo um motivo ou outro, o que importa é que foi aceita.

‘Aceita’ lê-se ‘intimidada pela fatalidade da situação’. Ela tinha 21 anos quando tudo aconteceu. Não tinha mais nenhuma pessoa referente ao seu passado que pudesse procurar. Precisava começar do zero e em um estilo de vida que nunca foi instruída a ter. O acesso àquele novo lar parecia uma proposta irrecusável. Às vezes a mais nova imortal introvertida pensava em sair de lá. Muitas vezes, para ser sincera.

Sempre é possível tentar a carreira solo de Drácula. Porém, é muito difícil manter o disfarce sem a proteção dos coletivos. A câmera de um celular pode arruinar tudo, passar perto de um espelho em lugar público pode arruinar tudo, acabar se descontrolando de fome e cometer uma chacina pode arruinar tudo. Todas essas coisas já aconteceram, claro, e os clãs sempre usam de seus status para para calar as autoridades, a mídia e ainda comprar o silêncio das testemunhas. Estando só, não há esse respaldo e ainda se corre o risco de morrer nas mãos dos próprios vampiros.  Isso tem relação com uma outra regra: cada coletivo ou ser que resolve viver por si só tem sua própria autonomia e esta deve ser respeitada desde que não desencadeie a extinção dos humanos ou exponha a existência dos vampiros. No caso de ameaça, todos os clãs do mundo se reúnem em uma força-tarefa para achar e aniquilar o causador.

Por isso Catra ia ficando, na esperança de um dia achar uma solução para sair pela porta da frente sem manchar sua reputação sendo expulsa e para sempre condenada à vida perigosa de vampira andarilha. Contudo, só a pobre morta-viva sabia o quanto chegara ao limite, que já até passara dele. 

E sua mais nova ordem designada pelos líderes a fez pensar ainda mais em como precisava de uma fuga inteligente daquele lugar. Chegou a sua vez de capturar uma mortal. 

Criada em um orfanato em Boston e sem qualquer vínculo familiar oficialmente registrado, a humana de 24 anos tinha perfil impecável para o coletivo. A missão de Catra era planejar toda a captura, desde como atrairia a moça para a região da Transilvânia até a desculpa que encontraria para qualquer questionamento sobre o seu sumiço, se um dia viesse a acontecer. A grande aposta era que nem a procurassem, pois todas as vítimas, até hoje, eram realmente invisíveis em suas camadas sociais. Apesar de esse caso ser um pouco diferente. Os líderes apostaram mais nas características vitais do que no anonimato para extrair sangue de melhor qualidade e por mais tempo. 

O alvo de Catra tinha hábitos majoritariamente saudáveis, rotina de exercícios físicos, sem vícios, sem vida sexual ativa que levaria a possíveis infecções crônicas. O alvo de Catra também tinha um belo par de olhos azuis, cabelos loiros e um sorriso definitivamente dócil e cativante.

Notes:

Que os jogos comecem no próximo capítuloooo (que rola ainda essa semana, não sei se amanhã ou hoje).

Muito bom estar de volta <3

Chapter 2: Ficha

Notes:

(See the end of the chapter for notes.)

Chapter Text

O castelo subterrâneo do clã de vampiros da Transilvânia era cheio de corredores longos tomados pela arquitetura românica. Eles interligam as dezenas de cômodos das mais diversas finalidades. Dos quartos às áreas de treinamento, da biblioteca ao salão de jogos. 

Da sala de base de dados à academia. Esse último trajeto era o de Catra no momento.

Tinha acabado de receber uma ficha a mando dos líderes e não contente com sua mais nova missão, corria atrás de Scorpia para pelo menos ter a sensação de que existe alguém ali para ouvi-la desabafar. 

Scorpia era definitivamente a pessoa de Catra. Quer dizer, vampira. Tanto faz. Eram bem próximas desde o primeiro momento em que precisou lidar com essa transformação indesejada. Mesmo que a amizade em si tenha dado meio errado nos primeiros anos, com uma certa negação de sua parte por não querer construir qualquer tipo de laço com alguém dali. Sua amiga era geneticamente híbrida, filha de humano com vampiro. E, apesar de ter crescido com mães adotivas humanas, sempre foi preparada para um dia ir para o coletivo em busca do seu direito de ser associada. A coitada só não sabia que, de todos os grupos do mundo, ela pararia em um dos mais decadentes. Infelizmente, era desse clã que seu pai vampiro tinha saído, então era ali que seria aceita sem muitos desafios.

Assim como Catra, Scorpia não concorda com muitos dos métodos antiéticos dos líderes Shadow Weaver e Prime. Contudo, entende que precisa obedecer regras pelo bem de suas mordomias e necessidades. E assim ela vive, enquanto Catra escolhe ser a rebelde que questiona cada decisão e fica dias sem se alimentar como punição. Se não fosse por Scorpia quase sempre contrabandeando bolsas de sangue para ela, com certeza seria uma das centenas de criaturas hibernando em um dos caixões poeirentos dali.

Como quem tem tempo de sobra para saber de toda a rotina centenária de uma vampira previsível demais, Catra encontra Scorpia saindo da academia e acelera o passo já rápido para caminhar ao lado da amiga. E sem nem cumprimentar, deixa sair de uma só vez uma chuva de palavras emboladas na sua voz ansiosa: 

— Sendo uma vampira, para qual ser divino que eu devo rezar para conseguir me livrar dessa missão que apareceu para mim hoje lá na sala de dados? — ignorando o pulo assustado da outra ao seu lado, continuou a falar — Porque eu não consigo pensar em outra maneira de conseguir resolver esse problema. Eles querem que eu capture alguém, Scorpia. Eu . Você tem ideia do quanto não quero fazer isso?

— Ei, calma! Eu tô indo para o spa agora e acho que deveria vir comigo para canalizar melhor esse estresse, mulher — a outra criatura, bem mais alta e de ombros largos, tinha uma toalha em volta do pescoço que usou para secar algumas gotas de suor restantes do treino ao mesmo tempo que afastava os fios de seu cabelo branco platinado da testa.

— O que acha de eu tentar passar esse caso para alguém em troca de algum favor? — enquanto caminhavam em passos largos na direção do spa, a mais baixa e franzina especulava esperançosa.

— Tá doida? Se está no seu nome, é porque Shadow Weaver ou Prime escolheu com o Conselho — a voz de Scorpia era receosa, complacente com o desespero da amiga, mas firme na opinião honesta — Sei que é um passo muito difícil, mas tenta pelo menos. Pensa que isso pode ser sua salvação para não ficar constantemente sendo punida.

— Já fiquei uns 30 dias sem beber uma gota de sangue humano e tô aqui acordadíssima. Não tenho medo das punições desses dois babacas — discretamente adotava uma postura confiante.

— Mas ficou 3 dias em um coma raro. Quase que não acorda — a outra não comprou a meia verdade. Encarava a amiga com os olhos cerrados para descredibilizá-la — Para de inventar desculpa, cumpre essa missão para ter pelo menos um pouco da credibilidade do clã. Eu não quero te ver constantemente em situações ruins, pequena, mas você tem que se ajudar.

As duas pararam na porta do spa, e antes de entrar Scorpia fez questão de virar-se de frente para uma troca de olhar mais intensa. Catra enxergava claramente a preocupação da amiga agora. Nesses momentos se sentia uma adolescente inexperiente ouvindo a adulta que viveu o suficiente para prever com maestria onde cada decisão apresentada a levaria. Mesmo que fisicamente pareçam ter a mesma idade, uma tinha apenas seus 50 anos como vampira e a outra, mais de 100. Os problemas que para Catra pareciam sem solução eram pequenos obstáculos para Scorpia. O caminho que Catra começava a trilhar era um pelo qual Scorpia provavelmente já havia passado há muito tempo.

— Bom, eu dei a minha opinião e espero que pelo menos tente pensar nela — a mais alta a segurava gentilmente pelos ombros — Mas sei que é teimosa, então, só me deixe ciente do que vai fazer no final das contas para eu garantir que você tenha alguma ajuda antes de ameaçar sua eternidade por alguma estupidez.

Nunca foi difícil identificar quando Scorpia estava no modo conselheira ou no modo exageradamente entusiasmada. Eram personalidades muito extremas para se passar despercebido. E quando se deparava com o modo conselheira, Catra sabia que a única coisa que não devia fazer era ignorar seus direcionamentos quase sempre certeiros. 

E quem estava na sua frente, com um pequeno sorriso e olhar convincente, era a conselheira. Sabia, portanto, que não fugiria da missão.

— Já entendi — respondeu suspirando desanimada.

— Que bom.  — a amiga tentou reanimar um pouco o ambiente em um tom mais alegre — E aí? Vamos comigo para o spa ou não?

— Deixa para a próxima... — Catra olhou para a ficha que esteve o tempo todo debaixo dos braços e respirou pesado mais uma vez — Agora vou ter que começar a estudar a minha vítima…

— Muito bem! — a maior elogiou entusiasmada, batendo três palminhas aleatórias — Depois eu passo para te ver e ajudar com algumas ideias, se precisar.

O incentivo foi valioso. Uma pena que não durou mais de 15 minutos. 

Leu apenas algumas linhas do tal relatório sobre a mulher e tinha mais uma vez colocado na cabeça que era melhor outra alternativa. Tudo, menos fazer isso. 

Era uma jovem de 20 e poucos anos, tinha acabado de pegar o diploma de Artes e conseguir o emprego em um museu de artefatos excêntricos e ocultos em Boston. Passou a vida toda passando por diferentes lares de adoção até completar a maioridade para finalmente seguir com seus próprios sonhos. 

Aliás, será que ela tinha sonhos? Catra tinha muitos antes de se tornar vampira. Perdê-los foi tão doloroso quanto ver seus familiares definhando até a morte na mão de um ser tão impiedoso quanto Shadow Weaver. E agora era ela quem estava prestes a arrancar das mãos de uma jovem humana os respectivos desejos da vida. Não estava pronta. Nunca estaria. De todo o tempo em que viveu no clã, sempre optou por ajudar a comunidade em outras áreas de missão, senão a captura. Por que agora precisaria fazer isso?

Se queria tentar solucionar esse dilema, sabia que precisaria enfrentar um certo trauma em forma de gente. Quando vampiros não se sentem prontos para cumprir algumas das tarefas, eles podem tentar recorrer com um dos líderes. Prime era inacessível demais para Catra, então ela iria em sua tão amada (ironia) criadora. Por mais que o contato reaviva todos os sintomas de estresse pós-traumático em si, Shadow Weaver ainda era uma autoridade tecnicamente mais próxima do clero. 

Tinha quase certeza que não ia dar certo, tinha quase certeza de que elas se odiavam demais para cooperar uma com a outra. Porém, essa era sua última esperança. Assim tomou rumo até a sala privada da vampira alta, esguia e de cabelos tão escuros que pareciam feitos de sombra.

Bateu na porta e esperou uma resposta.

— Pode entrar — a voz da criatura anciã era forte, mas abafada pela máscara que sempre usara para cobrir todo o seu rosto.

No momento em que entrou a mais nova já se arrependeu. As pernas começaram a bambear e o pensamento, a disparar vários dos momentos terríveis em que precisou lidar com ela. Fechou os olhos por alguns segundos e concentrou-se em estabilizar as emoções. Já que chegou até ali, pelo menos tinha que tentar.

— Ah, é você — Shadow Weaver exalou um suspiro desdenhoso, propositalmente desmotivacional  — O que quer assim de tão urgente que até criou coragem para vir falar comigo?

— É sobre essa missã-

— Sabia que iria querer desistir e questionar — a fala vinha com uma risada debochada — Nem adianta. Essa missão foi feita exclusivamente para você e foi uma decisão de todo o comitê.

A de olhos coloridos ficou um breve tempo em silêncio, tentando processar como seu corpo iria cumprir as funções básicas de pensar e deixar que sua voz saísse de sua garganta ao mesmo tempo. Desde quando os líderes começaram a dar ouvidos para o Conselho? Este era formado por membros comuns do clã e entravam em certas tomadas de decisão para representar os membros sem poder de decisão. Até onde sabia, Shadow Weaver e Prime sempre passaram por cima do Conselho quando tinham opiniões diferentes das deles.

— Por quê? — soou muito baixa e acuada, por isso, tentou de novo — Por que me colocar para captura se sabem que eu não tenho experiência nenhuma? Sinceramente, é um desperdício de tempo para vocês, principalmente se querem ter mais humanos logo. Precisam de alguém mais efetivo nesse caso. Não eu.

Tentar fazer com que a líder tivesse empatia por sua dor seria um caminho muito tolo e ingênuo. Por isso, optou pelo argumento sensato, um relacionado diretamente aos interesses do clã.

A anciã ajeitou-se na cadeira e apoiou o queixo em ambas as mãos enquanto os braços apoiavam na mesa à frente, a mesma mesa que a separava da mais nova em pé. Fez questão de encará-la incessantemente e manter o silêncio desconfortável que sabia que a amedrontava. Até que começou um discurso tão ruim quanto o silêncio:

— Escuta só. Na situação em que o clã se encontra, precisamos do esforço de todo mundo para conseguir mais humanos. E a partir de agora quem não ajuda com pelo menos uma captura, vai ser cortado da lista de bolsas até que o fluxo de alimento seja normalizado. Ou seja, não vamos mais ficar tirando o pouco que temos para dar para uma inútil como você. Ou cumpre a missão, que particularmente é uma das mais ridiculamente fáceis que já vi, ou não se alimenta por tempo indeterminado. A escolha é sua.

“Se você fosse uma humana, aí sim seria uma captura que faria com prazer. Assistiria cada partezinha da sua vida sendo tirada e daria pulos de alegria” . A mente era o único lugar para qual Catra podia canalizar a raiva que sentia por essa maldita.

— Acho melhor mudar esse pensamento antes que eu mesma faça isso com você, Catra — as mãos de Shadow Weaver bateram levemente na mesa em um ato passivo agressivo.

Nunca parou com a troca de olhares.

É óbvio que leu sua mente. Com tantos anos de vampirismo, não existia um poder que a criatura sombria não havia dominado. Enquanto para si esse ainda era um poder que demandava muita concentração, a outra fazia com a naturalidade com que os humanos respiram.

— Além do mais, essa missão pode ser mais divertida do que pensa — a sombria levantou-se e começou a caminhar para perto da mais nova — Lembro muito bem que quando peguei sua ficha dizia que tinha uma certa tendência à homoafetividade. E olha só, essa jovem também. Então ninguém melhor  do que você para resolver tudo com uma boa hipnose. 

— Mais uma vez, eu não sou a mais experiente nisso — nem sua voz era confiante mais, ainda assim, argumentava — E tem tanta vampira que não é heterosexual aqui que me pergunto se isso é pré-requisito para entrar no clã.

— Hipnose é uma das coisas mais básicas no vampirismo, Catra. Não me venha com essa desculpa de não ser experiente.

— Mas, Shadow Wea-

— Sem mais. Já tomou muito do meu tempo por hoje — revirando os olhos, caminhou até a porta e abriu para insinuar uma expulsão educada da sala.

— Que inferno — Catra praguejou, ignorando até mesmo o medo de reação alheia.

Antes de sair, ouviu em alto e bom som mais uma das penalidades exageradas que tanto recebera nas últimas décadas:

— Aliás, não vai ter sangue vindo desse clã para você enquanto não me der provas de que está andando com esse sequestro. E essa humana tem que vir intacta, sem mordidas, porque não quero você tendo acesso ao alimento antes de ninguém. Ou de mim.

Mais uma semana nessa saga de caçar pequenos animais soltos por aí e se alimentar mal. Isso quando tinha coragem, porque até para isso era covarde. Nem em sonho seria capaz de caçar um humano. Talvez devesse pedir que oferecessem seus pulsos por alguns minutos para ela beber só um pouquinho… Já estava começando a ficar meio faminta com essa sequência de dias sem se saciar por inteiro.

Mais uma prova de que simplesmente deveria parar com esse receio e cumprir logo essa maldita missão, não é? Ter alimento e garantir a estadia em um clã não era tudo o que poderia almejar em sua vida, afinal?

Exausta demais por tantas vezes tentar ir contra o sistema, Catra resolveu não mais insistir em alternativas. Sentou em uma das poltronas super confortáveis da biblioteca principal e devorou cada detalhe daquela pilha de papéis que rodou o dia todo em seus braços. Focou nas características de sua vítima, nos assuntos que gostava de conversar, na linguagem corporal apresentada nas diversas fotos, nas pequenas manias muito bem descritas em tópicos.

A humana tinha cabelos loiros lisos um pouco abaixo dos ombros, algumas vezes soltos, muitas vezes presos em um coque desleixado ou rabo de cavalo alinhado. Dependia de qual era a finalidade. Nas fotos em que ia para o trabalho, sempre estava no estilo casual corporativo. Durante o tempo livre, fora clicada ou correndo ou praticando algum tipo de exercício com modelos mais esportivos. O que caía muito bem naquele corpo, diga-se de passagem. No final dos exercícios, sempre passava em alguma sorveteria ou confeitaria na mesma esquina do apartamento de baixo custo na rua de procedência duvidosa em que morava. Os olhos de um tom de azul acinzentado quase sempre acompanhavam uma expressão contente. 

Depois de dois longos dias assimilando tudo o que precisava do material, a jovem vampira tinha um plano bem concretizado em mente. A curadora do Museu de Excentricidades de Boston, iria fazer uma visita à Transilvânia em busca de raros artefatos que pertenceram ao Vlad Tepes no século XV. 

A ficha, agora revirada e explorada, voltava à bancada da base central. Dessa vez, Catra devolvia com um objetivo bem mais plausível ao ver do coletivo. Ela levantou o queixo e confiante fez um pedido ao responsável pelo atendimento daquele espaço:

— Oi. Preciso que arranje para mim uma dessas mansões que o clã tem como propriedade, umas jóias do Vlad III encontradas no Castelo de Bran e uma passagem aérea de Boston para Transilvânia para o perfil dessa ficha aqui . E é urgente. Como pode ver pelo selo na capa, essa é uma das missões vindas diretamente das mãos de Shadow Weaver.

Correria contra o tempo a partir do momento em que o Conselho autorizasse seus pedidos. Teria uma semana para atrair a tal Adora ao covil dos sanguessugas esfomeados.

Notes:

Só para deixar mais explícito. Sim, Catra mora na região da Transilvânia (clássico) e Adora é de Boston, Massachusetts (sempre tenho que pesquisar como escreve essa porra). Tudo isso vai fazer sentido ao longo da história, não escolhi esses estados por acaso. Os dois têm lugares muito convenientes para o ocultismo huehue. E fiquem tranquilos, pois teremos a ilustre presença de Adora em breve (próximo capítulo no caso).

Semana que vem estarei aqui com o cap 2 que é um pouco mais interessante, não desistam de mim. Fé. <3

Chapter 3: Herdeira

Notes:

E vamos de POV Adora (e finalmente alguma interação entre essas duas)
Boa leitura <3

Chapter Text

Adora checou mais uma vez o número da poltrona antes de se acomodar. Era ali que iria sentar mesmo? Iria viajar de primeira classe na sua primeira negociação profissional?

Tinha espaço sobrando para si, era um assento único que virava cama, tinha milhares de opções de filmes e séries para assistir. O menu tinha pratos assinados por chefs de cozinha, e a cartela de bebidas poderia ser facilmente confundida com a de algum restaurante cinco estrelas.

— Se isso for um sonho, queria parabenizar você, meu subconsciente, pelo realismo e criatividade — a mulher cochichava consigo enquanto aconchegava-se na poltrona cheia de botões para reclinar, massagear e aquecer.

— Chamou, senhorita? — uma voz ecoou da tela em frente à moça.

E assim Adora descobriu que um dos seus luxos era ter contato direto com os comissários de bordo sem nem precisar esperar. 

Por algum motivo, o seu microfone estava já ativado. Provavelmente porque nem tudo em sua vida pode ser vitória. Tinha que ter um espaço para alguma dose de constrangimento passar.

— Ahn… Não, não. Obrigada.

— Certo. Bom dia — dizia a comissária simpática — Vou desligar nosso contato para que tenha privacidade.

Será que ela saberia o número da cabine de Adora depois? Com certeza iria rir de sua cara quando fosse entregar algum pedido durante a viagem. E não tinha como fugir, pois seriam longas 12 horas de voo. Enfim. Isso não é um problema. Por que está querendo fazer de um momento tão irrisório algo importante? Tinha decidido que seria mais otimista e prática em sua vida. Precisava manter-se no caminho. 

Desde que saíra do ciclo de mudar de orfanato para orfanato na tentativa de ser notada por alguns dos casais que buscavam a adoção, Adora havia dedicado mais de seu tempo para agradar-se. Sem a culpa de não ser o suficiente para ser notada, sem a sensação de que não fazia falta para nada e nem ninguém no mundo. 

Ela gostava de viver, afinal. Ela mesma era a pessoa por quem buscaria propósito. Isso deveria bastar.

E bastava, principalmente agora. Acabara de entrar em sua carreira dos sonhos, trabalhava com um de seus dois melhores e únicos amigos, ganhava razoavelmente o suficiente para não ter que dividir moradia com ninguém. O Museu de Excentricidades era pequeno e pouco conhecido. Ainda assim, sempre fora seu lugar favorito na cidade, não tinha do que reclamar sobre a oportunidade que teve de começar a carreira por lá. Sempre ficava deslumbrada com as exposições sobre o oculto, as criaturas que uns chamam de lenda e outros chamam de verdade que o mundo não suporta. O museu tinha noites especiais de Halloween, com pessoas que eram convidadas para contar suas experiências com vampiros, bruxas, lobisomens… A Adora de 12 anos vibrava de tamanha animação.

Agora a de 24 realizava o sonho de trabalhar em seu local favorito. Tudo parecia tão bom que não tinha como melhorar. Até que recebeu esse email de uma herdeira de artefatos raros na Transilvânia que estava interessada em vender as obras para o museu. Foi a prova de que existia, sim, possibilidades de ficar melhor. 

Não queriam mandar a novata para negociar algo de tamanha potência, evidentemente. Mas Adora era quem estava em contato com a moça desde o início, foi por ela que procurara desde a primeira conversa. Por isso, quando surgiu a proposta de ir pessoalmente avaliar os artefatos, a jovem lutou para que fosse a escolhida para tal tarefa. Era ela quem merecia e iria criar uma nova exposição. 

E lá estava, naquele avião, pronta para incorporar a personagem de curadora de arte segura de si por uma semana. Sabia quais exercícios de respiração precisava fazer para espantar a ansiedade. Conhecia muito bem as maneiras de esconder o frio na barriga e firmar a voz para persuadir quem quer que fosse. Ela treinou discurso para o público na faculdade, fez aulas de linguagem corporal até. Já que socialização nunca foi o seu lado forte, sentia necessidade de constantemente aperfeiçoá-lo. Sempre voltado para questões profissionais, claro. O desastre que era em âmbito pessoal poderia ser ignorado, pois tinha certeza de que este não seria nem notado na ocasião. 

Quem seria apresentada do início ao fim era a Adora profissional.

O voo foi mais longo do que pensara. Não sabia ao certo se pela euforia ou receio, a jovem quase não dormiu durante a viagem. O fuso horário pode ter contribuído também, já que eram sete horas de diferença. Saiu de Boston eram umas 10 da noite e chegou na Transilvânia cinco da tarde do dia seguinte. Ficou aliviada quando saiu da área do desembarque, bem convicta de que dali iria direto para o hotel para pôr o sono em dia. Precisava descansar.

Contudo, a herdeira já começou virando seus planos de cabeça para baixo. Recebeu uma mensagem dela anunciando que um motorista estaria a esperando para levar até o quarto  de hotel, onde teria um intervalo de três horas para se acomodar, vestir uma roupa e ir para sua casa. Por mais que a cliente tenha enfatizado que era apenas um jantar de boas vindas, sem intenções de fazê-la trabalhar, Adora sabia que não conseguiria se dissociar da profissão. Qualquer minuto em que tinha que se apresentar para alguém com quem se faz negócio é um minuto de trabalho. Poderia dizer não, poderia expor a verdade e declinar por causa de sua exaustão. Porém, era mais um caso de linha tênue entre seu desejo pessoal e o trabalho. Foi para lá especificamente para negociar com a moça, podia usar esse jantar casual a seu favor para conhecer a melhor maneira de persuadi-la.

Aceitou o convite sem pensar muito. Usou uma parte do tempo livre para tomar um banho na banheira daquela suíte de primeira classe porque, obviamente, não iria perder a oportunidade que nunca mais teria. Pelo visto essa tal de Catra deve ser uma senhora com muito dinheiro para sair oferecendo as melhores hospedagens e melhores voos para simples curadores de artes. 

O banho relaxante deu a revitalização necessária para preparar-se para o jantar. Optou por seu clássico estilo meio casual, meio corporativo: calça social preta de cintura alta e camisa de manga longa de alguma cor neutra (geralmente branca). O complemento eram botas curtas sem salto e um sobretudo por cima para espantar o frio que fazia naquele lugar. Amarrou o cabelo loiro em um meio coque baixo, deixando a outra parte solta pelos ombros.

Antes de descer e encontrar o motorista novamente, deu uma última olhada no espelho de corpo inteiro. Estava ótima. Tinha algo sobre sua personalidade profissional que a enchia de confiança. Quem sabe não era um mecanismo do seu subconsciente para tentar equilibrar com o quanto ela não tinha um pingo de consideração com seu ego quando se falava da Adora fora do trabalho. Mais uma vez, nada com que deva se importar durante essa viagem.

O seu foco agora deveria estar naquele trajeto, naquela enorme casa do século XIX, com janelas grandes e estrutura arredondada nas extremidades imitando torres de castelos. O foco era naquela grande escadaria que precisou subir degrau por degrau até chegar à entrada de porta dupla com detalhes em vidros coloridos de cores frias. O estilo vitoriano sempre foi o seu favorito, apesar de sempre aparecerem nos filmes de terror como as menos convidativas. Entrar em um palacete como aquele é sempre sinônimo de maldição. Adora esperava que esse não fosse o seu caso.

Tocou a campainha e esperou até aparecer alguém para atendê-la. Assim que a porta abriu, duas coisas passaram por sua mente. A primeira era que, definitivamente, aquela jovem mulher não poderia ser a tal herdeira . Era jovem demais para o que seu imaginário tinha criado. Catra, em sua cabeça, tinha pelos menos uns 40 anos. E aquela mulher em sua frente parecia até mais nova que ela própria. 

Talvez seja a filha da herdeira. A herdeira da herdeira…

O segundo pensamento era um pouco mais comprometedor. Não parava de notar o quanto a mulher era linda. Ela tinha olhos coloridos, um âmbar quase amarelado e outro azul, o que sobressaltava sua cor de pele mais escura que a de Adora. Vestia uma calça de couro preta e blusa de cetim vinho com os três primeiros botões desfeitos formando um decote bem perceptível. Seus cabelos castanhos e ondulados estavam soltos, jogados propositalmente para um de seus ombros. Mas, não era só uma questão de estética. Ela tinha uma aura atraente. Tão atraente que a loira cogitou não só querer a atenção da mãe naquela noite, caso seu palpite estivesse certo. Com a mãe trataria das peças e com a filha, poderia tratar de um outro tipo de negócio. E Adora nunca foi de pensar essas coisas logo de cara.

— Oi, Adora — quem quebrou o silêncio de segundos foi a que abriu a porta. Seu sorriso de canto foi aumentando gradativamente enquanto checava a convidada de cima abaixo para finalmente estender uma das mãos — É um prazer te conhecer pessoalmente.

Não. Não pode ser. Essa não poder ser a-

Catra?

— Uhum

Depois de notar a quantidade de tempo que deixou a outra com a mão estendida sem resposta, Adora finalmente reagiu para corresponder o cumprimento.

— Nossa, você-

“Não fala besteira, Adora. Não fala besteira!”

Agora a situação era mais difícil. Lidar com esse tipo de atração estranha que prendia seus olhos em todos os movimentos e expressões que aquela mulher fazia literalmente a todo momento de negociação seria exaustivo. 

Nada impossível, porém, que infeliz destino para uma gay carente e emocionada como ela. Seria pedir demais não se apaixonar pela primeira cliente que tem? Isso é tão errado em tantos aspectos...

— Eu tinha uma impressão totalmente diferente — a expressão foi de surpresa para simpatia em instantes — Você é tão jovem! O que não é algo ruim, claro.

— Achou que eu seria uma viúva ranzinza de 78 anos que quer se livrar das tralhas da família? — Catra soltou uma risada depois da fala brincalhona.

—Ahn… É. Exatamente isso — Adora deixou um pouco de constrangimento vir em seu tom de voz como parte de prender a atenção da espectadora.

— Vou deixar essa passar — fez um movimento com uma das mãos convidando Adora para segui-la enquanto caminhava pela casa e continuava a conversa — Também imaginei que fosse receber uma professora de artes recém aposentada ou algo do tipo.

A loira deu uma breve risada e esperava que isso servisse como resposta. Estava ocupada demais olhando em volta do lar da anfitriã. 

A decoração era também de época. Móveis de luxo do século XIX e papéis de paredes com detalhes simétricos com um tom um pouco mais escuro que a cor predominante. Havia quadros renascentistas enormes entre o corredor e sala de visitas, caminho traçado por ambas as mulheres até chegarem à sala de jantar. A casa em si não era muito iluminada, mas parecia proposital. As principais fontes de luz eram candelabros naquela noite, enquanto a eletricidade era pouco utilizada. Seria um charme vintage ou economia? Adora duvidava que aquela podre de rica estaria economizando que nem ela tem que fazer frequentemente no final do mês para poder ligar o aquecedor toda noite e não morrer com o frio de Boston.

Distraidamente voltou o olhar à dona do palacete. Ambas tinham acabado de chegar ao lugar onde a mesa com um belo banquete as esperava. 

Enquanto Adora ajeitava-se em sua posição, assistia o balançar um tanto quanto desconcertante do quadril de Catra caminhando até à cadeira. Era quase como uma hipnose. Cada milímetro que mexia chamava sua atenção. Até que a dona do envolvente aparato se virou para sentar. Adora não conseguia nem piscar. Mesmo quando a outra estava de frente, seu olhar fez questão de subir lentamente, como se estivesse filmando todo o trajeto, do quadril ao abdome, depois a parte do colo do peito propositalmente despida devido aos botões abertos até chegar ao nível dos olhos coloridos.

Esses logo corresponderam aos seus azuis acinzentados, deixando-a imediatamente constrangida. Sentavam-se de frente uma para a outra, a alguns metros de distância. Foi pega no ato. Abaixou a visão o mais rápido possível para o prato servido.

— A comida parece boa — comentou e levantou o olhar de volta aos poucos para lançar um sorriso de agradecimento — Muito obrigada por ter me convidado essa noite.

— Escolhi um cardápio completo porque imaginei que estaria com fome depois de tanto tempo lidando com comida de avião — Catra sorria de canto.

Ela tinha o cotovelo direito apoiado na mesa enquanto a mão segurava gentilmente o peso de sua cabeça pelo queixo, o que elevava seu rosto e dava um certo ar de confiança. O cabelo caía mais sob seu ombro, alguns fios quase iam dentro do super decote. Parecia tão poderosa, tão dominante. Adora não sabia o porquê, mas se sentia seduzida com o mínimo dos gestos da outra mulher.

“Toma vergonha, Adora. Ela é sua cliente. Você nunca foi de confundir as coisas. Não vai ser agora que fará isso.” Seu subconsciente foi firme no sermão. Respirou fundo e resolveu escutá-lo. Não se levaria pelo descuido desse desejo aleatório.

A estratégia funcionou nos primeiros momentos, pelo menos antes da taça de vinho ser servida. A essa altura já tinham jantado e passado uns bons 15 ou 20 minutos em conversas fúteis. 

Quanto mais à vontade sentia-se, mais fácil perdia o foco. E mais uma vez seus olhos passeavam por todos os movimentos de Catra. Sem piscar. Sabia que ela falava sobre alguma coisa dos artefatos que queria vender, algo que envolvia o Castelo de Bran e o fato de a família dela ter morado lá depois de Vlad III. Sabia que contava a origem e importância das três correntes de ouro, uma coroa e o manto de pele de urso pardo pertencentes ao príncipe no século XV. Contudo, o monólogo de Catra estava de fundo enquanto o holofote ia todo para o seu gestual, a forma como mexia os lábios e ficava alguns segundos boquiaberta entre uma fala e outra.

A morena simplesmente ficou em silêncio, como quem finaliza o que tinha para falar e espera uma resposta. Como Adora não estava prestando tanta atenção, não pegou o fio do assunto e apenas arregalou os olhos enquanto era tomada pelo pânico por não saber qual seria sua réplica. Como que iria dizer que não estava prestando atenção se a encarava o tempo todo? Se admitisse isso, deixaria bem claro que seu olhar tinha todas as intenções, menos a de trabalhar em conjunto com a audição para estar atenta ao que conversavam.

—Ah, Adora... Desculpa por estar te entediando com esse assunto — a expressão sentida e o tom de voz mais acuado pareciam forçar uma lamentação — Já deve estar tão cansada da viagem e agora não consegue mais prestar atenção na conversa… Pensando melhor, essa ideia de te trazer aqui para jantar logo que chegou foi péssima, não é?

Então essa foi a interpretação de Catra em relação a sua desatenção? 

— Não, não. Imagina! — balançava a cabeça em negação enquanto soltava uma gargalhada exasperada — É muito importante para mim saber da história. Aliás, a história é a parte mais valiosa de uma peça. E, como eu disse, agradeço por ter me chamado hoje.

— Certo. Mas, vi que vou ter que contar tudo de novo em um outro dia em que estiver mais descansada — a de olhos coloridos sorria abertamente, fazendo com que as sardas no topo das bochechas quase chegassem aos seus olhos.

— Não quero te dar esse trabalho — Adora tentava corresponder com a mesma simpatia em sua expressão.

— Nenhum trabalho. Eu amo contar essa história — Catra levantou-se e foi se aproximando da convidada — Mas neste momento acho que é hora de irmos para cama.

— Para… Cama ?

Ela ouviu certo? Em frações de segundos, a curadora interpretou essa frase com a maior das conotações sexuais possíveis, principalmente com a anfitriã vindo em sua direção com aquele caminhar um pouco rebolado demais.

— É. Eu também estou precisando dormir. Amanhã conversamos melhor.

“Claro, Adora. Hora de cada uma ir para sua cama”. Por que raios achou que teria intimidade para ter outro tipo de interpretação?

— Vamos — a herdeira parou de frente para ela e apoiou uma das mãos na ponta da mesa — Vou te levar até a porta. O motorista vai te levar até o hotel de volta.

Levantou-se em dois tempos e foi acompanhada pela tal cliente hipnotizante até a saída. Antes de ir, Adora quase esqueceu como se respira quando Catra pousou uma das mãos levemente em um de seus ombros e beijou seu rosto para despedir-se. Um beijo na mandíbula, quase no pescoço, para ser específica. 

E como se já não tivesse coletado memória visual o suficiente para alimentar sua imaginação fértil, a tal herdeira a deixa com uma última frase:

— Da próxima vez eu quero toda a sua atenção para mim, tá?

Quais eram as chances agora de parar de pensar nessa situação super esquisita de se sentir atraída pela negociadora importante da sua carreira? E as de não tentar achar alguma segunda intenção nessa última frase, então?

Se Adora tinha previsto nunca passar por uma situação em que confundiria interesse pessoal com profissional, depois dessa noite teria que repensar seus conceitos. 

Até mesmo depois de preparar-se para dormir Catra não saía de sua cabeça. A cada vez em que as pálpebras pesavam e achava que finalmente estava no primeiro estágio para o sono profundo, flashes que nunca aconteceram na vida real dela aos amassos com uma certa herdeira circulavam incessantes. Foi uma sequência tortuosa até cair de verdade no sono. Em seu íntimo, deixava-se confessar que era uma sensação gostosa a cada curto sonho vívido. Porém, tinha consciência de que era algo completamente inapropriado. 

Algo havia sido despertado dentro de si. Algo muito estranho e involuntário. 

Mas, por que agora? Para quê agora?

Chapter 4: Armadilha

Notes:

Quando a gente pensa que a Adora é a hipnotizada da história, aí eu venho e posto esse capítulo...
Só queria comentar isso aleatoriamente mesmo.
Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Para quem poucas vezes usou do poder vampírico, Catra estava orgulhosa do resultado que obteve no jantar de boas vindas. Ou aquela humana era facilmente impressionável, ou realmente melhorou suas habilidades de hipnose. Essa sensação de controle era tão nova e perigosa. Não experienciou isso antes da transformação e muito menos quando entrou para o clã. Ter alguém tão benevolente assim era fora de sua realidade, mesmo que todo o jogo mental tenha usado só de sua aparência. O que despertara na Adora nada mais era do que desejos suprimidos pela própria humana durante muito tempo, verdade. Contudo, ser a protagonista despertando esse subconsciente lhe causava um certo deleite.  

Nunca fora o tipo de pessoa confiante, nunca sequer acreditou que poderia se sentir desejada por alguém, independente do método. Não só por ser parte de sua personalidade construída, mas por nunca ter verdadeiramente abraçado sua sexualidade quando humana. 

Não se via seguindo a tradicional juventude do início da década de 70, formando suas famílias e vivendo em empregos primários na Romênia socialista ainda abalada pela guerra de duas décadas atrás com a União Soviética. Era um ponto divergente naquela pequena cidade, a mulher que fazia de tudo para afastar as propostas matrimoniais dos homens, a que se recusava a encaixar em tarefas limitadas pelo seu gênero. Isso fazia de Catra alguém constantemente rejeitada, até que intencionalmente aceitou esse papel para manter essa distância da tal vida que não queria ter. 

Começou a explorar o motivo de sua apatia sexual por homens participando de um grupo secreto de mulheres estrangeiras, muito influenciado pela mais nova sensação da América do Norte e Europa ocidental: a luta pela igualdade de gênero. Foi através deste que descobriu sobre diferentes orientações sexuais que iam além da heteronormatividade, foi quando percebeu que o vislumbre que tivera por certas colegas de escola durante a adolescência não era só por simples admiração. Desde então, passou a ver o mundo com muito mais esperança, como se agora tivesse um espaço só seu nele, onde podia ser o que queria ser. 

Até Shadow Weaver resolver capturar sua família e acabar com sua juventude de vez. 

Não aproveitou nada da descoberta que fizera sobre si em vida humana. Teve uma experiência ou outra como vampira, mas, nada que a fizesse esquecer o quanto queria sua mortalidade de volta mesmo sendo impossível.

Isto porque parte do que queria de volta era a capacidade de se identificar com outra pessoa, de nutrir sentimentos, sejam bons ou ruins. Queria as falhas humanas, a intensidade de sentimento e a percepção de que o tempo não é infinito e tudo deve ser aproveitado. Naquele jantar, algumas dessas coisas voltaram e a fizeram ter uma pequena sensação de vida novamente. Identificou-se com Adora, sentiu uma certa atração por ela até. Amou conversar sobre a rotina humana da curadora, de como ela criou as próprias oportunidades na vida e não tem um fio de medo sequer de admitir nos momentos em que falhou. 

Adora era uma mulher independente que lutava pelo que queria conquistar. Tudo o que Catra gostaria de ter sido. Talvez o que Catra procuraria em uma parceira antes de tornar-se imortal.

Enfim. Não é como se tivesse tempo para sequer fantasiar sobre isso. Acima de tudo, seu objetivo com Adora era completamente diferente. O que seu eu do presente precisava agora era de uma humana para sequestrar para que finalmente tivesse acesso a sangue regularmente. 

Já faziam uns cinco dias que estava caçando na floresta como um animal irracional porque seus queridos líderes decidiram puni-la enquanto não finalizasse a missão. Ideia majoritária de Shadow Weaver, claro. Teria pouco menos de uma semana agora para arrastar Adora por sua armadilha até torná-la a mais nova prisioneira de sangue do clã, e não tinha outra escolha a não ser focar nesse plano. Pensou em despistar o sumiço da humana para o mundo passando-se por ela em um email que hipoteticamente mandaria para o museu pedindo demissão porque escolhera ficar na Transilvânia. Não é como se Adora tivesse muita gente em sua vida para questionar tal decisão, não seria difícil.

Aliás, até agora tudo estava bem fácil. A humana parecia um livro aberto de tanto que conseguiu lê-la nos primeiros dias. E essa fora mesmo a intenção de Catra. Tirar o máximo de informação possível no início sobre personalidade, rotina e ciclo social, para depois agir efetivamente para o sequestro. Enquanto dava informações sobre as peças que venderia ao Museu, a vampira também puxava outros assuntos e Adora nem sequer desconfiava do motivo. 

Será que essa mulher confiava facilmente em todo mundo assim mesmo ou se sentiu à vontade com ela? Não importa. Não era uma resposta que mudaria o destino final de nenhuma delas.

Outra parte importante de conhecê-la melhor era como isso tornava a hipnose ainda mais fácil para a vampira. Ela agora tinha mais acesso aos gostos e desgostos, memórias e desejos. E tudo isso era essencial para deixá-la bastante confusa, sobretudo no dia da suposta captura. Confusa sobre como se encontraria um momento a sós com Catra e, de repente, cercada de vampiros em um lugar desconhecido. 

Lá pelo quarto dia, sentia que estava pronta para aproveitar qualquer oportunidade que fosse para montar uma armadilha e ir para a parte crucial do plano. 

E como se quisesse facilitar o que já estava fácil, Adora resolveu ligar para ela em busca de algumas dicas de restaurantes ou bares para visitar antes de ir embora. A vampira não sabia exatamente a intenção da humana, não sabia se ela tinha ligado porque uma vez havia falado que ajudaria caso precisasse de qualquer dica, ou se fazia isso para indiretamente convidá-la para ir junto. Independente de qual tivesse sido a intenção, Catra fez seu próprio convite. Prometeu levar Adora em um dos bares secretos da região naquela sexta à noite. Seria a ocasião perfeita.

O local era bem discreto por fora, com entrada por um dos prédios de arquitetura típica de lá e pouca sinalização sobre o que era aquele lugar. Uma vez dentro, as luzes de neon azuis em volta da larga bancada e a grande parede cheia de diferentes bebidas alcoólicas deixava bem claro que era um bar. Tinha mesas altas espalhadas e também bancos altos para sentar diretamente no balcão. As paredes eram decoradas com grandes cartazes dos mais variados filmes de vampiro, como, Drácula de Bram Stoker, Entrevista com o Vampiro, Blade e Nosferatu. A cidade, de fato, ganhava muito turista devido à fama de ser o lar de vampiros, e o proprietário do local soube aproveitar muito bem isso no ambiente. Podia-se dizer que também era um dos mais LGBTs dali mesmo que não oficialmente declarado, já que não era algo muito comum na região da Transilvânia. 

Escolheram uma das mesas altas mais discretas, no canto do salão. Catra dedicou uns bons segundos para avaliar Adora. A jovem estava com um vestido preto de manga longa, gola alta e malha fina que ia até os joelhos, com uma jaqueta jeans por cima. O cabelo estava em um meio rabo de cavalo que formava um pequeno topete no topo da cabeça. Ou seja, nada muito chique. Ainda assim, Catra via uma beleza diferente em Adora naquela noite. 

Ou estava levemente deixando-se levar pela relação de atração que criou entre as duas.

Começou oferecendo os primeiros drinks por sua conta e deixou a conversa fluir. Falaram um pouco sobre tudo, como sempre. A loira orgulhava-se em cada fala sobre seu emprego, sobre como sentia que esta fora uma das melhores conquistas que tivera em toda a sua vida. Ela dizia também que estava amando a viagem, que foi conhecer os castelos clássicos e fez muitas caminhadas pelas famosas florestas dali. Quanto mais bebia, mais corado ficava o rosto da humana, e suas expressões, cada vez mais indiscretas. 

Catra perdeu as contas de quantas vezes mexeu o canudo da bebida com a língua discretamente só para ver a Adora hipnotizada com toda a concentração no movimento, muitas vezes até se perdendo na própria fala. Ou nos momentos em que cruzava os braços para avolumar mais o colo do peito entre o corte em V bem aberto do macacão vinho que vestia naquela noite só para deixar a outra sem saber se encarava seus olhos ou o tal decote enquanto conversavam.

Até que era uma parte da missão que Catra realmente estava gostando. Era divertida essa sensação de poder controlar para onde sua presa iria olhar. Era mais divertido ainda saber que tinha uma certa pessoa na palma da sua mão para fazer o que bem entendesse. Com seus poderes, explorava cada desejo escondido da mente da humana como se fosse seu novo jogo favorito.

Em algum momento a conversa ficou favorável para uma investida mais direta, e Catra milimetricamente planejou sua estratégia.

— Então você é o tipo de pessoa que se casa com o próprio trabalho, não é? — a vampira tinha um sorriso de canto no rosto e balançava lentamente o copo da bebida para demonstrar descontração.

— Acho que sim — Adora deu de ombros e abriu um sorriso bobo antes de tomar mais um gole do drink — Não tenho outra coisa mais interessante que isso na minha vida.

— Sair? Conhecer pessoas? — Catra gesticulava e enumerava as opções com os dedos das mãos — Viajar pelo mundo também, talvez?

— Viajar pode ser uma opção se um dia eu ficar rica — riu brevemente induzindo a outra a fazer o mesmo — Agora a parte de conhecer pessoas já não é para mim. Não sou muito boa nisso, nem para amizade e nem para romance.

— Ah, não finge que nunca teve ninguém aos seus pés. Isso não é possível…

Catra usou do momento para ajustar-se na cadeira e apoiar ambos os cotovelos na pequena mesa, podendo inclinar o corpo para mais perto da loira. A ponta de seu joelho encostava de leve na perna dela enquanto seus olhos se fixavam nos azuis acinzentados dela. 

Era possível notar o quanto isso criou uma densidade no ar, como Adora prendeu a respiração involuntariamente quando seu corpo tensionou e os olhos abriram-se um pouco mais que o normal.

— Nem todo mundo aqui é extremamente atraente como você para despertar isso fácil em alguém, Catra — a humana imediatamente virou o olhar para o lado, pôs o copo na boca e tomou um bom gole da bebida, como se quisesse disfarçar depois do que acabara de falar.

— ‘Extremamente atraente’, é? — o sorriso da vampira ficara ainda mais largo enquanto movimentava seu joelho para pressionar ainda mais a perna de Adora e, assim, chamar a atenção dela de volta para si.

A linha tênue entre atuar em prol da missão ou da própria vontade já tinha sumido. O sorriso era genuíno, assim como a vontade de continuar provocando aquela mulher. Talvez fosse o efeito da bebida, já que nem vampiros são tão imunes assim à embriaguez. Especialmente quando não estão se alimentando direito.

— É. Extremamente atraente — foi quase um sussurro inconsciente, mas logo, Adora recuperou a sensatez e coçou a garganta para explicar-se melhor — quer dizer, não me leve a mal, foi só uma observação, não se sinta desconfortável ou achando que é uma cantada, por favor. É só que-

“Não, não, Adora. Você não vai escapar assim depois de ter dito isso”

—Ah, não é uma cantada? — dramatizou a expressão decepcionada e desviou os olhos dos da loira — eu adoraria que fosse.

— É… É sério isso? — mais uma golada para disfarçar o pânico.

— E por que não? Não sei de onde tirou que não é igualmente atraente, ou mais até. Acho que você só precisa se olhar melhor no espelho. Ou talvez… — levou uma das mãos para debaixo da mesa durante a fala para alcançar o joelho da humana e pousá-la lá — Alguém possa te fazer enxergar com mais clareza.

A vampira não fazia ideia se isso era um flerte de sucesso ou não, mas a causou um arrepio gostoso pelo corpo. Estava ali totalmente respaldada pelo que absorvera de filmes e livros modernos. O toque era sempre sinônimo de um próximo passo, e, nesse caso, esperava que Adora interpretasse assim também.

— Eu tô tentando muito me segurar para não fazer nada estúpido e arruinar nossa relação profissional agora — a fala da loira veio seguida de um longo suspiro de quem tentava controlar o descompaço da frequência cardíaca.

E Catra, com seus aguçados instintos vampíricos, podia ouvir o batimento acelerado, a pulsação de todas as veias que percorriam o corpo daquela mulher. 

Sua presa, em todos os sentidos. 

Quer dizer, não tanto no sentido de alimentação. Não poderia ter o sangue antes de entregá-la ao clã. Poderia, contudo, ter outras coisas.

— A gente pode esquecer dessa parte profissional por hoje, que tal? — a voz mais rouca e a mão subindo pela lateral da coxa da outra eram intencionais para tornar a proposta irrecusável.

A resposta veio em forma de um ato. Adora também ajeitou-se na cadeira para se aproximar de Catra, usou da nova posição para deslizar a mão no rosto dela até segurar seu queixo e puxá-la para um beijo sedento. Não demorou muito para ambas estarem quase no colo uma da outra, Catra enlaçando um dos braços pela cintura de Adora enquanto ela agora segurava firme o seu rosto com as duas mãos para aprofundar ainda mais o beijo.

A própria vampira parecia em transe agora, tendo cada sensação de desejo bem vívida em seu corpo. A respiração quente da mulher tocando seu rosto, o entrelace das línguas, as carícias com as pontas dos dedos. Mesmo a pulsação era ensurdecedora de tão alta devido à proximidade. Era louco admitir, mas suas pernas estavam até bambas. 

Queria mais disso. Queria mais dela. Quase como se só aquela humana pudesse saciar a sede crescente dentro de si. 

Seria isso efeito da luxúria misturada com a fome? 

Estava tão perdida no mar de sensações e pensamentos que só notou Adora cessando o beijo para puxar ar para os pulmões, falando ainda ofegante:

— O que acha de irmos para o meu quarto depois daqui?

Encarou a humana com um novo sorriso de canto no rosto. 

Era perceptível que ela tinha tirado coragem e confiança do além para fazer a pergunta, pois correspondia o olhar como quem esperasse um desastre como resposta. Será que Adora era tão insegura assim mesmo sendo um mulherão desse? É óbvio que Catra iria para o quarto com ela, até mesmo se não fosse para capturá-la. 

Ou melhor. Não deveria não se aprofundar muito nesse pensamento. No final de tudo teria que seguir o maldito plano e precisava evitar qualquer sentimento de apego.

— A gente pode ir agora, se quiser — respondeu entre mais um sorriso e virou um pouco o rosto para beijar a palma de uma das mãos da loira ainda pousadas em seu rosto.

— Agora? Você vai mesmo? — Adora, incrédula, piscou várias vezes.

Foi impossível não rir e achar toda essa expressividade tão… Fofa. Adora definitivamente não tinha noção de como naturalmente envolvia as pessoas em seu encanto. O mundo não merecia essa humana e sua capacidade de ser tão adorável. Fazia jus ao nome que tinha.

— Claro, Adora! Vem comigo.

A vampira deixou algumas notas de dinheiro em cima da mesa para cobrir a conta, levantou da mesa e puxou a curadora consigo para a saída. O tempo todo trocava olhares e sorrisos, Catra tão perplexa quanto Adora sobre o que estava prestes a acontecer entre as duas.

Notes:

Sei que não entreguei muito da história ainda, mas vem aí: competição pra ver quem se apega mais rápido e faz papel de trouxa.

Chapter 5: Sede

Notes:

Olar!

Esse capítulo é ~meio~ NSFW. Nada explícito, mas, sei lá, eu não leria no trabalho UHAUHA

Mas vamos de:

boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Se antes estava difícil para Catra segurar seus instintos vampíricos só com o beijo, não dava para mensurar como se sentia desde que se submeteu a ir embora com Adora até chegar no quarto dela. 

Constantemente sentia uns lapsos de vertigem e aceleração, como se seu coração fosse ainda capaz de bombear sangue pelo seu corpo. De fato, a fome que sentia fisiologicamente se juntava à fome sexual. Já devia ter previsto que isso aconteceria, pois a luxúria também é um forte gatilho para aflorar o vampirismo. O sexo dá sede de sangue, assim como todas as reações causadas pelos pensamentos preliminares. Provavelmente ficara calada durante todo o trajeto, mas, sabia que não poderia dar uma explicação plausível sobre o motivo real para Adora e se sentia grata pela mulher nem ter tentado saber também.

Assim que chegaram, a humana fechou a porta e apoiou suas costas nela para, dali, fitar a vampira de uma distância um pouco cruel. Já estava caminhando para a cama e tirando os sapatos esperando que logo fosse seguida pela acompanhante. Precisava começar logo o que foram até lá para fazer, temia que seu descontrole a levasse à loucura.

Mas, por que Adora ainda estava parada na maldita porta?

— Aconteceu alguma coisa? — a própria vampira resolveu se certificar ao perguntar com uma expressão levemente apreensiva.

A resposta demorava a vir, o que fez Catra questionar sua própria confiança sobre ser mesmo o suficiente para aquela mulher. Sentia que, talvez, Adora não a quisesse mais e em sua cabeça isso era doloroso. 

Não que devesse se importar, já que, primeiramente, ela não passava de uma mera vítima. Sua primeira, aliás. E, em segundo, todo o trabalho de hipnose que fez nela provavelmente estaria a estimulando ainda, mesmo que tenha resolvido diminuir relativamente a frequência  há alguns dias por se sentir satisfeita com o grau de atração que atingiu.

— Bom… É que… — a loira deu alguns passos para, finalmente, se aproximar e fazer com que a voz bem baixa que adotara no momento fosse ouvida — Tem certeza que quer isso? Percebi que você estava meio aérea durante a vinda para cá e… Olha, não precisa forçar nada só porq-

— Adora, eu quero tanto quanto você — Catra usou de uma rapidez sobre-humana para fechar a distância puxando-a pela gola da jaqueta jeans e usando de um tom de voz sussurrado para prender a atenção — Talvez até mais…

A vampira também aproveitou sua diferença de altura, levemente menor que a humana, para afastar a gola alta que cobria o pescoço de Adora com a ponta dos dedos. Assim, tinha espaço para encostar a boca ali e deixar os lábios roçarem de leve na região. Ela foi certeira na veia pulsante e sentiu os caninos afiarem instantaneamente. Controle. Precisava de controle. Contentou-se com os prolongados beijos que passara a traçar. Fechou os olhos para que Adora não percebesse como agora eles estavam completamente pretos.

— Catra...

A linguagem corporal da outra mulher começava a ficar mais explícita. A aceleração cardíaca voltara a aparecer como no primeiro beijo, a boca entreaberta começara a soltar suspiros de uma respiração pesada, e as mãos puxavam Catra pelo quadril para mais perto. Lentamente, uma das mãos subiam pelas costas até que as pontas dos dedos humanos encontrassem a nuca da vampira para acariciá-la por baixo dos fios de cabelo.

Depois da rápida meditação para acalmar os ânimos animalescos, Catra reabriu os olhos agora normais e movimentou-se para tirar a jaqueta de Adora ao mesmo tempo em que a tirou de perto da porta com um movimento firme. Voltou a beijá-la na boca, dando passos para frente, empurrando o corpo contra o da outra para fazê-la caminhar de costas para a cama. Ao chegar no destino, terminou de jogar todo o seu peso para que as duas caíssem no colchão aconchegante de lençóis já dominados pelo cheiro inebriante da humana.

Catra usou as mãos para prender ambos os braços de mais alta segurando-a pelos pulsos. Adora sorriu de canto e rapidamente prendeu o lábio inferior entre os dentes. Talvez não tenha sido proposital, mas no tempo em que fixaram os olhares, a vampira absorveu cada detalhe da cena com todos os seis aguçados sentidos. Como sua presa respirava descompassada antes mesmo de ser tocada, como aquele par de olhos quase não parecia azul de tanto que as pupilas dilataram, como, provocativa, Adora se aproveitava da posição para pressionar a coxa entre suas pernas movimentando-a de propósito.

— Tá ficando cada vez mais difícil resistir — foi mais um pensamento escapulido em um sussurro do que uma informação relevante de Catra.

— Então não resiste mais — Adora arrastava a voz entre sua respiração errada intencionalmente — Mostra para mim o que você quer...

“Seu sangue. Eu quero seu sangue. E depois o seu corpo. Você inteira.”  

Esse era um pensamento que não tinha permissão para ser voziverado. Ainda assim, gerou certas reações mesmo vindo só em mente. De novo seus dentes queriam se manifestar, de novo sua garganta seca ficava ávida por um pouco de sangue enquanto seu corpo ansiava também por outros tipos de fluidos. 

Desta vez, a sensação veio ainda mais forte e Catra sentiu uma leve sensação de que poderia desmaiar. Resolveu ignorá-la e focar na bela mulher deitada por baixo de si. Inclinou-se para beijá-la pela milésima vez. Não podia se conter. Era viciante. 

Durante o beijo, uma das mãos libertou o pulso de Adora para poder explorar outro lugar. Foi firmemente para uma das coxas fazendo a perna da loira que não estavam entre as suas subir até o joelho ficar próximo à sua cintura e, assim, abrir um novo espaço para que seus dedos deslizassem por trás e chegassem à bunda já por baixo do vestido. 

A vibração do gemido abafado de Adora contra seus lábios foi tão prazeroso que queria mais daquilo. Por isso, mordeu o lábio inferior da mulher e o puxou até que seus dentes escapassem dele. Ganhou um outro gemido, menos abafado pelos seus lábios dessa vez. Também libertou o outro pulso de Adora para deixá-la acariciar as laterais de seu corpo com uma certa afobação. 

A vampira decidiu que não queria ficar só nessa pegação. Queria ir logo para o ato. Saiu de cima da humana, a puxou pelas pernas para a beira da cama. Quando ficou em pé para começar a tirar o vestido da que estava deitada, mais uma vez veio a sensação de desmaio seguida de uma forte dor no estômago. 

Foi a pior de todas que sentira durante suas greves forçadas de fome. Inevitavelmente curvou o próprio corpo e deixou escapar um gemido de dor enquanto apertava os olhos. 

Será que estava a ponto de hibernar involuntariamente por sede?

Ouviu o movimento brusco de Adora para levantar da cama e ir até ela. Aos poucos os barulhos foram ficando longe e longe.

— Catra, você tá bem? — a voz preocupada parecia baixa, quase como se ela estivesse em outro cômodo.

Porém, estava ali bem perto. Sentia mãos firmas em seus ombros a sacudindo de leve enquanto seu corpo ficava mais pesado a ponto de suas pernas não conseguirem mais sustentá-lo. Sentiu a gravidade puxá-la para baixo e os olhos fecharem sem que tivesse autonomia sob eles. O que a impediu de sentir o impacto contra o chão foi a firmeza como as mãos de Adora a seguraram para evitar a queda e seus braços a carregaram até a cama. 

Seu corpo literalmente dava sinais de que estava desligando, preparando-se para, de fato, hibernar. Não se mexia e estava de olhos fechados. Só via escuridão e só ouvia o silêncio. Contudo, seu cérebro estava a mil e Catra gritava em negação dentro da própria mente. 

Provavelmente ficou uns segundos fora do ar, talvez alguns longos minutos. O que importa é que aos poucos conseguiu retomar alguns movimentos simples, incluindo os das pálpebras.

Piscou três ou quatro vezes até ajustar a visão e fitar o teto do quarto de hotel. O teto que rapidamente foi substituído pelo rosto de Adora a encarando de cima para baixo.

— Catra! Que bom que acordou! — a loira quase gritava em sua fala aliviada — Eu já estava ligando para a emergência aqui

A humana estava sentada por cima das pernas ao seu lado no colchão com o telefone do hotel na mão e o aplicativo de tradução aberto no celular com uma frase incompleta traduzida do inglês para o romeno. 

Claro. Ela não falava romeno. Sempre se comunicavam na língua nativa de Adora. A coitada devia estar em desespero tentando ajudar pensando ser uma emergência quando na verdade havia desmaiado por um motivo que ninguém daquele lugar poderia contar. Adora não fazia ideia de que estava em um covil de vampiros naquele hotel, e era melhor assim. Se um deles descobre que Catra hibernou no meio da missão e plantou qualquer tipo de desconfiança sobre ser sobrenatural para a presa antes de capturá-la, seria seu fim no clã.

— Não precisa chamar ninguém, eu tô bem — Catra tentava manter a voz mais firme e aparentar estar melhor do que realmente se sentia — Foi só uma indisposição

— Mas o que você sentiu?

— Uma pontada no estômago, mas eu já sei o que é — segurou uma das mãos da jovem e a apertou carinhosamente — Não é nada demais, fica tranquila.

— Tem certeza? — Adora usou a mão livre para acoplar o rosto de Catra e acariciar delicadamente com o polegar enquanto a fitava aflita — Fiquei tão preocupada contigo…

— Sério? — forçava uma risada descontraída 

— Claro! — a voz da mulher era tão cuidadosa quanto a carícia que saía de sua bochecha e agora ia para a testa — Faltava só um pouco para eu desistir de ligar e pessoalmente te carregar nos braços até um hospital.

Catra soltou outra risada.

Essa foi a confissão mais linda que já fizeram em toda a sua vida, tanto como humana quanto como vampira. Catra não se lembra de ter tido alguém tão preocupada com ela assim, tirando sua amiga e confidente Scorpia. Não que não valorizasse o quanto sua amiga se importa, mas, ter isso vindo de alguém com quem você se relaciona romanticamente é esplêndido. 

Não que se relacionasse tão romanticamente assim também com Adora. 

Foi só dessa vez. 

Uma vez, aliás, que nem foi, já que seu corpo inútil resolveu quase desligar.

— Desculpa por ter te deixado preocupada — a vampira substituiu o riso por uma expressão mais séria e uma voz mais serena — Desculpa por ter estragado completamente o clima também…

Mais um pequeno fracasso para a sua gigantesca coleção. 

Não foi para a cama com Adora e muito menos se sente disposta para prosseguir com a captura. E a indisposição não é só por sua sede, mas também, em pequena parte, pela falta de vontade de prejudicar quem havia sido tão boa com ela até agora. 

— Não se preocupe com isso, não — Adora inclinou-se para beijar sua testa e depois manter o rosto bem próximo ao seu — Tudo o que eu quero agora é que melhore, tá?

— Obrigada, — a voz quase não saiu pois estava concentrada demais em corresponder àquele olhar intenso — de verdade…

— Tô aqui para o que precisar… — ela sussurrou também distraída demais.

Não tinha como evitar. Via uma imensidão de coisas extraordinárias nos olhos de Adora. 

E não só nos olhos, em cada traço daquele rosto tinha um aspecto inesperadamente cativante, Catra tinha que admitir. Uma mulher deslumbrante, de atitudes igualmente memoráveis. No momento, só tinha uma coisa que sentia necessidade de pedir e foi maior do que sua vontade de ser racional e suprimir:

— E se eu precisar de um beijo? 

Por quê? Por que deixou escapulir isso? Desde quando resolveu se alienar totalmente do fato de que Adora era, acima de tudo, sua vítima?

— Às suas ordens — a resposta veio tão rápida quanto o pedido inconsequente.

Adora sorriu de um jeito tão radiante. Ela segurou seu rosto com as duas mãos como se fosse o bem mais precioso que existia em vida e colou os lábios nos seus. Se antes se arrependera de fazer esse pedido, Catra revogara o remorso. 

Dane-se. Pedir o beijo foi a melhor coisa que fizera para seu bem-estar naquela noite. Algo que o clã não precisa saber.

Infelizmente não podia passar a noite toda só abraçada com ela na cama, pois sua fome era latente agora. Por isso, esperaria Adora cair no sono para sair do quarto despercebida em busca de algum alimento. Qualquer alimento, a esse ponto. 

Olhou para a jovem deitada uma última vez antes de sair e uma onda de culpa quase a afogou. Porém, não iria sucumbir a tamanha fraqueza. Sabia que sua falta de compromisso com a missão iria lhe trazer mais dias de abstinência de sangue, sabia que precisaria ser firme numa próxima armadilha. Tinha que enraizar em sua mente que o clã não teria Adora naquela noite, mas a teria eventualmente. E quando isso acontecer, não caberá a si o que será feito com ela. Afinal, a prometida fartura e a estadia na sociedade de vampiros era tudo o que precisava para garantir a vida eterna de mordomias. 

Finalmente virou-se para sair daquele quarto de hotel antes que se arrependesse. 

Por saber que estava muito fraca pela falta de comida, resolveu fazer como o mero mortal e sair pela porta mesmo. Conforme passava pelas pessoas (e criaturas) nos corredores, elevadores e calçadas, mais difícil ficava de segurar a vontade de voar em algum pescoço. Qualquer um. Podia ouvir em alto e bom som a pulsação das veias de todos a sua volta, o que aguçava ainda mais sua insaciável sede. 

O que faria agora? Era mais conveniente tentar chegar no clã ou simplesmente sucumbir ao primeiro animal que visse em algumas dessas praças no meio do caminho? 

A segunda opção toma tempo e energia demais para o pouco que a alimenta. Além disso, já estava começando a perder controle da própria transformação. Provavelmente andava na rua com os olhos completamente negros e os caninos afiados saindo pelo canto de sua boca. Mantinha a cabeça baixa para não chamar atenção, mas queria correr e gritar de frustração, como o verdadeiro trem descarrilhado que era naquele momento.

“Aguenta, Catra. Faz mais esse último esforço.” 

Catra logo transformou-se em uma fumaça acinzentada e deixou a boa brisa acelerar seu caminho até a direção de casa. Os ventos naquela região propositalmente levavam para o castelo subterrâneo do clã, era uma espécie de caminho invisível só para vampiros. E não era uma ventania, nem nada. Era um sopro discreto demais para qualquer humano notar.

Agora em casa, correu pelos largos corredores para a direção dos dormitórios. Mirou não no seu, mas no da única alma não-tão-viva que poderia ajudá-la naquele momento. 

A essa altura estava tão frustrada e amedrontada que não sabia de onde tirava forças para segurar o choro. Talvez seja um mecanismo de seu corpo para não desperdiçar o pouco que ainda tinha armazenado no organismo para que formasse as tradicionais lágrimas de sangue dos vampiros. 

Bateu na porta, mas já não estava conseguindo ter consciência dos movimentos. Ouviu alguém abri-la e só sentiu seu corpo cair exausto para frente. 

Alguém a segurou só sentiu isso. 

Depois, nada mais.

Notes:

gente, sei que me fingi de morta nessa semana e não postei. Porém, acabou que eu tava emocionalmente não tão viva assim mesmo. Zero cabeça para qualquer um dos meus hobbies.

Enfim, voltamos p jogo e isso que importa. Pretendo postar um cap por semana, mas em horários aleatórios meio bostas porque: -5 horas de diferença do horário de Brasília (só me comunico com amigos e família depois das 11 da noite, a própria vampira). O que posso tentar fazer é ter um dia fixo da semana. Por acaso existe algum da preferência de vocês?

Até o prox <3

Chapter 6: Intenção

Notes:

Olá, pessoas. E cá estamos com mais um capítulo :)

Decidi que domingos serão meus dias de postagem porque é quando dá para conciliar um horário de publicação bom mim e para quem lê.

Agora vamos ao que interessa: POV de Catra (serasse se essa morta tá viva?)

Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Catra ficou no limbo. Não sabia por quanto tempo exatamente, apenas não tinha a capacidade de raciocinar ou fazer qualquer movimento com seu corpo. Já a audição ainda funcionava, pouco e mal, contudo. 

Só percebeu o que acontecera quando começara a recuperar um pouco da consciência. Um som mais nítido aqui e ali de alguém movendo-se agitadamente ao seu redor, o cheiro dominante de sangue e a sensação de um líquido percorrendo por um fino tubo que ia do nariz à garganta adentro. Por fim, suas forças começaram a voltar gradativamente, os olhos coloridos se reabriram e pôde visualizar, de fato, em que cena de sua vida se situava.

Scorpia era a pessoa caminhando de um lado para o outro no quarto enquanto Catra estava deitada na cama da amiga com uma sonda nasogástrica com sangue para que se alimentasse. Essa era a única opção de nutrição para vampiros, já que a transfusão não é uma alternativa. O sangue não tem mais serventia indo direto para as veias, ele deve passar pelo sistema digestivo para que o cérebro entenda que é uma tentativa de saciar a sede. De outra forma, Catra acordaria recarregada, porém, ainda faminta. Talvez até descontrolada atrás do primeiro pescoço humano que encontrasse pela frente. Ela e Scorpia resolveram estudar todas as técnicas corretas para aplicação e retirada de sonda nasogástrica quando perceberam que os apagões de Catra seriam recorrentes devido ao estado decadente do clã e a implicância dos respectivos líderes. O processo não seria tão rápido se fosse em algum humano, principalmente porque Catra mal ficava um dia inteiro com o catéter. Só que não era mais humana há 50 anos. Infelizmente.

— Até que enfim — Scorpia exclamou em alívio ao notar o despertar da amiga — ficou 22 horas inconsciente desta vez.

— Nem foi tão longo assim comparado com os outros apagões, então — a recém acordada tentou brincar, mas na sua voz era notória a dor de tentar falar com a sonda alimentar ainda na garganta.

— Qual foi o motivo agora? Não conseguiu caçar nada nesse período em que Shadow Weaver resolveu te punir pela milésima vez?

— Não. Eu cheguei a me alimentar, mas foi bem pouco — gradativamente a consistência de sua voz voltava, conforme se posicionava para facilitar o trabalho de retirada que Scorpia estava prestes a fazer — o motivo foi porque o encontro para capturar Adora acabou ficando bem… Físico , digamos assim. E acho que o desejo acabou piorando minha situação.

Quando a mais alta, de fato, começou o processo, só ela era capaz de falar. Catra estava ocupada demais tentando não botar para fora o que mal tinha no estômago enquanto sentia o cateter sair do corpo. 

— Espera… Tem muitas palavras nessa frase que nem consigo associar com a sua figura — Scorpia cuidadosamente continuava a retirada e mantinha a casualidade da conversa — “encontro”, “físico”, “desejo”.... Sem contar a parte de que tudo é relacionado a uma humana. Ela é basicamente a primeira que você socializou por mais de duas horas desde que se transformou e as coisas já ficaram “físicas”? O que ela tem de tão especial? Ou será que foi cegueira de fome?

Agora a de cabelos longos estava livre do incômodo apetrecho, já em processo de autocura veloz, e pôde responder depois de coçar a garganta para buscar de volta a voz:

— Não foi só fome, não sei dizer. Ela é bem bonita, bem o meu tipo. Talvez o fato de ela parecer facilmente impressionável tenha me causado um certo prazer por ser notada, desejada...  Mas ao mesmo tempo, é algo nela, não em mim. Eu literalmente desmaiei minutos depois de chegarmos no quarto e ela cuidou de mim como se o meu bem-estar fosse a coisa mais importante da vida dela.

— Na situação atual, sendo você a única pessoa que ela conhece aqui e, nada mais, nada menos, que a cliente que tem tudo para mudar o rumo profissional dela… Bem, definitivamente ela faria de tudo para que você não morresse ali naquele quarto.

— Não quis dizer por esses motivos, Scorpia — Catra pausa e visivelmente tem o olhar perdido em alguma reflexão em busca de explicações mais óbvias — Digo… Tinha um certo carinho, num nível que eu nunca vi antes vindo de ninguém para mim, sabe?

— Hum… — a amiga também sentou na cama, de uma forma mais desleixada, e moveu as mechas de cabelo antes centralizadas na testa — Não gosto de ouvir isso, até porque seu objetivo é o oposto de se apegar. Essa humana é a sua mais nova esperança de se entender com o clã, Catra. Talvez possa ser a última…

— Tenho que confessar que, sim, a ideia de entregá-la para o clã é a que eu menos gosto. Eu odeio, na verdade. Tenho me questionado se quero mesmo fazer isso com ela, estragar a vida que demorou tanto para construir. Sem contar que existem tantas pessoas horríveis no mundo que talvez eu tivesse até vontade de fazer sofrer, mas Adora não é nem a última dessa lista… Só quero que ela viva em paz e feliz.

— Nem começa com o discurso moral. Olha para mim — Scorpia segurava a amiga gentilmente pelos ombros e a encarava séria — Isso de viver de caçar, ter inúmeros desmaios e quase hibernar vai te levar de mal a pior. Você precisa ter foco, lembrar que mais do que qualquer humana, você importa. Sabe muito bem que têm vampiros involuntariamente hibernados aqui que os líderes começaram a queimar com a luz do Sol por estarem tanto tempo desacordados que não têm mais vínculo com ninguém do clã e só ocupam espaço no prédio. Então se você hibernar, pode não ter volta nem se estiver disposta a esperar por mil anos, pequena. Shadow Weaver iria amar fazer isso e eu nunca conseguiria, sozinha, lutar pela sua vida. Então me ajuda.

Como Catra iria argumentar contra a mais pura verdade? Não tinha respostas, não tinha soluções. Apenas encostou  a cabeça no ombro de sua única confidente e soltou um suspiro de total aflição. Estava, sim, agindo pelo seu próprio bem. Porém, até que ponto isso não iria afetá-la para sempre? Seria a mesma depois de entregar Adora para a própria morte? Quantas mais teria que conhecer e induzir a isso depois dessa primeira missão? 

O que deveria fazer era conflitante com o que realmente queria fazer.

— Eu, disse, Scorpia — a morena murmurou sem se mover da posição de conforto — Disse que não era a melhor vampira para fazer essa maldita missão. Eu tenho certeza que depois dessa vão vir outras e eu vou criar uma coleção enorme de culpas pelas quais nunca vou conseguir me perdoar.

— Vai ver essa humana está te manipulando de propósito — a mais velha iniciava um abraço que envolvia a outra pelos ombros e a trazia para seu peito — há muitos anos atrás, talvez até antes de você nascer, eu fui numa dessas missões de captura e conheci uma humana que foi muito difícil de abrir mão. Quando eu estava prestes a desistir de entregá-la sem nem saber qual seria a consequência, descobri que ela sabia que eu era vampira e estava tentando negociar minha venda para algum circo macabro de estrada. 

— É claro. Essas coisas só acontecem com você mesmo — Catra dava risada da cena perfeita que conseguiu criar de Scorpia num show de horrores.

— Na verdade, isso que chamam de circo de horrores era muito comum na época. E bastava ser diferente de qualquer normalidade conservadora para considerarem aberração. Eu virei a isca perfeita quando ela descobriu que eu nunca saía de manhã e não tinha reflexo no espelho. E também tinha altura e musculatura incomum para o padrão de beleza daquele período. Ah, e lésbica, ainda por cima. Enfim, depois eu a entreguei sem dó porque fui manipulada o tempo todo e quase coloquei em jogo tudo o que eu tinha aqui por causa dela. Enfim, o meu ponto é que, talvez, essa Adora esteja te fazendo pensar que ela é bobinha quando na verdade tá especulando algo.

— E o que poderia ser? — ainda ria, mesmo que de forma breve — Adora vai me aliciar para algum circo?

— Já ouviu falar de tráfico sexual ou tráfico de órgãos? — Scorpia estava séria.

— Eu sei me defender, Scorpia! — voltara a gargalhar — E mesmo se Adora tivesse essa intenção, o que tenho absoluta certeza de que não, eu acabaria com ela em dois tempos. 

— Será mesmo? Há minutos atrás não parecia que você teria essa coragem toda — a de cabelos acinzentados arqueou a sobrancelha para provocar a outra vampira.

— Também não sou assim tão trouxa, por favor — levantou-se do aconchego no colo de Scorpia e a cutucou com o ombro descontraidamente.

— Você é bem trouxa, sim — uma provocação brincalhona seguida de uma risada — E meu medo não é você ser traficada, é fácil de escapar sendo uma vampira. O problema é a decepção que isso vai te causar.

— É sério que você acabou de falar que sou trouxa? — franziu as sobrancelhas e levantou o rosto para encarar a amiga.

— E foi só nessa parte que prestou atenção, não é? — a vampira mais alta segurou o queixo da outra para beijar sua testa delicadamente — mas é… Você é trouxa, sim.

— Cala boca, sua vampira velha — jogou o peso do corpo por cima da outra para caírem deitadas e deu leves tapas no colo do peito enquanto ria — tem até cabelo grisalho, olha só!

— Você sabe muito bem que é pintado, para de graça — Scorpia também ria e tentava se defender do falso ataque cobrindo o rosto com os braços.

Essa mágica de mudar seu humor em velocidade recorde era exclusividade de Scorpia. Catra nunca seria capaz de agradecer o suficiente por tudo que a amiga já fez por ela, por todos os momentos que compartilharam juntas, seja de caos ou de alegria. 

Ainda não tinha resolvido por qual linha tênue iria caminhar para decidir o destino de Adora. Contudo, depois de pouco mais de um dia desacordada, o que precisava era não atolar a mente com questões complexas e só seguir o combinado.

— E se realmente não quiser perder a oportunidade, ninguém liga para o que você fez ou deixou de fazer com ela se a trouxer em perfeito estado para cá. Vai fundo, só não se apega — Scorpia voltara ao assunto depois de um curto silêncio confortável que havia se formado entre as duas.

— Primeiro que essa fala é totalmente não Scorpia — Catra a analisava com um olhar desconfiado — e segundo que esta atitude é totalmente não eu.

— Pelo que entendi, só não transaram porque você desmaiou, — deu de ombros cheia de si — sugeri apenas o que estava prestes a fazer.

— Quer saber? Vou para o meu quarto  — fingindo ofensa com o comentário sarcástico da amiga, Catra preparou-se para sair — Suas verdades estão cruéis demais para mim hoje.

Scorpia sabia desse código corporal, sabia que a outra vampira não se sentia ofendida e apenas aproveitou a oportunidade para não mais ocupar o precioso tempo dela.

— Disponha — a mais velha abriu um sorriso de ponta a ponta que expressava o quanto amava essa interação entre elas.

Mais uma vez, salva pela dedicação de Scorpia para mantê-la viva. Uma dedicação descomunal, inclusive. Catra não gostava nem de pensar o que seria dela sem a companhia da vampira mais velha.

Seu corpo ainda estava fraco, cansado. Consequência do que acabou se submetendo durante aquela noite com Adora. Sentia que ainda precisava descansar mais e usaria pelo menos mais um dia inteiro para fazê-lo. Era preciso equilibrar melhor o corpo e a mente antes de reencontrar a humana, especialmente agora que teria que convencê-la a ficar por mais um tempo já que falhou na captura. A persuasão toma bastante energia social e emocional. Necessitava de um descanso antes de tentar de novo.

Claro, esse tal dia que resolveu tirar de folga seria muito mais prazeroso se não tivesse que se deparar com Shadow Weaver invadindo o único lugar que Catra pensava que estaria segura e sozinha.

— Catra — a voz de Shadow Weaver ecoou de um canto escuro do quarto da jovem — Cadê a humana?

Depois de perguntar, a criatura dissipada em fumaça acinzentada foi tomando a forma humanóide e caminhou até a pomposa cama de casal de lençóis vinhos no centro do cômodo.

Precisou segurar, mais uma vez, todas as inseguranças e ansiedades causadas por tal visita inesperada. Ainda deitada imóvel na cama, Catra apenas abriu os olhos e os direcionou para a outra presente. Não queria encará-la como um gesto de desafio, era mais para confirmar para si mesma que de fato tinha alguém ali e não era mais um truque de quando sua mente exausta resolve reviver momentos traumatizantes.

Quanto tempo conseguiu descansar em paz desde que saiu do quarto da Scorpia? Umas seis horas, talvez?

— Ela… — prolongou a última sílaba para ganhar tempo para uma desculpa convincente — não é tão fácil assim quanto você pensa. Ainda não estive em um lugar seguro o suficiente para capturá-la sem ser notada. Ela só quer encontrar comigo em lugares públicos.

Mentiu tão descaradamente que precisou fechar os olhos novamente e fingir cansaço para não dar pistas.

A resposta da vampira mais velha demorou alguns segundos para vir à tona. Parecia que ela parara um tempo para analisar a linguagem corporal de Catra para captar algo de errado.

Se encontrou, não falou.

— Como pode perceber pela minha presença neste seu ninho de rato , a captura dessa humana é muito importante para o clã — ela transbordava soberba e desdém na voz e no caminhar em torno do quarto — Vamos fazer alguns testes com ela e precisamos que ande logo com isso. 

— Que tipo de teste? — a curiosidade fez Catra reabrir os olhos e sentar-se na cama.

— O que te faz pensar que é da sua conta? — Shadow Weaver grosseiramente retrucou — O que precisa fazer é trazê-la para cá. Simples.

Enquanto assistia a outra caminhar inquieta pelo cômodo, a mais jovem depositava toda as forças em não pensar em nada muito comprometedor que pudesse ser mentalmente lido pela temível líder. Só queria que ela fosse embora logo. Nem se deu o trabalho de respondê-la.

— Aliás — novamente a voz de desdém e o nariz em pé — Em breve vou ter uma reunião com o Conselho sobre te dar um prazo para capturar essa humana, porque contar com a sua capacidade de ser ágil, pelo visto, vai me causar prejuízo. Já se foi uma semana e até agora nada.

— Eu preciso de mais uma semana — Catra afobadamente explanou — É só mais uma e eu consigo trazê-la para vocês.

Era melhor ela sugerir um prazo do que contar com a boa vontade da líder, afinal. Até porque tinha quase certeza que a megera iria sugerir o menor possível e o Conselho, por teme-la, iria acatar.

— Certo. Uma semana e nem um segundo a mais — a sombria parou de andar e correspondeu o olhar de Catra pela primeira vez desde que invadiu o quarto — essa é a única boa ação que pretendo fazer por você. Não desperdice.

Dito isso, a vampira se transformou em fumaça novamente e esvaiu-se do cômodo. 

A jovem soltou um suspiro aliviado quando foi deixada sozinha no ambiente. Não queria nem mais ficar na cama. A visita a deixou inquieta demais para que conseguisse voltar a relaxar.

Esfregou as mãos no rosto algumas vezes na tentativa de dissipar a ansiedade. Depois, deixou que o ar entrasse e saísse de seus pulmões em longas respirações, tais quais nem eram vitais para seu corpo vampiresco. Era mais um exercício de controle emocional do que qualquer outra coisa. Decidiu preparar um banho de banheira bem quente para acalmar os ânimos e, enquanto esperava o volume da água chegar no ponto que queria, pegou o telefone para olhar as notificações em primeira tela.

Esperava não ter muita coisa além das marcações da Scorpia em memes de vampiro. Contudo, foi surpreendida como uma sequência de chamadas perdidas e alguns textos mandados por um número não salvo.

As primeiras foram enviadas mais cedo. Um monte de “E aí? Tá tudo bem?”, ou “Tá se sentindo melhor?”. Entendeu que só poderia ser uma pessoa. E só para confirmar sua teoria, resolveu abrir a mensagem de voz deixada:

“Oi, Catra. Sei que é a milésima vez que tento te ligar. Não quero parecer chata nem nada, mas, eu tô preocupada contigo. Queria saber se está se sentindo melhor hoje. E também dizer que se precisar de qualquer coisa, pode me falar que eu passo na sua casa. Você tinha comentado que sua família não mora mais por aqui e que não tem tantos amigos por perto também. Sei como é essa sensação… E não quero que pense que está sozinha, porque enquanto eu estiver por aqui você pode contar comigo, tá? Tchau… Espero de verdade que esteja bem.”

Durante toda a mensagem, a voz de Adora expressava o mesmo carinho e cuidado de quando Catra estava na cama do quarto de hotel ao lado dela. O mesmo carinho e cuidado que não conseguia entender o porquê de mexer tanto com seus próprios sentimentos.

Não queria admitir, mas, depois da conversa com Scorpia, começou a refletir sobre a gentileza de Adora. Era muito intensa para ser verdadeira, não é? Existe alguém no mundo que seja realmente esse sonho todo? Quais eram as intenções dela? E quais seriam as suas a partir de agora? 

Notes:

Achei meio ousado a Scorpia duvidar da pureza da Adora... Parece até ciúmes u_u

Chapter 7: Lenda

Notes:

Sandy & Junior corre aqui... Olha o nome desse capítulo uahuhaha

Pois bem, povo, atrasei uma semana mas cá estamos com mais um capítulo (e um pedido de desculpa da autora) <3

Boa leitura!

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Catra sabe que precisa agir rapidamente. Inventou esse dia de folga no meio de uma missão cujo tempo estava se esgotando e agora tinha que dar um jeito de resolver esse problema. Era o sexto e penúltimo dia de Adora na Transilvânia. A curadora insistiu para que se encontrassem essa noite só para ver com os próprios olhos se Catra tinha melhorado.

E claro, para falar de trabalho. 

A vampira quase esqueceu da farsa de herdeira. 

Se não fosse pela humana lembrando que também precisavam decidir como ficaria a negociação das peças, a ideia mais óbvia do universo para ganhar mais tempo não teria nem surgido em sua cabeça. Faria uma proposta para que Adora ficasse mais uma semana por lá com a desculpa de que nem todos os familiares, também donos dos artefatos, estão completamente decididos a vendê-los para uma exposição fixa.

Assim que ouviu a campainha tocar naquele início de noite, Catra ajeitou sua postura ao caminhar e repassou rapidamente o discurso que usaria para convencer a outra mulher a ficar. Desta vez não seria um jantar, mas uma conversa rápida na biblioteca, como havia prometido por telefone.

A vampira estava tão focada que não pensou em antever a reação de reencontrar Adora depois de ter saído praticamente fugida de seu quarto de hotel. Nem a sua, nem a dela. 

Ficaram alguns segundos se encarando, uma tentando decifrar a outra. A expressão de Adora era ligeiramente atônita, mas, podia notar o quanto ela evitava demonstrar qualquer intimidade que oferecera naquela noite em que saíram enquanto Catra não agisse primeiro. 

Então a vampira decidiu expor um sorriso de canto e despretensiosamente cruzar os braços antes de cumprimentar com um “Boa noite, Adora” num tom propositalmente baixo. 

— Oi, Catra— Adora cumprimentou, olhando a anfitriã de cima a baixo com um sorriso pequeno no rosto — Você parece bem melhor. Que alívio saber que você tá bem.

A forma como os olhos azuis da humana emanavam sinceridade, como complementavam a evidente expressão de alegria genuína daquela humana ao vê-la. Esses detalhes fizeram Catra perder a pose completamente. Nem sabia mais como voltar a ser a herdeira sedutora, se perdeu no próprio papel.

Depois de notar a maneira como Adora coçava a nuca pela incerteza de seu silêncio, pigarreou discretamente e soltou as palavras numa voz menos rouca e arrastada:

— É. Sim, sim. Foi o que eu te disse quando te liguei, não precisa se preocupar. Nem foi nada demais, só… Só estava sem me alimentar direito naquele dia 

— Foi o que eu imaginei — a mais alta deu um passo para se aproximar mais, pegou sua mão e delicadamente passou o polegar por cima como uma breve forma de carícia — Imagino que sua vida é corrida, principalmente de manhã, mas, tenta arranjar sempre uns minutinhos para ter certeza de que não está deixando de se cuidar. Lembra disso, tá?

— Sim, tem razão — alternava o olhar entre as mãos unidas e o rosto da humana até perceber que precisava voltar para a realidade e tomar uma distância segura — Enfim. Agora precisamos focar na negociação, certo?

— Claro, claro — a humana soltou de sua mão finalmente e alternou o peso de uma perna para outra na tentativa de dissipar o nervosismo  — desculpa por isso, não quis ser invasiva nem nada. É que não quero que fique mal de novo. Mas, sim, vamos focar nas peças então. Até porque temos pouco tempo.

Até pensou em retrucar, deixar claro para Adora que não achou a iniciativa ruim e que apenas não esperava que toda a preocupação fosse verdadeira. Porém, toda essa socialização a faria perder tempo e concentração. Já estava sob muita pressão, não precisava se distrair com mais nada.

Por isso, apenas decidiu concordar com a cabeça e ir para dentro da casa, induzindo a outra mulher ao mesmo. 

Depois de pequenas conversas relacionadas ao Museu e de como planejavam preservar a integridade dos artefatos, Catra introduziu o assunto sobre Adora ficar mais uma semana. Contou com riquezas de detalhes sobre um dos supostos primos que ainda não tinha concordado com a venda por ter um certo apego a tudo que vem da região da Transilvânia, mas, que teria a estratégia perfeita para convencê-lo e não deixar a curadora sair de lá de mãos vazias.

— Como eu disse, ele é um pouco difícil de lidar — a vampira cruza as pernas casualmente enquanto se senta numa poltrona de frente para a humana e gesticula — é só por isso que preciso de uma semana inteira. Claro, sua hospedagem e passagem continuam garantidas por mim. Desculpe ter que te fazer ficar uma outra semana. Mas, juro que consigo um sim dele e todo mundo sai feliz nessa história.

“Não exatamente todo mundo sai feliz. Mas, digamos que você sai morta e eu bem sucedida no clã. E eu vou ter que fazer disso um final feliz pelo menos para mim.”  

Nos segundos em que esperava a resposta de Adora, seu pensamento foi certeiro na réplica à mentira que acabara de contar. 

Não só começava a sentir a leve pontada de culpa como também temia pela reação da mulher. Será que ela aceitaria ficar mais uma semana? Será que não desconfiaria de algo? Deveria ter proposto menos dias...

— Mais uma semana? Claro! — tinha euforia na fala da loira.

— É mesmo? — Catra piscava estonteada pela resposta — Pensei que fosse precisar de um tempo para decidir

— Eu não me importo de ficar mais um pouco, não — a voz da humana era tão gentil quanto o sorriso estampado no rosto — Tenho que falar com o pessoal do museu, claro, mas, como tem a ver com garantir a compra das peças, eles não devem se importar com mais uma semaninha também

Uma parte da vampira queria que Adora lutasse mais contra ficar, principalmente depois de ver aquele sorriso tão ingênuo no rosto dela. 

Naquele momento, decidiu que para tentar se sentir pelo menos justa com Adora, deixaria de usar a hipnose de vez. Já tinha laço o suficiente ali para elaborar um outro plano, algo que não necessariamente brincaria com os sentimentos da pobre mulher assim.  

Por outro lado, a parte racional de Catra vibrava, já que Adora demonstrando vontade de ficar e contatando o museu só reforçaria ainda mais a história que teria que inventar depois sobre a mulher ter ficado por vontade própria e permanentemente.

— Ótimo — Catra também sorriu enquanto discretamente batucava a ponta dos dedos no braço da poltrona para disfarçar a mistura de sentimentos.

Desde que chegaram na biblioteca até a hora da despedida naquela noite, Catra ficou atenta à linguagem corporal de Adora. 

No início, mesmo com o gesto físico de afeto, ela demonstrava uma certa dúvida sobre qual grau de distância deveria manter. E a forma como Catra acabou reagindo a isso, evasivamente, fez com que a humana optasse por abdicar de qualquer intimidade. 

Ela não mais tentou encostar em Catra ou projetar qualquer outra coisa a não ser seu lado profissional. Porém, esforçava-se muito mais do que na primeira noite de jantar. Podia sentir. A vampira tinha certeza que Adora temia ser mal interpretada. 

Dessa vez, iria jogar da maneira da humana. Era melhor. Sentia-se no controle, mais do que quando tinha que bancar a herdeira sedutora. E também seria mais fácil para que não se apegasse a quem já tem os dias contados. 

Mesmo que tenha tomado a decisão de não ir pelo lado passional, ainda tinha que arrumar um plano de captura. Um que tenha uma rota rápida e despercebida para o clã. O hotel em que a humana estava hospedada era o lugar mais fácil. Por ser propriedade de um dos líderes, tudo que se passava ali dentro era despistado. Além disso, tinha o caminho subterrâneo com acesso pelo elevador para transportar as inúmeras vítimas do clã com facilidade e rapidez. 

De toda a cidade, o único outro lugar que funcionaria por também ter passagens muito convenientes por subsolo era o Castelo de Bran. A tal famosa construção que agora é museu e ponto turístico mais famoso de toda a Romênia. Muitos holofotes nesse local? Catra sabia exatamente como fazê-lo perfeito para o seu plano. Uma visita noturna e exclusiva para Adora com a guia mais inteirada da história vampírica do reinado de Drácula que ela poderia ter.

Não demorou para marcar a tour, vulgo ‘a nova tentativa de captura’, dessa vez. Chamou Adora logo no dia seguinte, com a proposta irrecusável de levá-la a cômodos que nem eram abertos ao público. Tudo porque, em seu mundo fictício de dondoca podre de rica, sua família tinha direitos sobre a propriedade e podia circular sem nem precisar marcar hora. 

Junto com o motorista, Catra foi buscar Adora no hotel. De noite, obviamente. Não só por sua condição fisiológica como também porque queria ter certeza de que não haveria ninguém por lá. Já havia mais de uma hora que o museu estava fechado e, naquela noite, pediu para que a equipe de segurança fosse dispensada da parte interna, ficando somente nos portões.

Durante todo o trajeto, não saiu muito da conversa superficial sobre o que ela e Adora fizeram paralelamente durante o dia. Estava tentando manter a concentração, o foco. E isso significava continuar agindo de uma forma que Adora não desconfiasse e, ao mesmo tempo, não se deixar distrair por qualquer fato relacionado à humana. 

Só quando finamente estavam a sós no hall do castelo, sem um sinal de vida em volta, que a vampira reparou no blusa de gola alta vermelha que a outra vestia. Internamente agradeceu pela escolha dela, já que não teria que se preocupar em evitar que seus olhos ficassem o tempo todo mirando no pescoço de veias tão pulsantes toda vez que chegava perto. Por outro lado, a forma como a blusa era apertada e moldava as curvas de Adora não ajudava Catra na causa. Isso acentuava a sede que mal ficou um dia inteiro sem sentir, isso a distraía. 

Uma das piores coisas de ser vampira era justamente a relação direta entre a fome e o desejo sexual, principalmente nesse caso em que Catra sentia os dois. Às vezes, na mesma intensidade.

Não. Não tinha tempo para pensamentos relapsos assim. Iniciou a tour com os cômodos principais e sua versão sobre a construção do lugar, sobre as famílias que ali moravam, além de outras histórias omitidas nas visitas convencionais. Era sempre a primeira a entrar nas salas, algumas novas para Adora, e depois começava a narrar alguns fatos. A humana gravava tudo em áudio com a finalidade de usar o material para a futura exposição depois da negociação das peças. 

Estrategicamente Catra deixara o subsolo por último, pois era em algum canto dali que conseguiria achar a passagem para o clã com um certo alguém desmaiado em seus braços. 

Tinha tudo para dar certo dessa vez, tinha tudo para acontecer. Catra era o problema, de novo. Quanto mais próxima chegava dos cômodos finais, mais receosa ficava. Até que chegaram no subsolo e foi mostrada a parte do Castelo jamais vista por outro visitante comum no mundo.

— E essa é a parte mais importante para você, eu acho — Catra abriu uma larga porta de madeira com ambas as mãos e deu acesso a uma enorme sala de estar.

Nesta sala era possível ver um corredor que levava a outras inúmeras portas.

— É praticamente um outro castelo debaixo do castelo — Adora caminhava e olhava para todos os detalhes possíveis das paredes, móveis e chão incrédula — o que era aqui? É tipo um refúgio subterrâneo em caso de guerra e essas coisas?

— O objetivo original deve ter sido esse mesmo, provavelmente. Não sou muito boa com guerras medievais, não — caminhava até ficar intencionalmente atrás da humana, em seu ponto cego, enquanto esta distraía-se com o que havia em sua volta — o que sei é que era aqui era a verdadeira moradia de Vlad III, ou como era conhecido, Vlad Tepes, que significa ‘Vlad, o empalador’ em romeno.

A humana ainda observava cada canto totalmente concentrada. Não percebera a proximidade de Catra. 

Enquanto isso, lá estava, imaginando as mil e uma formas que poderia simplesmente atacá-la por trás e fazê-la desmaiar. Só estava esperando mesmo a coragem vir e tirar a paralisia instantânea de seu corpo.

— Por que ele preferia ficar aqui embaixo? — a pergunta saiu quase como um pensamento alto da loira.

— Aqui é o lugar mais próximo da sala de empalamento, onde eram mortos os condenados — Catra também diminuiu o tom, não por opção, mas pela ansiedade que começava a dominá-la — e também onde não entra um raio de sol sequer em nenhum momento do dia.

— Será que ele era-

Sem perceber, Adora virou de forma tão abrupta que ficou de frente para Catra a poucos centímetros de distância. A própria humana cortou a respiração e deu um passo assustado para trás. De fato, ela não esperava encontrar Catra ali, tão perto.

A reação fez com que a vampira também disfarçasse o breve pânico e criasse o dobro de distância comparada à humana. No mesmo instante arrependeu-se do movimento, já que esta era a hora perfeita para finalmente apagar Adora. Coçou a garganta e voltou ao assunto de conforto:

— Um vampiro? Bom, ninguém sabe o porquê ele gostava de empalar as vítimas dentre todas as opções de condenação de morte na época medieval. É uma das maneiras mais sangrentas de se fazer isso. O que era feito com o sangue ou porquê ele queria estar tão envolvido assim com as mortes ninguém sabe...

— Reparou também que não tem nenhum espelho ou artefatos da Igreja Ortodoxa por aqui? — Adora também fingiu normalidade para alívio de Catra — Muito incomum para uma família que historicamente sempre foi tão religiosa e narcisista. 

A Adora curadora soava tão intelectual que acentuava ainda mais sua beleza ao ver da vampira. Como se antes já não a achasse demasiadamente deslumbrante e não só pela aparência física. A mulher cruzava os braços, franzia a testa de leve e pressionava um lábio sob o outro para se concentrar. Por algum motivo, a fome de Catra deu o ar da graça mais uma vez naquela noite.

“Assim fica mais difícil do que já é… Para de prestar atenção nos detalhes e foca no sequestro, Catra.” O sermão veio do seu lado racional, claro.

O emocional estava ocupado demais tomando conta de suas ações. Seus membros estavam bambos demais para iniciar qualquer ataque brutal que fosse. E sabia que, se não fosse certeira, Adora tinha força de sobra para se defender. 

— Exatamente — a réplica saiu um pouco desanimada por não conseguir disfarçar a decepção consigo mesma.

— Então você também acha que Vlad III era mesmo um vampiro? — os olhos azuis pareciam brilhar de tanta expectativa — eu sempre quis saber a perspectiva de alguém daqui sobre isso.

— Humanos sempre tentam transformar em lenda o que eles não têm capacidade de compreender ou, pelo menos, explicar com base em alguma ciência. O vampirismo não se explica, então é mais fácil acreditar que não existe, não é? — a morena casualmente sacudiu os ombros ao terminar o argumento.

Na verdade, não era disso que deveria estar falando. Não deveria estar nem falando mais. 

Por que não conseguia imobilizar Adora pelo pescoço e interromper o ar até que ela desmaiasse? Por que não a golpeava na cabeça? Ou amarrava as mãos e vendava os olhos? Todas as opções eram facilmente executáveis devido aos poderes que tinha. 

E como se quisesse facilitar, Adora novamente deu as costas para continuar observando o ambiente. Mais vulnerabilidade ainda.

Era agora, então.

Deixou-se dominar pelos instintos mais ferais e preparou-se em posição de ataque. Seus olhos ficaram completamente pretos, assim como as veias que agora apareciam nas laterais do rosto. 

Quando estava prestes a agir, Adora, ainda de costas, aspirou o ar e moveu uma das mãos para os olhos como se tivesse limpando lágrimas.

— Que vergonha, não acredito que tô tão emocionada assim... — a voz e a risada breve que veio logo em seguida eram quase que tímidas — Acho que acabei de perceber que estou realizando um dos maiores e mais improváveis sonhos da minha vida, graças a você

Catra recuou completamente e engoliu a seco a irracionalidade que estava prestes a consumi-la. Sua mente e aparência voltaram ao normal. E a tempo, pois a humana virou para encará-la com um sorriso de ponta a ponta.

— Como assim? — perguntou ainda atônita com a rápida mudança de estado — Que sonho?

— Esse é o mais perto que cheguei de uma história de vampiro de verdade, Catra, com direito a tour exclusiva dentro do Castelo de Bran e tudo mais — a euforia fazia com que os agudos da voz dela ficassem até mais acentuados — eu tenho uma visão que nenhum outro curador jamais teve sobre as peças que vamos expor no museu. Sério, não tenho nem palavras para expressar o quanto isso é especial… Não vejo a hora de voltar para Boston e mostrar tudo isso!

Que tortura sem fim! Essa humana tinha que parar de ser sentimental e alegrinha desse jeito. Não ajudava em nada. Por um momento sentiu raiva dela, raiva por naturalmente acabar com seu instinto assassino já meio debilitado só com palavras, só vomitando arco-íris.

— E é melhor ainda porque foi você quem esteve aqui comigo — a mais alta encurtou a distância pela metade e segurou as mãos de Catra firmemente em um ato repentino de confiança — eu sei que, de alguma forma, tem relação com a negociação e o quanto vai acabar cobrando nas peças. Espero que ninguém do museu um dia saiba que falei isso, mas, nenhum dinheiro que eles te oferecerem vale a minha sorte de ter a sua companhia.

Por alguma razão inexplicável, o coração inutilizado de Catra parecia bater dentro do peito. Era uma sensação que vampiros chamam aceleração cardíaca fantasma, algo que ela raramente experienciava. Lembra de ter tido algumas em casos de muito pavor. Mas, agora, sentia o extremo oposto pela primeira vez. E sede. Ainda sentia sede.

— Imagina. Eu não fiz nada demais — ainda em choque, Catra tentava esboçar um sorriso pequeno enquanto forçava uma voz neutra.

— Para mim foi algo demais, sim — Adora soltou as mãos da vampira e voltou a andar pelos arredores — principalmente quando não se tem lá muitas outras experiências boas ao longo da vida para comparar. Tenho uma amiga que diz que sou emocionada demais para tudo. E não é bem isso. A verdade é que eu só comecei a ter acesso a certas emoções depois de adulta, e eu quero mais é aproveitar mesmo.

Assim como Catra mal podia esperar para explorar sua recém descoberta identidade enquanto humana. Se existe um sentimento que ela entende bem, é este que Adora mencionou. O de ter um mundo inteiro de sensações para experimentar.

— Ei, vem comigo — anunciava em meio a um sorriso genuíno da nostalgia que era lembrar de sua vida passada — tem mais outros cômodos que você vai gostar de conhecer

Talvez ainda não seja a hora de cumprir sua missão, só para que a humana ainda tenha mais alguns dias aproveitando a felicidade da pequena conquista. Iria completar a tour e depois levá-la para o hotel. Chega de lutar contra sua vontade por hoje. 

Era também mais um tempo para si mesma. Um tempo para aceitar o papel de precursora da morte de quem mal começou a viver. O mesmo papel de Shadow Weaver em sua história.

Notes:

Tem alguém mais procrastinadora que a vampira Catra nesse mundo? Não sei, não sei.

Até a próxima <3

Chapter 8: Desejo

Notes:

Ressurgindo dos escombros da queda da vida, aqui estou eu para terminar o que comecei! Tenho um negócio com coisas não terminadas e essa fic tá há séculos martelando na minha cabeça, implorando para ser escrita e publicada. Então decidi arrumar um tempo para voltar aos poucos. Não tenho um cronograma de postagem dessa vez, só uma grande vontade de terminar mesmo. E é sempre bom estar de volta, obrigada demais a todos os recadinhos/mensagens/comentários porque eles me motivaram demais a voltar!

Boa leitura e até o próximo cap <3

Chapter Text

Adora tinha acabado de se arrumar e estava sentada na cama de seu quarto de hotel esperando uma mensagem de Catra avisando que já estava lá embaixo para buscá-la junto de seu motorista. Não era um encontro, algo que precisava deixar bem claro em sua mente, era apenas mais um jantar de negócios. Sim. Um jantar de negócios em um restaurante com um dos ambientes mais românticos da cidade, em frente a um parque de jardins tomados por árvores floridas e pequenas lâmpadas amarelas penduradas iluminando a passagem de pedestre até a beira de um lago. 

Não sabia ao certo a intenção de Catra em escolher justamente esse lugar. Ao mesmo tempo que queria conter a euforia, também não via a hora de propor uma caminhada pelo jardim com ela.  Adora quase não lutava mais contra suas verdadeiras intenções. Aceitou que, sim, tinha o lado profissional, e também tinha o lado totalmente passional no qual queria investir tanto quanto. Talvez nesse parque pós jantar conseguiria se aproximar mais, segurar sua mão e-

O celular vibrou e, na tela inicial, surgiu a mensagem:

“Pronta? Estou aqui embaixo.”

Alinhou as roupas e pegou o sobretudo para se preparar para a noite fria daquele lugar. Deu uma última respirada longa antes de fechar a porta e descer. Para si já não escondia mais o que queria. Contudo, tentava não deixar tão evidente assim para a perspectiva da herdeira. Acima de tudo, precisava respeitar o espaço dela, o mesmo que ultimamente ela não tem deixado tão aberto assim. Um sinal. Um aviso de que Adora não insistisse em nada além, talvez.

Catra estava agia de maneira estranha às vezes. Uma hora parecia que gostava de sua companhia, em outras, parecia que a queria bem longe fisicamente. 

O dia da tour no Castelo de Bran foi justamente quando Adora captou esses movimentos confusos. Haviam momentos em que sentia o olhar dela queimando sua nuca, uma sensação tão certa de que estava sendo constantemente observada. E ainda assim, toda vez que aceitava essa proximidade e correspondia, via a outra simplesmente recuar. Queria muito entendê-la, queria ter intimidade a ponto de puxá-la para conversar como as duas adultas que eram, dizer a verdade sobre o que queria e contar com a reciprocidade.

Quem sabe uma outra hora dessa semana prolongada… 

Desde que entrou no carro e chegou ao restaurante até ir para uma das mesas mais reservadas do local, notou que o que a herdeira queria, pelo menos naquele momento, era só tratar de negócios mesmo. Nas primeiras horas principalmente. Quase não trocaram olhares, quase não falaram sobre seus respectivos dias. Inclusive, havia momentos em que Catra olhava mais para os lados do que para ela.

Adora estava na dúvida se isso era um sentimento de perseguição ou se só estava tentando evitar sua presença mesmo. 

Não deixou a dúvida corroer muito seus pensamentos, contudo. 

Uma hora o assunto ia acabar. Uma hora as taças de vinho que iam sendo servidas cada vez mais mudariam o rumo da conversa. Foi o que aconteceu naquela noite em que quase teve Catra. Só precisava de mais uma chance como aquela. Já podia sentir o efeito do álcool, a coragem repentina que construía dentro de si. E também a dificuldade em focar em qualquer outra coisa que não na fértil imaginação.

Ela não vinha tão vívida e intensa como nos primeiros encontros, tinha notado. Ainda assim estava lá, mudando o cenário do restaurante para o hotel, tirando as duas da mesa e as colocando deitadas uma por cima da outra.

— Ei, Adora — a de olhos coloridos a chamou enquanto balançava uma de mãos na frente de seu rosto — tá tudo bem? Você parece fora de órbita. 

O exercício de parar de sonhar acordada foi meio cruel e constrangedor. Estava apertando fortemente suas pernas umas nas outras ao cruzá-las e começando a prender o lábio inferior entre os dentes não tão discretamente. Parou no meio do ato, enquanto seus olhos ainda vagavam na direção da grande janela de frente para o tal parque.

Resolveu encarar a mulher à sua frente e viu um pequeno sorriso no rosto dela. Algo a dizia que sua indiscrição foi notada. E sabia que uma pessoa normal deixaria isso passar. Porém, Catra não parecia ser desse tipo. Ela não era meramente normal e os instintos de Adora gritavam isso. Gritavam de uma maneira que a fazia querer ainda mais ao invés de fugir. 

Desde quando era assim, tão fantasiosa? Talvez seja o excesso de vinho. Ou talvez não.

— Desculpa — coçou a garganta para espantar a rouquidão repentina na voz — tá tudo bem, sim. Acho que me distraí um pouco com a paisagem

Catra olhou para a mesma direção e depois para seu rosto. Tinha algo em sua fisionomia. Estava pensativa, quase que hesitante, enquanto por fora tentava agir normalmente.

— Quer ir lá? — a herdeira colocou a mão dela sob a sua na mesa e com a outra gesticulou para que o garçom fechasse a conta — A gente pode tomar um ar antes de ir, só não podemos demorar muito porque precisamos ir logo para a minha casa.

Difícil achar uma parte sequer dessa frase que não tenha soado tão sugestiva.

— Nós vamos para a sua casa? — tomou o último gole da bebida como se quisesse disfarçar o constrangimento pela falta de atenção.

— Eu falei que iríamos lá para casa para você começar a avaliar e medir as peças para encomendar a caixa de transporte antifurto, lembra? — deixou um sorriso pequeno escapar ao notar sua expressão confusa — Não lembra… Você já estava distraída demais, não é?

— Verdade, lembrei, — balançou a cabeça positivamente e adotou uma postura confiante  — mas a ideia de passar no parque antes é ótima!

É óbvio que não tinha um vestígio de memória sobre esse diálogo das peças. Só que precisava se portar como alguém que estava ali ainda para representar o museu. E estava fazendo um péssimo trabalho ultimamente. Não podia se culpar por completo. Afinal, qual ser em sã consciência não iria acabar caindo nos encantos daquela mulher?

Enquanto caminhavam entre os arbustos e árvores bem cheios, Adora sincronizava os passos com os de Catra para que ficassem lado a lado. 

Eventualmente o silêncio confortável era contemplado com leves trocas de olhares e sorrisos curtos. As mãos da mais baixa, porém, não saíam dos bolsos do casaco, o que deixava claro para Adora que ela queria manter uma distância. E mais uma vez, notou os olhos dela sempre vigilantes em volta do parque. De novo sinais confusos. Aqueles sorrisos e depois mãos dentro do bolso e desvio de olhares? O que ela queria? Em algum momento imitou a outra mulher, já que não deixaria suas mãos congelarem se não fosse para encostar nas dela.

Ao chegarem na beira do lago, a morena virou-se de frente para ela e casualmente tirou uns fios do cabelo solto que teimavam em voar para o seu rosto devido ao vento gelado. Ela própria parecia não ter notado o que acabara de fazer por ter sido tão instintivo.

Adora também virou de frente para ela e absorveu cada detalhe daquele rosto. Ela parecia apreensiva, entreabria os lábios como se quisesse falar, eventualmente balançava o corpo para trás e para frente em um movimento inquieto. Parecia que queria sair dali.

Já que nenhuma palavra veio, Adora, então, tentou tomar a frente:

— Catra-

— Adora-

A voz de uma se sobrepõe a da outra sem querer. Parece que a coragem de iniciar um diálogo veio ao mesmo tempo, o que fez as duas soltarem uma risada baixa.

— Fala você primeiro — Catra foi rápida ao sugerir

— Eu… — a mais alta abraçou o próprio corpo depois que um vento um pouco mais forte passou por ali — sei que o principal motivo por estar aqui é pela negociação, e que logo vou embora, mas… Antes disso, eu… Acho que, talvez, e se você quiser, claro, pudéssemos ter mais uma noite na qual deixamos o lado profissional de lado e… Entende?

Enquanto a loira agia completamente insegura, desviando o olhar para o chão e gaguejando feito uma adolescente, Catra parecia confiante repentinamente. Parece que o que quer que estivesse observando antes foi completamente ignorado e o foco era só Adora. 

Ela segurou seu rosto com as duas mãos geladas para fixar os olhares, o que a arrepiou por inteiro. Não sabia se mais pelas mãos geladas ou pela intensidade misteriosa daqueles olhos coloridos que procuravam por algo em sua fisionomia. Não sabia exatamente o quê.

— Como? Você não está mais sob efeito da- 

A morena arregalou os olhos antes de cortar a própria frase e corrigir-se:

— Quer dizer… Será que não é o efeito da bebida? O que eu quero dizer é que talvez você nem queira realmente tentar de novo e tudo seja só uma influência do… Acaso.

— Por que não? — franziu a testa em uma expressão confusa — Do que está falando?

— É que… — Catra soltou seu rosto e olhou para baixo, como se quisesse se esconder — Aquela noite foi um desastre, quase que te matei de preocupação… Para que você arriscaria passar por isso de novo?

— Não é óbvio? — Adora a fez olhar para cima novamente, segurando aquele rosto encantador e puxando a dona dele para mais perto — Porque talvez eu queira terminar o que começamos lá naquele quarto.

Que ironia do destino. Na primeira noite, Adora era a insegura da situação. Inclusive, até alguns minutos atrás, ainda era um pouco dominada pela incerteza. Depois de ouvir Catra, porém, algo a dizia que deveria insistir para encorajar a outra. E isso era seu combustível instantâneo de autoconfiança.

Ao mesmo tempo estava relativamente satisfeita em ver uma certa vulnerabilidade na superfície. Só porque isso significava que Catra sentia alguma coisa a respeito do que falara a ponto de deixá-la balançada. Era como se tivesse finalmente quebrado um pouco da barreira que as separavam, como se começasse a ter acesso às entrelinhas da outra mulher. E isso era emocionante, por mais que soubesse que não teria muito mais além de sexo casual com ela porque uma hora teria que partir.

Aliás, teria mesmo o sexo casual? Porque nenhuma delas deu o sinal de nada ainda. 

Catra não tinha respondido e Adora não fechou a pouca distância entre os rostos ainda. Ela queria, queria muito. Porém, algo naquela expressão ainda apreensiva que mal a encarava de volta a impedia.

— Eu não quero fazer isso contigo, Adora — a voz magoada e acuada da outra era de partir o coração.

E estranhamente não parecia que estavam falando sobre o mesmo tópico. O que mais poderia ser além de um pedido por uma noite juntas, afinal? Aparentando ser o mesmo assunto ou não, ela estava dizendo não e Adora tinha que respeitá-la.

Soltou o rosto dela e deu um passo para trás um pouco decepcionada.

— Tudo bem. A escolha tem que ser sua também, claro. Jamais deixaria de respeitar sua decisão.

De volta para a realidade. É óbvio que não iria conseguir o que queria. Nunca conseguia. 

Essa era a sua vida. Tinha que agradecer por pelo menos no âmbito profissional as coisas darem certo. Talvez essa seja a sua sina. Sorte no trabalho, azar em todo o resto. 

Estava morrendo de constrangimento.

— Não é sobre isso que eu tô falando, é que-

Depois de se auto interromper, Catra simplesmente balançou a cabeça em negação em um ato de dizer a si mesma “para da falar”, e se aproximou de Adora.

— Esquece, deixa para lá — ela enlaçou os braços em seu pescoço e deixou a boca a milímetros de distância da sua.

— Tem certeza de que é isso que quer?

— A única certeza que tenho nessa situação toda é que eu te quero, Adora — agora ela fechou a distância por completo.

Catra deu início ao beijo e pôs um fim nas complexidades que giravam em seus pensamentos. 

Conforme davam continuidade, lenta e delicadamente, sentia que seu coração pulsava tão mais rápido. Era uma reação insana, de como se todos os seus sentidos parassem para que o foco tivesse somente nos lábios da outra mulher, somente na maneira como eventualmente entrelaçavam as línguas ou moviam levemente o rosto para encontrar novas maneiras de aprofundar o beijo.

Adora não era tão experiente nesse quesito de relacionamento romântico, mas, já teve, sim, uns bons encontros para pôr na conta. E mesmo assim, jamais experimentou tamanha intensidade num só beijo. 

Aliás, tamanha intensidade em uma só pessoa. Catra era intrigante do início ao fim, desde a primeira vez que a viu. Temia que isso fosse mexer com suas emoções mais do que devia. Temia porque sabia que nada ali era duradouro, e seu prazo já estava quase chegando ao fim.

E por mais que sua consciência estivesse funcionando bem, suas respostas físicas a mergulhavam ainda mais no que sabia que era errado. Puxava a mais baixa pela cintura para colar cada vez mais os corpos, puxava o lábio inferior dela com os dentes a cada pequena pausa do beijo em busca de ar, subia as mãos pelas laterais do corpo dela pressionando ambos os polegares quanto mais perto chegava das costelas. Fazia porque cada reação que recebia era deliciosa, porque a maneira como Catra tremia em suas mãos e soltava pequenos murmúrios abafados por sua boca era simplesmente irresistível. 

Quando a necessidade por ar já não estava mais sendo suprida por pequenas pausas, as duas se afastaram somente o suficiente para que se encarassem. 

Na verdade, Adora foi quem abriu os olhos devagar, ansiosa para olhar para aquele rosto que a encantou tão misteriosamente. 

Catra continuava com os olhos fechados, parecia não querer abri-los. Até que depois de uma respiração quase meditativa ela finalmente o fez, e bem lentamente.

— Sabe… Você me faz perder o controle do meu próprio corpo de um jeito que não posso explicar — a herdeira comentou bem baixo, ainda entre um dos longos suspiros e ainda com o olhar fixado em sua boca — o que me faz pensar que deveríamos ir para um outro lugar agora.

— Meu quarto ou sua casa? — sem pensar, Adora retrucou enquanto passeava a ponta dos dedos pelo rosto da mais baixa até chegar em uns fios de cabelo para ajustá-los atrás da orelha. 

Somente quando Catra a encarou com as sobrancelhas arqueadas e um sorriso de canto que notou como sua fala foi extremamente direta, mesmo que sua intenção tenha sido parecer mais como um convite discreto.

Tentou corrigir-se na hora que percebeu:

— Quer dizer, de um je-

— Não tenta explicar senão piora — Catra dava risada de sua expressão mortificada — e eu até gosto desse seu lado mais ousado… Vamos para a minha casa dessa vez, lembra?

Seguiu o conselho da outra e decidiu não tentar se explicar mesmo. Não é como se tivesse, de fato, uma explicação além do que foi dito. Mentiria se dissesse que suas intenções também não continham um pouco de malícia. Era só muito assustador para si admitir isso em voz alta, era de um ato de muita coragem. E nunca fora tão corajosa assim antes.

Encarou Catra mais uma vez e ali teve a certeza de que iria dar uma chance ao próprio desejo naquela noite. Abriu um sorriso pequeno e deu um pequeno beijo no canto da boca da morena antes de pegar na mão dela e induzi-la a caminhar.

— Então para quê perder tempo? — entrelaçou os dedos com os dela e começou a caminhar a passos largos — Vamos!

— Vamos, apressadinha.

 Catra lançou um olhar de canto seguido de uma risada baixa e quase falhada. Os olhos coloridos ficavam pequenos quando seu sorriso alargava, as sardas eram mais evidentes quando seu rosto ficava levemente avermelhado. Tudo sobre ela era tão adorável.

Detalhes. Cada um desses pequenos detalhes não intencionais sobre Catra a deixavam excitada, e não só no sentido sexual. E esse era o perigo.

Chapter 9: Controle

Notes:

heya~

POV de Catra vivendo o oposto do título. Preparem-se porque daqui para frente, só para trás. (Muito bom voltar pro meu bom e velho angst!)

Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

A vida de Catra estava em completo declínio. Perdeu o controle de tudo. 

Reportar sua falha no dia da visita ao Castelo de Bran foi muito difícil. O Conselho quase não a liberou sem uma punição, por algum milagre divino Scorpia conseguiu convencer um dos grandes para que fosse contra a decisão quase unânime de tirar a missão de suas mãos e fossem atrás de Adora por meios mais violentos. Sua amiga realmente era seu único fio de vida dentro daquele clã. Não tinha mais a confiança do Conselho. 

Ao mesmo tempo, não tinha mais a capacidade nem de pensar em capturar Adora de verdade. Tudo o que queria era que essa humana sobrevivesse e fosse feliz, que toda a expressividade que transborda de seu olhar, de seu sorriso, de seu beijo, continuasse por muitos e muitos anos na Terra.

Como consequência de sua inaptidão, todos a observavam agora. Em cada esquina um vampiro a paisana estava com os olhares sob ela e Adora, com ordens de interferirem em seus atos se acharem que o plano corre risco de ser corrompido. Essa foi a condição imposta por todos, Weaver principalmente. E a incapacidade humana de pressentir uma criatura da noite no ambiente tornava Adora completamente absorta ao que acontecia. Nunca sequer desconfiou que muitos olhos a perseguiam naquele local, todos altamente perigosos.

Até mesmo naquela caminhada no parque. Até mesmo quando Catra sucumbiu ao desejo incontrolável de beijá-la. Ela ouvia, em cada canto, os sussurros das outras criaturas confusas com o que estava acontecendo. Foi por isso que anunciou que precisavam sair dali, tentando ao máximo balancear uma descontração forçada com o pânico de um ataque caso achassem que ela estava saindo demais dos planos.

Catra nadava contra a pior das correntezas e sabia que iria se afogar no final. Mas isso não importa mais. Salvar Adora era sua prioridade.

Felizmente conseguiu ir até o carro com a humana, a mesma que o tempo todo fechava a distância entre elas se aninhando em seus braços, apoiando a cabeça em seu ombro e fazendo seu coração morto praticamente pulsar novamente. Ao mesmo tempo que queria só focar nas sensações que cada ação de quem estava ao seu lado a causava, sua mente não parava de gritar o quanto precisava agir para defendê-la.

Porque proteger a Adora era muito mais importante do que tê-la em sua cama agora. Porque fazer com que ela consiga sair dessa cidade o mais rápido possível, até mesmo antes do prazo de uma semana extra, era crucial. Porque tinha certeza de que mais um dia de tantos olheiros em volta dela não iria resultar em algo muito bom. Shadow Weaver iria dar o poder para eles tomarem a frente a qualquer momento, e Catra sozinha não teria como defendê-la. Especialmente na situação atual em que quase todo o clã desconfiava de sua capacidade para concluir a missão.

Um choque de realidade veio à tona quando o motorista estava prestes a estacionar na mansão. O motorista que também era um vampiro com a nova função de capanga da Weaver. Depois de milésimos de segundos de um pânico que a impedia de ouvir ou ver o mundo ao seu redor, ela simplesmente ordenou:

— Na verdade, não preciso mais de você por hoje — ela encostou a mão no ombro do motorista — deixe o carro aqui e pode ir embora.

— Como assim? Não era esse o combinado — ele a olhou pelo retrovisor.

— Isso não cabe a você, — apertou o ombro dele e cerrou os olhos discretamente — até onde eu sei, é apenas o motorista.

— Não faz senti-

— Qual é o seu problema? Você não tem que discutir comigo — usou um tom mais rude e percebeu como o outro vampiro quase entregou o disfarce ao desafiá-la — eu quero dirigir o meu carro sozinha e você não tem que questionar. Vai embora logo.

— Claro, — ele praticamente rosnou e saiu do carro batendo a porta bruscamente — e me desculpe pela inconveniência, senhorita .

Catra bufou e abriu a porta bruscamente. Antes de sair, falou para Adora a seguir ao invés de ficar sozinha no carro. Tinha certeza de que aquele vampiro não iria sair das redondezas e poderia até  mesmo tentar resolver tudo com as próprias mãos. 

Assim como todos os outros, ele não tinha mais nenhum respeito por ela. Tudo graças à sua fama de incopetente que o Conselho fez questão de lapidar. A mesma fama que estava prestes a refinar ainda mais com o seu novo ato de secretamente salvar essa humana.

Humana, aliás, que caminhava agora do seu lado a encarando confusa. O olhar praticamente a chamou para que virasse seu rosto e tentasse ao menos se explicar:

—  As perguntas que você tem agora eu provavelmente não posso responder. Só preciso que confie em mim.

— Como assim? — Adora gesticulava enquanto tentava acompanhar os passos quase corridos pela casa atrás de Catra — Como que a gente foi daquele beijo para essa situação aqui? Por que está agindo assim a noite toda? De ir e voltar com suas atitudes? Isso tudo é porque na verdade não tem certeza se quer ficar comigo? Olha, tá tudo bem, já disse que não precisa se forçar a-

— Adora, eu já disse — parou de revirar alguns papéis e caixas fixamente para olhar a humana por uns instantes — confia em mim. E não faz perguntas.

— Confiar por quê? Para quê? O qu- Você tá ouvindo o que você tá me pedindo?

A vampira respirou fundo e resolveu não responder. 

Toda a adrenalina e pânico da situação estava começando a tomar conta. Precisava achar os contratos e enfiar as peças em alguma mala ou caixa para levar para o hotel. Adora tinha que ir embora no voo mais próximo para Boston. E tudo tinha que ser discreto, sigiloso. Catra não fazia ideia de como iria conseguir isso. O plano ia surgindo em sua mente conforme agia. Era quase como um passo a passo, e o primeiro ato era fazer com que a documentação e as peças estivessem prontas para ir, assim como as malas de Adora e, claro, a própria. Sua mente estava a mil e seus movimentos para pegar tudo o que precisava dentro da casa, também.

Adora a seguia falando várias coisas que ela não prestava atenção, o que visivelmente estava deixando a sem paciência. Eventualmente ouvia uma palavra ou outra, algo como “o que está fazendo?”, “por que está pegando essas coisas?” ou “eu quero confiar em você, mas preciso saber pelo menos o que está acontecendo”. Todas ignoradas com sucesso.

Até Adora decidir ir para a direção da porta e anunciar que estava indo embora.

— Adora, não! — a vampira simplesmente correu para impedi-la, segurando firme um de seus pulsos — Eu peguei quase tudo. Espera só mais um minuto.

— Não vou esperar nada! — Ela se desvencilhou de seu toque  imediatamente — Eu não sei que porcaria de ideia que você teve, mas eu não quero fazer parte disso.

— Você não tem opção

— É óbvio que eu tenho!  — o tom de voz da mulher aumentava, deixando bem clara a sua crescente impaciência — Se tem uma coisa que eu prezo é pela a minha liberdade de escolha, e eu não vou deixar você simplesmente manipular meus sentimentos como se pudesse ter algum tipo de autoridade sobre mim!

— Adora, é necessário-

— E eu nem te conheço direito! Tá tudo absurdamente confuso e você não tá nem aí! Só se põe no meu lugar e pensa que loucura que é tudo isso que você tá fazendo!

— É realmente uma loucura! E eu também não te conheço direito! — também perdeu a paciência e amassou os papéis que segurava sem perceber ao bater as mãos nas laterais do corpo indignada — Talvez seja a maior insanidade de toda a minha vida! E mesmo assim eu não tô reclamando o tempo todo!

Adora a olhava como se Catra, de repente, tivesse criado cinco cabeças ao redor dos ombros. Ela estava horrorizada com o insulto, confusa com os atos, magoada com a frieza, e principalmente decepcionada com o rumo que a noite tomou.

— Eu vou embora agora — a humana apontava o dedo indicador de forma ameaçadora — E você não vai me impedir! 

Era um caminho sem volta. Depois dessa reação a vampira sabia que não existia nenhuma outra maneira de convencer Adora a continuar ali. Ao mesmo tempo, tinha ido longe demais para que simplesmente a deixasse caminhar para fora daquela mansão para, potencialmente esbarrar nos outros vampiros, sobretudo o motorista que agora estava desconfiado.

Contar sobre seu vampirismo não era uma opção. Isso tornaria Adora um alvo permanente, até mesmo depois que voltasse para Boston. Uma testemunha que o clã faria questão de caçar até a morte, não importa em qual lugar do mundo estivesse.

“Droga! Eu não tenho outra escolha. Não queria ter que hipnotizá-la de novo…”

— Não, você vai fazer do meu jeito — seus olhos já escureciam com a transformação enquanto se aproximava e virava o rosto da mulher segurando pelo queixo — espero que me perdoe, se por acaso um dia sequer lembrar do que tivemos.

— O que es-

Adora perdeu a expressão e a capacidade de falar antes mesmo de elaborar toda a frase. Conforme Catra a encarava, percebia as pupilas da humana dilatarem indicando o início do transe. Ela já estava sob seu controle, agora podia agir como quisesse.

Ainda que seu ato pesasse na consciência, a vampira tentava não ser dominada por esse sentimento agora. Terminou de reunir todos os documentos e objetos para, então, ir ao hotel. Ao ver Adora seguindo seus passos como um inconsciente zumbi, lembrou-se que a porta da frente não mais era uma opção. O motorista ainda estava por ali, sentia sua presença. 

Não podia mais voltar para o hotel de carro. Pelo menos não naquele carro.

Segurou Adora em meio às mil e uma coisas que também carregava só para que descessem uma escadaria na lateral externa da casa de mãos dadas. Não que Adora precisasse ser puxada, iria seguir Catra de qualquer forma. Era mais por uma ação extra de cuidado, ou uma necessidade de tocá-la enquanto ainda podia.

A vampira entrou em um dos outros dois carros estacionados nos fundos da casa, prendeu o cinto de segurança da humana ao seu lado e foi para o hotel. O mesmo hotel rodeado de vampiros de cima a baixo, por dentro e por fora. E ainda assim, não pensou duas vezes quando entrou sozinha no quarto da humana, fez as malas às pressas e desceu pelas escadas de emergência. Era óbvio que haviam notado sua presença, senão os funcionários, pelo menos alguns daqueles outros vampiros espalhados pelas ruas seguindo os seus passos e os de Adora desde a decisão do Conselho. A humana ficou no carro, estacionado um pouco mais distante do hotel para sair da zona de observação. Não que isso tenha acalmado os nervos de Catra. A cada minuto que estava dentro daquele quarto jogando todas as roupas de Adora de qualquer jeito dentro de uma mala média e outra pequena, não parava de pensar nas mil e uma possibilidades de capturarem-na na sua ausência.

Por sorte ou destino, voltou para o carro e sua humana estava lá. A parte boa era que estava do jeitinho que a deixou. A parte ruim é que só estava assim porque ela não tinha escolha. De novo a culpa e a dualidade de usar da hipnose.

Sem tempo para lamentações e movida à adrenalina, foi em alta velocidade para a direção do aeroporto. Duas longas horas até o terminal de embarque, outros 50 minutos até que o único voo que achara para aquela noite saísse. Não tinha certeza se voltaria a tempo de fugir do amanhecer ou sequer teria para onde voltar, especificamente. Os nervos estavam à flor da pele e ouvir a respiração monótona e roboticamente estável da humana ao seu lado só piorava tudo. 

Quantas coisas pensou em falar para Adora, quantos momentos fantasiou com ela em tão pouco tempo. Nada disso iria acontecer. Não haveria despedidas, e nem mesmo as memórias do que viveram.

Na imensidão do terminal de embarque, ninguém notaria a condição de Adora e esse tom impessoal foi bastante conveniente para que Catra elaborasse a próxima e última parte da hipnose.

 

Diferente das outras vezes, nessa precisava proferir em voz alta, como uma ordem diretamente citada para que o cérebro humano a enraizasse bem no subconsciente. Não só por dias, mas por anos. Talvez para sempre.

Depois de um suspiro pesado, Catra segurou o rosto humano com as duas mãos e chegou bem perto de um de seus ouvidos para usar um tom de voz baixo: 

— A partir de agora, nada fora do âmbito profissional entre nós vai ser lembrado. Só tivemos interações amigáveis e profissionais, sem nenhuma outra intenção. Eu não sou uma pessoa relevante para você e assim que chegar em Boston, nunca mais vai querer saber de mim. Veio para o aeroporto sozinha logo depois de fechar negócio comigo e decidiu adiantar a volta para casa.

Finalizou a fala com um longo beijo na bochecha da humana. 

Não sabia exatamente o que sentia naquele momento. Apenas seguia com o plano de fuga e deixava todas as sensações e sentimentos se amontoarem dentro de si. Não podia resolver esse problema agora. Não ia ter forças o suficiente.

Apenas alguns segundos depois de se afastar um pouco, voltou atrás e fechou a distância com um longo abraço não correspondido. Concentrou-se para registrar em sua mente a sensação de tê-la em seus braços, de sentir seu cheiro e o calor de seu corpo. Teve de soltá-la antes que fosse distraída pelos próprios sentimentalismos. 

Ainda precisava fazer mais uma coisa.

Catra transferiu um envelope de dentro do seu bolso para o do casaco de Adora. Também pegou o telefone dela, a fez desbloquear e configurou um alarme quatro horas depois de o voo já ter saído:

— Você sairá do estado de transe quando ouvir o alarme do seu celular.

Assim garantiria que a humana estivesse bem longe dali ao acordar, sem chances de retornar. Mesmo que, com ela, tenha levado um pouquinho da alegria momentânea da vida entediante e eterna de Catra.

Foi um adeus frio, distante e sem promessas. O único possível para o fim do que mal tinha começado.

Deixou que a humana entrasse para a área restrita a passageiros e não foi embora até que avistasse o avião dela decolar. Na paisagem logo atrás da aeronave subindo ao céu, via que o Sol já iluminava algumas das montanhas da região.

Precisava correr de volta para casa. Se é que ainda tinha uma depois da bagunça que sabia que havia feito. 

A sensação de que estava comprando uma batalha sem volta e estava do pior lado estava forte demais agora. O caos a esperava, mas, seu coração quase morto continha um pouquinho de alívio ao saber que Adora estava quase completamente a salvo. Só precisava de mais uma jogada e Scorpia seria a peça chave. Será que ainda podia contar com ela depois do possível caos que provocou com suas atitudes?

Voltou para o carro às pressas e usufruiu dos vidros escuros e da pouca luz do Sol ainda não completamente nascido para dirigir até a entrada de uma das passagens subterrâneas do Clã. Fora salva dos raios de Sol, mas, seria salva do julgamento dos vampiros? Assim que chegou, fora logo em busca de sua melhor amiga, pois era ela quem daria a garantia final da vida de Adora em Boston.

Ao contrário da lenda, vampiros podiam entrar sem ser convidados, sim. E foi assim que invadiu o quarto de sua amiga para esperá-la aparecer por lá.

A criatura de cabelos curtos e claros provavelmente já sentira a presença de longe e, antes mesmo de entrar completamente no cômodo, exclamou em um sussurro desesperado:

— Precisa sumir daqui!  Weaver está atrás de você e eu não vou conseguir te livrar dessa vez! Cadê a humana? 

A pergunta parece ter reativado o lado racional do cérebro de Catra e as lembranças das últimas horas trouxeram a expressão mais óbvia que podia demostrar para a amiga.

Estava tremendo, em pânico. Depois de longos e tortuosos segundos, confessou:

— Eu deixei que ela fugisse, Scorpia. E preciso muito da sua ajuda.

— Não acredito, Catra! — a mais alta socou a porta que havia acabado de fechar ao gritar sussurrado.

— E preciso que fale com aqueles vampiros amigos seus, os influentes no mundo das artes, para que ajudem a jogar uma luz na exposição dela, alavancar a carreira, entende? — ignorava completamente a reação da amiga ao expor, ainda sob a voz abalada, o plano que viera recapitulando do aeroporto até o esconderijo.

— Perdeu o juízo? Pra quê eu faria isso?

— Assim ela sai da lista do clã de pessoas invisíveis de vez — tomou coragem para se aproximar da amiga e a segurar pelos braços suplicantemente — e faz valer todo o risco que eu tô correndo agora… Por favor…

A mais alta desvencilhou-se do toque de forma brusca e deu um passo para trás. Havia uma fisionomia rancorosa, uma que Catra jamais vira no rosto de Scorpia antes.

— Honestamente, — parecia segurar o tom de voz impaciente ao falar entre os dentes — eu cansei de passar a mão na sua cabeça. Chega. 

— Não faz isso, p-

— Vai embora ou eu mesma te entrego. — Scorpia virou-se de costas para esconder qualquer vulnerabilidade em sua decisão — Quantas vezes eu te livrei? Quantas vezes, sem nem pensar nas consequências que eu poderia sofrer? Sempre fiquei do seu lado, te salvei, sem nunca pedir nada em troca

— Eu sei, — novamente tentava se aproximar da amiga, alcançando um dos pulsos dela com um toque delicado de sua mão, sua voz era baixa e constrangida — eu sei, e quero um dia poder retribuir tudo isso. Mas agora-

— A única coisa que eu queria, e que te pedi, foi que parasse de se afundar nessa história com a maldita humana e você não me ouviu! — esquivou-se novamente do toque a aumentou a voz — E agora não vou mais me comprometer por quem não faz o mesmo por mim, por quem não sente o mesmo.

Scorpia estava prestes a confessar algo, Catra podia notar. 

Ambas precisaram cortar a conversa quando sentiram uma forte presença se aproximando do quarto. Era Weaver, e ela não estava sozinha. A concentração de poder que vinha com ela era enorme. Todos os conselheiros estavam juntos e já haviam percebido que estava por lá. Quiçá o clã inteiro estava acompanhando. 

Por milésimos de segundos ela e Scorpia fixaram seus olhares arregalados uns nos outros antes de reagirem.

— Sai logo daqui, vai pela ventilação até o esconderijo que dá para a floresta.

— Scorpia, — a vampira esguia abraçou-se sozinha no corpo da amiga em um ato de despedida e remorso —  você tá certa em me desprezar. Eu devia ter valorizado mais a sua amizade… Espero que me perdoe algum dia. Você sempre vai ser a melhor coisa que me aconteceu.

— Eles estão chegando — a mais alta respondeu inexpressiva, ainda sem retribuir o ato de carinho.

Catra segurou o rosto dela desesperada para uma última súplica:

— Mas, por favor , ajude a Adora. É meu último pedido.

Ao esvair do quarto pela ventilação em forma de fumaça, ouviu a porta do quarto de Scorpia abrir em alvoroço. De longe ouvia as vozes impacientes dos membros do clã perguntando por seu paradeiro. 

Assim começou sua mais nova longa fuga do lugar que um dia fora seu lar.

Notes:

E aí? Algum palpite do que vai acontecer com a gata vampira? Ou Dorinha de Boston? Sério, o que vem pela frente é doloroso até para mim mesma, a mãe dos angst. Até o próximo tiro na cara da Catra, galera (provavelmente semana que vem)

Chapter 10: Sentença

Notes:

Novo cap, pessoas!

POV bem tenso de Catra, preparem lenços.

Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Depois da desesperada fuga, Catra chegou nas partes mais escuras da floresta da região. Não fazia ideia do que faria ou de como tudo seria de agora em diante. Paralisada embaixo das densas sombras das árvores, tentou pensar no melhor lugar para servir de esconderijo já que era oficialmente uma fugitiva do clã, antes era sua casa. Ainda que todos os seus sentidos estivessem dormentes com a mais recente situação, lá no fundo sabia que precisava agir. Mesmo movida a desespero e desesperança.

 

Um lapso de inteligência deu o ar da graça, junto a um espasmo de adrenalina, e assim correu para um lado da mata cujos elementos presentes no ar eram tantos que por muitas vezes confundiam a direção dos vampiros. Ali não a achariam tão facilmente através do olfato aguçado ou mesmo hipersensitividade. Faria questão de não abusar de seus poderes e mantê-los bem enfraquecidos para dificultar ainda mais sua noção de presença.

 

A noite caiu e nem sequer reparou. Ficara na mesma posição ali debaixo de uma das árvores, abraçando as próprias pernas e escondendo o rosto entre os joelhos por tanto tempo. Só conseguia ouvir o grito ecoante de seu subconsciente, agora muito decepcionado com os caminhos seguidos. Tudo o que jogou para os ares valeria à pena? Condenar a própria condição de vida por uma outra pessoa, em alguma circunstância, vale à pena?

Estava completamente sozinha. Talvez mais sozinha do que esteve em toda a sua vida (e morte). Não tinha o respaldo de um lar, mesmo que este não fosse o melhor de todos. Não tinha o conforto de uma amizade sólida, mesmo nunca tendo ponderado que um dia Scorpia se cansaria dela. 

Sozinha. 

Sozinha e ameaçada.

E a culpa era completamente sua. Tomou decisões tão impulsivas, tão levadas pelo coração. Não pensou em quem mais deveria importar. Não pensou em si própria. Agora que o rosto de Adora não está tão perto e aquela doce voz não ofusca todos os outros sons mais sóbrios e conscientes de sua mente, Catra enxergava o que tinha acabado de fazer consigo.

Sua sentença de morte após a morte.

Alguns dias haviam passado desde que encontrou abrigo na floresta. 

Não contou exatamente quantos. Em momentos nem sequer se preocupava em distinguir a noite do dia. Nem se importava mais em economizar as lágrimas vermelhas que escorriam de seus olhos. Estava ocupada demais pensando em como se alimentaria, se teria que viver ali o resto da eternidade, como se protegeria do Sol conforme as estações do ano passassem e as sombras mudassem de posição, em como teria forças caso precisasse se defender de outros vampiros que eventualmente iriam atrás dela. 

Ocupada lembrando, também, o quanto sua melhor amiga faria falta, o quanto a amava genuinamente e tudo o que fez até perdê-la.

Pensava que boa parte da decisão de ter deixado Adora ir tinha sido por causa de sua própria experiência sendo vítima do clã. Não queria o mesmo para Adora assim como não iria querer para qualquer outra pessoa. Entretanto, via com mais facilidade agora que o que sentia, e na intensidade com que sentia, foi o principal motivador. E passou por cima de tudo, até das próprias prioridades.

Mas sentia que tinha cometido um erro? Não exatamente. Estava arrependida de tudo que perdera, porém completamente orgulhosa e aliviada de pensar que nesse momento Adora estaria prestes a pousar em sua cidade de origem. 

O longo e copioso choro só parou quando a fome começou a falar muito mais alto. Com o sol ainda no meio do céu não poderia sair daquela região. Sua única opção, então, foi dormir. Assim evitava com que suas necessidades fisiológicas continuassem gritantes. Assim o tempo fazia-se passar de maneira menos dolorosa.

Não tinha a sensação de que realmente caía no sono. Era mais como um pequeno esforço para esvaziar a mente enquanto mantinha os olhos fechados e o corpo mais relaxado.

O silêncio durou pouco tempo e uma silhueta larga se formava em volta de um ambiente bem escuro e enevoado dentro da imaginação. Tentava dissipar essa imagem de sua cabeça, mas não tinha controle algum. Aos poucos uma voz surgia. Começou com um eco distante, depois um sussurro, até que então estava perto até demais:

 

— Catra. Se concentra e me escuta.

Era a voz de Scorpia, notoriamente fria, que vinha trazer o seguinte recado:

— O clã inteiro está contra você e no momento eu estou tentando convencer alguns conselheiros a não votarem a favor de uma perseguição. Talvez eu consiga fazer com que eles optem só pela sua expulsão, mas preciso que suma do mapa de qualquer vampiro da região por enquanto, e fique o mais longe possível do clã. Vou dar um jeito de te avisar assim que tomarem uma decisão. Prometo que tentarei de tudo. 

Um breve silêncio seguido do que Catra presumiu ser uma ‘falha’ na transmissão, depois a volta da voz em um tom mais preocupado:

— Shadow Weaver está irredutível e mesmo que o Conselho decida não te condenar, ela provavelmente não vai te deixar em paz. Estou usando o máximo que consigo do meu poder só para te dar esse recado. Por mais que não concorde com nada do que fez, não acho que mereça a perseguição desses imprestáveis. 

Outra falha, mas com uma volta urgente:

— E sobre seu último pedido. Eu o farei. Mas de agora em diante, preciso de um tempo até decidir se um dia quero te encontrar de novo nessa nossa eternidade.  Até lá tente não fazer nenhuma besteira. Adeus.

A imagem e voz sumiram completamente e Catra reabriu os olhos no instante seguinte. Soltou um suspiro unicamente para aliviar a tensão com toda a nova informação. 

Em poucos segundos descobriu que não só queria a expulsão como também sua cabeça como vingança. Além de ter ganhado uma provável eterna némesis e perdido a mais verdadeira amizade que tivera.

Queria que esse canal não fosse unilateral. Queria poder ter respondido a amiga de volta e dizer o quanto a queria por perto. O quanto se via perdida e com medo.

Sabia, contudo, que não era assim que esse poder funcionava. Poder, aliás, que consumia bastante energia até mesmo de criaturas experientes como Scorpia para ser executado.

Mais uma prova do quanto deveria ter dado mais valor a quem sempre esteve ao seu lado. Sabia lá no fundo que não a merecia desde o início, e era até conivente com a decisão que ela tomou de sumir de sua vida. Esse era o maior bem que estava fazendo para Scorpia no momento. Manter a distância. Por mais que doesse.

O que podia fazer no momento era pelo menos honrar todo o esforço da vampira para mantê-la a salvo das consequência do que fizera. Não sabia quando ou como, mas teria que encontrar forças para seguir em frente. E o primeiro passo era sair daquela floresta que não seria um ponto de segurança por muito tempo. Assim, no anoitecer seguinte andou longas horas até a capital da Transilvânia. Brasov não era tão longe de onde ficava o clã, mas era afastado o suficiente para que Catra conseguisse se misturar pelos moradores do local e não ser tão facilmente localizada. Além do mais, teria mais oportunidades de emprego, sejam em bares ou qualquer outro estabelecimento noturno.

No final daquela semana já conseguira um bico de meio período como garçonete num desses restaurantes que ficam abertos até bem de madrugada para agradar turistas. Dormiu nas sombras de grandes construções medievais e igrejas góticas até juntar dinheiro o suficiente para alugar um quarto e sala em um cortiço qualquer. Não demorou muito para que Scorpia a avisasse sobre a decisão do clã em relação à punição. A voz ecoou novamente na cabeça de Catra, anunciando que estava livre da sentença de hibernação, só que também estava oficialmente expulsa do grupo. Foi como Scorpia havia prometido. 

E assim começou o novo ciclo de sua vida. Um que nunca pediu. Passava o dia encolhida no seu novo lar com cheiro de mofo e cortinas finas até que o Sol sumisse, depois ia trabalhar no tal restaurante. As poucas horas entre o fim da noite e o amanhecer, ia caçar um bicho de pequeno porte ou até hipnotizar um humano por alguns minutos para ter um pouco de sustância na alimentação. Não os matava, só tirava o suficiente para que não desmaiasse durante a jornada de trabalho quase abusiva.

Os meses passaram e Catra foi se acostumando com a rotina. Acostumar-se não necessariamente significa gostar. Odiava, na verdade. Só sabia que independente de seu agrado, teria que seguir em frente. De tudo, o que mais a incomodava era mesmo a solidão.

 Esporadicamente, em período de alta temporada na cidade, conseguia uns serviços de garçonete em um outro bar, na esquina de casa. Era quando socializava mais, ouvia notícias, ficava por dentro dos acontecimentos, mas nunca, jamais, revelava a própria história. A grande ironia era que ser invisível era o que a salvava, enquanto para Adora, quanto mais visibilidade, melhor. Opostos, como sempre. Sobre a humana, nada mais sabia além de que sua exposição fizera um bom burburinho em terras norte-americanas. Isso depois de muito pesquisar na internet do computador velho que tinha nos fundos do restaurante. A jovem de Boston ficou falada nos veículos de notícias locais e bem específicos sobre arte, e também garantiu um cargo de coordenadora assistente no tal museu que trabalhava. Era o suficiente para mantê-la a salvo dos sanguessugas de Transilvânia. Até porque não iriam gastar mais recursos com a mesma quase-vítima. Teriam que virar a página e partir para outra, tinha certeza.

O alívio que transbordava em Catra ao pensar na humana como alguém que não mais terá a vida arruinada por vampiros era bom, delicioso. Contudo, a cada dia que passava mais e mais afundada em sua vida de miséria, menos essa sensação era o suficiente. 

Ainda questionava se tinha valido a pena o tanto que sacrificou por uma vida alheia, que cada vez mais via distante de si. O que estava mais próximo era a constante derrota. Eram os aluguéis atrasados das duas últimas quinzenas, a forma rude como era tratada pelos clientes e também funcionários, a maneira como tinha que se esconder na área de estoque toda vez que sentia a presença de vampiros na região porque sabia que poderiam ser seus antigos companheiros em busca de justiça com as próprias mãos. Gradativamente a motivação que a fez dar o mundo por Adora diminuía de importância.

Fazia quase um ano desde que tudo virou de cabeça para baixo quando, e em um período de baixíssima movimentação no bar recebeu uma visita inesperada.

Nesse dia era a encarregada de fechar o estabelecimento, a última a sair. Já não tinha mais ninguém circulando na rua quando trancou o segundo cadeado da porta dos fundos do bar e caminhou pelas ruas frias em busca de um canto discreto para caçar alimento. Ao esgueirar-se num bosque, logo foi cercada por uma sombra que a rodeava sem deixar com que se movesse nem para frente e nem para os lados. Começou a dar passos para trás e se viu encurralada entre um tronco de uma enorme árvore e essa figura surgindo na penumbra.

Sabia que só uma criatura podia causar tantas sensações ruins e arrepios de uma só vez nela:

— Weaver

Fechou os olhos de maneira que os apertou, como quem quisesse se livrar de uma visão ruim, fazê-la sumir. 

E este foi seu maior erro.

Não viu e não conseguiu se defender de um ataque da vampira suprema. 

Esta que carregava consigo uma estaca de madeira, a mesma que fincou com facilidade no abdome de Catra. Um pouco mais acima teria sido certeiro para que acabasse com sua eternidade. Uma das poucas ameaças reais a um vampiro é a estaca de madeira no peito. Mas, Shadow Weaver errou?

Ao reabrir arregalados os olhos pelo susto da dor repentina, a jovem via o rosto de quem a golpeou de perto. Aos poucos tomava forma e ao se revelar, trouxe à Catra suas piores lembranças, seus piores pesadelos.

— Por quê? — agora a voz da jovem vampira falhava pela dor e pela perda do pouco sangue que lutava para manter em seu corpo — Por que não me matou logo? Mais uma vez não conseguiu fazer seu trabalho direito?

— Não sou incopetente como você. Eu até vim disposta a acabar contigo de vez, é verdade, — Shadow Weaver dizia bem perto do rosto da mais jovem, sorrindo enquanto movimentava lentamente a estaca de um lado para o outro — mas do jeito que está fraca e vulnerável, acabar contigo seria fácil até demais. 

Inutilmente a mais nova tentava afastar a estaca do ferimento. Mal tinha forças para movimentar os próprios membros, quem dirá tirar as mãos sombrias de onde estavam.

Enquanto isso, era obrigada a ouvir a risada infernal daquela criatura bem de perto. 

— Eu ia mesmo te matar, — a mais velha continuava com um ar vitorioso — mas te ver nessa situação humilhante é tão delicioso. E acabar com seu sofrimento tão cedo seria muito bondoso da minha parte depois do que fez.

— Você já tinha estragado a minha vida muito antes… — a fala foi interrompida por uma tosse descontrolada e sangrenta — Já tá mais do que na hora de me fazer esse favor.

Shadow Weaver arrancou a estaca de forma brusca e violenta.

O grito de dor de Catra ecoou entre as altas copas das árvores na medida que ela deslizava as costas no tronco onde antes estava encurralada até sentar-se no chão.

— Você é um grande erro, Catra — o ódio transparecia na fala — e sua existência só causa problemas para mim e para o clã.

— Mais um motivo para acabar com isso de vez — esforçou-se um pouco para segurar a mão armada de Shadow Weaver, dessa vez para posicionar a estaca na direção do próprio peito — Não tenho nada a perder.

A sombria estapeou a mão da mais jovem e se afastou, deixando-a bem longe da arma branca, e finalizou com o mesmo tom furioso de antes:

— Meu ódio por você é muito maior do que minha vontade de te matar. O clã pode ter desistido de te punir, mas eu vou continuar. Vou te perseguir e garantir que tenha uma péssima eternidade. 

Aproveitou a distância e a conveniente posição de Catra para chutá-la nas pernas e cuspir no chão ao lado.

Antes de deixá-la agonizando com seu mais novo ferimento difícil de auto curar, a líder do clã exclamou:

— Seu lixo!

E sumiu nas sombras.

O corpo de Catra reagia não só à dor, mas à raiva. O mesmo ódio declarado de Shadow Weaver era sentido por ela. Era recíproco. As lágrimas de sangue, a ferida aberta, tudo o que perdia naquele momento a enfraquecia fisiologicamente. Ainda assim, tudo o que aquela vampira desencadeou nela fazia seu corpo tremer, queimar.

“Ela vai pagar por tudo, por tudo! Maldita!”, gritava em pensamento.

Com passos arrastados conseguiu chegar até o apartamento, o mesmo que devia os tais aluguéis e caiu num sono reparador. Porém, como todo o castigo para o sofredor é pouco, acordou do estado de quase hibernação com o inquilino batendo na porta e exigindo dinheiro logo de manhã. Sabia disso porque os raios de Sol que entraram pelos furos da cortina de péssima qualidade atingiram a pele de seu braço por alguns segundos.

Responder que ainda não tinha seria inútil. Não podia nem atendê-lo e fingir normalidade com o tamanho do furo que tinha em sua barriga também. Inclusive, torcia para que não tivesse deixado nenhum rastro de sangue notório pelo caminho. Fez o máximo que pôde para estancar a ferida e evitar tal acontecimento.

A voz do humano estava a irritando. Não viu outra solução a não ser hipnotizá-lo.

“Dane-se. Preciso me livrar desse velho, No final das contas, manter meus princípios só me trouxe problemas mesmo”

Foi o que pensara quando, com seu último esforço, induziu o homem a parar de procurá-la e acreditar que ela havia pagado os aluguéis atrasados e mais um ano de bônus. Como não pensou em fazer isso antes? Como não pensou em mil e uma outras maneiras de facilitar a própria existência? Talvez tenha sido a tamanha frustração com tudo que sucedera nesses últimos tempos que a impediu de ser sensata. 

E sobre todo o resto?

Por que, há 50 anos atrás, tinha que estar passando naquela trilha entre uma vila e outra com a família no exato dia em que Shadow Weaver resolveu fazê-los suas vítimas? Por que não morreu como seus pais e irmã? Por que tudo tinha que acontecer com ela? Por que estava sozinha?

Não sabia o porquê de nada, isso era tão frustrante. Em situações normais sentiria vontade de chorar. Agora, apenas sentia-se reflexiva e cada vez mais distante dos problemas. Nas últimas horas parecia que seu corpo estava pesado, não responsivo. A mente era a única coisa que funcionava, e, ainda assim, em um modo automatizado, sistemático. 

Conhecia esses sintomas. Será que chegou a hora?

Não é a primeira vez que não consegue curar o ferimento porque não tem sangue o suficiente no corpo. É a primeira vez, contudo, que não tem Scorpia do seu lado. Geralmente a amiga salvadora a resgata de uma possível hibernação. 

E agora? Como faria?

Não faria. Não é como se quisesse insistir em viver mesmo.

Talvez devesse deixar chegar a hora. Encontrou um canto onde o Sol nunca batia e recostou-se naquela quina entre uma parede e outra do pequeno cômodo que era o quarto e sala. Uma mão apoiava na perna e a outra, tapando a ferida de sangue já seco.

Algumas horas depois do ataque de Shadow Weaver, Catra fechou os olhos para não mais abrir.

Notes:

Dessa vez a vampirona não escapou... E agora?
Até o próxima cap, não chorem. <3

Chapter 11: Coragem

Notes:

Oi oi! Com um delay, mas aqui vai um novo capítulo com POV Adora para vocês.

Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Adora já estava acostumada com a correria do trabalho neste último ano. Só hoje que as tarefas pareciam especialmente infindáveis. Precisava chegar em 15 minutos no apartamento de uma amiga e ainda não tinha saído de uma reunião presencial que tinha quase certeza que poderia ser substituída por um e-mail. Calculou que, caso corresse, chegaria apenas alguns minutinhos além do que já avisou que atrasaria, não tão apresentável quanto queria, contudo. 

Enquanto media internamente sobre chegar mais tarde ainda ou aparecer com pizzas tamanho gigante debaixo dos braços, seu chefe anunciou o fim da conversa. Alguma frase-chave como ‘resolvemos isso em um outro dia’ ou ‘por hoje é isso’ a tirou do transe e ativou o modo fim de expediente nela. Despediu-se em segundos e correu pelo Museu a fora.

Quer dizer, não correu. Escolheu preservar a higiene para a noite já que não teria tempo de passar em casa para se arrumar. Depois de um suspiro sem esperanças, resolveu pegar o celular no meio do caminho para avisar que não chegaria no tempo avisado. Sim, acabou optando pelo atraso do atraso. Sabia que até conseguir pegar um táxi ou algo do tipo precisaria esperar, além de depender do trânsito. Foi nesse momento que viu uma notificação de mensagem na caixa de seu endereço de email do Museu, ignorada antes por motivos de: estava na reunião. 

Leu por alto porque não conteve a curiosidade e o assunto mencionava uma pesquisa anônima na Transilvânia.

— Esse lugar,  — balbuciou para si mesmo com um sorriso pequeno no rosto — entrando no meu caminho de novo depois de um ano.

Era estranho relembrar essa viagem. Por mais que este tenha sido o momento da virada de sua carreira, o caminho das pedras para um pouco de reconhecimento, parte dela sentia uma certa agonia em relação ao tempo passado lá. 

Agora se via a caminho da tal festa com uma sensação de nostalgia enorme, capaz de causar uma ansiedade indecifrável. Tudo porque quanto mais o tempo passava, menos fazia sentido as memórias picotadas que trouxera de lá. Enquanto as negociações eram vívidas como se tivessem ocorrido ontem, os momentos fora de expediente na Romênia eram copiosos. Lembrava-se de chegar naquele quarto de hotel magnífico, tomar um longo banho e dormir. Só. De dia acordava, explorava o lugar sozinha e encontrava com a herdeira à noite somente para falar de negócios. 

Catra era o nome dela, disso não esquecia. E nem do par de olhos coloridos, um âmbar e outro azul. Ou das sardas sob o rosto, a juventude, o sorriso inconscientemente sedutor. Atrevia-se pensar que sentiu uma leve e rápida atração por aquela mulher, mas, por questões profissionais, nunca deixou que saísse do imaginário.

Ou deixou? 

Não sabia ao certo, essa era a verdade. 

Tão confuso quanto seu sentimento era a sua noção de partida da Romênia. Não conseguia resgatar absolutamente nada do dia que embarcou de volta, a não ser que o alarme de seu celular tocou aleatoriamente durante o voo, e assim acordou do que parecia o sono mais profundo de sua vida. Também tinha o tal bilhete confuso no bolso de seu casaco:

“Os documentos importantes estão na sua mala de mão, e as obras, nas despachadas (tudo bem protegido). Foi muito bom ter sua visita, porém é melhor ainda que esteja partindo sã e salva. A partir de agora, siga a vida e não me procure. 

Isso não é um até logo, é um adeus.

Assinado,

Catra.”

Adora queria desvendar esse recado a qualquer custo nas primeiras semanas desde a volta, não podia negar. Até mesmo tentou ligar e mandar mensagens no contato que tinha da herdeira, ignorando o pedido para não mais procurá-la. Nenhum deles funcionava mais, o que aumentava ainda mais a curiosidade da jovem. 

Ouviu diversas vezes a gravação em áudio de quando visitaram o Castelo de Bran e até teve a impressão de que havia uma certa intimidade no próprio tom de voz durante os diálogos. Com o tempo, a insistência foi perdendo o sentido e a rotina foi fazendo daquela história algo cada vez menos relevante. Até que num dia não muito especial, deixou esse mistério de lado para seguir em frente, enterrando com ele os esporádicos disparos no coração ao tentar resgatar certos momentos com a estrangeira. 

Conformou-se. Esta seria mais uma das pessoas que passam de modo volátil e corriqueiro por sua vida.

A parada do carro que a levava em frente a um prédio residencial bem no centro da cidade a firmou de volta no presente. Finalmente tinha chegado ao tal evento. Despediu-se do motorista e foi em direção ao elevador. Assim que saiu dele já conseguia ouvir o burburinho vindo do apartamento da amiga. Bateu na porta e não precisou esperar mais que cinco segundos para ser recebida de braços abertos e grande euforia por uma jovem baixinha de cabelos curtos lilás.

— Até que enfim, mulher! — ela dava um beijo de cumprimento no rosto de Adora enquanto envolvia um dos braços em sua cintura — Achei que não ia vir mais.

— Para depois ser seriamente ameaçada de morte pela senhorita? — a mais alta abusava do tom irônico e risonho — Nunca!

Não demorou para acomodar-se ao ambiente. Cumprimentou alguns rostos conhecidos com boa noites sorridentes e pegou uma garrafa pequena de sidra, a única quantidade de álcool que se permitiria naquela noite, para depois sentar em uma poltrona um pouco mais afastada e ler com mais calma o curioso e-mail. 

Mal chegou na metade do texto e sua amiga já voltou para seu lado. Não conseguiu se concentrar tanto quanto imaginava que podia no tal assunto, afinal.

Glimmer estava acompanhada de Bow, o outro melhor amigo de Adora. Esses eram os únicos, na verdade. 

Não viu qual deles puxou o telefone de sua mão e resmungou um “aff” em desaprovação. Provavelmente Glimmer, já que Bow a julgava enquanto apoiava ambas as mãos nos próprios joelhos, nenhum resquício de celular.

— Nem pensar que vai ficar nesse celular aqui! — Glimmer sussurrava repreensiva e guardava algo no bolso — Se ao menos fosse algum romance… Mas eu sei que é só trabalho.

Então foi ela mesmo que pegou o celular.

— Trabalho fica no trabalho, Adora — foi a vez do homem alertar em um tom reprovador e ao mesmo tempo simpático.

Ele também acabara de entrar no quadro de funcionários do Museu de Excentricidades de Boston. Não na mesma área de Adora, ele trabalhava mais no controle financeiro. Foi por causa do trabalho, inclusive, que se conheceram. E, através dele, foi apresentada à baixinha que hoje compõe a lista de pessoas mais próximas. 

Bow e Glimmer se conhecem desde criança e têm uma amizade um tanto quanto intimista demais. Com pouco tempo de convivência Adora já sacou que o belo rapaz alto e de porte atlético tem um amor muito incondicional pela melhor amiga. Também notou que é recíproco pelas vezes que Glimmer surtou ao saber de algumas pessoas interessadas em Bow, como o barista do café ao lado do museu que se auto intitula Sea Hawk. Os dois têm quase a mesma personalidade e combinavam demais, tinha que admitir. Às vezes precisava arrastar o amigo para fora do estabelecimento para não se atrasarem por causa do tanto de assunto que esses dois tinham. 

Mas ninguém no mundo poderia complementar Bow melhor do que Glimmer. Eles eram a metade da laranja mesmo. Não existe uma coisa que não sabem um do outro, ou que não fazem um pelo outro. Só faltava a parte em que eles iriam tornar o relacionamento oficial, porque já estava na cara que era uma amizade (quase casamento) com benefícios. Adora fingia que não sabia porque ainda não a contaram.

Poucas vezes viu uma dupla que se encaixava tão bem a ponto de formar um só ser. Na verdade, só viu isso com os dois amigos com quem começou a conviver mais em seu período pós-Romênia. Era tanta raridade que nem sequer ousava imaginar isso acontecendo em sua vida. 

Estava conformada já que só existia um Bow para uma Glimmer, uma Glimmer para um Bow. E um ninguém para uma Adora.

Essa solidão chegou a ser um problema. Um que a enfiou em diversos encontros furados, introduziu várias pessoas tão despreparadas para uma relação quanto ela. Até que decidiu não tentar mais e focar na vida profissional, a que dava frutos mais saborosos afinal de contas.

— Já disse para descartar essa possibilidade de romance, — a loira espreguiçou-se descontraída e se acomodou ainda mais na poltrona — eu sou uma pessoa cansada e encontros me deixam mais cansada ainda.

— Mas e se você não precisar se esforçar tanto assim? — a amiga sorriu de canto e se aproximou ainda mais dela para cochichar — Tem uma colega de trabalho que convidei. Ela é bem seu tipo, é só ir lá e conversar sem compromisso.

A mesma confusão estava na face de Adora e de Bow.

— Quem é? — ele perguntou para Glimmer ofendido — Você nem me contou dessa vez!

— É aquela do departamento de-

— Sem chances — Adora levantou e suspirou desinteressada — tô indo pegar alguma coisa para comer, tchau.

Deixou os dois aprendizes de cupido para trás e bloqueou completamente sua atenção para o que falavam, seja a respeito dela ou não.

Naquela noite a tal colega de trabalho foi sim falar com Adora. 

Provavelmente a procurou por insistência de sua amiga. A conversa foi bem boa, até. Só não tinha essa disposição emocional. Então se despediu com um ‘talvez a gente se encontre em outras festas da Glimmer’ com uma insinuação bem óbvia de que não queria levar isso mais à diante. Foi para casa descansar para o próximo dia de trabalho. Tomou um banho e se preparou para dormir, mas só conseguiu pegar no sono depois que matou a curiosidade e leu o tal e-mail por completo.

Era algo sobre um estudo confidencial sobre vampirismo e essa pesquisadora que entrou em contato estava em busca de potenciais patrocinadores. Segundo ela, já tinha alguns institutos da Romênia envolvidos, mas, precisava de um nome internacional para facilitar o andamento e abrangência da pesquisa. E o Museu de Excentricidades era o que via de mais viável no momento.

Adora ficou animada. Depois daquela visita no Castelo de Bran, sabia que a região tinha muito para ser explorada em relação ao tema. Isso poderia até mesmo trazer novos descobrimentos que ficariam no nome do Museu e traria mais visitantes, mais críticos, mais notoriedade. Era perfeito! E o patrocínio, em termos de valor, nem era tão alto assim. Via um grande investimento bem ali e queria apresentar ao seu chefe.

Este que, diferente dela, não viu grandes coisas. 

A princípio, o coordenador até ficou interessado. Depois de ouvir quanto custaria, o que a mulher sabia que não seria nada perto do que poderia trazer de lucro, ele imediatamente voltou atrás. 

Foi frustrante porque não queria jogar tamanha oportunidade profissional fora. Ela sabia do potencial como ninguém, ela esteve lá, afinal! Mas o mundo dos negócios é cruel, e o dinheiro sempre fala mais alto. Ainda teve que ouvir um discurso no qual seu chefe enfatizava sua ‘ingenuidade’ por ser ‘tão nova numa área que pode ser cruel quando se faz um investimento errado’. 

Além do possível salto na carreira, outro sentimento a inquietava sobre aquele lugar. Desde que voltara, tinha consigo essa sensação de que deixou algo mal resolvido por lá, algo muito importante. 

Esse lado pessoal fazia crescer uma impulsividade impossível de ignorar. Por isso, mesmo com a negativa vindo de seu superior, resolveu seguir adiante e respondeu a pesquisadora. Queria conhecê-la melhor, saber das motivações, das possibilidades de poder ajudar não como uma representante do Museu, mas como uma entusiasta do assunto. Foi assim que começou a fazer ligações semanais com ela. Em algumas delas, de vídeo, construía confiança em sua aparência e expressão sempre gentis. 

Ela tinha cabelos curtos, raspados nas laterais e platinado. Parecia ser uma daquelas garotas da atlética da faculdade que estavam a tanto tempo por lá que ninguém sabia se eram estudantes ou se faziam parte do quadro docente já. Seu nome era Scorpia, o que também contribuiu para a construção da tal imagem universitária alternativa na cabeça de Adora. 

Quem ela era ou deixava de ser não era tão relevante quanto todas as descobertas que apresentou a Adora até agora com a pesquisa. Era isso que ainda prendia o interesse da jovem curadora. Ela insistiu em querer ajudar, sendo honesta quanto à não participação do Museu. Propôs ser a curadora voluntária da pesquisa, reunindo mais dados e indo atrás de possíveis patrocinadores em Boston. Antes, contudo, queria ver de perto o que faziam nesse laboratório e o que seria a tal ‘prova física’ do vampirismo que Scorpia tanto mencionava.

— Eu tive uma ideia para ir por contra própria para aí — dizia na chamada de vídeo enquanto caminhava por seu pequeno apartamento no qual tinha acabado de chegar — tenho umas férias para tirar e umas economias guardadas, aí posso ir nesse período.

— Ótimo! Eu posso ajudar com hospedagem, se quiser — Scorpia tinha um misto de animação e cansaço na voz — o importante é que você consiga vir! Digo… Já que é tão importante para você.

— Pode deixar que eu me viro com tudo, prefiro eu mesma cuidar da viagem — dessa vez olhou bem para Scorpia e depois de uma pausa curta fez uma cara de desconfiada — até porque eu não te conheço direito e preciso ter o mínimo de segurança nessa loucura toda que tô fazendo. Vai que é tudo mentira, não é?

Uma risada pequena e uma observação gigante na reação da pesquisadora do outro lado da linha. Jogou o verde só porque sabia dos riscos que estaria correndo e, mesmo assim, topava por pura irresponsabilidade e curiosidade.

— Não, claro que não — Scorpia ria para mostrar descontração e coçava a nuca despretensiosamente — é tudo verdade. Mas, se for para se sentir segura, então faça do jeito que achar melhor! E nem precisa me falar aonde vai ficar. Basta marcarmos em um lugar público para uma primeira conversa e quando se sentir à vontade te trago para conhecer o laboratório.

De novo Adora notou um cansaço na expressão da outra mulher. Esse projeto realmente estava tirando o sono dela, como muitas vezes comentara. 

Tudo parecia tão real que sua desconfiança e medo diminuíram a cada conversa, a cada chamada. Óbvio, não iria confiar completamente naquela estranha, teria seus próprios métodos de proteção. Pretendia deixar Bow e Glimmer bem mais por dentro de sua viagem dessa vez, já que agora tinham muito mais intimidade do que antes. Eles cuidariam de seu apartamento, teriam acesso a sua localização desde que saísse do aeroporto de Boston até que chegasse ao de Bucareste. Também saberiam endereço da hospedagem, contatos e tudo o que fosse possível para que estivesse bem assistida e monitorada à distância.

E depois de um mês desde que começara a falar com Scorpia, estava pronta para retornar à região da Transilvânia. Não antes de ouvir alguns sermões de seus amigos sobre o risco dessa impulsividade. 

Sabia que era perigoso, assim como quando fora há um ano e alguns meses atrás. Mas, estava ali, viva, sã e salva, certo? 

Talvez não tão sã e um pouco confusa com as próprias memórias. Ainda assim, salva. E dessa vez não seria diferente.

— É sobre o que mesmo essa pesquisa? — Glimmer a cutucou com o ombro na cadeira ao lado.

Estavam as duas na área de embarque do aeroporto, fazendo hora até que Adora pudesse fazer o check-in.

— Sobre vampirismo — Adora tirou um dos fones de ouvido e pausava o áudio da visita ao Castelo de Bran que ouvia pela milionésima vez.

— Mas o quê exatamente? — a outra insistia — Não entendo essa sua pira por vampiros se nunca foi provado que eles existem mesmo…

— Eu não posso dar muitos detalhes, a pesquisa é confidencial, Glimmer, — olhou mais atentamente para a amiga dessa vez — e minha ‘pira por vampiros’ é baseada em estudos, pesquisas concretas. Você estuda as suas magias da natureza aí e eu não te questiono por isso.

— E que sei lá, isso tá parecendo golpe — ela franzia a sobrancelha desconfiada e fazia uma expressão carrancuda, como uma criança birrenta — mas se você quer ir, não posso fazer nada… Promete para mim que vai me ligar se precisar? E que vai correr para a casa dos meus tios e primos ali pertinho na Hungria se se sentir ameaçada?

— Relaxa, eu vou me cuidar! — Adora gargalhava entretida com a possibilidade de ‘correr’ para a Hungria enquanto abraçava Glimmer.

Sabia que a preocupação da amiga era verídica e válida, porém toda essa situação virou uma chave dentro de si. Havia um chamado maior nessa viagem e não iria ignorá-lo, mesmo não sabendo de onde ele vinha, ou o porquê de vir.

Ao se preparar para embarcar, mandou uma última mensagem antes de desligar o celular:

“Volto a te procurar em breve, Scorpia. E dessa vez vai ser pessoalmente.”

E lá ia ela novamente para o lugar que mudou sua vida.

Notes:

Que diabos será que tá acontecendo?? Pq Scorpia? Cadê Catrinha?

Chapter 12: Descoberta

Notes:

Seria esse um POV de Adora descobrindo que é viúva?
Só lendo pra ver...
Boa leitura, amores <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Não é como na primeira vez. 

Não que tenha criado expectativas de que seria como na primeira vez, era só um movimento incessante que rondava em sua mente mesmo, frisando que aquela experiência não era como a de antes. Se havia algum motivo para tanta reafirmação, não sabia ou lembrava. Às vezes vinha junto uma sensação de falta. A falta de não sabia o quê. 

Mas, a falta. 

Presente e latente.

Durante a longa viagem até se deu o trabalho de puxar fios da memória e levantar questionamentos. O que tinha de tão especial naquela Adora de um ano atrás? E por que a de hoje já não se via tão entusiasmada quanto a de antes? Era óbvio que queria participar dessa pesquisa, tanto que moveu mundos para voltar para a Romênia. O que não fazia sentido era o tipo de sentimento que isso a despertava. Era uma angústia, um mal presságio até. Vai ver Glimmer colocou tanta abobrinha em sua cabeça sobre ser um golpe que começara a internalizar tudo isso.

O anúncio de que o avião estava prestes a pousar no aeroporto de Bucareste a tirou do debate interno, por fim. Seu cérebro passou a focar nos planos que tinha para as semanas de férias nada turísticas que teria na região. Acertou a poltrona, sacudiu os farelos do último lanche a bordo de sua calça legging preta e enfiou os pés de qualquer jeito nos tênis de corrida que compunha o look confortável de viagens longas. Deu uma ajeitada no suéter vermelho que era três vezes maior que o seu tamanho e finalmente apertou o cinto de segurança. 

Que a Romênia esteja pronta para receber essa beleza americana de cabelos desalinhados e olheiras profundas.

Ficou aliviada ao notar que o hotel reservado não era tão longe assim do aeroporto. Assim gastou pouquíssimo tempo no translado entre um e outro. Deu tempo até mesmo de tomar um bom banho e tirar um cochilo antes do encontro que havia marcado com Scorpia ainda naquela noite em um restaurante bem movimentado logo à esquina. Foi ótimo ter renovado as energias, mesmo sabendo que esta seria apenas uma apresentação entre ela e Scorpia. Não era nada que exigisse tanto profissionalismo de si, não por enquanto. Só queria mesmo se certificar de que a mulher com quem falara durantes os últimos dias era a mesma que estaria com ela por lá pessoalmente.

E era. Logo reconheceu a pesquisadora quando entrou no restaurante. Além do icônico cabelo curto platinado, ela era bem alta e atlética, um destaque na multidão tão padronizada daquele lugar. Scorpia acenou como se sem o gesto Adora não pudesse perceber a presença dela ali. Trocaram um aperto de mão e um sorriso gentil, o mesmo que parecia natural para a personalidade da grandona, por mais contraditório que fosse com todo o estereótipo que Adora havia criado dela. Apesar da gentileza eminente, notou algo mais  naquele rosto. Um cansaço, uma tensão. 

Logo lembrou-se dos sentimentos angustiantes que aleatoriamente sentira durante sua viagem aérea. Por que fez essa relação, afinal? Que diabos era isso?

— Espero que esteja se sentindo mais confiante em relação a mim agora — a mulher mais alta comentou amena ao relaxar o corpo na cadeira que a fazia sentar-se de frente para a recém chegada — percebi que estava tensa quando chegou.

— Bom, tecnicamente ainda não te conheço tanto assim — Adora falava descontraída apesar do teor de verdade que expressava na voz — mas estou começando a me sentir mais à vontade, sim.

— Que bom — Scorpia coçou a nuca e deu um suspiro aliviado — a sua ajuda é fundamental para a pesquisa e eu não gostaria de perder seu apoio agora que está aqui.

— Claro que não, não existe essa possibilidade, — a loira deu um risada simpática — não vim para tão longe para desistir assim.

A conversa rendeu mais pontos para Scorpia em termos de ganho de confiança de Adora. Dali já marcaram uma visita ao tal laboratório do qual a pesquisadora tanto falava nas ligações de vídeo. Ficava em Brasov, umas 4 horas de trem de onde a curadora estava hospedada. Por isso, pediu mais 2 dias para que conseguisse comprar passagens e organizar possíveis estadias. O combinado era que Scorpia a pegaria na estação de carro para levá-la até o local designado. Provavelmente de noite. 

Estranho como tudo praticamente era marcado para de noite naquele lugar. Lembrou-se que na primeira vez também era assim, com aquela herdeira com a qual pouco teve envolvimento e, mesmo assim, nunca esquecera. 

Catra, o nome.

O tempo voou e pouco conseguiu explorar até o dia da viagem à Brasov. Pelo menos o caminho que o trem fazia era lindo, cheio de belas paisagens naturais, árvores enormes, ruínas entre florestas escuras e de cores frias. Os serviços dentro do trem também eram muito bons, até melhores do que os do voo comercial de dar dó que precisou pegar pela urgência dessas férias. Estava tirando um bom proveito turístico para quem não foi para lá à lazer. Até mandou fotos e vídeos para acalmar os corações preocupados de Glimmer e Bow. 

Tão bom saber que está bem e que essa pesquisadora não é, na verdade, uma traficante de órgãos que quer te matar <3

Essa foi a linda mensagem de resposta que recebera de Bow. 

Pelo visto até ele estava caindo nas paranóias de sua amiga.

hahaha

Viu… Eu disse para vocês que ia ficar tudo bem!

Adora digitou a resposta enquanto saía do trem para a estação. Já passava das 9pm e mesmo assim Scorpia estava lá, como prometido. Mais uma afirmação de que poderia confiar nela, certo?

Atravessou a rua para sair da estação e entrar no carro no qual a outra a esperava. Ela prometeu que a rota até o laboratório não seria tão longa quanto a de trem. Menos mal, Adora não aguentava mais nenhum meio de transporte. 

E não estava aguentando também o silêncio. Aquela mulher parecia ainda mais exausta do que no dia que se conheceram. Por que estava assim? Queria perguntar se era por causa da pesquisa mas, não queria ser invasiva.

Será que cinco minutos de silêncio já era o suficiente para tentar puxar pelo menos algum dos assuntos que assolavam sua mente curiosa?

Não resistiu:

— Ei, Scorpia — sua voz saiu acanhada, só não precisou aumentar mais o tom por estar bem do lado da outra — o seu projeto está atrelado a qual instituição mesmo?

— Acho que não cheguei a comentar contigo, né? — sem tirar as mãos do volante, a motorista deu uma olhada desconfiada para Adora — É confidencial. Até agora eu só tenho uma patrocinadora que não posso revelar, pelo menos não até que você realmente se envolva.

— Hm — colocou ambas as mãos nas pernas e olhou para baixo sem saber muito como continuar — E… E como é viver disso? De pesquisa? Você parece exausta.

— É, esse caso em específico está me tirando alguns dias de sono — desabafou com um longo suspiro.

— Por que?

— É que com ele eu posso salvar uma pessoa muito importante para mim — Scorpia deu uma pausa e olhou para Adora esperando que ela não pedisse mais informações.

E a jovem entendeu o pedido silencioso. 

Precisou se segurar ao máximo porque, no fundo, tudo o que mais queria era saber quem. Saber se qualquer informação a mais poderia diminuir a grande dúvida e desconfiança que discretamente aumentava a cada curva que o carro fazia, a cada estrada mais deserta e escura que o rumo dessa rota ia tomando.

O silêncio voltou até que o carro parasse em um estacionamento pouco movimentado de um prédio de fachada mal cuidada. Parecia um lugar residencial em um bairro de baixa renda. Adora olhou para cima e observou que quase nenhuma janela estava acesa, como se poucos fossem os moradores. O que ainda a impedia de sair correndo e gritando por socorro era um certo movimento em um bar na esquina. Era um ponto movimentado demais para que ocorresse qualquer coisa com ela e ninguém dali notasse.

Porém, aquele prédio em que estava com certeza não era comercial. 

Então esse laboratório era como, afinal?

Scorpia a guiava por uma escada dos fundos. Era iluminada, assim como os corredores dos andares pelos quais passavam até chegar ao sexto, aparentemente por onde ficariam, já que a suposta pesquisadora seguia reto ao invés de seguir o encaracolado das escadarias de metal enferrujado.

Os passos da loira iam se tornando menores e mais lentos conforme passava em frente às portas dos apartamentos. 

Todas elas velhas, riscadas, algumas vandalizadas com pichações. E um silêncio muito incômodo. Parecia que ninguém estava ali, mesmo com luzes de apartamentos acesas e sons de aparelhos de televisores ligados. 

Nenhuma voz, nenhuma alma viva.

Seus passos diminuíram ainda mais, e Adora começava a revertê-los devagar. Ao andar de costas, continuaria observando completamente Scorpia que ainda caminhava na sua frente até o suposto destino. 

Estavam longe o suficiente uma da outra para Scorpia não ouvir caso Adora resolvesse virar completamente, correr e-

— Não precisa ter medo, — a mulher do cabelo platinado virou-se e relaxou os ombros, a mesma expressão calma e confiável que decidira confiar no primeiro dia — eu sei que o lugar parece estranho, mas, é proposital. É um disfarce para que ninguém ache o objeto de estudo que tenho aqui.

Respirou fundo e continuou parada no mesmo lugar. Seu coração estava para sair pela boca e todos os seus sentidos gritavam de medo do que poderia encontrar ali. Contudo, aquela mulher gigante a alguns passos à frente não causava nenhum tipo de medo. 

Não se sentia ameaçada por Scorpia, e sim pelo lugar. Uma sensação muito estranha.

— Por favor, Adora — o tom de voz agora era suplicante enquanto Scorpia esticava uma das mãos para chamá-la — não foi você mesma quem disse que não veio de tão longe para desistir?

Como resposta voltou a caminhar na mesma direção que a pesquisadora. Essa era a confirmação de que iria, mais uma vez, dar um voto de confiança. Alguma hora essa ansiedade que se construía dentro de si amenizaria.

Parece ter sido uma eternidade até chegarem na última porta do corredor, a que a sua acompanhante começa a destrancar.

Entraram e fecharam a porta em seguida. 

Adora olhou em volta assim que Scorpia acendera uma luz amarela fraca do único cômodo ali existente. Era um quarto e sala. Tudo estava bem limpo, apesar da qualidade duvidosa das finas cortinas nas janelas e os móveis evidentemente de segunda mão. 

Havia uma mancha suspeita no chão de um dos cantos, algo escuro. Estava seca o suficiente para deixar uma pulga atrás da orelha. 

Se fosse sangue, de quanto tempo seria? 

Deu mais alguns passos até ter visão para uma enorme caixa de madeira do lado do pequeno sofá. 

Era retangular, caberia um corpo ali.

— O que está acontecendo aqui? — quando olhou para a outra, já tinha uma expressão assustada — O que essa caixa, Scorpia?

Arrependeu-se. 

Arrependeu-se amargamente de ter confiado nessa mulher. 

Precisava sair dali o quanto antes.

Correu para a porta e ao segurar a maçaneta, sentiu o corpo gelar. 

A mão de Scorpia segurava firme um de seus pulsos.

— Calma, não vai embora! 

— Eu não sei porque confiei em você, isso parece um-

— Caixão, sim — Scorpia a interrompeu — e é nele que está a prova de que o vampirismo é real. 

— Como?

— Tem um vampiro ali, Adora.

A essa altura a adrenalina que percorria seu corpo a fazia ter reações fisiológicas bem visíveis. Notou assim que se soltou de Scorpia e levou ambas as mãos para o rosto. Além de geladas, não paravam de tremer.

— O que? Como isso? — a voz mal saía agora e, ao invés de caminhar até a saída, movia-se de um lado para o outro dentro do apartamento — Você precisa me explicar isso direito!

Não queria ir mais embora agora. Todo o medo foi substituído por uma euforia sem fim. Uma que não a causava exatamente animação, mas desespero. Precisava de respostas e nunca mais conseguiria seguir sua vida adiante se não as tivesse. 

Queria gritar de tamanha ansiedade. 

Isso tudo que estava acontecendo era mesmo real? Vampiros eram mesmo reais? Todas as teorias que apenas desconfiava que eram reais durante toda a carreira eram, de fato, pistas para uma verdade que o mundo não estava preparado para saber?

E ela? 

Será que ela estava preparada para saber?

— Senta aí, é muita informação e provavelmente vai ficar tonta — Scorpia cruzava os braços e se posicionava na frente do sofá induzindo a outra a sentar-se de frente para ela.

— Vai, fala — sentou-se na ponta do sofá, claramente sem conseguir se acomodar por ansiedade — mas fala logo.

— É uma vampira, na verdade, — a maior tinha uma certa hesitação na voz, também parecia ansiosa — e ela está hibernada. Vampiros geralmente hibernam por falta de alimento, é um mecanismo natural para que o corpo não comece a se desintegrar, reagir à falta de sangue, essas coisas. Todo o poder é focado para manter o corpo vivo e diminuir ao máximo o gasto de energia. 

— Então tecnicamente essa vampira está fora de perigo — Adora olhava para o caixão fechado com uma certa curiosidade, as pernas balançavam numa agitação sem fim — mas e se ela acordar? A gente é quem está em perigo, não?

— Nós não estamos em perigo em nenhum caso, só ela, — Scorpia passou a mão nos fios de cabelo e suspirou pesado — tem muita gente que quer matá-la e se a acharem, eu sozinha não posso ajudar. E também não tenho recursos o suficiente aqui para acordá-la. Se qualquer coisa acontecer, eu não vou me perdoar, Adora.

— Espera… — Adora levantou por pura impulsividade — Você a conhecia?

— Sim, e você também, — a de cabelos curtos caminhou para mais perto da caixa, segurando na ponta da tampa ainda sem abrir — foi ela que mudou a sua vida.

As pernas ficaram tão fracas que precisou sentar novamente. 

Seu coração batia mais forte do que nunca e tudo em volta girava assim como as engrenagens de seu cérebro que tentavam resgatar alguma informação que fizesse sentido. 

Qualquer uma. 

Até que ele focou em uma memória. 

Um nome.

Catra.

E seu peito apertou ainda mais, num nó de dor e excitação. Queria chorar. Mas chorar muito, como se tivesse guardado dentro de si uma perda imensuravelmente pesada.

Levantou-se em silêncio, olhos ardendo ao segurar as lágrimas, e sozinha usou as próprias forças para levantar a tampa do caixão e jogá-la no chão. 

O ar que puxou pela boca pelo susto foi audível, precisou tapá-la com as duas mãos para que não saísse como um grito.

Era ela. A herdeira com quem conviveu pouquíssimo tempo e não desenvolveu nenhum laço afetivo relevante, de acordo com sua memória confusa e esquecida. A mesma que, ainda assim, causava uma explosão de sensações e sentimentos. 

Dentre eles, o maior era de dúvida. 

Por que? Porque Catra tinha todo esse efeito sobre si?

E por que ela estava dentro de um caixão com uma blusa manchada de sangue no abdome como se tivesse sido esfaqueada?

E por que Scorpia a conhecia e dizia que ela era uma vampira?

Se antes sentia que precisava de respostas, agora, mais do que nunca, queria exigi-las

Ao mesmo tempo, não sabia se estava pronta de verdade para o que viria.

Notes:

Corrente de oração para fazer Adora recuperar as memórias pq a bichinha tá sofrendo sem nem saber o motivo :(

Chapter 13: Viagem

Chapter Text

Desde muito pequena Adora sabe que certas coisas não têm explicação. Como o motivo pelo qual foi deixada no orfanato que cresceu, ou o porquê de não conseguir deixar ninguém entrar em sua vida de verdade. Enquanto outras coisas poderiam ter mil e uma explicações e, ainda assim, carecerem de qualquer sentido. Como esse momento exato.

Olhava para Catra dentro daquele caixão improvisado de madeira, ensanguentada e pálida, completamente vulnerável. A mesma Catra que a recebeu lá pela primeira vez, tão cheia de vida. 

Vida, ou seja lá o que for o conceito de vida para uma vampira. Uma criatura não mais humana, uma daquelas sobre a qual  leu histórias durante toda a infância e adolescência. 

Estava tão paralisada que seus pulmões precisaram implorar pelo ar que estava esquecendo de respirar. Depois de inalar o tão esperado oxigênio longamente, conseguiu voltar ou pouco a si e fazer as perguntas importantes a quem poderia ajudar a esclarecer pelo menos minimamente toda a situação.

— Scorpia, eu preciso saber a história completa, por favor. O que aconteceu com Catra?

— Completa eu também não sei, — a suposta cientista passou ambas as mãos pelos fios de cabelo e apoiou-se na parede perto de onde estavam — não sei de nada depois que ela te ajudou a fugir e-

— Fugir? Eu? Fugir do quê?

— Como assim? Você não se lembra?

— Não… Eu não faço ideia do que tá falando, — mesmo tentando conter, seu tom de voz entregava o pânico que a dominava — não faço ideia de absolutamente nada que tá acontecendo aqui, pensei que já tivesse deixado isso claro.

Scorpia estava surpresa. Ficou um tempo em silêncio, parecia presa nos pensamentos. Até mesmo balançava a cabeça em negação, talvez debatendo possibilidades dentro da própria mente. 

— Você… — a mulher maior ainda divagava enquanto formava a pergunta — Pelo menos sabe quem é ela?

— Sim. Foi com ela que fiz o negócio das peças que levei para Boston — Adora respondeu inocente e mais calma dessa vez, curiosa com a pergunta da outra. 

— E foi só isso? — Mais hesitação na pergunta de Scorpia.

— É, foi só isso.

— Então realmente preciso te contar mais do que eu imaginava — balbuciou a maior, mais para si do que para qualquer outra pessoa.

— Então conta — sua voz era tão indecifrável quanto sua expressão, tanto para si quanto para a outra mulher — porque até onde eu sei, ela era herdeira da famíl-

— Não, ela nunca foi herdeira de nada — Scorpia nem deixou Adora terminar — tudo era parte do plano para te atrair até aqui e facilitar o seu sequestro. Catra fazia parte de um clã de vampiros, o mesmo que o meu, e era a missão dela te entregar para eles. Mas ela os traiu para te mandar de volta para casa e te livrar de uma morte cruel na mão daqueles desalmados.

— O que você tá dizendo? — a loira deu dois passos para trás, afastando-se temerosa — Vocês duas faziam parte desse negócio todo e eles são desalmados e vocês não? O que você quer agora? Vai me entregar para eles e terminar o que Catra não terminou? E ela? Por que ela fez isso? Por que não me entregou?

— Se acalma, por favor — Scorpia apontou para o sofá sem sair de onde estava para dar o espaço seguro que Adora parecia exigir —  porque vem mais uma história completamente incomum.

Foram algumas horas até Adora conseguir absorver tudo o que ouviu sobre o clã na região da Transilvânia e a captura de pessoas invisíveis para a sociedade, sobre Catra não querer fazer essa missão desde o início e de ter simpatizado demais com ela a ponto de decidir trair o grupo. Muitas questões se formaram antes mesmo de Scorpia terminar de falar, mas ela sempre as respondia com certa paciência e empatia.

O que pretendiam fazer com ela? 

Nada que gostaria que fosse feito. 

Seu futuro ia ser breve e o presente, doloroso e cruel. Iriam drenar todo o seu sangue até não poderem mais e depois descartá-la como um lixo qualquer. Se hoje ainda respirava era pelo nobre sacrifício de Catra.

Se nunca houve herança ou posses, então os artefatos eram falsos? Ou pior, roubados? 

Não. 

Eram do clã por direito e eles disponibilizaram para que tudo parecesse verídico. Obviamente não esperavam perder os itens, como foi o caso, e isso era apenas um fator pequeno dentre os outros enormes pelos quais Catra estava sendo perseguida pelos antigos colegas.

Não tinham outras pessoas para procurar mais por perto? 

Sim e não. 

Adora era uma das outras diversas capturas que planejavam em paralelo, e as vítimas eram de vários lugares do mundo, dos mais perto aos mais longe. Estavam atirando para todos os lados.

Por que ela e Catra precisavam estar nesse clã, afinal? 

Porque é o único sistema social que existe para os vampiros, qualquer outro método é arriscado, difícil e marginalizado. Assim como para um humano que tenta viver fora da sociedade. 

A forma como Catra estava vivendo ultimamente, segundo Scorpia. 

Expulsa do clã e caçada como uma traidora.

E quanto mais respostas tinha, mais perguntas surgiam. Adora entrou numa espiral muito difícil de sair, talvez a maior que já vivera. Também, como lidar com a notícia de que sua morte foi evitada por uma vampira? São muitas nuances para desvendar. 

— E por que eu estou aqui agora? — massageava a testa na tentativa de espantar pelo menos um pouco a dor aguda depois de tanta informação, estava impaciente — Já entendi também que você não é cientista de pesquisa nenhuma. Para que precisa de mim, afinal? Não consigo ver como eu faço parte dessa história agora.

— Ela só está nessa situação porque salvou a sua vida, — Scorpia foi um pouco ácida dessa vez, havia um certo rancor na voz — isso não é motivo o suficiente para que você ‘faça parte dessa história’? 

A mais baixa ficou atônita. Não sabia se respondia ou se mais alguma outra fala estava por vir.

Até que Scorpia continuou, visivelmente arrependida da repentina rispidez:

— Honestamente, eu nunca tinha entendido o motivo de você mesma não ter procurado por ela durante todo esse tempo. Mas eu consigo ter uma ideia do porquê agora.

— Para mim o porquê é óbvio. Eu não sabia de nada, oras! E ela mesma pediu para que eu nunca mais a procurasse, em um bilhete que deixou no meu bolso no dia que voltei para casa… Agora por que ela me salvaria? Por que, Scorpia, por quê?

Depois de um silêncio bastante incômodo:

— Acho que só ela sabe, — Scorpia logo mudou o foco da conversa sem hesitar — enfim, o que eu preciso é sair da Romênia com ela. Temos que ir para um outro clã em Salém e você é a nossa única chance de conseguir.

— Salém? — mais uma pergunta dentre as outras mil que se formavam novamente.

E mais uma longa explicação com muito mais informações que seu cérebro poderia armazenar. Que frustrante!

Depois de fazer tantas perguntas, o que era exigido de Adora, nesse momento, era uma resposta. Se ela ajudaria ou não. Se concordava em planejar, junto com Scorpia, uma saída discreta da Romênia com Catra desacordada. 

Precisava responder. Como se tivesse qualquer outra alternativa a não ser o sim. 

Depois de tudo que ouvira, por mais que sua história com Catra tenha ficado ainda mais confusa que antes, seria desumano largar tudo e simplesmente partir. Não que houvesse qualquer coisa de tão humano assim em uma história com tanto vampiro.

Aliás, foi bom divagar por esse tema pois concluiu uma coisa muito rapidamente durante o despejo de informações que não teve tempo de confirmar. E com isso iria postergar um pouco mais a decisão tão importante que não queria ter que tomar no momento.

— Se você faz parte de um clã, então quer dizer que também é uma vampira, certo? — desviou completamente do que era para ser dito.

— Sim, Adora, eu sou uma vampira — Scorpia confirmou a obviedade quase virando os olhos — Agora pode responder se posso contar contigo ou não?

Tinha a sensação de que não era tão querida por Scorpia quanto provavelmente teria sido por Catra. Desde que se encontraram pessoalmente, a não-cientista tinha alguns lapsos de forçar a simpatia, como se aturasse a sua presença ao invés de apreciá-la. 

Do jeito que falava o quanto Catra perdeu tudo por causa dela, provavelmente Scorpia a culpava pelo fracasso da amiga. 

Amiga? Será que Scorpia e Catra eram amigas? 

Será que poderia fazer mais essa pergunta para não ter que dar a resposta?

Pelo olhar medonho da grandona, era melhor não.

Certo.

Está na hora de se comprometer com um plano completamente louco.

— Tá. Tudo bem. Vamos pensar num plano para sair daqui.

Os dias consecutivos à decisão foram turbulentos para Adora em relação a tudo, mas, principalmente, às emoções. 

Mudou-se para um hotel em Brasov, o que encadeou em uma ligação um pouco desesperada de Glimmer para saber o motivo de ter recebido uma notificação de cancelamento de estadia. Não sentiu que podia contar toda a verdade, pelo menos não por telefone, então apenas a certificou de que tudo estava bem e que só queria ficar mais perto do laboratório para ajudar mais na pesquisa. Até ficou admirada em como aprimorou a capacidade de mentir nos últimos dias, pois nunca foi boa nisso e ainda assim convenceu a amiga bem rapidamente.

Agora mais próxima uma da outra, ela e Scorpia passavam quase o dia inteiro juntas. Primeiro para chegar a uma boa ideia, sem pontas soltas, para a viagem com Catra daquele jeito. Depois, para prosseguir com o plano acordado. Decidiram que a vampira desacordada seria tratada como um artefato, assim poderiam embarcá-la em um voo alegando um item que foi vendido para uma galeria privada. 

E como fariam para que autoridades não desconfiassem que praticamente estavam transportando um cadáver (nem tão morto assim) altamente sensível ao Sol? 

Mumificação. Ideia de Scorpia. 

Ela achava que embalando a suposta amiga, elas não precisariam gerar nenhum tipo de certificação de óbito, provar vínculos, e todas essas coisas burocráticas. Forjando uma doação de um item de estudo da Universidade da Transilvânia para uma galeria privada em Boston conseguiriam transportar o corpo com mais praticidade.

— Essa é a maior loucura da minha vida — Adora pensou alto enquanto envolvia uma das pernas de Catra com atadura.

— Até mais do que ser salva de um bando de vampiros por uma vampira? — Scorpia também enrolava ataduras na amiga durante a fala.

— Reformulando, — a frase pausou por rápidos segundos para que a humana recuperasse o fôlego após tantos movimentos com os braços — ser salva de vampiros por uma vampira e depois ter que transformar ela em múmia é a maior loucura da minha vida

Elas se entreolharam e deram uma risada. Uma leve quebrada de gelo entre um clima tão incerto. A humana sentia que nesses dias corridos ao lado da vampira tinha criado um certo vínculo, um em que elas pareciam bem mais à vontade com a presença uma da outra.

— E não termina aí, a gente ainda vai ter que contar tudo para ela quando acordar

A não-mais-pesquisadora cobriu a última parte exposta da criatura adormecida e colocou as mãos na cintura. Ela analisava a amiga da cabeça aos pés, checando se tudo estava nos conformes.

— Você acha que ela vai ficar bem? — a evidente preocupação deixou a voz da loira até mais acuada.

— Vai sim, — Scorpia afirmava com um pequeno sorriso — Catra é muito forte e ela vai sair dessa assim como saiu de várias outras.

Estavam em pé, ambas olhando para a mais nova múmia do pedaço que estavam prestes a lacrar em uma caixa mais resistente para a viagem.

O absurdo da situação nem mais a espantava. Desde que descobrira tudo, a vida normal e pacata parecia uma realidade distante de si. Sempre quis tirar a prova sobre a existência de vampiros, e dizem que quem procura acha, não é?

Por outro lado, nunca soube tantas peculiaridades sobre vampirismo como agora. Scorpia, por exemplo, era uma híbrida e podia aparecer em reflexos, não precisava de tanto sangue quanto outros e sofria os efeitos bem mais lentamente dos métodos usados para repelir as criaturas noturnas. Já Catra não tinha nenhuma vantagem, e, segundo Scorpia, estava sempre em apuros, sempre tentando viver como se ainda fosse humana. 

Ela nunca aceitou ter virado o que virou, foi o que Adora soube. 

Era evidente para Adora que Scorpia e Catra eram bem próximas. Não só por todas as histórias contadas pela vampira maior, como também pela maneira como ela falava. Os olhos de Scorpia brilhavam e a voz amaciava quando o assunto era Catra. Era uma conexão e tanto, quase como uma que Adora bem conhece. 

Seria Scorpia e Catra a versão Glimmer e Bow dos vampiros? Elas têm toda uma história juntas? 

E por que isso causava tanto incômodo dentro do peito?

Não vinha ao caso no momento. 

A semana que ficara por lá correu e já era hora de partir.

Finalmente arranjaram todas as documentações necessárias e conseguiram enviar Catra por um avião cargueiro, assim como quem envia mercadorias de um país para o outro. Já a outra vampira iria como uma mera mortal em um voo comercial há algumas poltronas de distância de Adora. Optaram por uma viagem noturna, assim passariam boa parte do dia no ar e evitariam a exposição de Scorpia aos dolorosos raios de Sol.

Ainda não sabia sobre os próximos passos, o que fariam ao chegar em terras estadunidenses, nem a curto e nem a médio prazo. Não sabia qual seria o paradeiro delas, o que exatamente tinha em Salém. 

Não sabia como iria seguir a vida normalmente depois de tamanha experiência, ou se tudo mudaria a partir de agora. 

Nos breves cochilos do longo voo sonhou com Catra. Não conseguia lembrar sobre o que era ou do que falavam. Tudo o que vinha na memória não eram momentos, e sim sensações.  A lembrança turva de toques, a invasão suave de um perfume, a doçura de troca de olhares tão próxima. Sensações tão reais que não pareciam mero fruto da imaginação. 

O que quer que tenha acontecido entre ela e Catra despertou alguma força adormecida no seu coração. Cabia saber se isso vinha apenas da parte dela. Era o que desconfiava já que ao mesmo tempo não tinha dúvidas de que o que Scorpia fazia por Catra naquele momento era uma prova concreta de amor. E não era ela que entraria no meio de uma relação evidente como essa por causa desses sonhos estúpidos e tão, tão inconvenientes.

Ao desembarcar, a humana foi logo atrás de rastrear o paradeiro do avião que carregava a sua preciosa bagagem. Iria chegar em alguns minutos. 

Assim que foi ao encontro de Scorpia já deixou avisado. Elas duas esperariam por lá, mesmo com a outra insistindo que ficaria bem sozinha e que não queria mais incomodá-la. E por mais racional que fosse deixar, a partir de agora, que as estrangeiras seguissem o próprio caminho, Adora ainda não se sentia pronta para virar essa página.

— Eu só largo vocês quando estiverem sãs e salvas onde precisam estar — foi firme e decisiva.

— Tá certo, — a outra a encarava com gratidão — e obrigada por isso. E pelo tanto que nos ajudou até aqui também.

Adora apenas sorriu genuinamente. 

Estava orgulhosa de si por não ter desistido dessa saga mesmo quando tudo parecia uma grande doideira, quando mergulhou no escuro e topou cada etapa. Sentia-se muito bem em ajudar, sentia que tinha um propósito e que podia, sim, ser importante para alguém, mesmo que de forma temporária.

O silêncio confortável se quebrou quando olhou distraída para o lado e pegou Scorpia a observando com um pequeno sorriso no rosto:

— O que foi?

— Agora eu entendi o que Catra viu em você

— É? — olhou ainda mais curiosa para Scorpia — E o que foi que ela viu?

A resposta não foi como esperava. A mais alta apenas deu de ombros e continuou com o sorrisinho no rosto e começou a caminhar na direção do balcão.

— A carga acabou de chegar. Vamos lá pegá-la e preparar tudo para ir para Salém.

E isso a deixou sem qualquer espaço para argumentar a reação tão misteriosa de Scorpia.

Decidiu seguir a ordem e guardar mais essa incógnita dentro da cabeça para evitar distrações em momentos inoportunos como este.

Chapter 14: Adeus

Notes:

Um leve angst de POV Adora para sextar.

O último capítulo postei sem nem um "alô", me senti estranha.

Então: Alô, pessoal!

Finalmente achei um caminho para desenvolver essa fic e, pela Deusa, termino ainda esse ano, amém.

No mais:
Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Depois de alugar um carro com porte o suficiente para levar a “carga” já do aeroporto, Adora foi a responsável por dirigi-las até Salém. Não era muito longe, em menos de uma hora estariam por lá. 

Segundo Scorpia, iriam para um outro clã, um diferente, não só em termos de localização como também de ideologia. Neste, ao invés de caçar até a morte os humanos, conseguiam consensualmente doações. Funcionam como um banco de sangue, no qual os humanos assinavam uma autorização e, por livre e espontânea vontade, deixavam o líquido tão valioso para as criaturas não tão inofensivas.

Era loucura pensar como havia tanta gente que ia por livre e espontânea vontade. Ao mesmo tempo, não era tão difícil deduzir que, assim como Adora, muitos outros humanos eram simpatizantes do vampirismo e, para ter ainda que o mínimo de acesso à existência deles, eram capazes de qualquer coisa. Tudo se dava também graças ao advento dos vampiros da cultura popular, dos filmes e contos, que conquistaram adeptos fanáticos a ponto de sustentar um banco de sangue para alimentar um grupo inteiro das amadas criaturas. Todos esses humanos assinavam uma espécie de contrato de sigilo, e não podiam sair espalhando por aí a descoberta.

Em troca, eles tinham acesso a alguns eventos secretos do clã e podiam interagir amigavelmente com os amigos sobrenaturais. E o sistema funcionava muito bem, tanto que na temporada de visitas para o Halloween o estoque chegava a ficar cheio. 

Bom para os vampiros, bom para os humanos amantes de vampiros.

“Como eu nunca soube disso antes?”, foi o que logo veio à mente da jovem curadora.

É óbvio que ela teria sido sócia desse clube sem nem pensar duas vezes. Convivência com vampiros em exclusividade em troca de sigilo e uma doação de sangue a cada dois meses? 

Era um sonho!

Uma pena que as circunstâncias que a levaram até esse lugar não eram tão boas. Sem nem mesmo saber se a aceitariam, Scorpia já estava levando uma segunda boca para alimentar e salvar. Era arriscado ao mesmo tempo em que estavam confiantes de que eles seriam muito mais empáticos com a situação de Catra, pelo menos mais do que qualquer outro clã. 

— Eu teoricamente não vim fugida de lugar nenhum, é como se eu estivesse apenas pedindo uma transferência de local, — Scorpia quebrou o silêncio pensativo assim que estacionaram nos fundos de um prédio aparentemente abandonado — é pouco provável que não me aceitem. Mas a Catra…

— O que tem ela? — Adora tinha um olhar aflito e uma preocupação estranhamente crescente — Acha que não vão ajudar?

— Vou contar tudo o que fizemos para chegar até aqui com ela na esperança de que eles se comovam com a história — um suspiro pesado interrompeu a frase — eu te disse antes, essa é a única maneira de salvá-la, mesmo não tendo certeza se vão ajudar ou não.

— Eu sei, eu sei, — a humana gentilmente pôs a mão em um dos ombros da outra para acalmá-la — você falou sobre os riscos, não quero que sinta que essa responsabilidade é só sua. Afinal,você fez tudo e muito mais do que podia por ela.

“O que elas têm com certeza é profundo, encontro de almas. Nada para o teu bico”, a voz mental fazia questão de gritar isso na mente da humana para que qualquer um daqueles sentimentos que vinham vagamente experimentando por Catra perdessem a força.

Como quem segura o choro, Scorpia respirou fundo e acenou com a cabeça. Apenas respondeu ao sair do carro, com um sorriso pequeno:

— E você também. Vamos entrar logo e ver no que vai dar.

Levaram uma Catra mumificada ainda dentro do caixote pelos fundos de um prédio cinza e apagado. Depois de poucos passos, o corredor começou a ficar mais iluminado e limpo, como se ali tivesse a real entrada do esconderijo secreto. Passaram por dois homens altos que liberaram a passagem de ambas ao notar que Scorpia era uma vampira visitante e, depois da grande porta de chumbo que findava o corredor, chegaram no oásis das criaturas noturnas. 

A humana esqueceu por alguns segundos o que tinha que fazer ali e deixou-se levar por seu interesse pela estética do lugar. Um salão com paredes longas, teto em formato de cúpula decorado com diversas iconografias, tudo em detalhes dourados sob cores neutras. Escondido por um exterior morto de um prédio acabado, um interior completamente envolto pela bela arquitetura bizantina. Não achava que era possível ver um lugar desse tão perto de onde morava que não fosse uma igreja ou templo. Ao lado direito do centro, diversas passagens com portais em forma de arco, provavelmente para os outros cômodos ali existentes.

— Uau…

Provavelmente diminuiu o passo com toda a sua surpresa, pois Scorpia estalou os dedos na sua frente para sussurrar um:

— Adora, preciso que se concentre! Temos que ir naquela direção.

Finalmente voltou para o mundo fora de seu cérebro facilmente impressionável pela arte e segurou firme a grande caixa junto com Scorpia para irem na direção necessária.

Dessa vez precisou ficar em uma saleta enquanto a amiga vampira tinha a conversa com um dos membros do Conselho. Olhava constantemente para a grande caixa que também ficara lá, ao seu lado. O destino de Catra estava sendo definido por outros enquanto ela estava lá, adormecida, sem poder usar os próprios argumentos. Era tão agoniante. 

Queria tanto vê-la bem. Tanto

Será que sempre foi tão empática assim ou Catra era sua primeira experiência? Tanto tempo vivendo por si só fez com que Adora aprendesse a ser sua única prioridade, e isso só mudou um pouco quando Glimmer e Bow chegaram. Não que era uma pessoa egoísta, ela apenas não se lembrava de ficar tão preocupada com alguém que tão pouco fez parte de sua vida. 

Era um sentimento que a despertava a curiosidade ao mesmo tempo que a causava medo. Não sabia para que lado o coração estava levando essa história e não queria mesmo se envolver, principalmente no meio de um sólido e óbvio relacionamento como o de Scorpia e Catra. 

Não queria fingir que nunca brincou com a ideia de sair com Catra até mesmo naquelas semanas em que negociavam. Não queria fingir que, por isso, estava propensa a desenvolver um interesse nela. Principalmente por causa das sensações estranhas que a assombrava ultimamente,uma familiaridade inexplicável com o toque dela, com a troca de olhares, até mesmo com o gosto do beijo. Coisas criadas pela sua imaginação, só pode ser.

Era excitante a ideia de conviver com vampiros, caso tudo desse certo. Porém, assustadora demais a possibilidade de sem querer se apaixonar por quem já era comprometida e que nunca nem olharia para ela. Sem contar que não podia ignorar aquele recado que fora deixado em seu bolso e que leu no avião. Era um adeus, então não era do desejo de Catra vê-la de novo. 

Adora não gostava de pisar em ovos com ninguém, se sua presença é indesejada, melhor ir embora. Preferia continuar do jeito que sempre foi, sozinha. 

Não estava emocionalmente disposta a nada disso.

Scorpia demorou uns bons minutos na outra sala e quando saiu, fora direto para o seu lado. Nenhuma palavra e várias movimentações ao seu redor.

Outros dois vampiros logo chegaram e carregaram a caixa de Catra para um outro lugar. Adora estava prestes a acompanhar, levantou automaticamente, como se seu corpo fosse conectado ao caixão, como se do lado dele não fosse sair por nada.

Apenas foi impedida pela mão de Scorpia que gentilmente pesou em seu ombro a impedindo de caminhar.

— Eles vão levá-la para uma transfusão agora — ela sorria e tinha uma expressão aliviada — conseguimos, Adora. Eles vão ajudá-la a acordar.

A humana soltou um suspiro que nem sabia que segurava. Também sentiu grande parte da tensão da situação se esvair finalmente.

— Que ótima notícia, — jogou o corpo contra o de Scorpia e a abraçou apertado num gesto quase inconsciente — estou muito feliz que conseguimos!

O abraço demorou a ser correspondido, provavelmente porque não era esperado. E Adora sabia que foi um gesto um tanto quanto precipitado. 

É que o alívio falou mais alto que a razão.

— Sim, eu também, — a vampira saiu logo do abraço repentino e desajeitado para continuar falando — mas eles não deram resposta sobre aceitarem ela no clã ainda. Depois que acordar, Catra ainda não terá um destino bem definido.

— Um problema de cada vez, não é? — o sorriso no rosto diminuiu e o tom foi um pouco desanimado apesar do discurso otimista — E você? Como vai ficar?

— Ah, eu fui aceita, — Scorpia não deixou o sorriso desaparecer em nenhum momento — não tenho um histórico tão caótico quanto o dela, então eles logo aprovaram minha transferência. Já vão começar a legalizar documentações aqui no país e preparar tudo para a minha estadia.

— Que bom! — o comprimento foi acompanhado de uma alisada no ombro, nada de abraços dessa vez — E com você dentro, talvez fique mais fácil de ajudar Catra enquanto ela ainda estiver ilegal, não é?

— Não faço ideia, mas eu vou fazer de tudo para não deixá-la desamparada, claro.

Scorpia deu mais um daqueles sorrisos que apertavam os próprios olhos de tanta gentileza. Talvez ela não odeie a Adora tanto assim. 

E acrescentou:

— E agora ela tem você também, então não acho que vai ser difícil manter nossa Catra fora de apuros. Não vejo a hora de falar com ela de novo.

“Nossa Catra”? 

Nossa Catra…

Não. 

Ela não era sua. 

Nunca foi.

— Sobre isso, Scorpia, — cruzou os braços num gesto de insegurança e desviou o olhar para baixo — eu disse que ficaria até que estivessem sãs e salvas. E vejo que agora estão. 

— Quer dizer que não vai esperar que ela acorde?

— Não. Vou embora antes… Mas quero ajudá-la anonimamente. Você poderia ser esse ponto de contato?

Não reconhecia a própria voz. Era sempre tão confiante e agora se mostrava aflita.

— Por que isso, Adora? — a mais alta a segurou pelos dois ombros cuidadosamente para que a olhasse nos olhos — Não queria tanto conversar com ela e entender as coisas?

— Até quero, mas lembra do bilhete? — conseguiu encará-la mesmo sem conseguir esconder toda a vulnerabilidade que esse assunto a acometia — Eu não vou contra a vontade dela, e também não quero mais ser a causa de tanta tragédia na vida dela, na vida de vocês duas… Eu não quero atrapalhar mais nada. E não vou.

— Adora, olha, — mais uma vez buscou o olhar da humana que ia caindo para o chão — não sei direito sobre o que a fez escrever esse bilhete, mas acho que era pela situação da época. Talvez ela fique feliz em te ver!

Por que Scorpia a incentivava tanto a ficar se tudo o que podia trazer para as duas era desentendimento?

Não podia. Colocaria todos os sentimentos e sensações confusas de volta numa caixinha e esconderia bem no fundo do subconsciente. O bem daquelas duas era muito mais importante do que suas confusões mentais, que eventualmente irão passar.

— Prefiro não arriscar e respeitar o desejo dela, Scorpia, — afastou-se do toque da outra — vamos nos falando sem ela saber e eu ajudo a pagar um lugar para ficar por um tempo, ou sei lá.

— E você vai conseguir viver sem saber o que realmente aconteceu naquela época? — a vampira não soou provocativa, era mesmo um questionamento honesto.

—  Eu consegui no último ano, não consegui? — usou de uma falsa determinação no olhar e na voz para disfarçar o aperto crescente no coração — Acho melhor nem mexer mais nisso… Se eu não lembro, talvez eu não esteja preparada para saber.

— Tem certeza que é isso que quer? — os olhos escuros de Scorpia mais uma vez eram firmes sob os claros de Adora.

Não. 

Não tinha certeza.

— Sim, — balançava a cabeça afirmativa enquanto dava passos para trás hesitantemente — foi legal me aproximar de você, mesmo diante de uma situação como essa. Espero que você e ela consigam se adaptar aqui em Salém.

— Já que é a sua decisão… Foi bom te conhecer também, — Scorpia parecia confusa com a despedida repentina, mas não questionou mais — e muita boa sorte no seu caminho. E pode deixar que eu serei, sim, o ponto de contato para que a ajude anonimamente.

— Ótimo, nos esbarramos por aí — acenou com um sorriso disfarçado no rosto e virou de costas. 

Antes mesmo de sair da sala já sentia um nó se formando na garganta, a única coisa segurando um choro repentino e reativo. De novo,  uma ação involuntária e irracional.

Quanto mais passos dava para se distanciar dali, mais crescia o familiar sentimento de falta que nunca conseguiu entender.

Voltaria a conviver com ela. Era o melhor a se fazer.

Notes:

Esse cap praticamente fecha o primeiro ciclo da história.
Daqui em diante, vai ser o novo rumo na vida de Adora humaninha e morte-vida de Catra vampirinha!
Até daqui umas semaninhas!

Chapter 15: Despertar

Notes:

POV Catra veio aí! Vamos ver como foi o despertar dessa querida.

Alerta para um pouquinho de angst no final. Nada demais para os meus parâmetros, vocês estão acostumados huehue

Boa leitura <3

(See the end of the chapter for more notes.)

Chapter Text

Pálpebras leves e controle sob os movimentos do corpo novamente. 

A ilusão de vida além do cenário monótono dentro da própria cabeça. 

Aparentemente havia acordado do coma.

Catra voltava a copiar o vai e vem da respiração de um ser humano e aos poucos deixava sua audição aguçada reconhecer as pistas sonoras ao redor. Não era a língua nativa da Romênia que se ouvia entre as paredes e corredores daquele lugar completamente estranho. Também notara que estava cercada de vampiros, sentia a presença não humana por todo lado naquele ambiente. 

Todos os sentidos queriam tomar a frente ao mesmo tempo e uma certa ansiedade aflorava na recém acordada. Olhar para o lado e ouvir o que se passava não estava ajudando em nada para tentar reconhecer o cenário.

Em contrapartida com o pequeno desespero, sua saúde parecia estar tinindo. Essa era uma das poucas vezes que sentia-se saciada desde que fora transformada. O ferimento no abdome, um dos últimos acontecimentos antes de desacordar, não estava mais lá. 

Estava 100%, pronta para outra emboscada, caso seus perseguidores viessem de novo.

O que será que estava acontecendo?

Levantou o corpo, não completamente, apenas o suficiente para apoiar ambos os cotovelos na cama e ter a capacidade de olhar em volta.

Mais do que nunca queria saber que tipo de universo alternativo fora criado enquanto estava completamente alheia do mundo real. 

Será que acordou mesmo ou era algum truque de sua mente para variar o breu monótono de antes, já que nunca ficara tanto tempo assim em coma?

Talvez tenha morrido de vez, sem chance de reanimação. 

Então esse era o plano espiritual para as criaturas sem alma?

Algo pulsou em seu corpo de dentro para fora, como se fosse um presságio, uma presença. Sentou-se na cama daquele quarto cheio de detalhes arquitetônicos e lançou o olhar para a porta. Era para onde os instintos vampirescos a mandaram se concentrar. Era dali que vinha a tal coisa que despertara o presságio. 

Só não havia definido se era algo bom ou ruim.

Em poucos segundos a porta se abriu. 

Scorpia entrou no cômodo como uma flecha e ajoelhou-se ao lado da cama. A vampira maior envolveu os braços no tronco de Catra e deitou delicadamente a cabeça na altura da barriga dela.

— Finalmente acordou, pequena! — exclamava a maior num evidente alívio e com a voz abafada pela posição que escolhera.

Era um bom presságio, então. Sentiu a presença de sua melhor amiga.

— Scorpia! — ajeitou-se de frente e a embalou nos braços, apoiando o queixo no topo da cabeça dela. A voz de quem ainda tentava decifrar se era sonho ou realidade — Que saudade!

Afastando-se apenas o suficiente para conseguir olhar nos olhos de Catra, Scorpia segurou o rosto da amiga com ambas as mãos de forma carinhosa e confessou sorridente:

 — Você não sabe o quanto estou feliz e aliviada de te ver acordada depois de toda a tensão que foi para te trazer até aqui.

— E onde exatamente é “aqui”? — levemente deitava o rosto em uma das mãos ali apoiada, correspondendo o gesto de afeição enquanto tentava se situar — O que aconteceu? O que te fez voltar para o meu caminho depois de tudo que te causei? Aliás, por quanto tempo fiquei desacordada para tanta coisa mudar assim?

 

— Vamos lá, vou te contar tudo — ainda de bom humor, a outra começou pacientemente o discurso.

Estavam em Salém, Massachusetts, Estados Unidos. Mais especificamente nos aposentos de um novo clã mais amigável com a convivência entre vampiros e humanos. Um sobre o qual queria ter falado para Catra antes de encontrá-la desacordada. Um que aceitou Scorpia de braços abertos, mas, que ainda iria pensar sobre seu caso em si. Mesmo assim, foram gentis o suficiente para ouvir os apelos de sua melhor amiga e ajudá-la a sair do coma. De agora em diante, viveria por conta própria até conseguir um sim desse clã.

Agora: como? Não fazia ideia. 

E nem focou nessa parte, por enquanto. Outras milhões de perguntas dominavam sua cabeça mais do que o medo do futuro próximo.

Como foi isso, afinal? O que possibilitou Scorpia a vir da Romênia até o atual clã com uma vampira desacordada? Qual foi o plano brilhante?

De acordo com a mais velha, tudo só foi possível graças a uma terceira pessoa disposta a entrar na missão temporariamente. Esta mesma pessoa ajudou a mumificar Catra e trazê-la sem muitas burocracias pela imigração, já que foi devidamente declarada como um “bem artístico de valor intelectual para doação”. 

— Que ideia mais absurda, improvável e brilhante! — mesmerizada, Catra não piscava os olhos de tão interessada que estava aos detalhes — E quem foi esse gênio ou gênia que te ajudou? É daqui do clã também?

Pela forma que Scorpia se mexeu para mais longe de seu corpo e ajeitou-se na cadeira como se estivesse desconfortável, Catra sabia que vinha uma informação não tão agradável.

— Não foi ninguém do clã, não… — a outra coçava a nuca enquanto pausava longamente a fala na esperança de não vir mais perguntas.

Se ela achou que isso ia funcionar, estava completamente enganada.

— Então quem foi, Scorpia?

Quem poderia ter sido? Não era lá tão querida assim por muita gente. Talvez por ninguém além daquela na sua frente. Impossível ser alguém de algum dos bares que trabalhava porque mal trocava três palavras com os funcionários.

O cérebro estava a todo o vapor tentando esgotar as possibilidades e a outra presente na sala parecia não se incomodar com o silêncio ensurdecedor pela falta de resposta, deixando a mais nova ainda mais frustrada.

Até que:

— Adora — era quase um sussurro

— O que? Eu acho que não ouvi direito…

Será que Scorpia tinha mesmo falado esse nome?

— Foi a Adora que ajudou, — falou mais alto e suspirou logo em seguida, em um tom meio arrependido — conhecendo você, eu sabia que não iria sossegar enquanto não arrancasse de mim quem foi que ajudou, então é melhor que saiba logo. Eu fui atrás dela depois que te encontrei desacordada naquele estado e a convidei para ir para Transilvânia fingindo ser uma pesquisadora interessada na contribuição dela e, enfim… Quando ela estava lá contei toda a verdade e ela topou te ajudar, entã-

— Espera, espera — Catra levantou uma das mãos em um sinal para que a mais alta parasse de falar enquanto olhava vagamente para o chão, ainda tentando assimilar o que ouvira — Como assim a Adora? Para que ela iria me ajudar se… Scorpia, eu apaguei as memórias dela, ela não lembra de nada que aconteceu entre a gente. Por que…? Como ela topou ajudar?

Involuntariamente, um fluxo de emoção percorria o corpo da jovem vampira. Tudo pulsava, até mesmo o coração parecia estar querendo sair pela boca depois de tantos anos inativo. Ainda que uma sem alma, suas emoções ainda estavam lá e eram facilmente afloradas quando certos gatilhos eram ativados. 

Um deles era Adora. 

E mais do que nunca, saber que ela foi o cérebro da missão que a salvou mexia completamente com o seu racional.

— E onde ela está agora? — praticamente puxou a amiga pela blusa para que ela não tivesse outro lugar para olhar a não ser em seus olhos desesperados por respostas.

— Ela preferiu se afastar antes que você acordasse… — interpretando a leve virada de cabeça de Catra como um questionamento, Scorpia continuou — Primeiro ela garantiu que você estivesse a salvo e com a ajuda do clã confirmada para te reanimar. Depois ela se despediu e disse que era melhor seguir caminhos diferentes dos nossos ou algo assim.

Soltou a camisa da mais alta e voltou para recostar-se no travesseiro apoiado na cabeceira da cama. Da mesma maneira impetuosa que as emoções surgiram, elas cessaram. Um vazio sobre o que sentir ou pensar a dominava. Não era para estar tão impactada assim com a falta de presença de quem pediu para que nunca mais a procurasse. 

— Fui eu… — murmurou em evidente desânimo — O bilhete que deixei antes de ela embarcar…

— Ei… — Scorpia levantou seu rosto com uma das mãos em um toque suave.

Quando encontrou o olhar da amiga, segurava ao máximo para não derramar as lágrimas do sangue que corria para além de suas veias depois de tanto sacrifício.

— No final das contas, acho que ela fez certo, — em um exercício para se acalmar, inspirou e expirou o ar não mais relevante para seus pulmões mortos — o importante é que agora eu tenho mais uma chance, e dessa vez, vou tentar não sobreviver por um fio o tempo todo. Vou tentar viver por mim…

— Isso, e eu vou estar aqui contigo

Mais um abraço apertado e correspondido de Scorpia para Catra. 

Era, de fato, reconfortante ter sua melhor amiga de volta. Perdeu uma grande oportunidade de rever a possível paixão inconsequente de seu passado recente, mas, reconquistou a presença vital de quem tanto clamou pela volta.

E quanto ao desejo de Adora de não fazer mais parte de sua história, iria respeitar. Era o mínimo que podia fazer por ela. Estavam quites agora, salvaram-se da morte.Talvez esse seja o único objetivo pelo qual o destino as colocou uma na vida da outra. 

A missão foi cumprida, é hora de virar a página.

Os primeiros dias de adaptação ao novo local foram um pouco intensos. Porém, graças a uma ajuda misteriosa que Scorpia vinha conseguindo provavelmente de dentro do clã, Catra conseguiu arrumar logo um quarto e sala para morar. Era no porão de uma casa, com entrada independente e pouca interferência da luz do Sol. Perfeito para suas condições vampirescas. Também ficava a poucos minutos andando do clã onde agora morava sua melhor amiga. Era com ela que pegava as quantias doadas anonimamente para pagar o novo aluguel, comprar peças de roupa e alguns outros itens essenciais. Em paralelo, também ganhou uma boa quantia de bolsa de sangue do clã que conseguiria mantê-la alimentada por um bom tempo.

Por causa da facilidade com a língua nativa, não demorou muito para conseguir um emprego noturno em uma pizzaria da cidade. Depois de poucas semanas já estava minimamente confortável com uma nova rotina, não tão menos trabalhosa, porém, infinitamente mais segura do que na Romênia. Não se sentia perseguida e nem ameaçada pelos vampiros com quem se esbarrava pela rua, não era proibida de ser vista com a melhor amiga pelo medo de punição. Sentia que este novo começo era um presente do destino depois de tanta crueldade que ocorreu nos últimos tempos, depois de tanto que perdeu.

Inspirada pelos novos ares, pesquisou um pouco a história do local e descobriu um ponto turístico interessantíssimo. Queria muito levar Scorpia lá para um momento descontraído, passar um tempo leve e construir boas memórias como forma de gratidão por todo o esforço da amiga para ajudá-la com a nova fase. 

Em um dia de folga, esperou o último raio de sol desaparecer no horizonte para correr até Scorpia. Cheia de mistérios, implorou para que a amiga fechasse os olhos e a deixasse ser guiada para uma surpresa. Como era a poucos metros dali, foram andando pela rua de braços dados. 

Uma cena e tanto: uma grandona de olhos fechados sendo guiada por uma “meio metro” ainda confusa com a geografia da nova casa.

Alguns minutos andando a levaram para um dos diversos cemitérios espalhados por Salém. Catra guiou Scorpia até um dos milhares de banquinhos em volta de centenas de lápides e a deixou reabrir os olhos.

— Old Burying Point, ou um dos cemitérios mais antigos dos Estados Unidos e o mais antigo daqui de Salém. Foi inaugurado em 1637 e muitos dos nossos ‘amiguinhos’ caçadores de vampiros e bruxas estão enterrados aqui, — Catra informava confiante e imponente, como uma especialista no assunto — e na rua ali de trás fica o memorial das bruxas, da época da inquisição. 

— Sua nerd… — a mais alta soltou uma breve risada enquanto olhava em volta — A gente veio aqui porque era uma surpresa para mim ou porque você estava querendo soltar a historiadora contida que tem dentro de você?

Com as sobrancelhas arqueadas, a mais baixa lançou um olhar incrédulo para a amiga e abriu um sorriso de ponta a ponta.

— Tá, eu queria sim vir aqui para conhecer de perto o que antes eu só tinha visto em livros, — aproximou-se da amiga enquanto falava para dar uma leve empurrada no ombro dela — mas também você não queria conhecer os principais pontos da cidade? Acabei fazendo uma vontade sua, por isso foi uma surpresa, viu?

— Sei — apesar do olhar desconfiado, Scorpia não escondia o sorriso do rosto.

Depois de convencer que o passeio era, sim, uma iniciativa carinhosa dela para a amiga, Catra a puxou pelo braço para que caminhassem pelo lugar e explorassem livremente os pontos que tanto tinham curiosidade de conhecer, enquanto a calada da noite permitia.

Passaram horas lendo lápides e tentando adivinhar quem era mais importante que quem ali para a história política local, e também quem foram os principais disseminadores do ódio que matou milhares de humanos e outras tantas espécies sem nenhum motivo real. Também passaram no memorial e prestaram condolências às amigas bruxas e às muitas pessoas, principalmente mulheres, que também foram rechaçadas numa época de uma doutrina tão sombria para a humanidade.

Quando finalmente decidiram sentar e apreciar o vasto campo que era a área do cemitério, a madrugada já estava quase no fim. Durante o silêncio confortável, Scorpia lançou um olhar caloroso para a mais baixa e abriu um sorriso.

— Obrigada por essa noite, pequena.

— Imagina, — encostou a cabeça no ombro da amiga mais alta que sentava do seu lado e também sorria — estou realmente feliz de poder passar o tempo contigo de novo.  

Não estava mentindo. Catra realmente via a volta de Scorpia como uma das melhores coisas que aconteceram desde que acordara novamente. 

Fechou os olhos apenas para aproveitar o silêncio reconfortante que pairava mais uma vez. Contudo, o momento foi logo cortado pela voz da vampira mais velha.

— Catra, tem uma coisa que quero te falar há um tempo, — havia hesitação no tom de voz, mas, mesmo assim, continuou —  aliás, acho que já devia ter sido honesta contigo o quanto antes.

— Pode falar — Catra levantou a cabeça para olhar propriamente para a outra e dar-lhe a atenção necessária.

— Nesses últimos meses, eu passei por um processo de superar um amor platônico que sempre tive por você. — Scorpia deu uma pausa por precaução e continuou ao ver que não seria interrompida — Principalmente depois de ter passado pelo medo enorme de não conseguir te ajudar a acordar e te perder, coloquei à prova meus sentimentos e vi que finalmente me sinto confortável vendo outra pessoa em sua vida, e como isso jamais vai excluir o quanto eu sou importante para você e você, para mim. Estou feliz de poder confessar sem nenhum peso mais, depois de tantos anos guardando isso dentro de mim.

Um tapa na cara teria tido um impacto menor do que essa confissão. 

Provavelmente seus olhos estavam arregalados, pois não conseguia, nem com muito esforço, mover as pálpebras em choque. Desviou o olhar para o chão para não ter que encarar a outra vampira.

Precisava de uma resposta, antes que causasse um mal estar. 

Limpou a garganta e sem pensar muito deixou com que a fala viesse de seu coração:

— Você sabe que é a pessoa mais importante do mundo para mim, mas, nunca foi no sentido romântico, — criou coragem para manter a firmeza na voz calma e voltou a encará-la para enfatizar o quanto estava sendo sincera — e me desculpa se um dia te dei qualquer tipo de impressão errada. Eu deveria ter sido mais cuidadosa contigo. Eu te amo muito, mas é como se você fosse minha família, a única que eu tenho. Olha… Não quero atrapalhar qualquer que seja esse teu processo e, se for preciso, posso me afastar por um tempo-

A mais alta se ajeitou-se até ficar de frente e segurar seu rosto com as mãos como se fosse o ser mais delicado do mundo, como habitualmente fazia. 

O toque era um dos principais gestos de amor de Scorpia, sempre foi. Por isso sequer desconfiou que eram nesses momentos que ela acabava confundindo a liberdade que Catra a dava de tocá-la. 

Scorpia só tinha essa permissão porque era alguém em quem confiava de olhos fechados, e não porque queria incitar outras intenções. 

— Não, claro que não, Catra! — Scorpia a interrompeu, indiretamente pedindo a palavra — Eu já passei da fase de afastamento. Ou esqueceu que ficamos um ano sem falar uma com a outra? Foi difícil para caramba, mas muito necessário. É por isso que hoje consigo lidar muito bem com nossa amizade. Eu te amo, pequena. E sua parceria, do jeito que é, é mais do que o suficiente para mim.

Ainda confusa em como interpretar esses toques agora que soube da verdade, segurou as mãos de Scorpia com as suas próprias e as tirou de seu rosto sem ser muito rude. Continuou as segurando firme para mostrar que não tinha medo da proximidade, que era apenas um mecanismo para não mais confundir a própria amiga. 

— A última coisa que eu quero é ser um problema para você, Scorpia, de verdade, — apertava as mãos da amiga, inconscientemente demonstrando a aflição de perdê-la — eu não me importo de te dar o espaço que for necessário.

— Não é, não é um problema, olha… — entendendo e respeitando o gesto da mais baixa, voltou a sentar-se normalmente dando o espaço físico que Catra parecia precisar — Sabe o motivo de eu ter te contado tudo isso agora?

— Desencargo de consciência? — Catra chutou uma resposta tentando quebrar o clima de tensão que pensou ter criado ao fazer Scorpia sentar mais distante.

Pelo visto, só ela achava que havia tensão, já que Scorpia soltou uma risada breve e continuou em um tom gentil:

— Sim, também. Mas, o principal motivo é que eu finalmente conheci a única para quem você abriu esse espaço no seu coração. E ela realmente é uma pessoa incrível.  

A última frase foi suficiente para fazer com que a cabeça de Catra girasse e, novamente, o fluxo caótico de emoções voltasse à superfície. Sabia exatamente de quem sua amiga falava, o que automaticamente trouxe memórias que tentou tão dificilmente enterrar para não mais acessar. 

 

— Ah, não, Scorpia, não vamos começar a falar dessa pessoa, — sua linguagem corporal entregava a fraqueza que esse assunto a trazia, pois sua voz era evidentemente trêmula e suas mãos foram direto para o rosto na tentativa de escondê-lo — eu mesma já me questionei o suficiente sobre isso, e quanto mais o tempo passa, menos sentido eu vejo no que eu achava que sentia por ela. 

— ‘O que você achava’ coisa nenhuma, o que você sentiu, — sem lutar muito mais contra sua própria maneira de ser, lá estava Scorpia acariciando um dos ombros de Catra para consolá-la — e o que ainda sente!

Catra suspirou profundamente, tirou as mãos do rosto e fixou em um ponto aleatório no chão para não ter que encarar a amiga. Ou a verdade que era jogada na sua cara.

— Não tem como negar, Catra. Você moveu mundos pela Adora e eu vi o que você viu nela. O brilho nos olhos, a determinação… Quando ela se comprometeu em ajudar, pôs o coração e alma dela em cada ação, cada palavrinha. Dava para notar o quanto te ver naquele estado a incomodava, e que o que ela mais queria era te tirar daquela situação. Não foi à toa que não mediu esforços para te trazer até aqui comigo.

Apesar da voz tão gentil, a vampira menor sentia que cada entrelinha dessa fala a acertava como uma estaca no peito. Por que a Scorpia estava insistindo nisso? Por que estava contando esses detalhes? Nada disso importa mais.

— E foi assim que ela ganhou você, não foi? — Insistente, a voz macia da mais velha ecoava em seus ouvidos e chegava até o mais profundo poço que tentou esconder um certo sentimento por uma certa humana — Ela trouxe de volta toda a vida que você achou que tinha perdido quando a Weaver te transformou.

Não queria ouvir mais do óbvio. Não queria porque sabia que já tinha perdido essa batalha e não era mais possível recuperar o tão pouco tempo de felicidade que conseguiu viver ao lado dessa humana.

— É, talvez você esteja certa, mas acabou, — sua voz falhou na última palavra, como se involuntariamente não quisesse admitir o que admitira e, ainda assim, insistiu — já era. Eu sinto que nosso tempo passou e tudo o que podíamos viver dessa história juntas já vivemos. Ainda pode ser perigoso para ela estar perto de mim. E lembra, ela foi embora, ela quis ir , e eu vou respeitar. Ela não tem mais nada a ver com a minha vida, nem eu com a dela.

— Será? Porque eu tenho a sensação de que vocês ainda vão-

— Quer saber? Vamos parar com esse assunto, — Catra levantou abruptamente do banco e claramente interrompeu a amiga sobrepondo a fala sob a dela — e é melhor voltarmos antes que o sol comece a nascer, não falta muito.

Estendeu a mão para que a outra levantasse num gesto que selava que estavam de bem. Queria deixar claro que não estava chateada com ela nem pela confissão repentina e nem pelo assunto que tanto mexera com seu coração. 

Abriu um sorriso para tornar tudo ainda mais convincente e esconder a dor da ferida cutucada.

Sabia que esse assunto viria à tona novamente. Por hoje, contudo, não queria falar sobre Adora, não queria jogar terra nos bons momentos que ali passara com sua melhor amiga.

De enterrado já bastam os tantos corpos naquele cemitério.

De enterrado já basta o amor que jamais conseguirá reviver.

Notes:

Agora vem uma fase da Catra fora do personagem herdeira dela, vamos de personalidade real da nossa vampira favorita agora (adianto que ela é uma fofíssima, Catra real >>> Catra herdeira)

Até a próxima :)

Chapter 16: Ajuda

Notes:

Adivinha só quem ainda tá viva? A autora que tem bloqueio criativo e é sugada pelo buraco negro que é a vida profissional ooo:

Essa história vai continuar, sim, nem que seja um capítulo por cada ano bissexto.

(mas acho que semana que vem tem o próximo, pq tem uns 2 adiantados dessa vez, amém).

Então, bora? Bora!

Boa leitura <3

Chapter Text

Cinco meses haviam passado desde que acordara para sua chance de vida de número 4.378. 

E este tempo fora mais que necessário para que Catra caminhasse de volta nos trilhos. Já fazia três meses desde que avisara à Scorpia que não precisava mais da tal ajuda, pois já era bem capaz de manejar a própria vida financeira sozinha. Não tinha o melhor dos empregos, nem morava num apartamento decente mas, ainda assim, o presente era muito mais descomplicado do que seu passado de um ano atrás. 

Até mesmo a ideia de nunca mais ver Adora a entristecia menos a cada dia passado. Claro, continuava intrigada com o fato de ter estado tão perto dela de novo sem a chance de conversar, de saber pessoalmente como ela estava. 

Com menos episódios de humilhação para evitar, tinha mais tempo livre para não pensar em só se livrar do pior, e, consequentemente, sonhar mais. E aquela humana inesquecível fazia parte de quase todos os cenários que se permitia imaginar no silêncio da solitude. Às vezes até fuxicava a vida dela aparecendo escondida em algumas das exposições que sabia que a encontraria só para observá-la de longe. Mas, não passava disso.

Sabia que não ousaria ultrapassar o campo da imaginação e da observação. Adora se afastou por opção, e foi até melhor assim. Pelo menos era o que dizia para seu próprio consolo. 

E funcionava, lenta e gradativamente, mas funcionava.

Independentemente das recaídas e da solidão social corriqueira que nunca mais a abandonou desde que passou a viver fora do respaldo de um clã, parecia que agora vivia sob uma outra perspectiva. Logo iria dar um jeito de ser aceita. Senão, logo iria se estabilizar financeiramente a ponto de alugar um apartamento de mais de dois cômodos, ou teria mais experiência profissional para sair da pizzaria meia boca que trabalhava para um lugar melhor. 

Tudo era uma questão de tempo, não mais de sobrevivência, e podia dizer que sentia lá no fundo de seu coração parado uma pitada de alegria, orgulho de si mesma.

E assim continuaria se fosse uma criatura de sorte. 

O que não é.

Sentia o otimismo que nem se acomodou direito partindo a cada vez que lembrava da conversa que tivera há semanas atrás com o gerente da pizzaria. 

No momento fez a única coisa que poderia: entregou o uniforme brega para ele e, depois de ficar apenas 15 minutos dentro da loja naquela noite, virou-se e foi embora chorar no ombro de sua única confidente no mundo, Scorpia.

As frases “vamos fechar o estabelecimento permanentemente em algumas semanas” e “desculpe, mas precisamos te dispensar a partir hoje, pois não temos como te pagar” foram as campeãs no looping que dominou sua mente por uns bons dias. Com essa memória, vinham constantes os sentimentos de impotência, de perda de controle, e, por fim, de desespero. 

Há semanas que nada mais dependia dela, semanas que a aproximava cada vez mais da possibilidade de ter que partir para o sacrifício novamente, semanas que nem o tempo era tão amigo quanto antes.

As contas estavam chegando debaixo da porta, e o aluguel tinha acabado de vencer. Nenhuma das entrevistas que começou a fazer logo no dia seguinte depois da demissão tiveram bons retornos. Os postos que precisavam de mão de obra imediata eram de manhã ou de tarde, impossíveis para ela.  Não podia se aventurar com entregas, pois seu único meio de transporte era a bicicleta, e nevando do jeito que estava, era inviável.

Precisava achar um jeito de arrumar dinheiro, nem que fosse emprestado.

Até que em um dia inspirado teve uma boa ideia e foi correndo encontrar Scorpia no único local dentro do clã que tinha acesso aos não-membros: o salão de visitas.

— Pequena, bom te ver! — Scorpia saía de um dos corredores chiques do local carregando uma garrafa térmica na mão e um sorriso largo no rosto — Aqui, trouxe um pouco da nossa bebida favorita.

Imediatamente olhou para a garrafa e deixou o instinto falar mais alto. Em segundos tirou a tampa e deu longas goladas até acabar com os, pelo menos, 600 ml de sangue que tinha ali dentro.

Nem estava com tanta fome assim. Mas, para que resistir à vontade? Até porque, do jeito que as coisas iam, essa podia ser sua última alimentação decente dos próximos dias.

— Eu fico chocada com a qualidade do sangue daqui, — Catra ainda tinha os olhos completamente pretos pelo efeito da transformação espontânea quando fitou a amiga — daria qualquer coisa para entrar nesse clã, principalmente agora.

Depois de uma balançada de cabeça em concordância e uma expressão empática, Scorpia indagou:

— Mas, não veio aqui só para me falar isso, né? Você disse na mensagem que tinha uma ideia que pode te salvar. Qual é?

— Estava pensando em pedir um empréstimo de alguma forma aqui no clã, pelo menos para esse mês, e assim que voltar a trabalhar, eu pago. 

— Não sei como essas coisas funcionam para quem não faz parte daqui…

A mais alta vagava o olhar em exercício de pensamento, até que, repentinamente, voltou a fitar a amiga com a expressão mais eufórica do mundo:

— Já sei! Posso conseguir a doação anônima de novo para você! Só preciso falar com a pessoa, e você não precisa se preocupar em devolver porque ela vai ficar mais do que feliz em poder te ajudar.

— Não, nada de doação, — encarava a amiga um pouco desconfiada — até porque sempre te disse que não entendo os motivos dessa pessoa de ajudar assim, anonimamente. Quer ver que um dia isso vai voltar para mim com algum favor muito caro e impossível de recusar? O mundo é assim, Scorpia, não tem tanta gente boa como você pensa. Se por acaso você conseguir, eu vou pagar logo no primeiro salário. E eu ainda não desisti de juntar toda a quantia que já me doaram para devolver tudo certinho, só preciso de mais tempo agora…

A vampira mais velha dava uma risada descontraída. Não parecia tão preocupada com a índole da fonte:

— Catra, quem te ajuda jamais vai te pedir nada em troca, — afagava o cabelo da menor só para irritar com o demasiado carinho e bom humor — e muito menos aceitar o dinheiro de volta.

— Ah, é? — um pouco irritada com o gesto, Catra cruza os braços e desvia da mão da amiga para abusar do deboche no tom de voz — E quem é esse espírito de tanta bondade que vaga pela Terra?

— Não posso falar, já te disse mil vezes, — ignorando o afastamento, Scorpia volta a encostar no cabelo da amiga, agora ajeitando o que havia bagunçado —  mas, achei sua ideia boa, só que a minha é melhor. Ainda hoje mando mensagem para ela.

— ‘ Ela?’

— É, ‘ela’ porque é a pessoa.

— Hm… 

Não insistiu por muito tempo na análise em busca de pistas sobre essa pessoa. Focou em aproveitar o tempo com a amiga e deixou passar a curiosidade latente.

A confirmação veio dois dias depois. 

Scorpia recebeu a resposta de que a ajuda viria, sim, e que ela seria a responsável por intermediar a doação de novo. Como a amiga havia antecipado, a fonte não iria querer o dinheiro de volta, sem insistências. 

Isso só despertava ainda mais o desejo de saber quem era essa criatura, porque iria devolver o dinheiro de agora e das ajudas anteriores, sim!  Nem que tivesse que jogar tudo na cara dela. 

Algum dia… Não agora. 

Era uma questão de dignidade própria, essa pessoa teria que entender. Só precisava descobrir quem era.

Mas, antes, precisava mesmo era pagar o aluguel. 

Por isso, assim que Scorpia confirmou o recebimento, foi no clã pessoalmente para buscar o dinheiro. Sem transferências bancárias porque não tinha documento para isso, tinha que fazer como quando ainda era humana e as transações financeiras eram arcaicas.

No caminho da saída, avistou uma figura conhecida. 

Cabelos loiros, estatura alta. 

Era ela

Estava a um tempo querendo encontrá-la, não podia perder essa oportunidade.

Desviou a caminhada até a direção dela e nervosamente cumprimentou:

— Oi! Você é a Perfuma, não é?

— Olá, — a criatura esguia virou-se para cumprimentá-la de volta com um aperto de mão e um sorriso bondoso que lembrava o de sua melhor amiga — Sou eu, sim. E você é a Catra, amiga de Scorpia, certo?

— Isso mesmo!

— Como estão as coisas? 

A pergunta foi por pura educação, mas, Catra iria usá-la como gancho para apelar, mais uma vez, pela sua admissão.

Assumindo que Perfuma sabia de seu caso, já que a reconheceu por ser amiga da Scorpia, usou de toda a gentileza que possuía dentro de si para se expressar:

— Não muito boas. Inclusive, queria te perguntar sobre a possibilidade de avaliarem meu caso aqui no clã. Acha que consigo ter alguma chance? Uma reavaliação, talvez?

— Eu não tenho uma resposta, Catra, — a outra hesitantemente respondia com um olhar de pena evidente — seu caso é bem complicado, você foi expulsa e nunca um vampiro expulso foi aceito aqui no nosso clã antes. Por mim, eu avaliaria o caso. Conversei bastante com a Scorpia no dia em que a aceitamos e ela contou sua história. Mas, não depende só de mim, o Conselho é composto por muitos outros e todas as nossas decisões precisam ser unânimes.

— Entendo… — automaticamente abaixou o olhar e a voz.

— Eu vou tentar levar essa assunto para alguma das reuniões, pelo menos a possibilidade de rever o caso, — ela encostou em seu ombro e o acariciou gentilmente — quero tentar te ajudar, mas não posso garantir que dê certo…

Por algum motivo, essa frase a fez lembrar da ajuda financeira. 

Será que a alma boa que a ajudava, no final das contas, era Perfuma? 

Possível. 

Scorpia sempre falava que nunca na vida conheceu uma vampira tão empática como a Perfuma, e que se não fosse por ela, não teria conseguido convencer o resto do clã a acordá-la.

— Perfuma? — tentou manter a voz neutra apesar da desconfiança com que encarava a outra — Por um acaso foi você quem me doou os valores do meu aluguel?

— Não — ela fez uma confusa, como se, honestamente, não estivesse por dentro do assunto — Você recebe doações em dinheiro? Vai ver é alguma ONG…

— Não, Scorpia sempre menciona como se fosse uma pessoa, — desviou o olhar pensativo para algum ponto no teto enquanto falava mais para si do que para Perfuma — quem deve ser, afinal?

— E aquela mocinha que veio junto com a Scorpia te trazer? 

Com a plenitude de quem faz um comentário corriqueiro, Perfuma acionou múltiplas explosões simultâneas nos neurônios de Catra. 

Mas era tão óbvio!

Esse tempo todo…

Só podia ser a Adora!

O que fazia e não fazia sentido ao mesmo tempo, pois ela foi embora por conta própria antes que pudesse conversar com Catra.

Contudo, o fato de terem mantido a doação no anonimato era muito pertinente.

Até porque Scorpia sabe que ela jamais aceitaria se soubesse. Talvez até mesmo Adora saiba, apesar do tão pouco que conviveram.

Então, por que estaria fazendo isso?

E se realmente for Adora,. Catra teria que pará-la. 

Foi assim que decidiu: esse mesmo dinheiro que salvaria seu aluguel do mês iria voltar para as mãos da dona de uma vez por toda. 

Nem iria usá-lo mais.

Adora não deveria nem pensar em fazer  isso.

Aliás, se escolheu sair de sua vida, tinha que sair completamente.

Sem ajudinhas pelas costas.

Foi para Boston na noite seguinte. Observou os últimos funcionários saírem daquele museu movimentado, Adora sendo uma das que caminhava distraidamente para o metrô. Seguiu cada passo, escondendo-se pelas sombras, até chegar ao prédio onde a humana morava.

Esperou que ela entrasse no salão do prédio, naquela hora da noite, completamente vazio. Antes que a larga porta de vidro pudesse fechar automaticamente, Catra pôs um dos pés para impedir e logo entrou. 

O movimento chamou a atenção da humana que parou no primeiro degrau da escada e virou-se, não acreditando no que estava na sua frente.

Ou melhor, quem estava na sua frente.

As duas eram as únicas naquele cubículo que só dispunha de duas saídas: a porta, logo atrás de Catra, e as escadas, que só levavam para cima.

— Catra…? — assim como a voz, a cor do rosto de Adora sumiu, evidenciando ainda mais os azuis dos olhos exageradamente abertos em surpresa.

Aquilo a desestabilizou completamente. 

Falar com humana, ter que colocá-la contra a parede e fingir que nada disso mexia com seus sentimentos era demais. Mas, precisava focar na missão que tinha ali.

Ignorando quaisquer boas maneiras, apenas cruzou os braços e, com uma expressão forçosamente intimidadora, foi direto ao ponto:

— Eu sei que não me quer por perto, e tudo bem. Eu vou embora assim que me responder uma pergunta.

Estava evidente que Catra não era a única desconfortável ali. Além das reações fisiológicas que entregavam Adora, como a pulsação acelerada e a respiração curta, também tinha a expressão de estranhamento da cena. Era óbvio que não esperava que Catra aparecesse do nada na sua frente em uma corriqueira noite pós-trabalho. 

Ainda processando lentamente o que acontecia, balançou a cabeça afirmativa e sentou-se no degrau da escada que antes tentara subir. 

As pernas não pareciam conseguir aguentá-la por muito tempo com o choque que levou.

A vampira engoliu a seco o arrependimento de ter causado esse susto na humana e limpou a garganta discretamente. Levando em consideração que o aceno de cabeça era um sinal para que seguisse com a pergunta, retomou a fala: 

— É simples, basta me responder sim ou não. E espero que não tente me enganar, porque você sabe muito bem que posso arrancar a verdade por bem ou por mal.

Continuou na linha ameaçadora, um método para esconder a vulnerabilidade que naquele momento não estava disposta a expor.

— Então pergunta — a humana foi direta e firme.

Era um disfarce também, disso a vampira já sabia.

— É você que está mandando dinheiro pela Scorpia para me ajudar? — deu um passo, aproximando-se.

Antes mesmo da pergunta terminar de ser feita, a mulher tinha a respiração presa de tão tensa. Contrariando o medo, ela segurou no corrimão e levantou da escada para assim fitar a vampira numa posição menos inferiorizada, aproveitando dos seus poucos centímetros a mais de altura.

Estavam frente a frente. O silêncio dramático foi cortado com a voz ainda baixa da curadora:

— Foi uma forma de não te deixar desamparada nos primeiros meses em um novo lugar. Não queria que colocasse sua vida em risco de novo para sobreviver, que anulasse suas chances de entrar no clã e-

A vampira balançava a cabeça em negação.

 — Chega, chega, — interrompeu a mais alta e não escondeu a decepção ao indagar — eu quero que pare de fazer isso. A partir de hoje, não mande mais um centavo sequer. E toma isso de volta.

Entregou na mão da humana com mais força que o normal a quantia de dinheiro que havia pegado mais cedo com Scorpia e guardava no bolso do casaco pesado de neve.

— Mas, por quê? — Adora olhou o dinheiro em sua mão por alguns segundos e logo voltou a encarar Catra com um olhar magoado, indignado — Por que eu não posso te ajudar, afinal? Você perdeu o emprego, está prestes a ser despejada do apartamento-

— Não, Adora! — mais uma vez a interrompeu abrupta e igualmente indignada — Não. Não quero seu dinheiro porque não acho justo. E também porque não faz sentido nenhum você querer de alguma forma estar na minha vida sendo que foi você que decidiu se afastar! E se é isso que quer, tem que ser por completo! 

— Acho que é uma questão de você aprender a aceitar quando precisa de ajuda, — hesitantemente, a loira levou uma das mãos ao ombro de Catra — e eu posso te ajudar.

Rejeitou o toque, afastando a mão da humana imediatamente num ato de autodefesa.

— Acho que é uma questão de você parar de achar que me conhece! — praticamente gritou.

Adora estava atônita, boquiaberta, até. 

A fisionomia de susto logo foi substituída por uma de mágoa.

— Uau… — um sussurro seguido de uma risada curta, irônica e impaciente — Sinceramente, você não se parece com a Catra das minhas lembranças…

Quem era a atônita agora era Catra. Deu um passo para trás dessa vez.

— Que lembranças? — a voz falhou completamente, precisou limpar a garganta e se recompor — Você tem lembranças do que, exatamente?

— Não muita coisa, são memórias bem fracas de quando eu estava lá, na verdade. — a humana murmurou e abaixou o olhar pensativa, mas, logo voltou a encarar a vampira — O que dá para dizer é que nos demos muito bem, que éramos amigas. Ou pelo menos parecia… Mas não acho que alguém que eu consideraria amiga iria me tratar assim depois de tudo que aconteceu.

Aquilo causou um arrepio na espinha. 

Às vezes parecia que Adora tinha propriedade do que era esse “tudo” pelo qual passaram. Sendo que, mesmo se tivesse as memórias de volta, a humana não teria ideia de que tudo que sentiu foi por pura manipulação. Ela não se interessou por Catra de verdade. Se não fosse a hipnose, lá no início, talvez ela nunca tivesse olhado-a com esses olhos. Não seria saudável trazer de volta essas memórias. Só seria doloroso, causaria ainda mais confrontos.

Era por isso, que, se quisesse manter a integridade dos reais sentimentos da mulher, pelo bem de ambas, Catra precisava fazer o exercício mental de pretender que, de fato, nada tão íntimo havia acontecido. 

Independentemente do que Adora sabia, se para ela foi mesmo uma forte amizade, partia seu coração olhar naqueles olhos azuis naquele momento. 

Ela estava magoada com a atitude de Catra. E com razão. Não precisava ter sido cruel assim, mesmo esta sendo a única maneira que aprendera a lidar com confrontos quando tudo e todos pareciam ser seus inimigos. 

Mas, Adora não era sua inimiga.

Fechou os olhos para esconder a vergonha do arrependimento e respirou fundo, ainda sem saber o que falar.

O que causou um silêncio desagradável, que foi logo cortado pela humana.

— Enfim, você venceu, tá? — ela levantava as mãos em um gesto de desistência, a voz parecia cansada — Mesmo querendo muito, de alguma forma, retribuir o que fez por mim, vou deixar que resolva seus problemas sozinha, já que é o que tanto deseja.

Entendendo a inatividade da vampira como um desprezo, a humana deu um último suspiro pesado e virou-se mais uma vez para subir as escadas e ir embora.

O movimento tirou a vampira do transe, finalmente.

— Ei, Adora?

Ela parou no quarto degrau dessa vez. Mesmo com a distância, era visível que seu olhar era atento nela.

Veio um ímpeto doido de contar toda a verdade, de dizer que tudo dentro dela era muito confuso, mas, que de alguma forma, sentia que toda essa confusão era porque negava o que sentia por ela, o que sentiu desde a época em que se conheceram.

Sacudiu a cabeça para tirar esses pensamentos completamente inconvenientes da cabeça e seguiu com o que o racional mandava:

— Desculpa por ter sido rude desse jeito contigo. Só queria deixar claro que você não tem obrigação de fazer nada por mim, tá? O que eu fiz por você lá atrás foi… Foi de coração, por mais que o meu já não bata mais há anos.

Deu uma risada ao completar a piada ruim que utilizou para disfarçar o peso da conversa.

Adora fez o mesmo e manteve um sorriso pequeno no rosto, o que aliviou um pouco o sentimento de culpa de Catra.

— Eu sei que foi de coração, não duvido disso, você salvou minha vida, afinal, — desceu um degrau e continuou encarando a vampira de forma singela — só que eu não consigo evitar… Sempre me sinto culpada quando te vejo em apuros. Nesses últimos meses, eu perturbei a Scorpia para saber como você estava, porque eu não ficaria em paz sabendo que as coisas não estavam dando certo para você. Porque se não fosse por mim, nada teria virado de cabeça pra baixo, Catra. 

Podia jurar que vira os cantos dos olhos da humana marejados, e logo confirmou com o aguçado olfato ao sentir o cheiro das lágrimas que se formavam.

Então isso mexia mesmo com ela, mais do que poderia imaginar…

— Adora, não, — apoiou um dos pés no primeiro degrau como uma maneira bem tímida e amedrontada de ficar mais perto — não acho que seja culpada de nada. Não pense assim.

— Será mesmo que não devo pensar assim? — a voz também tremia, e ela descia mais um degrau, faltava mais um para ficar impetuosamente perto da mais baixa — Porque eu acho que em algum momento você vai pensar assim também, até porque essa é a verdade.

— Como eu disse, — Catra subiu o degrau por inteiro, deixando apenas um deles entre elas — você não me conhece.

Estudava os olhos daquela humana no buscando por respostas para tanta empatia, ou para a falta de medo que ela tinha de estar tão perto de uma criatura da noite como Catra.

Nada.

— Talvez, — Adora desceu o último degrau e foi para o mesmo da outra, ficando frente à frente, em um espaço curto que as aproximava involuntariamente ao se encararem — e mesmo assim, não quero ser o fruto dos seus piores pesadelos.

— Olha, eu tenho muitos frutos para meus piores pesadelos já, — abriu um sorriso triste e desviou o olhar para não incitar a sede que inevitavelmente iria sentir se continuasse fitando aquela mulher tão de perto — e você não é um deles, nem de longe.

— Então já que tem muitos, — em um ato corajoso, segurou a vampira, fixando o próprio olhar no entrelaço de seus dedos ao  redor do pulso dela — deixa eu te ajudar a amenizar isso, pelo menos te pagando o aluguel desse mês e-

Puxou sua mão desconectando-a da mulher. 

Desceu de vez da escada e voltou para uma distância segura.

— Não, sério. Esquece isso!

— Tá, tá, — Adora levou uma das mãos à própria testa também para recuperar-se da tensão do momento — de que outra maneira eu poderia ajudar?

— Se mantendo segura, vivendo.

— Eu quero fazer mais-

— Isso é mais do que o suficiente, — a voz era firme, mas, tomou cuidado para ser educada dessa vez — vive a tua vida, eu me viro com a minha, e tá tudo certo.

Antes que Adora pudesse argumentar, a vampira decidiu que era hora de acabar com essa conversa, antes que tudo fosse por água abaixo. 

Já não tinha mais estruturas para ficar nessa montanha russa emocional.

— Estamos conversadas. Preciso ir agora.

— Catra!

Ignorou o chamado e o desespero daquela voz.

Saiu daquele lugar que parecia claustrofóbico, só para perceber que a sensação de estar sufocando não era por causa do pequeno hall onde conversavam. 

Eram seus próprios sentimentos, que teria que arrumar um jeito de amenizar para que pudesse raciocinar normalmente de novo.

Esse reencontro serviu para mostrar como que estar perto de Adora tirava o pouco de controle que ainda tinha sobre si mesma. E não era disso que precisava agora, certo? 

Chapter 17: Negócio

Notes:

Olá!

~vamos agir como se eu não tivesse sumido por milhões de anos novamente kakaka~
POV Adora para continuarmos nossa saga Crepúsculo Gay

Boa leitura <3

Chapter Text

Não importa se o trabalho estava agitado ou se a vida pessoal tinha mil outras demandas para priorizar. Não havia qualquer tarefa no mundo capaz de tirar a conversa com Catra da cabeça de Adora. E não só pela incoerência de sentimentos em relação às atitudes da vampira, que ora parecia ser empática, ora a encarava com impaciência. Simplesmente não entrava em seu subconsciente que a vontade dela deveria ser feita. 

Queria ajudar, queria saber de tudo que acontecia com ela. Até mesmo se arrependeu da decisão de não esperar que acordasse para conversarem melhor. Ainda se culpava por suprir uma atração involuntária por quem já tinha uma relação aparentemente concreta, embora tal incômodo não amenizasse em nada a crescente vontade de estar por perto. 

E deveria ter ficado por perto quando teve a chance de escolher. Foi burra e agora arcava com as consequências. Talvez se não tivesse ido embora antes, Catra seria mais solícita com suas ajudas. No momento,  tudo o que podia fazer era dar um tempo e engolir as mágoas. 

Até porque uma outra pequena angústia clamava por atenção. 

Uma angústia profissional.

Os diretores do museu a convocaram para organizar um evento bem intimista para uma lista selecionada de figuras influentes no mundo da arte. Seria em uma galeria adjacente em Salém. Era uma tentativa de trazer mais investimento e influência às outras propriedades do museu, e Adora “tinha o dom de trazer perspectivas jamais vistas sob algumas obras”, como orgulhosamente bradava seu chefe nessa reunião com o alto clero do trabalho. Desta vez, o recorte histórico era de uma época que a curadora pouco sabia, pouco trabalhava, o que deixava a missão ainda mais complexa.

Sabia que a primeira coisa a ser feita era visitar o local do evento, pois assim poderia ter ideias de como explorar o espaço, mesmo que no fundo não tivesse ideia de como começar o projeto. Foi para Salem no mesmo dia da reunião, no final da tarde. Obviamente, seu pensamento não parava de ecoar a voz que constantemente a lembrava que estava perto de Catra, de que estavam ali, na mesma cidade. E toda a tensão já incrementada pelo trabalho foi duplicada, triplicada até.

No início da noite, quando percebeu que seu cansaço mental dividido entre “quero ver a Catra” e “preciso ter uma ideia para esse evento” iria esgotá-la, ligou para a Scorpia e a convidou para a galeria. O local não estava aberto, portanto, Adora estava sozinha lá. Era perfeito para que conversassem sobre um dos tópicos de angústia:

 

— E aí, Scorpia, — cumprimentou a amiga vampira já a trazendo para dentro do espaço e fechando a porta de vidro com as chaves — tudo bem?

— Tudo, Adora, e contigo? 

— Com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas tudo certo.

Caminhavam juntas para um lugar com menos exposição às janelas e portas inteiras de vidro do salão principal. Depois de um curto corredor, havia uma parte mais administrativa e entraram numa das primeiras salas, com duas cadeiras separadas por uma mesa de escritório de madeira maciça.

— E o que me traz aqui, afinal? — a vampira sentou-se na cadeira confortável de frente para a de Adora, distraindo-se discretamente com os quadros renascentistas pendurados na parede até que sua pergunta fosse respondida.

— Queria dizer que é porque vim para cidade e não podia deixar de rever uma boa amiga, o que não deixa de ser um pouco verdade, — a humana ajeitou o rabo de cavalo que prendia seus cabelos e respirou fundo — mas, também quero saber como está a Catra.

 Uma troca de olhar e um rápido momento silencioso depois:

— Ela ainda não conseguiu o emprego e o dono do apartamento enviou o terceiro aviso de atraso hoje de manhã, o que significa que ela tem mais ou menos uma semana até ser oficialmente despejada. Eu estou vendo de pegar esse dinheiro da minha poupança, pagar e só avisar a ela depois, para que não corra o risco de negar.

— E pensar que era só ela ter aceitado a porcaria do dinheiro que eu tinha dado na semana retrasada… — a cabeça de Adora caiu sob seus braços apoiados na mesa em um sinal de exaustão.

— Eu sinto muito que ela tenha descoberto tudo, Adora… — Scorpia alcançou o braço da humana como uma das mãos e alisou num ato de acalento — Juro que não contei, e olha que ela insistia bastante.

— Eu sei, sei que não contaria e que não tem culpa de nada disso também, — apoiou a própria mão na da amiga e apertou gentilmente — uma hora isso iria acontecer, só achei que ela aceitaria de uma forma melhor.

— Você é uma ótima pessoa, Catra que é cabeça dura às vezes, não leve para o lado pessoal.

— Como não levar? — A humana levantou o corpo para encostar-se na cadeira e cruzar os braços abaixo do peito num tom levemente audacioso — Pois me pareceu bem pessoal essa reação dela, sim.

— Bom, — Scorpia refletiu desviando o olhar e depois deu de ombros — talvez nesse caso tenha sido pessoal mesmo… Olha, relaxa. Vai ficar tudo bem, ela vai ficar bem.

Adora estava prestes a desistir de insistir e mudar o tópico, se não fosse uma ideia esporadicamente invadindo sua cabeça:

— Ei, e ela não pode fazer nada com os poderes de vampiro que tem? Tipo, vampiros podem hipnotizar humanos, certo? E se ela hipnotizar o dono do apartamento para ele parar de encher o saco?

— Não sabia que logo você iria recomendar um negócio desses do nada — a vampira piscou incrédula algumas vezes e depois deu uma risada tensa.

— Ué, ela tem um problema e precisa resolver, não é? — quem deu de ombros dessa vez foi a humana, para complementar sua fala sem pensar — Vale tudo…

— Não exatamente. Hipnose é indução de decisão, e se ela quer entrar no clã, precisa ser o mais justa possível nas relações que tem com qualquer humano que seja, — o tom de Scorpia agora era sério, quase um sermão pela ideia furada da humana —  manipulá-los não é visto com bons olhos e só iria sujar ainda mais a ficha dela. Pensa só, você gostaria de saber que tomou uma decisão sem o seu próprio consentimento?

— Não… — uma expressão decepcionada e envergonhada aflorou no semblante da mulher — Realmente não seria legal. É que eu só queria achar uma solução rápida para ela, entende?

— Já disse para ficar tranquila, eu vou estar com ela para o que der e vier — disse confiante a vampira.

A fala fez Adora colocar-se em seu lugar. Scorpia era muito mais próxima de Catra, e jamais iria desampará-la. Sabia interpretar muito bem o significado do que lhe foi dito e precisava parar de querer se meter tanto assim.

Apenas encolheu-se no assento e acenou com a cabeça.

— Mas e você? — Scorpia perguntou atenciosa — O que são essas muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo em sua vida?

O papo a tirou da espiral triste da síndrome de impostora e a trouxe para os gatilhos da crise de ansiedade da vida profissional. Uma troca que a levava de mal a pior.

Assoprou um fio de cabelo que desvencilhou de seu penteado e caia na testa como forma de distração até conseguir ventilar toda a frustração na fala:

— Estou com um bloqueio criativo horroroso e preciso praticamente inventar a roda para um evento que acontece em duas semanas.

— Como assim? É um evento temático? 

— Digamos que sim. Preciso reinterpretar o ocultismo durante o início do século XVII na Europa… — abruptamente parou a própria fala e como quem tem uma ideia brilhante, apontou para Scorpia eufórica — Espera.. Talvez você possa me ajudar a-

— Acho que sim — a mais alta abriu um sorriso.

— Sério? — Adora deu um pulo na cadeira que quase a fez levantar.

— Sério! — a vampira respondia contagiada com a empolgação repentina da outra mulher — Na verdade, eu falho muito na parte teórica e não tenho na memória riqueza de detalhes mesmo tendo vivido por tantos anos, mas a Catra é muito boa nisso!

— Não duvido, ela me deu uma aula sobre o histórico do Castelo de Bran enquanto estávamos lá na Romênia...

— Tenho quase certeza que nos anos em que vivíamos no antigo clã ela leu todos os livros possíveis da biblioteca de lá. E ela vivia dizendo que história da arte era um dos assuntos favoritos dela.

Conforme Scorpia ia dando detalhes da personalidade de Catra, Adora sentia aflorar uma mistura insana de sentimentos. O primeiro de todos era a aflição, já que a possibilidade de não ser ajudada porque a outra pediu distância era grande. Depois, uma adoração exagerada por ter tantas coisas em comum das quais poderiam usufruir juntas se estivessem mais próximas. 

Por último, um desejo, um pulsar diferente em seu peito, um que proibiria sentir se pudesse controlar. Este a fez recuar a animação em instantes, deste sentimento Adora tinha medo.

— Não sei. Tenho para mim que ela não vai querer — a humana expressava todo o recente desânimo no tom de voz.

— Não custa tentar, não é? E talvez possa ser uma ajuda remunerada, como se estivessem fechando um negócio. As duas saem ganhando!

A humana tinha que admitir que parecia tentadora a ideia. E a confiança de Scorpia quanto ao plano dar certo trouxe uma pequena esperança para dentro de seu coração.

Se tudo funcionasse bem, teria a ajuda que precisava e também ofereceria a ajuda que Catra precisava. Aproveitou a folga que teria no dia seguinte e ficou por Salém. Naquela noite, antes de dormir, pensou em como formalizar essa proposta para algo profissional e impessoal.

Poderia ser um emprego temporário, apenas para esse projeto. Contrataria Catra para ser seu braço direito na reinterpretação das obras que selecionariam juntas para o evento. 

Para driblar fins burocráticos sem necessariamente precisar infringir leis, seria um contato de freelancer remoto, no qual poderia usar os documentos do país de origem de Catra sem problemas, desde que não desconfiasse que ela estava, na verdade, presente em Salém. O que não seria difícil, pois os encontros seriam tarde da noite, quando ninguém mais está presente na galeria. Já o pagamento, Adora poderia vincular a uma conta que Scorpia criara em seu nome, mas, que Catra tinha acesso.

Tudo nos conformes. Não havia uma ponta solta sequer quanto ao plano. 

No dia seguinte é que veio a parte mais difícil. 

Convencer a dita cuja.

Scorpia foi com Catra até a galeria e a deixou por lá, alegando que era ali que teria a suposta entrevista de emprego. 

Adora a esperava no salão principal, e às 20h em ponto, a vampira hesitantemente bateu na porta de vidro.

Já estava claro para a humana que sua candidata não gostou muito de reencontrá-la enquanto abria a porta para que entrasse. Adora deduziu que Catra só não deu meia volta e decidiu ficar para ouvir a proposta por causa do cenário desesperador no qual sua vida se encontrava.

Quando chegaram na mesma sala da conversa anterior com Scorpia, Adora respirou fundo e resgatou um pouco de coragem para iniciar o assunto:

— Conversando com a Scorpia, ela me disse que você tem muito conhecimento sobre história da arte. Você saberia falar sobre ocultismo no século XVII?

— Sim, acho que sim…

Catra estava visivelmente desconfortável naquela cadeira. 

Desconfiada e com os olhos cerrados, continuou:

— Bom, ele tem diferentes características dependendo do período. No início, tinha uma influência, no meio para o final do século, já era completamente diferente. 

Ela pausou e escaneou a expressão de Adora, buscando alguma resposta sobre o que exatamente fazia ali falando sobre tal assunto.

Adora reprimiu completamente a quentura que sentira no rosto com a atenção ocular da vampira e acenou com a cabeça para que ela continuasse.

— E tudo depende também da região. A influência do ocultismo na América do Sul, por exemplo, é diferente do que foi na Europa ocidental, ou na Ásia. Mas… Isso não é novidade para você, é óbvio que estudou tudo isso em algum momento na faculdade ou sei lá.

— Estudei, mas sem me aprofundar muito, — discretamente puxou o ar entre a fala para estabilizar a voz — e no momento eu tenho um projeto sobre esse estilo especificamente no início do século e centralizado na Europa. Acho que você poderia me ajudar e, por isso, eu quero te oferecer um contrato temporário como minha curadora assistente.

– Por que eu? — Catra copiou a posição de Adora e apoiou os braços na mesa inclinando o corpo para frente para olhá-la nos olhos — Aposto que, se pedisse para alguém do museu, iria ter uma lista infinita de nomes de pessoas que poderiam te ajudar com isso.

— Porque provavelmente nenhuma delas vai ter a sua perspectiva sobre o assunto, — sustentou a seriedade, mesmo que por um fio, e correspondeu o olhar — do mesmo jeito que ninguém jamais saberia sobre as verdadeiras histórias do Castelo de Bran se você não tivesse me contado.

Catra afastou-se da mesa e deixou o corpo encostar na cadeira. Parecia ter sido pega desprevenida, a humana podia perceber pela forma como a criatura desviava o olhar para baixo reflexiva.

Aproveitando tal vulnerabilidade, Adora continuou:

— Você é muito boa nisso, Catra. E está atrás de um emprego o mais rápido possível, não está? Eu posso te oferecer isso, e você pode me ajudar com esse projeto que tem me tirado noites de sono! O que acha?

— E como funcionaria isso? Como iríamos trabalhar com você, em Boston, e eu aqui?

— Eu vou vir para cá umas três vezes na semana, e aí podemos nos encontrar aqui, de noite. Nos dias em que eu estiver em Boston, podemos conversar por telefone mesmo.

A vampira ficou em silêncio, pensando sobre o assunto. 

Durante esse tempo, não voltou a olhar nos olhos de Adora. O que a causava alívio e agonia ao mesmo tempo.

— Não acho uma boa ideia… — Catra praticamente sussurrou.

— Por quê? — Adora levantou da cadeira inquieta e apoiou as mãos na mesa para tentar controlar o ímpeto de ir até a outra — Por que não?

— Porque trabalhar juntas significa conviver juntas, e você não quer isso.

Eu não quero? — a voz de Adora oscilava com tamanha indignação — Não tenho problema nenhum em conviver com você, eu-

— Você nem esperou que eu acordasse do coma, Adora — Catra a interrompeu com um certo deboche na fala.

— Eu errei, tá bom? Deveria ter te esperado acordar, até porque acho que nós podemos nos ajudar muito ainda e esse meu erro só atrapalha-

— Eu não quero ajuda, Adora-

De todos os cenários de reações que poderia ter com essa conversa, a humana não imaginou que a impaciência seria uma predominante. Falha sua. 

Sem que pudesse controlar, sua fala saiu desesperada:

— Tá, tá! Então não chame de ajuda, chame do que quiser! Chame de negócio, se for mais conveniente. Você vai ter um emprego imediato para atender suas necessidades, eu vou ter alguém que vai me ajudar a tirar do papel alguma coisa decente sobre o maldito do ocultismo na porcaria do século XVII no inferno da Europa! Todo mundo sai ganhando!

Adora pausou ao perceber que estava praticamente gritando e seus pulmões precisavam de uma pausa para oxigenar melhor.  Olhou para Catra rapidamente e notou que ela escondia, provavelmente, um sorriso atrás da mão que cobria a boca. 

Dava para ver pelo olhar, estava se divertindo com o seu descontrole. Que absurdo!

— Por acaso está rindo? Vai ficar aí rindo da minha cara ou vai me dar uma resposta?

Como quem é pega desprevenida, a morena arregala os olhos, coça a garganta discretamente e abaixa a mão, deixando visível que, talvez, não tenha tido essa reação para ser maldosa.

 — Iluminismo… — Catra repentinamente soltou.

A vampira direcionava o rosto para cima para olhar para a mulher, a posição fazia com que parecesse vulnerável e assustada. 

Uma troca de papéis, não é? Finalmente, em pelo menos uma das interações que tiveram até então, Adora era aparentemente a dominante.

Uma pena não poder manter essa cena por muito tempo, já que a dúvida pela resposta da outra logo espaireceu em sua expressão.

— O que? — imediatamente Adora baixou a guarda e acalmou a linguagem verbal e corporal, voltando a sentar na cadeira para ficar na mesma altura que a outra.

— A forma como podemos tratar da sobrevivência do ocultismo durante o século XVII, — aos poucos a criatura quase sempre intimidadora foi recuperando a confiança — o Iluminismo foi o escape de muitas pessoas e vampiros que tinham ideologias mais modernas. Consequentemente o ocultismo se aproveitou do movimento iluminista, ou vice e versa. Podemos pesquisar bons acervos que retratam isso e fazer uma releitura dessas obras.

“Genial! , a  voz interior gritava eufórica na mente de Adora.

“Cada vez fica mais difícil não admirar tanta beleza que se manifesta de tantas formas e-”

— Adora? 

A voz de Catra a tirou do transe que não tinha percebido que entrara. Foram alguns poucos segundos de silêncio para conseguir voltar para o mundo real e sair da ilusão de uma paixão que seu cérebro repentinamente começava a sentir pelo cérebro daquela vampira. 

Ainda bem que era amor de cérebros, só podia ser. Não afetava o coração.

E nem os negócios.

— Então temos um acordo?  — esticou a mão para a criatura à frente — Negócio fechado?

— Negócio fechado, humana — com um sorriso pequeno, Catra aceitou o cumprimento e apertou sua mão.

A eletricidade do que parecia ser um simples aperto de mão percorreu por todo o corpo de Adora. Foi assustador e delicioso. 

Ter que colocar na cabeça que essa empolgação precisava ser reprimida e limitada a uma simples interação profissional com aquele ser que se tornava mais e mais fascinante era cada vez mais complexo.

Chapter 18: Pertencimento

Notes:

ANTES DE LER, ATENÇÃO AOS GATILHOS (por favor, cuidem-se sempre):
!! rejeição, não pertencimento e crise de ansiedade !!

No mais:
Olha quem veio humildemente oferecer um novo capítulo como quem não tivesse sumido por um mês :)

POV Catra dessa vez.
Por favor, não esqueçam dos gatilhos e boa leitura <3

Chapter Text

O projeto em parceria com Adora trouxe muitas alegrias para Catra, mais do que imaginava ser possível. Sentiu-se tão completa ao trabalhar com um tema de maior interesse, entusiasmou-se ao ver cada detalhezinho sair da teoria e se organizar na prática, naquele salão não mais vazio que expunha todas as obras selecionadas cuidadosamente pelas duas.

Era como fazer parte de todas as etapas de uma construção. Nunca havia trabalhado com algo que gostava, em vida humana ou vampírica. O projeto de duas semanas despertou na jovem criatura uma satisfação profissional, trouxe de volta aquela esperança de antes da demissão de conseguir organizar sua nova rotina, mudar para um lugar melhor, encontrar seus hobbies e pequenas alegrias. 

Aliás, uma delas estava ali, e era trabalhar em uma singela galeria com uma simpática curadora de olhos vibrantes e sorriso caloroso.

Tinha que admitir que a companhia ajudou muito para que a experiência de organizar a exposição fosse agradável. Adora era mesmo uma profissional fora da curva, inspiradora. Dedicava-se por inteiro e chegou a virar noites por lá para depois ir para a jornada de trabalho no museu, o que a vampira repreendeu algumas vezes. E mesmo assim, ela não deixava de fazer. Era como se Adora vivesse, de fato, pela e para a carreira. 

Catra queria encontrar esse propósito também, ou pelo menos queria canalizar a paixão torta e complicada para os negócios. Pelo menos assim teria um retorno mais proveitoso, menos perigoso. Durante o trabalho, percebeu que conseguia separar bem a relação delas, conseguia guardar qualquer desejo, por mais impulsivo que fosse, para concentrar-se na entrega.

No dia do evento, decidiu observar de longe. Já havia combinado com Adora que o crédito seria só dela, assim como a obrigação de estar presente para apresentar o conceito que planejaram seguir. Tudo correu maravilhosamente bem, e Catra não tinha um sombra de dúvidas sequer de que seria desta forma. 

Adora domina o assunto, cativa cada ouvinte, sabe usar do carisma que só ela acha que não tem, mas que é evidente para qualquer um com o privilégio de estar no mesmo ambiente que ela.

Se existe algum ser que beira a perfeição, esse ser é Adora.

Uma conclusão altamente comprometida pelo que Catra chama de ‘sentimento confuso, que me recuso a chamar de amor porque não tem como, porque, pensa, seria loucura’? 

Provavelmente.

O mesmo que prometeu a si mesma não alimentar e muito menos expor. 

Só de pensar em quantas camadas teria que revelar sobre o que aconteceu lá atrás na Romênia e ao que teve que submeter sua colega temporária de trabalho, Catra sentia arrepios. Adora não precisava disso em sua vida, não precisava dela em sua vida. Pelo menos não desta maneira. 

Quanto ao profissional, talvez precisasse, sim. 

A mulher constantemente expressava a necessidade de ter alguém para pensar junto com ela e o quanto aproveitou a ajuda de Catra durante o projeto. 

Particularmente adoraria continuar também, e não se importaria de ficar no anonimato. Era até mais seguro, tendo em vista que seu antigo clã ainda poderia estar atrás de uma vingança. A proposta da curadora veio e Catra não pensou duas vezes. Aceitou dar continuidade à parceria de forma permanente. 

O primeiro evento abriu as portas para que a galeria de Salém se tornasse um espaço de exposições de média e longa temporada, uma expansão fixa do museu pela qual Adora era, desde então, diretamente responsável. 

Desta vez, a humana teria uma equipe para coordenar, claro. Contudo, os projetos mais elaborados ficariam nas mãos dela e de sua brilhante ajudante anônima com quem somente a curadora podia ter contato e acesso.

Foi o início do novo propósito de Catra, o que a fazia sair entusiasmada daquele muquifo de apartamento e sorrir espontaneamente a cada “boa noite” que a parceira a direcionava ao cumprimentá-la no início da jornada noturna de trabalho. Era também o que a lembrava constantemente de priorizar a relação profissional, mesmo caindo na armadilha de algumas interações mais descontraídas durante uma pausa aqui e ali que vinham naturalmente entre elas. 

Como era possível tudo fluir tão bem mesmo sem nunca antes terem tido uma conversa real sobre o que aconteceu na Romênia?  Parecia, ao ver da vampira, que a outra mulher também evitava os detalhes do passado. Era como se não quisesse saber tanto quanto Catra não queria contar. 

Viviam do presente para frente, envolvidas no novo laço impessoal que tentavam construir.

— Eu acho que não vai demorar muito até se aproximarem involuntariamente, — a voz de Scorpia soou descontraída — vocês vão se tornar amigas para tentar disfarçar a necessidade de ficarem perto uma da outra. Aliás, você já está fazendo isso com essa ideia burra de ‘relação profissional’.

Era sobre este pequeno dilema que falavam durante a rápida visita de Catra ao clã para saber das atualizações que Perfuma dizia trazer.

No momento, esperavam a vampira-mor sair da sala do Conselho enquanto conversavam baixo sentadas em um sofá exageradamente fofo perto da porta exageradamente alta.

— Não é ideia burra, é necessidade ! — Catra quase sussurrava depois do leve constrangimento que sentiu ao ouvir a fala tão sincera da amiga — E se eventualmente virarmos amigas, não tem problema, é algo que foi construído sem nenhuma influência minha, sem nenhuma trapaça ou hipnose. E que o passado fique lá, no passado.

Scorpia tinha mais o que falar, chegou a puxar o fôlego. Porém, o abrir da porta desviou a atenção das duas amigas. Membros do Conselho saíram da sala despedindo-se brevemente e seguindo seus caminhos. Apenas Perfuma ficou para cumprir o prometido e trazer as tais notícias.

— E aí, meninas? — A esguia vampira as cumprimentou com um sorriso enquanto o seu olhar correspondia mais ao de Scorpia que o de Catra precisamente.

— Bom, eu espero vocês terminarem a conversa aqui — Scorpia acenava a cabeça correspondendo o gesto da chefe e discretamente apertava um dos ombros da melhor amiga num rápido acalento.

Catra guardou, em nota mental, a curiosidade sobre essa troca de olhares generosa demais entre as duas para perguntar depois.

No momento, voltou a atenção ao assunto que ali a levava. 

E de cara a notícia já não foi boa.

O Conselho não quis rever o caso. Depois dos detalhes contados sobre o uso de hipnose em Adora somado a uma expulsão, as chances eram praticamente nulas. Não queriam comprar essa briga, principalmente porque seu antigo clã poderia a qualquer momento querer caçá-la em um ato de vingança e entrar em defesa dela quebraria um protocolo importante entre os grupos, o que não valeria a pena na visão deles. 

Em outras palavras, Catra não valia o esforço por dois motivos: um, por ter induzido as ações de Adora tirando dela o livre arbítrio. O outro porque nunca antes na história aceitaram uma vampira expulsa naquele clã, já que fazê-lo poderia gerar conflito de interesses, ou até mesmo guerra, em ocasiões específicas. 

Por outro lado, Perfuma usou dos mecanismos que podia para não deixar Catra completamente desamparada. Ela tinha uma solução. 

Talvez a recente proximidade dela com Scorpia tenha ajudado na ocasião.

— O que posso te oferecer é uma troca, — o olhar gentil condizia com o tom de voz compassivo da loira de cabelos levemente cacheados — se fizer trabalhos voluntários para benefício dos humanos ou dos vampiros do nosso clã, nós disponibilizamos as bolsas de sangue para que se alimente.

— Que tipo de trabalho voluntário?

— Aqui dentro pode ser no controle de lista dos doadores, estoque e coleta de sangue, esse tipo de tarefa, mas quase sempre tem gente de sobra para fazer... — as palavras saiam por entre o sorriso no rosto da vampira — Já para os humanos é mais fácil de achar vaga, são os trabalhos voluntários comuns mesmo, em casas de repouso, orfanatos. Não recomendo igrejas porque são ambientes perigosíssimos para gente porque têm cruz, água benta, sabe como é, né?

Perfuma soltou uma risada e Catra automaticamente a acompanhou apenas com um sorriso torto. Mais pela ironia de seu destino do que pela graça da situação. 

A que ponto precisou chegar…

Não que trabalho voluntário seja ruim. Só parecia um tanto quanto inviável se fosse pensar que não podia se expor ao sol, câmeras, espelhos, crucifixos, símbolos sagrados, fogo, alho, ou qualquer item da lista infinita de coisas que podem ferir ou revelar seu vampirismo.

Pelo menos foi dada a chance de ter como se alimentar sem precisar caçar bichos da floresta ou sugar pescoços alheios na calada da noite e se sentir cada vez mais distante da possibilidade de entrar para o clã do “consenso em primeiro lugar”. Ainda assim, era uma condição de quase humilhação tamanho esforço para não morrer de fome. 

E sua integridade de vampiro, uma criatura da noite? Como ficaria? Já que não era mais humana, tinha que se preocupar pelo menos com alguma outra moral e integridade, certo?

Daquele dia em diante, o assunto ocupou um espaço muito maior do que o necessário em sua mente. Foi um gatilho que desencadeou crises de identidade, reflexões sobre o propósito da existência. 

Para que continuava no mundo como vampira se não tinha nada de intimidador? Ou se não podia pertencer a um grupo que a reconhecesse e representasse? Era como se fosse humana demais para ser vampira, e vampira demais para ser humana.

Em que mundo ela se encaixava, afinal? Quando iria se sentir pertencente a algo? Porque as coisas simplesmente não funcionam normalmente para ela? Não podia ter nada. 

Não podia ter um clã, não podia ter uma vida, não podia ter um amor.

Foi deixando a complexidade do momento a consumir por longas semanas, não escondendo no seu humor quase sempre pensativo demais, ou nas palavras curtas e sem muitos detalhes. 

Os poucos sorrisos lhes eram tirados pelos momentos descontraídos com a amiga Scorpia ou pelas observações às escondidas de pequenas manias de Adora quando se concentrava demais em uma análise ou leitura muito complicada.

Contudo, pensava que escondia bem este fardo. Até que sua humana favorita criou uma coragem nunca vista antes e a colocou contra a parede de uma hora para outra, em um dos encontros noturnos a trabalho:

— Tem alguma coisa acontecendo com você, não é?

— Quê? — falou baixo e piscou algumas vezes para se situar no mundo real e sair dos próprios pensamentos.

— Antes que você fale que não quer que eu me meta na sua vida, — Adora gesticulava e desviava o olhar em aflição — eu só estou perguntando porque a gente acaba passando muito tempo juntas e, talvez, você queira desabafar ou, sei lá, só ventilar frustrações mesmo. Mas tudo bem também se não se sentir confortáv-

— Você está certa,  — interrompeu a humana de forma passiva, validando a preocupação que ela demonstrou — é óbvio que você ia perceber, não sei como duvidei disso.

— É? —  a mulher pareceu engolir a ansiedade a seco e direcionou completamente o olhar para a expressão da vampira, dando toda a atenção que podia — E o que está acontecendo?

— Sei lá, ando me sentindo perdida, — suspirou frustrada em meio à frase — não fui aceita no clã e não sei o que fazer a respeito disso. Se eu não faço parte de um clã e nem da humanidade, o que eu sou? Qual o sentido de eu estar acordada, vivendo?

De todas as pessoas, e criaturas, com quem Catra deveria desabafar, Adora logicamente deveria ser a menos conveniente. Ainda assim, todo o contexto era propício. A sós naquela galeria com uma pessoa confiável e que a trazia um certo conforto. Por que não?

Continuou o desafogo:

 

— Eles até fizeram uma boa proposta de me dar bolsas de sangue em troca de trabalhos voluntários, mas… Como é que eu vou fazer isso, Adora? Se for alguma coisa que só possa ser de manhã, já não vai dar para eu ir. Ou, se precisar de cadastro, documento e essas coisas, também fica difícil. Algo que deveria ser tão simples, fica tão complicado quando é para mim. É sempre assim e isso é exaustivo demais , eu-

Jogou-se em uma das cadeiras ali dispostas e tampou ambos os olhos com as mãos para evitar o vazamento das lágrimas vermelhas. Mesmo que tenha evitado esse choro por semanas para não desperdiçar o líquido que já era tão difícil de conseguir. 

Estava mesmo exausta, e só a conquista na carreira não parecia suprir a sensação de não pertencer a lugar nenhum, de não ser importante para ninguém.

Desnorteada como estava, não conseguiu notar a movimentação da humana, que saiu da bancada de onde se encostava para ir até sua frente e se inclinou levemente para envolvê-la em um abraço cheio de empatia. 

Enquanto continuava sentada, sentiu seu corpo esquivar-se por reação automática ao toque inesperado e, em milésimos de segundos, corrigiu o ato e decidiu receber o gesto solidário. Aproveitou que a mulher estava em pé e a abraçou pela cintura, a altura mais conveniente para a posição que se encontravam. 

Não quis ser muito invasiva, então, manteve os braços não tão firmes no corpo dela. Não é como se tivesse toda essa intimidade com Adora, afinal. Mas, aproveitou para deixar sair um pouco a angústia que guardara por todos esses dias em um choro curto e ainda muito reprimido.

— Ai, Catra, eu sinto tanto por você…  — Adora levou uma das mãos à sua cabeça para fazê-la encostar contra seu abdômen, a apertando ainda mais em seu abraço — E sei que fica difícil enxergar isso no momento, mas, vai passar.

A vulnerabilidade começava a derrubar os muros de resistência que mal estavam de pé, e a vampira deixou que os soluços viessem à superfície, aliviando o nó acumulado em seu peito. Gradativamente apertou o abraço da humana, até que se viu agarrando com força excessiva a barra da blusa dela.

Estava em meio a uma crise, e agora que a libertou, não conseguia mais controlar. Era pior que tentar tomar as rédeas dos seus poderes quando estava com fome. Era provável que a blusa de tom claro da curadora estivesse já cheia de manchas do sangue que saía de seus olhos.

Já que criara esse espaço seguro nos braços dela mesmo que temporariamente, não era agora que iria desperdiçar. Caiu na melancolia das próprias lágrimas de sangue por longos minutos, até saciar a tristeza.

Foi depois de longos minutos de silêncio onde somente seu choro era ouvido que resolveu desvencilhar os braços do corpo da humana e cessar o abraço.

— Perdão, Adora, — a voz era tão instável quanto o choro descompassado — eu não devia te incomodar com essas coisas-

— Ei, não peça desculpas, — a humana imediatamente interrompeu os lamentos enquanto abaixava mais o corpo até ajoelhar-se no chão e ficar na mesma altura que ela, podendo olhá-la diretamente nos olhos — saiba que você pode confiar para o que precisar, inclusive para ser um ombro amigo. Está se sentindo um pouco melhor?

A mão da humana chegou a sair de onde estava apoiada para subir até seu rosto a fim de secar uma lágrima, mas, algo a fez parar no ar. Talvez a hesitação de criar uma falsa intimidade, ou uma resposta aos olhos âmbar e azul da vampira que rapidamente se arregalaram com o medo do que tal gesto pudesse lhe provocar.

Resolveu ignorar o impasse criado pela confusão de movimentos e acenou com a cabeça, respondendo à pergunta inicial.

Adora abriu um pequeno sorriso em seu rosto cansado. Só depois de notar as pequenas olheiras que se formava na pele delicada e viva da humana que lembrou-se do quanto estava tarde, e de como ela foi diretamente do trabalho em Boston para  a galeria.

Ela também deveria ter do que se queixar, sobretudo relacionado à exaustiva jornada de trabalho que a submeteram cuidando da galeria e do cargo no museu ao mesmo tempo. E Catra não dava esse espaço para ela desabafar. 

Uma ingrata. Deveria pelo menos poupá-la, deixá-la relaxar.

— Olha, não precisa se preocupar comigo, tá? Eu vou dar um jeito e isso vai passar, como você mesma disse — assegurou com um olhar vazio e uma tentativa de sorriso sincero.

Pensou que esta tinha sido a deixa perfeita para que Adora largasse o assunto de lado.

Enganou-se:

— Se eu te ajudar, talvez fique-

— E lá vem você e essa sua mania de querer ajudar sendo que eu pedi justamente o contrário… — revirou os olhos e suspirou, exalando uma exaustão mais leve do que a anterior, mais para provocar a mulher do que qualquer outra coisa.

— Não tem como deixar para lá, — ignorando completamente o desdém da vampira, levantou-se e direcionou o olhar para cima de maneira pensativa — inclusive, estou pensando numa forma de arranjar esses trabalhos voluntários para você de forma segura.

Ao ter a visão completa dela, via que, de fato, sua blusa tinha pequenas manchas de um sangue levemente diluído em fluido lacrimal. Ainda assim, ela não parecia se importar nem um pouco.

— Adora, para, para. Não tenta resolver as-

— Catra, silêncio ! — a mulher pôs o dedo indicativo na frente dos próprios lábios e cerrou os olhos para enfatizar o tom imperativo — Preciso pensar e você está atrapalhando!

Isso surpreendeu a vampira. Ela estava paralisada, com as sobrancelhas arqueadas e os olhos bem abertos e direcionados à loira. 

Que audácia!

Antes que pudesse retrucar, Adora tomou a frente:

— E para com essa chatice de não querer aceitar nada que eu tento fazer para você, — indagava de braços cruzados, mostrando o quanto estava decidida em acabar com a resistência de Catra sem medo algum — poxa, se algum dia me considerou tanto a ponto de abrir mão de tudo o que tinha para salvar a minha vida, deveria entender que você também é alguém importante para mim. Ou pelo menos eu acho que é, por tudo que sinto quando- 

Adora interrompeu-se abruptamente, parecendo ter falado mais do que queria de maneira involuntária. E em seguida:

— Enfim, minha vontade de te ajudar é genuína e eu não quero nada em troca, só te ver bem. Então, por essa nossa amizade que parece ter sido importante para você algum dia, só aceita

Finalmente parou de falar para recuperar o ar que perdera ao despejar tão rapidamente tudo o que queria que Catra ouvisse. E nesse meio tempo, continuou com o olhar fixo no dela, esperando por uma resposta.

Certo. Tinha que levar em consideração o ponto daquela mulher tão insistente. E também essas últimas semanas em que trabalharam juntas e se reaproximaram.

Não tinha porque negar pelo menos essa ajudinha em específico. Seria ranzinza e inflexível demais se o fizesse.

Depois de respirar profundamente para aumentar ainda mais a ansiedade de Adora à espera de uma resposta, murmurou tímida e impaciente:

— Certo, você venceu … Qual é o plano, gênio?

— Finalmente! — jogou as mãos para cima em um agradecimento aliviado e deu uma risada curta, mas empolgada — Então vamos planejar tudo e achar os melhores trabalhos voluntários para conseguir as bolsas de sangue!

— Sim, mas não hoje, — Catra apontou para os olhos levemente caídos de cansaço da mulher — porque você precisa dormir e já passa das três da manhã.

Adora olhou para o relógio e espantou-se com a confirmação. Depois de esbravejar sussurros para si mesma de como não teria mais que quatro horas de sono naquela noite e que isso afetaria todo o seu treino matinal, a curadora começou a organizar a sala em ritmo acelerado para ir embora.

Catra assistia tudo, e até tentava ajudar em alguns casos, achando a cena hilária. Seu humor melhorou exponencialmente graças ao esforço de Adora, tanto em querer ajudá-la quanto ao oferecê-la aquele abraço confortante para que chorasse suas mágoas. 

Despediram-se com pressa e, depois que assegurou-se que Adora havia entrado no carro para seguir viagem de volta para Boston, a vampira começou a andar despretensiosamente pelas ruas frias e vazias que levavam até seu apartamento. 

Na caminhada, pensava em como aos poucos descobria partes de Adora que não teve chance de conhecer na curta temporada em que conviveram na Transilvânia. Um lado tão cuidadoso, determinado e afetuoso, e outro estabanado, distraído e ingênuo. Fora os muitos outros que agora tinha o privilégio de presenciar e usufruir.

A parte ruim era que tais atitudes acabam alimentando ainda mais o tal amor que forçosamente suprimia para não deixar crescer. Era tão frustrante…

Ia deixar-se voltar para os sentimentos de não realização quando seu instinto sobrenatural foi acionado espontaneamente. 

A princípio, não tinha decifrado se era o de fome ou o de presença de outros vampiros. Afinal, perdera mais sangue que o comum naquele dia depois de chorar horrores nos braços da curadora, e ambas sensações eram quase a mesma coisa.

Foi até a esquina e olhou em volta, para ter uma melhor visão das quatro ruas que ali se cruzavam. A sensação era por ali, uma presença forte que pulsava como ondas de frequência na sua cabeça. E mesmo assim, nada via. Nada parecia uma ameaça.

Por isso, resolveu continuar andando, um pouco mais atenta que antes, e notou que quanto mais se afastava da rua da galeria, mais dispersa a sensação ficava. 

A galeria era próxima de alguns pontos de encontro dos vampiros do clã de Salém. 

Vai ver era só isso.

Afinal, o que de tão ameaçador poderia existir em uma cidade de criaturas tão amigáveis e rotinas tão pacatas?

Chapter 19: Motivo

Notes:

Olar! :)

Do nada um capítulo um pouco mais leve e descontraído para dar um fôlego para essas Catradora antes do caos reinar <3

Boa leitura!

Chapter Text

Conforme os dias de trabalho fluíam, a rotina se aproximava cada vez mais da normalidade confortável. Até mesmo se considerar que Adora trabalhava com uma vampira. 

Aliás, a própria mencionou mais de uma vez o quanto essa calmaria e liberdade eram raras até mesmo durante a vida humana. 

Adora gostava do que desenvolvia na galeria com Catra e também da relação de amizade próxima que construíam aos poucos. Gostava de compartilhar certas fases com alguém que a entendia e ficava feliz com cada empolgação da parceira de trabalho e amiga. Amou o entusiasmo dela quando anunciou a mudança para um novo apartamento graças ao leve aumento aquisitivo do emprego e que começou a investir em alguns hobbies no tempo livre.

Quando estavam nos dias de encontro presencial, Adora quase sempre ia com ela para algum desses eventos noturnos em museus ou teatros. Dizia que Catra era uma vampira entusiasta da veia criativa, um trocadilho que arrancou uma boa risada e um sorriso um pouco encantador demais daquele rosto estonteantemente lindo. 

Tentou esse efeito por mais algumas vezes, mas, a piada já não era tão engraçada depois da décima quinta repetição. Catra apenas revirava os olhos e debochava de sua cara, sempre lembrando o quanto Adora nunca tentava ‘mudar o disco’ e renovar o senso de humor. Uma irritação de mentira que a humana também aprendeu a causar e secretamente amar na outra.

Embora tenha presenciado algumas recaídas da vampira por causa da situação dos trabalhos voluntários em troca de uma sobrevivência digna, podia sentir que Catra estava mais à vontade com a própria existência, sobretudo tendo Adora (e Scorpia, claro) ao seu lado. 

Conquistou o seu devido lugar no coração daquela bela criatura, mesmo não sendo exatamente a posição que tanto almejava. O importante era que Catra confiava nela, sabia que nos dias mais difíceis, se a Scorpia não pudesse estar lá — o que era raro —, ela poderia substituir com a mesma prontidão e eficiência.

Foi graças a sua dedicação, inclusive, que Catra conseguiu os primeiros trabalhos voluntários aprovados pelo clã para ganhar uma boa quantidade de bolsas de sangue. Dedicou noites de sono para conseguir mapear e listar os lugares que poderiam até mesmo selecioná-la de volta por precisarem periodicamente de ajuda.

E Adora a viu usufruir desse primeiro estoque por quase dois meses, foi maravilhoso. Contudo, o alimento é finito e agora precisava ir atrás de mais uma jornada de caridade com sua vampira favorita.

Scorpia não pôde se envolver por estar ocupada com outras demandas, então, adivinha quem nem pensou duas vezes antes de topar suprir a segunda vaga obrigatória para que o trabalho em um abrigo de idosos pudesse ser realizado?

Deu dois toques na buzina e esperou alguns minutos até que Catra saísse pela porta da frente do prédio residencial para entrar em seu carro jogando o corpo no banco do carona de forma desleixada.

— Boa noite, senhorita sempre pontual. 

Um cumprimento seguido de um sorriso de canto nada novo e que, ainda assim, tirava o ar dos pulmões dela como se estivesse vendo tudo pela primeira vez.

— Boa noite, senhorita sempre atrasada!

Permitiu que seu olhar avaliasse rapidamente a vampira dos pés à cabeça apenas para conferir se não tinha nada acusatório sobre sua condição sobrenatural. Não tinha. 

Estava bem humana, na verdade. Vestia uma calça jeans escura e um cropped vinho por baixo de uma jaqueta bomber preta. Também usava um gorro de lã que Adora não sabia se era para complementar o estilo ou se era porque vampiros também sentiam o frio que fazia naquela noite. 

Independente do motivo, o que Catra escolhia sempre agradava os olhos de Adora. Do simples ao sofisticado, era constantemente capturada pela beleza que a fazia questionar se queria ser como ela ou se queria estar com ela.

Na verdade, até sabia qual era a resposta. 

Só gostava de se enganar quanto a isso.

— O que foi? — a vampira começou a apalpar a roupa e olhar para baixo como se buscasse por algum defeito — Tem alguma coisa errada?

Talvez tenha ficado analisando por tempo demais…

— Não, nada de errado! — virou o rosto para frente abrupta e segurou o volante com as duas mãos — Não esquece o cinto.

— Sim sim, vou colocar — seguiu o que lhe foi pedido durante a fala, que soou discretamente desconfiada.

Quando deu a partida para a viagem que não passaria de 20 minutos, resolveu quebrar o curto silêncio puxando assunto:

— E aí? Pronta para ser uma vampira caridosa e alimentar os famintos? — abriu um sorriso bobo na expectativa de reforçar o deboche amigável.

— Prontíssima, — respondeu depois de uma breve risada e sarcasticamente prosseguiu a fala — aliás, você conferiu se esse não é numa igreja, certo? 

— Ai, por que gosta de lembrar sempre desse meu pequeno deslize?

Catra se referia a uma das vezes que Adora arrumou um trabalho voluntário que se passava dentro de uma paróquia. 

Não tinha visto a necessidade de avisar, até que viu a amiga se contorcer no instante em que o padre aleatoriamente resolveu jogar água benta nos voluntários para ‘abençoá-los pela ajuda’. Precisaram sair às pressas e nunca mais deram as caras depois das alegações aos sussurros de que as duas eram do mal por reagirem tão estranhamento a um mero recebimento de bênçãos.

— Eu juro que se algum padre tentar jogar água benta em mim de novo, vou avançar no primeiro pescoço que aparecer na minha frente — comentou enquanto recostava-se despretensiosamente no banco do carona com as pernas e braços cruzados.

— Até mesmo se esse pescoço for o meu? — provocou brincalhona a humana.

— Até mesmo se for o seu, — entrando na brincadeira, a outra mostrou os dentes e sibilou em forma de uma falsa ameaça — A positivo é o meu sangue favorito mesmo.

A primeira reação de Adora foi rir. 

Ainda não sabia se era uma risada genuína ou nervosa, por pensar nessa cena não como ameaça, mas como desejo. Um que deixava escondido nas partes mais profundas de seu subconsciente.

Nem sequer tentou chegar a uma conclusão, apenas saiu dos próprios pensamentos e respondeu:

— Pode deixar que você não vai precisar fazer isso, confia em mim.

Depois do clima de piada, as risadas vão morrendo até que trocam um breve olhar entre a parada para o sinal fechado e Catra expõe um pequeno sorriso triste antes de desviar o olhar para o lado oposto, observando o pouco movimento da rua.

Antes que a mulher perguntasse o que se passava por sua cabeça, a outra logo desabafou em um tom baixo, sem deixar de olhar pela janela:

— Que loucura, não é? Uma vampira vivendo de boa ação. Aposto que não sou nada igual as criaturas temidas e sedutoras que vocês humanos tanto lêem sobre.

— E quem disse que não ser igual a eles é ruim? — Adora tenta buscar o olhar de Catra durante os poucos segundos que desvia sua atenção da estrada, mas, não consegue — Suas especialidades são autênticas, reais… Você tem um coração lindo, por mais que ele não bata. 

Catra finalmente vira o rosto na sua direção e solta uma risada curta por causa da última frase.

Inspirada pela reação que causou, Adora abre um sorriso de ponta a ponta e conclui:

— Na verdade, te acho melhor do que todos os vampiros que já li sobre, e olha que foram muitos!

— Está dizendo isso só para me animar — revirou os olhos apesar de ainda manter um sorriso pequeno no rosto.

— Não. Estou dizendo porque é o que eu acho e você não vai mudar minha opinião com essa sua psicologia reversa e pessimista aí.

Discretamente a vampira acena com a cabeça e balbucia um “tá bom, tá bom” entre um sorriso mais animador que o anterior. 

Quando chegaram no abrigo, logo foram recebidas por dois monitores que as instruíram e as prepararam para que atuassem em diferentes missões. Apesar do trabalho divergente, ficavam no mesmo ambiente, onde a humana ajudava a servir uma sopa de legumes aos idosos que não conseguiam comer sozinhos enquanto a vampira recolhia as louças para reposição e limpeza.

Foram aproximadamente duas horas de trabalho até que todos estivessem devidamente satisfeitos e prontos para serem direcionados aos quartos. Elas também ajudaram nesta tarefa, guiando cada idoso ao respectivo quarto e desejando um simpático boa noite.

Quando Adora levou a última pessoa ao destino, foi logo na direção da cozinha para ajudar sua parceira de trabalho com a limpeza. 

Eram só as duas naquela noite, uma vez que era muito difícil qualquer pessoa se candidatar ao trabalho voluntário noturno. O próprio monitor estava aos cochilos na cadeira do outro cômodo depois que o segundo despediu-se ao finalizar o turno.

E lá estavam sozinhas, lavando e secando pratos, copos, talheres e panelas. 

Aproveitavam também para jogar conversa fora, todo tipo de trivialidade.

— Quer saber uma coisa engraçada? — Catra perguntou em um tom divertido sem tirar os olhos da louça que lavava — Eu teria, mais ou menos, a mesma idade de alguns dos residentes desse asilo se ainda fosse viva. 

Adora deu uma risada baixa e olhou para a outra com um ar divertido:

— Anw, vovó Catra. Será que seria rabugenta igual aquele senhorzinho que não queria comer de jeito nenhum?

A mais baixa a acompanhou na gargalhada.

— Não mesmo! — a vampira espirrou um pouco da espuma em sua mão na direção de Adora enquanto tentava cessar a risada — Eu jamais reclamaria porque a sopa de legumes tem ‘muitos legumes’.

— Verdade, — cerrou os olhos para repreender a ação da amiga, porém a risada contínua entregava a raiva fingida — mas, acho que reclamaria de outras coisas porque você é meio rabugenta às vezes, sim.

— Que abuso! — Catra lançava um olhar decepcionado e complementava a comoção exagerada com o mini insulto.

— Ai, perdão, — Adora mudou a expressão imediatamente para ressaltar seriedade e continuou o deboche — é mesmo uma falta de respeito da minha parte rir da cara de uma senhora de idade como você. 

Voltou a rir e fez com que a mais baixa revisasse os olhos e jogasse o pano de prato mais próximo na sua direção.

— Muito engraçadinha. Você realmente age como se eu não pudesse acabar contigo em dois segundos…

— Suas ameaças são tão vazias quanto essa panela que eu tô lavando, Catra

— Droga, preciso parecer mais convincente.

As duas ficaram um bom tempo nessa brincadeira de ‘Catra senhora de idade inofensiva’ até que enjoassem. 

Era visível que a vampira estava com o humor muito melhor, bem mais animada. Algo contagiante para Adora, pois a alegria dela despertava a sua. E parecia que essa sincronia de sentimentos era recíproca, levando as duas a um ciclo tão bom e saudável que parecia que uma foi feita para fazer a outra feliz. 

Ao longo da noite, Catra parecia mais energética. Até mesmo usufruía das habilidades sobrenaturais para carregar um volume maior de louça de um lado para o outro em velocidades atípicas e, assim, acelerar o processo. E nesses momentos, Adora se via admirada, pois mesmo não sendo a coisa que mais amava no mundo, Catra fazia com dedicação e concentração.

Às vezes, tudo o que queria era fazer com que Catra enxergasse o quanto era especial. O mundo e as circunstâncias sempre a puxaram para baixo, e na contramão disso tudo, Adora só sentia uma crescente vontade de buscar mais formas de provar para ela o valor que tinha em todos os aspectos possíveis.

Por mais que não quisesse admitir, sabia que daria quase tudo para ter apenas uma chance.

— E aí? Vamos embora? — a vampira surgiu como um vulto depois de guardar todas as louças em tempo recorde — Eu ainda vou encontrar com a Scorpia depois daqui.

Mas, como sempre, lá estava o universo para lembrá-la de que existe uma outra criatura que faria quase tudo por Catra, e que já estava há muito mais tempo na vida dela também.

— Ah, certo — com um suspiro exagerado, Adora deixou o avental que vestia disposto na bancada e já caminhava na direção do monitor para anunciar que haviam terminado.

Enquanto ainda andavam pelo largo e vazio estacionamento até o carro, Catra encostou o ombro no dela com um leve empurrão para chamar a atenção:

— Ei, obrigada por hoje. Acho que te devo mais essa, minha conta contigo está ficando impagável.

— Não existe conta nenhuma, — balançou a cabeça em negação enquanto a encarava com um sorriso no rosto — isso é coisa da sua cabeça.

— Sério, você e Scorpia deviam dar as mãos, — a mais baixa revirava os olhos em meio a uma risada curta — vocês fazem milhões de coisas por mim e quando eu insinuo que estou devendo, ficam nessa de dizer que é coisa da minha cabeça. Mas um dia eu vou arrumar um jeito de retribuir tudo isso, de verdade.

— Já parou para pensar que talvez a gente não queira nada em troca? — arqueava a sobrancelha em um leve sarcasmo — Pelo menos para mim, ver que você está melhor é uma recompensa.

— É? E por que isso? — Catra também adotou o mesmo sarcasmo ao perguntar com um sorriso de canto e sobrancelha arqueada.

— Pelo mesmo motivo que a Scorpia — deu de ombros inocentemente.

Ainda sorridente, Catra entrou em sua frente e a olhou de baixo para cima por causa da leve desvantagem de altura, olhos estavam cerrados em um ar de desconfiança:

— Scorpia diz que faz isso porque me ama.

Adora travou. Não conseguia mais andar, respirar, piscar os olhos e muito menos fazer com que sua voz saísse por completo.

— Q-Quê? O-o motivo não é bem esse que eu pensei, — gaguejou e, em seguida, tagarelou sem pausa — quis dizer que nós duas nos importamos contigo, que eu, assim como ela, me importo contigo. Claro, eu devia ter me atentado para isso, já que é óbvio que ela diria que esse é o motivo, e também espero que saiba que eu respeito a rela-

— Calma, humana, calma — a vampira já havia dado meia volta e continuado a caminhada em meio a gargalhadas — eu estava só brincando, ok? Scorpia é basicamente tudo que tenho, a minha única família há anos, faz sentido ela dizer isso. É claro que sei que, no seu caso, é mais porque você é uma pessoa boa e empática até demais.

Adora voltou a caminhar no automático, pois nem sabia como reagir depois de ter sido pega de surpresa desta forma. Seu rosto queimava de vergonha e o coração batia forte, ainda não sabia se era de desespero, susto ou ansiedade.

Era pedir demais de seus neurônios recém surtados qualquer tipo de reação senão a de acenar em concordância com o que ouvira.

A viagem foi quase toda em silêncio, um não muito intimidador. Era confortável, pelo menos parecia ser para a mais baixa que agora até mesmo cantarolava algumas músicas que aprendera de tanto ouvir nas rádios desde que se mudara para Salém. 

O silêncio de Adora ainda era para recuperar as forças depois de ser confrontada mesmo que de brincadeira. E também pela leve decepção por ter ouvido Catra ressaltar que Scorpia era sua família. 

Então era como se fossem praticamente casadas, não é?

Era isso que seu destino a reservava, então? 

Depois de anos e anos de uma vida solitária, estava fadada a se apaixonar por quem não poderia corresponder ao que sentia? Isso porque escolheu não se ater ao fato de Catra ser uma vampira e ela, uma humana. Tal condição também seria um empecilho caso tivessem uma chance.

Mas, que chance? 

Deixou a companheira de trabalhos voluntários onde havia combinado: em uma das entradas secretas do clã. Lá, ela não só encontraria quem tanto a fazia feliz como também receberia as bolsas de sangue pela dedicação de mais cedo.

Depois de uma despedida genérica, Adora seguiu a longa viagem até Boston. Andou pensativa do estacionamento até a entrada do prédio e não notaria a presença de uma outra pessoa ali se não fosse pela visão periférica que captou um vulto movimentando-se para passar de um lado da rua para o outro mais escuro. 

Por reflexo, parou por alguns segundos para tentar enxergar mais detalhes e agir caso necessário. Até porque era um pouco estranho ter alguém circulando pelo bairro naquela hora da madrugada.

“Adora”

Um sussurro, parecia a voz de Catra.

Respirou fundo e seguiu em frente. 

Com certeza era coisa da sua cabeça conturbada depois de uma noite cheia de questionamentos internos.

Sabia que uma mente atribulada poderia pregar peças, não foi a primeira vez que teve esta experiência, afinal. Vagamente lembrava de ter tido essa sensação em algum momento.

Além disso, se realmente houvesse alguém daquele lado mais escuro da calçada, não era como se pudesse ajudar. 

Era ela quem estava perdida e precisando de ajuda.

Precisando de uma cura, na verdade.

Uma cura para a luxúria, para o amor.

Suplicava em silêncio para que um banho e um bom descanso fossem o suficiente para renovar as energias e asfixiar aquele sentimento platônico que crescia em seu peito por uma certa vampira de olhos coloridos.

Chapter 20: Encontro

Notes:

não joguem pedras, joguem flores. [emoji de flor q n consigo colocar do pc]

Dito isto:

gente, não quero desistir desta história, por isso venho a cada ano bissexto. Pelo menos ainda estou vindo kkkcry. Mas acho que dessa vez vai REAL. Tenho todos os arcos da fic fechadinhos em um plano, só me falta discorrer em capítulos, pelos menos mais uns 10, e aí acabamos (eu e a minha outra personalidade que escreve comigo)

não desistam, a fic vai ter mais uma virada de arco que vai ser bem dramática tal qual Catra vampira sofrida [emoji chorando agora]

Enfim, boa leitura, volto em breve <3

Chapter Text

Os muitos anos que Catra viveu na região da Transilvânia foram recheados de muita leitura sobre o lado ocidental. Apesar de nunca ter tido a experiência de alguns feriados existentes nele, os conhecia bem de nome ou de história. Por isso, quando Adora mencionou a proximidade do Dia de Ação de Graças, já estava ciente de que era um dos feriados mais importantes do país em que atualmente morava. 

Era uma comemoração polêmica por invisibilizar o massacre causado nessa data aos povos nativos e para Catra, particularmente, seria mais um dia comum e hipócrita do mundo moderno. Por outro lado, entendia também que era uma celebração já enraizada há anos como um dia no qual deve-se agradecer pelo que tem, e isso causava uma certa sensibilização geral. 

Adora, por exemplo, ficou um pouco aflita sabendo que seus amigos Glimmer e Bow não poderiam ir no jantar que combinaram há tanto tempo entre si porque tinham que ir para um outro evento inadiável e avisaram de última hora. 

Até chamaram a Adora, seria um grande banquete organizado pela família de Glimmer para celebrar a data. Ela que não quis ir porque também não endossava muito a falsa sensação de que todo mundo ali era grato e feliz, e que “o mundo é belo e não existem pessoas morrendo em guerras ou nas ruas”. Palavras da própria.

Mas, Catra também viu que não era muito do agrado da humana ficar sozinha. A reação dela ao saber que os amigos não ficariam foi quase de pânico, e graças a sua audição aguçada, pôde ouvi-la sussurrando o quanto odiava quando ninguém pensava duas vezes antes de furar os planos e abandoná-la. 

— Eu queria passar o feriado do jeito que foi combinado, — Adora andava pela sala da galeria frustrada após desligar a ligação de Glimmer — eles são as pessoas que eu mais adoro nesse mundo, mas é sempre assim. E eu sei que vou acabar indo nessa festa porque eu não quero ficar sozinha, e vou me frustrar quando chegar lá e continuar me sentindo do mesmo jeito, só que com gente desconhecida à minha volta.

Catra estava sentada na mesa com as pernas cruzadas e arriscando umas pinceladas em uma tela em branco que haviam achado no armário de materiais alguns minutos atrás, quando o expediente findou.

Realmente não sabia o que estava pintando, era uma mistura das cores que via no ambiente, e um azul ciano brilhante no qual tentava encontrar a mesma vivacidade que via nos olhos de uma certa pessoa uma vez ou outra.

O desabafo da humana a fez tirar a atenção do que fazia, claro. Além de ouvir, também sentia pelas batidas descompassadas do coração da companhia viva que estava realmente ansiosa, frustrada e triste. 

E não iria deixá-la desse jeito:

— Olha, sei que você já tem que olhar para a minha cara quase todos os dias, já deve estar cansada até, mas, eu poderia ir contigo se for ajudar de alguma forma a se sentir menos sozinha, sei lá.

— Sério? — ela parou os passos inquietos e buscou o olhar de Catra tentando detectar alguma incerteza, alguma mentira em relação à proposta.

— Claro que sim, — as piscadas confusas de olhos que a loira deu fez com que soltasse uma risada curta — e por que não seria? É realmente tão difícil acreditar que estou genuinamente me oferecendo para ir contigo?

— Você detesta lugares cheios, principalmente se forem cheios de humanos — Adora cruzou os braços, ainda com um ar desconfiado, apesar de levemente mais tranquilo.

— É verdade, — resolveu sair de cima da mesa e ficar em pé, apoiando a lombar nela e imitando a pose de braços cruzados da outra ao abrir um pequeno sorriso — mas eu também detesto te ver aflita desse jeito. Além do mais, eu te devo essa por tudo que fez e faz por mim.

Catra viu, segundo a segundo, o sorriso surgir no rosto da mulher até ficar tão largo e radiante que quase parecia a luz do sol. O tom corado de suas bochechas também ficaram mais fortes, vai ver era a reação da caminhada descontrolada de minutos atrás. 

Contudo, o que mais prendia a vampira naquela cena era o olhar que mais cedo tentava pintar na tela. Estava logo ali, na direção do seu, cheio de um sentimento sincero de alguma coisa que não sabia o que era. 

Gratidão? Alívio? Felicidade?

Não sabia, e ainda assim era lindo.

— Obrigada, — de repente a humana estava mais perto do que Catra havia calculado, e apenas sentiu o abraço apertado que recebeu em seguida — obrigada mesmo .

Agradeceu ao universo por não estar mais constantemente com sede porque nesse momento sentia todo o corpo pulsar pela transformação, de um jeito mais forte que o comum. Felizmente teve forças para conter o desejo dentro de si e sobreviveu ao gesto de carinho que vinha se tornando cada vez mais comum entre elas.

— Mas, e a Scorpia? — repentinamente Adora expressou preocupação enquanto se afastava para uma distância mais razoável após o abraço.

— O que tem? Ela vai estar numa festa do clã, aposto que não vai se importar se eu disser que irei para outro lugar para te fazer companhia — deu de ombros sem entender muito bem a preocupação da humana com a amiga vampira.

— Mesmo?

— Mesmo.

E quando chegaram na festa, Catra tinha que dar razão às angústias de Adora. 

De fato era um cenário de amedrontar qualquer introspectivo. Haviam muitos convidados, por segundos refletiu se algum dia seria capaz de conhecer tantas pessoas assim a ponto de fechar um local de eventos para um mero jantar de Ação de Graças. Obviamente esqueceu de levar em conta que a família de Glimmer, segundo Adora, era do meio político e relação interpessoal era uma das habilidades de maior importância para eles. 

O salão de festas era imenso e rodeado de luxos impessoais, piso de mármore, uma escadaria larga com corrimão dourado que levava para um segundo andar igualmente cheio de gente, muitas janelas altas para a entrada de luz (agradeceu ao universo por não ser de dia) e estátuas de gelo nas mesas de buffet. 

Perdeu um bom tempo olhando os arredores, concentrada enquanto tentava não hiperventilar por causa do barulho amplificado de múltiplas conversas invadindo sua audição sobrenatural.

— Alguém aqui parece bastante deslumbrada com tanto luxo, — a voz de Adora surgiu perto de seu ouvido num tom de leve deboche — eu deveria ter feito esse teste lá na Transilvânia e aí nunca teria caído nessa de que você era uma herdeira multimilionária.

— Desde quando começamos a fazer piada com seu quase sequestro? — virou-se para encarar a humana com o mesmo ar de deboche e uma risada breve.

A mulher encostou o ombro no seu e riu abertamente, divertindo-se com um assunto que eventualmente assombrava Catra. Antes que pudesse responder, sentiu a mão dela sobre a sua e foi puxada para a alguma direção de sumo interesse de Adora.

— Vem comigo, vou te apresentar aos meus amigos.

Precisou segurar a reação com tamanha proximidade, como de praxes. 

Aliás, desde quando encontrara a humana naquela noite, deduziu que seu tempo dali em diante não seria nada além de resistência. 

Resistência porque ela estava mais fascinante do que a própria festa com o vestido longo de tons claros que demarcavam as curvas do corpo. 

Ou porque a constante presença de Adora ao seu lado, por comentários divertidos e leves toques em seu ombro, a trazia uma sensação de que qualquer lugar parecia o lugar certo, mesmo nessa multidão de desconhecidos. Era assustador e a fazia querer correr.

Encantava-se até mesmo pela euforia engraçada de Adora quando fora apresentada a Bow e Glimmer. Ela tagarelava e direcionava a fala para todos os três ao mesmo tempo. Ora contava um pouco sobre como conheceu Glimmer, ora cortava o assunto no meio para dizer como foi em relação ao Bow, ou como Catra era uma ótima parceira de trabalho e que veio da Transilvânia. Sem menções à viagem de tempos atrás, pois para eles Salém foi onde Adora e Catra se conheceram pela primeira vez. 

Por fim, no meio de tantos cenários misturados e trocas de olhares confusos, a humana mais baixa de cabelos lilás e roupa brilhosa aproximou-se da vampira para cochichar:

— Você veio da Romênia, não é? Muito provavelmente a Adora acha que você é uma vampira e deve estar obcecada por isso. 

— É, eu sei — cochichou de volta entretida com o tom da conversa.

E lá estava o grande elefante da sala: seu vampirismo. 

Imaginou que esse assunto poderia surgir, praticou diferentes cenários em sua mente para se preparar. Felizmente, foi muito menos assustador do que teimava em imaginar. Na realidade foi engraçado. E só isso.

Glimmer continuou o cochicho tagarela sobre como sua amiga era uma grande nerd do ocultismo. Na mesma hora precisou segurar o riso e passivamente respondeu a fala com um aceno de cabeça.

A loira interrompeu o que dizia em gestos exageradamente animados com o Bow ao notar a interação que ocorria em paralelo:

— Do que vocês estão falando?

— Relaxa, — Glimmer diz em meio a uma risada baixa — não é nada demais.

— Ela estava dizendo que você provavelmente está obcecada por mim. 

Antes que os olhos arregalados da loira saltassem para fora com o susto, assim como os de Bow que reagiu como se isso fosse algo que Glimmer falaria mesmo, Catra desmentiu a própria informação não mais segurando o riso:

— É brincadeira! Ela só estava falando que você gosta muito de ocultismo.

A última palavra saiu com uma ênfase discreta, uma que saberia que Adora captaria por ser a única a saber da relação verdadeira da vampira com o tema.

— E que você provavelmente acha que Catra é uma vampira — Glimmer complementou.

Mais uma troca de olhares entre elas e depois a humana revirou os olhos, fingindo um desdém debochado pela teoria da amiga. Catra naturalmente deu uma risada breve pelo humor da situação. Essa mulher tinha mesmo um poder incontornável de arrancar sorrisos fáceis dela.

Gradativamente, o grupo engatou num assunto em comum. Até que estava interessante toda essa interação social, os amigos de Adora não eram de todo mal. 

Bow também era um entusiasta da arte e sabia muito de eras medievais do ocidente, tema que Catra particularmente teve pouco acesso a estudo. Já Glimmer era a que se esforçava ao máximo para não morrer de tédio no meio dos três nerds de História da Arte, demandando contextualizações com algum fato bem contemporâneo, seja com uma fofoca de celebridade ou comparando a uma série popular. 

Por ser a sucessora nata do império corporativo que a família construiu, a mulher enxuta de cabelos coloridos tinha o faro para os negócios e naturalmente deixava aflorar o espírito de liderança até mesmo entre eles. “Deixa de ser mandona!” foi como Adora repreendeu a amiga que ordenava uma explicação mais curta à Adora ou ao Bow umas duas ou três vezes durante o tempo em que passaram todos reunidos. Pelo sorriso constante no rosto, porém, era algo que parecia acontecer com frequência e de maneira leve entre eles.

A humana tinha, de fato, muito apreço por esses amigos. Para Catra, ser apresentada a eles era como um gesto de confiança de sua colega de trabalho (e amor platônico) em deixá-la participar de outros aspectos de sua vida. 

Queria um dia poder cogitar mais encontros como esses, quem sabe com Adora a apresentando como sua namorada. 

Só que isso era sonhar alto demais, além de ir contra o racional, o que a mantinha longe do passado que cada vez menos queria abrir para a humana.

Um pouco antes de o banquete ser oficialmente liberado, uma mulher alta e esguia anunciou no microfone que faria alguns agradecimentos, o que a vampira descobriu brevemente por um cochicho de Adora que era a parte mais importante do evento. 

Aparentemente, o Dia de Ação de Graças é para expor tudo pelo que a pessoa é grata. Depois do anúncio da anfitriã, pôde ouvir vários grupos isolados exclamando seus agradecimentos para os convidados ao lado e trocando abraços. Uns agradeciam pelos lares, outros pelas famílias e amores, alguns materialistas até mesmo agradeciam pelos carros que compraram no ano.

A princípio não sabia se essa onda de sentimentalismo iria chegar no seu grupo, mas, ao ouvir Bow, Glimmer e Adora expressarem suas gratidões, sentiu-se levemente em pânico por não saber o que exatamente responder quando os amigos a olharam na esperança de ouvir uma manifestação. 

Pelo que agradeceria? Pela família que se foi há anos? Pela vida que lhe foi tirada? Pelo amor que não podia alimentar?

Os poucos segundos que ficou em silêncio e trocou olhares um tanto quanto confusos com eles, despertou a reação superprotetora de Adora sem nem perceber. 

A humana chegou bem perto, levou uma das mãos em seu ombro para apoiar-se melhor e alcançar o pé do ouvido:

— Pode dizer qualquer coisa, até mesmo se for genérico, — instruía discretamente a vampira aos cochichos pela milésima vez na noite — até porque quem é grato de verdade não precisa de um dia para falar, demonstra com gestos e atitudes, não é mesmo?

Adora tinha um ponto. Por um momento a fez lembrar de Scorpia, que era a prova concreta de que gestos e atitudes são diários. E isso até mesmo a ajudou a pensar numa resposta:

— Sou grata por ter a Scorpia do meu lado, — sorriu satisfeita antes de dar o contexto que Bow e Glimmer pediam discretamente com os olhares de dúvidas — ela é com quem eu sempre posso contar, o meu maior bem, e talvez o único.

Quando olhou para a curadora em busca de aprovação, esperava uma reação mais animada. Contudo, o que viu foi um sorriso pequeno e um aceno de cabeça bem superficial. Ela parecia forçar o gesto, até. Estava bem aerea.

Talvez estivesse esperando algo diferente de Catra.

Será que poderia consertar isso de alguma forma?

Arriscou um complemento na resposta que não a entregasse tanto:

— E por ter a Adora também, — manteve o olhar no da humana, tentando resgatar um pouco da alegria que brilhava ali mais cedo — que é muito, muito especial na minha vida. 

Sucesso. Pelo menos um pouco.

O sorriso aumentou e ganhou uma leve empurrada de ombro como um ato de agradecimento um tanto quanto tímido da mulher.

Parece que o momento de se auto constranger tinha sido vencido. 

De um jeito torto, mas foi. 

Desde a interação um tanto descompassada, Catra sentia suas forças serem drenadas pelo esforço que tinha que fazer para se manter naquele lugar, sobretudo depois que Bow e Glimmer precisaram sair para exercer a política de boa vizinhança com outros convidados. Até a própria Adora parecia ter se dispersado um pouco, sabia que a humana também tinha lá seus limites sociais.

Felizmente, ficaram mais algumas poucas horas até a curadora indicar através de uma troca de olhares e um aceno de mão que não aguentava mais ficar no meio de tanta gente. 

O caminho de volta foi bem silencioso, e ambas pareciam apreciar a quietude depois de tantas vozes ecoando de um lado para o outro durante a noite. Ao chegarem no prédio em que Catra morava, contudo, Adora não se despediu. 

Apenas parou o carro e continuou fitando a estrada, como se estivesse refletindo sobre o que faria, como se isso fosse mudar o curso de tudo.

Até que:

— Sabe de uma coisa? Eu deveria ter dado um jeito de te livrar do agradecimento. Vi que não estava tão confortável e, sinceramente, eu odiava esses momentos lá no abrigo também, — agora virava o rosto para a sua direção, apesar de manter uma expressão indecifrável — porque eu sentia que não tinha nada para agradecer, aí eu sempre optava por algo bem subjetivo, tipo ser grata por viver, mas sei lá…E era sempre uma pressão absurda para ter uma resposta. Será que eu não podia simplesmente dizer que na verdade eu sentia que merecia muito mais do que eu podia ter? Inclusive, ainda sinto…

A vampira deu um tempo para ver se a humana continuaria a fala e, quando não veio, decidiu responder.

— Parece que não é exatamente sobre agradecimentos que estamos falando, não é?

— É que… — a mulher abaixou o olhar e soltou um leve suspiro — Às vezes eu quero coisas que parecem que estão fora do meu alcance. E dessa vez eu não consigo simplesmente aceitar e superar, porque eu sinto que é algo meu, sim. E que foi tirado, e está fazendo falta. 

— E o que é? — Catra tentou, na expectativa de entender melhor onde a humana queria chegar com esse assunto.

— Eu não sei exatamente o que é , mas em muito momentos essa sensação vem quando… Quando você está por perto e eu acabo caindo num ciclo tão-

Ela interrompeu a própria fala e se perdeu nos próprios pensamentos, vagando o olhar para qualquer lugar menos para o rosto de Catra.

Se os olhos marejados da curadora não a tivessem entregado, o cheiro das lágrimas no olfato aguçado da vampira a teria alertado. Não sabia como poderia acabar com essa angústia, só sabia que precisava e queria muito abraçá-la. 

Soltou-se do cinto de segurança e aproximou-se da outra para envolvê-la em um abraço firme. Adora encolheu-se no próprio corpo antes de aceitar o gesto, como se tivesse lutado para não corresponder e depois desistido.

— Sobre o que está falando exatamente? — Catra murmurou perto do ouvido da outra.

Agora já tinha uma leve sensação de que sabia do que se tratava. Ainda assim, queria ouvir claramente da boca da humana.

— Desde que nos reencontramos, até mesmo enquanto ainda estava desacordada, muitas peças da minha primeira viagem à Romênia não se encaixam, — Adora dizia sem sair dos braços de Catra, como se, ao esconder o rosto em seu peito, fosse amenizar a insegurança que este tema a causava. 

Continuou:

— E por um tempo até pensei que era melhor deixar tudo para trás, mas… O sentimento que isso me provoca, o vazio… Ou até mesmo a sensação estranha que tenho quando penso que teoricamente se não fosse pelo resgate com a Scorpia, você não passaria de uma mera estranha na minha vida. Isso parece mentira, Catra! Não é possível que não tenha mais alguma coisa nessa história. Algo que pertença à minha parte da história, que pertença a mim…

A vontade de ter uma conversa franca com ela só aflorava. Franca sobre tudo: sobre o que sentia e o que fizera lá atrás, quando a hipnotizou por dias. Mesmo que a revelação destruísse a amizade e a parceria de trabalho, mesmo que acabasse com a confiança que Adora declarou que tinha nela. 

Era um preço muito alto, mas, como a própria disse, ela merecia o que lhe pertencia, a sua parte da história. 

E acima de tudo, merecia a honestidade de Catra.

— Eu preciso te contar uma coisa, Adora.

Catra lutava contra o próprio medo das consequências, contra a ansiedade que faria seu coração pular para fora se estivesse ainda batendo. Controlou a própria voz para que soasse compreensiva.

A jovem desvencilhou-se do abraço hesitante, mantendo uma distância não muito longa entre os corpos, apenas o suficiente para que pudesse voltar a encará-la.

— Na verdade, não é bem contar, e sim devolver as memórias que… Tirei de você.

Agora a distância se fez de vez e a morena sentiu falta instantaneamente do calor da outra. 

Adora a olhava com uma mistura de repreensão e dúvida. O rosto ainda inchado por causa do breve choro mais cedo tornava a expressão ainda mais dolorida para Catra. 

E lá se vai toda a pouca alegria que conseguira conquistar nesses últimos meses. 

Abriu o caminho para a verdade, devolveria as memórias de Adora e muito provavelmente a perderia de vez.

Chapter 21: Memória

Notes:

Volto com um POV Adora para vocês :)
Boa leitura!

Chapter Text

O cérebro de Adora parecia implodir numa mistura de ansiedade e descolamento da realidade. Era natural, já que tinha acabado de abrir o coração e, sem querer, desencadear uma revelação inesperada de Catra.

Mal se lembra de como saiu do carro e foi parar na porta do pequeno apartamento da vampira depois de saber que precisava pegar suas memórias de volta. Como seria isso, aliás?

Depois de ouvir de longe um “vem, vamos entrar” apreensivo de sua companhia, automaticamente caminhou até sentar-se no sofá a tempo de não sobrecarregar as pernas já bambas pelo decorrer da situação.

— Acho que aqui conseguimos tornar o processo um pouco mais confortável — a outra dizia entre uma voz suspirada, claramente nervosa.

Confortável foi uma escolha um pouco irônica do uso da palavra, foi o que pensou Adora. Contudo, não conseguiu responder muita coisa além de um aceno de cabeça para que prosseguissem seja lá o que estivesse prestes a acontecer.

Catra sentou do seu lado, um pouco mais afastada, e gesticulou para que deitasse a cabeça em seu colo. Seu instinto foi olhá-la desconfiada e quando não teve muita reação além de um silêncio paralisado da vampira, resolveu fazê-lo. Não é como se ela estivesse em condições de fazer algum mal enquanto aparentava estar tão em pânico quanto a própria humana.

Assim que as mãos da jovem criatura encostaram na humana, foi como se circuitos começassem a ligar sua mente, fazendo uma pulsação dolorosa tomar conta de toda a parte frontal de sua cabeça. 

Fechou os olhos com força e deixou escapar um breve resmungo de dor. Desde então, todos os outros sentidos de seu corpo estavam em desfoque para que todas as imagens que passavam diante de seus olhos dominassem toda a atenção.

Um encontro num bar onde ocorreu muito mais do que uma conversa.

Depois, a ida para o quarto de Adora. O pulsar dos dois corpos e um desejo incontrolável, tão incontrolável que desencadeou em um desmaio da vampira.

Reviveu toda a aflição que sentiu ao vê-la desacordada, e também o alívio ao vê-la abrir os olhos, ao pedir sussurrante por um beijo.

Mais desejo.

E mil e uma maneiras de tentar criar mais um cenário, mais uma chance para poder chegar onde chegaram no dia do bar.

A cada encontro, um ímã mais poderoso que atraía Catra para sua mente, para seus sonhos.

O pedido dela para que ficasse por mais uma semana, um que aceitara eufórica, diga-se de passagem.

E a contínua fascinação pela vampira. Não mais da maneira tão intensa como antes, e, ainda assim presente, constante.

Algo aparentemente correspondido, deduziu assim que reviveu, em cada detalhe, o momento que tiveram no parque após o último jantar.

Assim que reviveu o beijo que a aqueceu em meio a noite fria que fazia.

Mas o momento foi logo substituído por uma grande aflição. Pelo conflito que via nos movimentos e no olhar de Catra enquanto iam de carro para a casa dela.

Uma discussão sem sentido com o motorista.

Uma discussão sem sentido entre elas, depois que entraram.

Tantas vezes ouviu a frase “confia em mim” sair da boca da criatura enquanto claramente via suas ações serem manipuladas sem poder reagir até que chegasse no aeroporto.

Tudo era assustador e causava uma agonia sem fim. Porém, nada foi mais desesperador do que ouvir a última frase acompanhada de um olhar escurecido e feral:

Espero que me perdoe, se por acaso um dia lembrar do que tivemos.

Adora reabriu os olhos com a mesma veracidade com que saiu do alcance de Catra. Levantou do sofá e em meio ao descontrole da própria respiração deu passos largos para o canto mais afastado da sala.

A esse ponto, já não sabia mais se a falta de ar era porque todo seu sistema nervoso tinha paralisado com tanta informação ou se estava prestes a ter um ataque de pânico.

Tinha um nó na sua garganta, um que se estendia até o coração e ainda assim não conseguia derramar uma lágrima. Uma sensação física inexplicável, porque era muito mais do que uma vontade de chorar. Parecia um acúmulo de sentimentos, como se tudo que ela não pôde sentir durante o tempo que não lembrava de nada estivesse vindo de uma só vez.

Apesar do peso muito maior do que sentia ser capaz de carregar no momento, as coisas ao menos faziam mais sentido. Conseguiu ligar os pontos e completar o que antes estava vazio em sua percepção. Entendeu as motivações da vampira desde que voltaram a conviver, ou mesmo as suas próprias motivações em querer cuidar dela, em querer ajudar de maneira incondicional.

Foi também por um outro caminho: o lógico. 

Lá atrás, se Catra tinha intenções reais de capturá-la, então há possibilidades de tudo ter sido manipulado, de ela ter sido manipulada.

— O que aconteceu entre nós, — pausou a fala para tentar soar menos desestabilizada e preferiu abaixar a cabeça para não encarar a outra — foi influência de algum poder seu?

— No início, sim, — Catra também estava de cabeça baixa, já que sua voz saía diminuída e hesitante — eu usei da hipnose para manipular a atração que você sentiu por mim.

— E por que escondeu isso? — Adora perguntou quase por cima da resposta da outra, numa mistura de revolta e tristeza.

Por instinto levantou o olhar e encarou a criatura, que no momento fizera o mesmo. Os olhos coloridos claramente desesperados ficaram maiores do que já estavam.

— Porque queria garantir que o clã não ameaçasse mais a sua vida, — a voz e o corpo dela tremiam — se você continuasse com qualquer evidência dessa parte da viagem, era capaz de querer me procurar e aí eles te achariam e seria o seu fim.

— E depois que nos reencontramos? — Gesticulava impaciente, não aceitando a justificativa — Já voltamos a conviver uma com a outra de qualquer forma, não é? Por que preferiu continuar escondendo? Por que achou que tinha esse direito?

— É que eu fiquei com medo… — A vampira apertou os olhos e suspirou longamente antes de continuar — Fiquei com medo das consequências que isso poderia causar, fiquei com medo de como você iria reagir, de se afastar de vez e nunca mais confiar em mim de novo. Mas tem razão, eu não tinha esse direito.

Não podia negar como ficou sensibilizada com a confissão. Ainda em silêncio, a encarava enquanto não era correspondida. Tentava ler os sinais corporais dela, conferir se todo o arrependimento que expressava em suas palavras era real.

Repentinamente, mais alguém veio à sua mente. Mais alguém que também estaria envolvida nessa história:

— E a Scorpia? — o nó voltou para sua garganta — Ela sabe disso tudo?

E toda a sua indignação aumentou mais ainda. 

Porque além de toda a manipulação, ainda tinha uma segunda pessoa envolvida e que era diretamente atingida por toda essa farsa, uma que não merecia ter que sofrer por isso.

Como Adora conseguiu entrar numa furada tão colossal como essa?

Se pudesse, queria não mais sentir o que sabia que sentia por Catra.

— É lógico que ela sabe, — a vampira finalmente a encarou, de um jeito confuso desta vez — mas por que isso seria relevante agora?

— Por que não seria, Catra? — bateu o pé ainda sem muita paciência pela mistura de sentimentos que a tomava — Você vive falando o quanto ela é o seu mundo e tudo mais. Estão a tanto tempo juntas e agora não é relevante? 

— Juntas? Nós não estamos juntas. Nunca estivemos.

A humana levou uma das mãos à testa e massageou para tentar amenizar a dor cada vez mais latente.

Sua voz soou suspirada e cansada quando soltou:

— O que você quer de mim, Catra? Por que está fazendo isso? Por favor, eu estou exausta…

— Adora, juro que não sei do que está falando! — Ela levantou e tentou se aproximar da humana que a repreendeu e fez com que ela parasse no meio do caminho — A Scorpia é como uma irmã para mim, e mesmo que um dia ela tenha de fato sentido algo, já passou há muito tempo. Ela sabia que não teria como ser recíproco, sabia que eu tinha me apaixonado por você.

— E como é se apaixonar por alguém que você manipulou do início ao fim? — sem pensar, jogou a pergunta ácida no ar — Como é saber que o que eu sinto pode ser algo que nunca partiu de mim e sim do seu próprio egoísmo?

Queria expelir um pouco da dor excruciante que sentia tanto fisicamente, na cabeça, quanto sentimentalmente, em sua alma.

A surpresa de Catra foi instantânea, seu suspiro chegou a ser audível e as lágrimas vermelhas estavam visíveis no canto dos olhos azul e âmbar.

Depois de alguns segundos de silêncio, Adora já havia se arrependido do que perguntara. Ainda assim, manteve a pose e continuou encarando a outra na espera de uma resposta.

Não sabia exatamente o que queria ouvir, mas queria ouvir alguma coisa

Precisava ouvir.

As lágrimas finalmente escorreram no rosto da vampira. E ela mexia os lábios como quem tentava falar alguma coisa, mas era difícil emitir qualquer som. 

Até que, numa voz tão pequena, surgiu um discurso:

— A última vez que te hipnotizei foi para te colocar no avião de volta, Adora. E mesmo antes, eu já havia parado na primeira semana porque decidi que não queria mais te entregar para o clã. Eu já te disse isso, mais de uma vez, você é especial. Não só para mim, para todos à sua volta. E quanto mais eu te conhecia, mais inevitável era não me apaixonar por você. Eu mesma não quis acreditar, parecia ridículo me arriscar tanto por alguém que eu mal conhecia. Pode ser que por karma eu acabei sendo hipnotizada pelo que sentia e ainda sinto por você.

Uma pausa para tentar recuperar a coordenação da fala e esconder uns soluços de choro depois, ela continuou:

— Mas é verdade, eu… Eu não sei até que ponto o que foi feito durante esse tempo influencia no que sente ou deixa de sentir por mim hoje. Minha teoria é que, sem as memórias, você não teria como nutrir sentimentos por mim. E se você sente alguma coisa é por causa dos momentos que você lembra, ou lembrava até agora. É o que faz sentido. 

Catra levantou o olhar e esperou uma resposta de Adora que não veio.

Não estava preparada para falar nada ainda.

— Queria poder te poupar disso, não ter que fazer o que te fiz, —  dando mais um passo para frente em mais uma tentativa de se aproximar, Catra reforçou — mas se fosse para te salvar de novo, Adora, eu não hesitaria um segundo sequer.

Ao mesmo tempo que queria gritar para que Catra sumisse de sua frente, queria abraçá-la com força o suficiente para que seus corpos se tornassem um só.

Era inconcebível sentir o amor e a raiva em proporção tão igual como acontecia agora dentro de seu coração. 

Porque ao mesmo tempo em que a amava, não sabia lidar com o fato de isso talvez não ser de sua autoria.

Amava sem ter tido a escolha de amar.

No fundo de sua mente quase dormente com tantos acontecimentos a atingindo de uma só vez, surgia uma pergunta que a confundia ainda mais: 

E será que é possível escolher como e quem amar, afinal? Existe escolha?

O que Catra fez não foi certo, era óbvio. Mas ela também estava tão rendida quanto a própria Adora. Seus status com os outros vampiros era sua prisão. Também sofria, de certa forma, de uma manipulação sentimental, abusiva, potencialmente mortal.

A cabeça latejou novamente, relembrando-a da dor que não havia passado nem por um segundo. Massageou o couro cabeludo com os dedos de ambas as mãos e apertou as pálpebras para amenizar a entrada de luz nos globos oculares.

— Adora? — Catra encostou a mão gelada em um de seus ombros.

Esquivou-se como se tivesse sido queimada. Com a linguagem corporal, deixou evidente que não queria que a outra se aproximasse dela no momento.

Até porque não tinha condições de resolver e nem interpretar nada agora.

O que podia fazer por si mesma era recolher seus cacos e ir para casa pensar.

Pensar, pensar e pensar ainda mais.

— Eu preciso ir embora — conseguiu abrir os olhos minimamente ao falar.

— Mas você não parece em condição de-

— Deixa eu ir embora, — interrompeu a fala de Catra e reergueu a própria postura para sustentar o tom imperativo — deixa eu tomar a minha própria decisão pelo menos uma vez nessa história toda. 

A mais baixa deu dois passos para trás e deixou espaço mais do que o suficiente para que a humana fosse para qualquer direção que quisesse.

Sem olhar para trás, abriu a porta do apartamento, mas, antes que pudesse sair, ouviu o desespero na voz da vampira:

— Eu vou respeitar qualquer decisão que você tomar, isso é óbvio e o mínimo que posso fazer. Mas antes de ir, saiba que independente do que decidir em relação a nós duas, ainda estarei pronta para te proteger porque sei que vou passar a eternidade te amando. Então, quando precisar, não hesite em me procurar. 

No desespero de não saber o que responder, saiu do apartamento e bateu a porta com força. Desceu as escadas quase correndo até alcançar a escuridão de seu carro para despejar as lágrimas que segurou durante todo esse tempo. 

Nos poucos minutos que ficou estacionada em frente ao prédio, fez exercícios de respiração para que sua mente parasse pelo menos um pouco de jogá-la em tantas montanhas-russas.

O rumo inteiro da sua vida poderia mudar agora que recuperou as memórias, por isso precisava conduzir com cuidado para que não cometesse nenhum erro que a magoasse ainda mais.

Precisava respirar, precisava amenizar a dor na cabeça, precisava sair dali.

Contudo, tinha que ir com calma. 

A metáfora sentimental também servia para o mundo real, já que ao ligar o carro, concentrou-se mais que o usual na estrada, sabendo que suas condições poderiam causar distração e um consequente acidente.

Na primeira meia hora de silêncio na estrada, foi recuperando uma certa calmaria. Mesmo que tênue, o volume de pensamentos simultâneos diminuíram, assim como as lágrimas inconstantes em seus olhos.

Era um alívio voltar a concentração em apenas dirigir, ter outra coisa para se preocupar.

Talvez nem mesmo a própria audição estivesse esperando tamanha quietude, pois resolveu pregar uma peça e Adora jurou ter ouvido um sussurro:

— Agora você é minha…

A voz arrastada e grave não era como da última vez no estacionamento. 

Como reflexo, passou o olho no retrovisor para conferir se mais alguém estava no carro, já tendo quase certeza de que não veria nada ali. 

Afinal, era capaz de ser apenas coisa da sua cabeça.

Só que não era.

Não desta vez.

A silhueta de uma mulher esguia e de cabelos longos com uma máscara tapando o rosto apareceu a encarando de volta.

Antes que pudesse reagir, sentiu um toque gelado em seu ombro.

No espasmo do susto, pulou do banco do carro e tirou a atenção da estrada para olhar para trás. 

Em fração de segundos, o rosto da mulher estava colado ao seu e antes que pudesse assimilar, sentiu seu corpo sendo jogado bruscamente para todos os lados.

O carro capotou uma, duas, três vezes plantação adentro, a mesma que beirava a estrada e arrancava elogios de Catra quando a levava de carona para algum trabalho voluntário.

Os olhos pesaram e logo Adora perdeu a consciência sem ter tempo de entender quem estava naquele banco de trás e o que acabara de acontecer.

Chapter 22: Esperança

Notes:

E lá vamos nós na tentativa de terminar esta fic!

Desta vez vai! Falta terminar o último capítulo, mas temos 10 prontinhos para serem publicados. Devo voltar aqui algumas vezes por semana para ir soltando depois de uma revisãozinha para não soltar nada mal feito para os guerreiros que ainda não desistiram!

Preparem-se para o angst, apertem o sinto e curtam esse POV Catra!

Boa leitura <3

Chapter Text

Mesmo que tenha imaginado os piores cenários quanto à reação de Adora, Catra não poderia dimensionar que na realidade doeria tanto.

As manifestações de dor na linguagem corporal, nas manifestações de terror nas pupilas agora minúsculas daqueles orbes azuis que tanto amava. Não conseguia parar o ciclo angustioso. Fechava os olhos e tudo que via era cada detalhe da discussão, era o que mais queria esquecer.

Assim que a humana saiu do apartamento às pressas, segurou-se ao máximo para respeitar o desejo dela e não correr atrás. Ignorou inclusive o mal pressentimento crescente à medida que a presença da humana ia se afastando mais e mais de seu prédio. Tentou dizer para si que era provavelmente uma reação desesperada de seus próprios sentidos por saber que talvez aquela tenha sido a última vez que vira o amor de sua eternidade. Não porque algo ruim irá acontecer, mas sim porque estragou tudo de vez.

Por um lado, livrou-se do peso da omissão. Deu de volta o que era de direito dela, as temidas memórias. Só lhe restava ter paciência e lidar com as consequências. Quem sabe um dia Adora voltaria a procurá-la para conversarem melhor, afinal,  ainda possuem laços profissionais além de toda essa história maluca.

As discretas lágrimas de sangue já tinham manchado todo o seu rosto quando decidiu respirar fundo em uma rápida meditação para interrompê-las. Não passava grandes apuros para conseguir comida como antes, mas ainda assim precisava preservar cada gota que podia ter. Não é como se tivesse o respaldo do clã para garantir a custosa sobrevivência.

Só depois de dois dias que a vampira reencontrou uma faísca de ânimo para lidar com o mundo humano e sair do pequeno apartamento que, em situações como esta, podia se tornar sufocante. 

Essa faísca se chamava Scorpia.

A amiga de tanto tempo enviou uma mensagem pedindo para que a encontrasse no clã. Segundo as próprias palavras dela, tinha uma notícia que “mudaria o rumo das coisas”. 

Ótimo. Como se tivesse usado de telepatia, sua irmã de alma sabia que estava precisando de uma mudança de rumos mesmo. Não tinha certeza do que poderia ser exatamente. 

Será que Adora entrou em contato com ela? Ou não tinha nada a ver com a humana? Com essa que não deu um sinal de vida sequer durante este tempo, diga-se de passagem.

Só saberia se fosse até lá. 

Então, não prolongou a própria curiosidade por muito tempo. Esperou anoitecer para se aconchegar num sobretudo alguns números maiores do que o que vestia e foi até uma das passagens que chegava  no covil dos vampirões da paz. Diferente das outras vezes, recebeu cumprimentos simpáticos quando passou por algumas das criaturas lá dentro. 

Estranho… Ou eles já estavam ficando acostumados com sua constante presença ou algo a mais aconteceu…

Antes de entrar no quarto destinado à Scorpia, a própria a puxou para dentro com um abraço esmagador.

— Pequena! Finalmente chegou! — Exclamava eufórica enquanto jogava o corpo enorme sob o seu esguio.

Retribuiu o abraço, mas de uma forma mais instintiva do que qualquer outra coisa. Talvez tivesse desacostumado com demonstrações de afeto já que escolhera se isolar depois de uma certa discussão fria e dolorida.

Ainda assim, tentou corresponder a animação da outra criatura. 

Abriu um sorriso pequeno e perguntou em tom de brincadeira:

— Por acaso eu salvei o mundo e ninguém me avisou? Por que toda essa gentileza e carinho?

— Ora, eu sempre sou assim, especialmente contigo! — A outra cerrou os olhos e fingiu desdém com o comentário.

— É verdade, você é — depois do abraço, permitiu-se dar de ombros casualmente, — mas não o resto dos vampiros daqui. Eles me cumprimentaram com sorrisos , acredita nisso?

— Então a notícia já deve estar circulando — murmurou Scorpia como se Catra já estivesse inteirada do assunto.

— Que notícia?

Scorpia conta que o Conselho reabriu o caso dela, pois observaram todo o seu esforço nos trabalhos voluntários nos últimos meses e decidiram considerar uma reavaliação. Desta vez, haveria também o peso de voto dos outros membros do clã. Esta foi uma sugestão de Perfuma, segundo Scorpia, para que o processo fosse mais justo e também para que os outros membros pudessem se sentir participantes de uma decisão tão importante quanto integrar uma vampira recentemente expulsa ao grupo.

Então por isso houve toda a comoção quando chegou. É provável que já tenham sido informados da situação e que Catra, de fato, tinha aliados. Sua amiga disse, inclusive, que o clã não demoraria muito para seguir adiante com tais votações. Muito provavelmente em uns dois meses, no máximo, tudo estaria decidido.

Realmente era uma grande notícia. Ainda tinha chances de fazer parte do clã!

Uma pequena vitória em meio a tanta desgraça.

— Mas você não me parece tão feliz assim, — a vampira mais velha segurou seu rosto delicadamente pelo queixo e a encarou, — desde que você chegou, percebi que não estava com o melhor dos humores.

Correspondeu ao olhar da amiga e suspirou lentamente. 

Agora era a sua vez de contar as novidades, não tão agradáveis quanto as que acabou de saber.

— Eu… contei tudo para a Adora, devolvi as memórias dela. Foi horrível. Provavelmente, neste momento, ela deve estar me amaldiçoando para os amigos dela e me odiando para todo o sempre.

Tentou não voltar para o fundo do poço depois de ter passado os últimos dias escalando para sair dele. E mesmo assim, só o ato de relatar os detalhes para sua amiga, assim que ela perguntou sobre estes, foi como reabrir uma ferida que nem sequer cicatrizou.

O canto de seus olhos já acumulavam pequenas gotas de lágrimas vermelhas quando Scorpia decidiu se manifestar. 

— Sinto muito, pequena — um sussurro e mais um abraço, dessa vez menos afobado e, ainda assim, bem mais apertado.

Scorpia nunca gostou de assistir seu declínio sem tentar mudar o rumo de seus sentimentos para melhor. Por isso foram dar uma volta pela estufa que existia no clã. Era como um enorme jardim de inverno, com teto de vidro que durante o dia repelia a luz do sol para proteger as criaturas que circulavam por ali. Agora, durante a noite, porém, tornava-se tão transparente que era possível ver as estrelas e a lua cheia no topo do céu.

Catra permitiu-se aproveitar esse momento, pensar em como ainda era possível ter acesso a tudo isso, em como em breve poderia ser mais uma das pertencentes ao tão amigável clã de vampiros de Salém. 

Por alguns segundos, sentiu uma euforia, como se seu coração estivesse batendo mais acelerado, mais esperançoso. Provavelmente estaria, se estivesse viva.

— Vai doer por mais um tempo, acredito, e vai demorar para passar também, mas acho que vou ficar bem — Catra cortou o silêncio confortável para expor a conclusão sobre a tragédia de sua própria vida amorosa. — Vou agarrar essa chance de entrar para o clã com todas as minhas forças e canalizar minha alegria nessa conquista a partir de agora.

Trocou olhares com Scorpia e deixou-se sorrir timidamente, o que despertou um visível alívio no olhar que correspondia ao seu. 

— Com toda certeza. Aqui vai poder recomeçar, criar um novo ciclo social, vai estar em casa de verdade… — a vampira mais velha falava com o olhar perdido no nada, como se estivesse sonhando acordada.

Seria uma consequência da paz e do pertencimento que ela tanto dizia ter conquistado desde que chegou em Salém? Era disso que Scorpia desfrutava? 

Naquele momento, Catra fez uma promessa a si mesma: iria conquistar seu espaço também. Acharia, a qualquer custo, o seu lugar. 

Sentiria-se pertencida, merecia sentir-se pertencida, precisava sentir-se pertencida. 

Senão à Adora, pelo menos a um lugar de conforto e segurança.

Para experimentar um pouco mais da leveza que sentira depois de visitar a melhor amiga, decidiu ir caminhando de volta para casa. 

Passou em frente à galeria que tanto fez parte de sua jornada nos últimos meses e parou os passos na mesma hora. Não esperava sentir a presença de ninguém àquela hora da madrugada. Observou de longe por alguns segundos até que viu duas figuras humanas saindo pela porta da frente um pouco desnorteadas. Eram Glimmer e Bow.

O que será que faziam ali?

Como um ímã, sua mente só podia pensar em uma coisa. 

Uma pessoa.

Um alerta se acendeu e instintivamente foi na direção do casal, sem querer saber se teria que explicar sua caminhada no meio da madrugada caso perguntassem. Não importa a consequência agora. 

Só importa uma coisa:

— Glimmer, Bow, — acenou enquanto ainda caminhava para mais perto deles — Está tudo bem?

— Catra, oi! — Foi a mulher que se pronunciou primeiro, concluindo o cumprimento tenso com um aperto de mão rápido. — Que coincidência você por aqui, já iríamos te procurar.

— Uma hora dessas? — Tentou não demonstrar que já captara, pelos seus sentidos vampirescos, a forma como os humanos estavam inquietos.

— Catra, você tem notícias da Adora? — Bow foi direto ao ponto, sem se preocupar em estender o boa noite para além de um aceno com a cabeça.

A pergunta fez com que o corpo inteiro da vampira pulsasse, como se a sensação de alerta que sentira quando viu Adora sair de sua casa aumentasse dez vezes.

— Não, não a vejo desde o jantar de Ação de Graças — a voz saiu baixa, amedrontada quase.

— Estou começando a ficar preocupada, — murmurou Glimmer enquanto alternava o olhar aflito entre o rapaz que a acompanhava e Catra, — ela não responde nem às minhas mensagens e nem às do Bow. Ligamos e nada também. Tínhamos marcado de sair ontem e chegamos a ir no apartamento dela, mas quando entramos com a chave de emergência, estava vazio.

A cada palavra, sentia-se dissociada do presente. Ouvia a voz de Glimmer, mas não era nisso que focava. Estava resgatando algumas memórias recentes para tentar entender as possibilidades desse sumiço. Ficou um tempo calada, olhando para o chão, perdida dentro da própria cabeça.

Até que Bow resolveu acrescentar mais uma informação:

— Pensando bem… Lembro que vi um carro parecido com o dela num acostamento da autoestrada no sentido Boston enquanto vínhamos para cá. Ele estava meio amassado, como se tivesse capotado ou algo assim, mas acho que saberíamos se algo desse tipo tivesse acontecido com ela, não é?

— É, ela não está em nenhum hospital, senão teriam ligado para um dos nós dois, somos os contatos primários no plano de saúde dela, lembra? — Glimmer complementou — Não acredito que tenha sido acidente.

E então todas as engrenagens do cérebro de Catra se encaixaram.

Lembrou-se das eventuais vezes que sentia a presença de vampiros por perto quando ia visitar a curadora, tanto em Boston quanto na galeria em Salém. Lembrou-se também de quando a própria comentou que achava que tinha escutado um sussurro ao sair de um estacionamento e depois logo associou isso ao cansaço daquela semana. Por último, recordou a sensação de perigo quando ela bateu a porta de seu apartamento e se foi.

Todas as pistas a levam para uma conclusão, uma da qual não gostaria de estar certa.

Levou as duas mãos ao rosto e massageou as têmporas na tentativa de se acalmar.

— Acho que devemos acionar a polícia ou o bombeiro, — Bow cortou o silêncio pesado, — Catra disse que a viu pela última vez há dois dias, e nós também, então já passaram as 48 horas de espera.

O rosto de Shadow Weaver e sua risada arrepiante voltaram vívidos em sua mente logo após a sugestão do humano. 

Parecia até uma resposta debochada ao que o rapaz acabara de falar.

Enojou-se de forma tão brusca que quase colocou para fora o sangue que consumiu com sua amiga vampira há algumas horas. 

— Não é desse tipo de ajuda que precisamos, é de outra. — Catra estava vendo tudo rodar ao mesmo tempo em que um zumbido crescente começava a soar em seus ouvidos quando quase sem voz confessou:

 — E precisamos dela agora .

Só conseguiu pensar em como sua situação havia melhorado no clã e tentaria usar isto para salvar sua amada. Precisaria abrir seu coração, confessar seu desespero, mesmo que ainda não fizesse parte do grupo por completo. Ao menos teria que tentar esse apoio, poderia compadece-los por  compaixão.

Não importa se estava arriscando muita diplomacia com as poucas cartas que poderia oferecer. 

Não importa se estava prestes a quebrar a promessa que mal fez consigo mesma há poucas horas.

Não importa se estava disposta a dar todas as suas chances de bem-estar pela Adora mais uma vez.

Não tem jeito.

Qualquer coisa por ela. 

Tudo por ela.

Chapter 23: Plano

Chapter Text

O tempo de espera entre o encontro inesperado com Glimmer e Bow na galeria e a atual espera por Scorpia em uma das saídas do esconderijo do clã não foi tão longo. Não mais que 40 minutos, se Catra tivesse que presumir.  

Por outro lado, no cenário em que estavam, cada nanossegundo valia, cada grão da ampulheta significava um pedaço da vida de Adora se esvaindo. 

Não tinha tempo de sobra, tudo precisava ser para agora.

Os amigos da humana estavam parados na beira da calçada, dentro do carro no qual foram para Salém, o mesmo que deram a breve carona até o local para o qual Catra insistira que poderia ter ido sem eles. Aparentemente não querem parar a busca pela amiga também independente do horário, independente de Catra mal ter falado o que iria fazer exatamente ou aonde iria. Eles apenas assentiram e foram.

Scorpia a recebeu na porta, assim como pedira em sua mensagem, e ainda confusa com o retorno da amiga que tinha saído a poucos minutos dali, questionou:

— O que está acontecendo? E por que os amigos da Adora estão parados aqui uma hora dessas?

— Você precisa me ajudar, Scorpia, — tentou evitar o desespero na voz quase murmurada, mas a essa altura era inevitável, — eles vieram procurar pela Adora que sumiu desde o Dia de Ação de Graças, e eu tenho quase certeza que ela foi raptada.

— Por que acha isso? — na voz propositalmente calma, Scorpia tentou acalmá-la.

— Porque eu senti um presságio assim que ela foi embora no dia da discussão... Ignorei por pensar ser parte da sensação excruciante que eu estava sentindo depois de tudo que aconteceu, mas-

Interrompeu a fala porque novamente sentiu uma presença além da sua própria e da amiga. Era bem fraca, distante. Talvez estivesse captando os vampiros do clã que circulavam por ali. 

— Eu também senti, e não é ninguém daqui. — A vampira mais velha a segurou pelos ombros e a olhou no fundo dos olhos. — Se for o que estamos pensando, é melhor agirmos o mais rápido possível.

— Vamos precisar da ajuda do seu clã.

— Eu vou ver acionar a Perfuma, — a de cabelos platinados já pegava o celular e digitava em meio a fala, — talvez ela não possa colocar os outros membros a nossa disposição, mas pelo menos checar se vampiros de outros clãs estão por aqui é possível.

Acenou com a cabeça e deixou a ponta de esperança acalentar um pouco os pensamentos caóticos. O que não era nada perto de como todo seu corpo pulsava de ansiedade, de pressa. 

Precisava fazer ainda mais.

Olhou para o carro dos amigos de Adora e depois para Scorpia.

— Eles viram um carro parecido com o dela parado na estrada. E se formos para lá agora?

A mais velha parecia refletir sobre a ideia. Poderia estar pensando que não era uma boa opção. Se achou, não contou para Catra, pois a olhou como quem engole a seco uma resposta sincera e opta pela mais confortável, a que evitaria um colapso de uma melhor amiga em desespero:

— Tá, vamos.

Como frisou com a amiga vampira, Catra não havia contado aos humanos sobre suas peculiaridades sobrenaturais. Portanto, decidiram ir todos no carro do casal, com Catra apresentando Scorpia como apenas uma das amizades em comum que ela e a curadora tinham.

No caminho, Glimmer deu algumas viradas para olhar bem os traços de criatura de cabelos platinados no banco de trás e revelar, através do olhar penetrante, que sabia quem era ela.

Catra logo ligou os pontos: Glimmer sabia do convite que Adora recebeu para voltar para a Romênia. Era provável que tivesse visto Scorpia por vídeo ou foto durante esse contato a distância com a loira, embora o real motivo da viagem não tenha sido revelado para o casal, segundo Adora. 

Não houve muito mais tempo para análises, já que logo chegaram ao acostamento. Todos desceram e foram vasculhar por qualquer prova de que aquele carro ali abandonado era o da mulher desaparecida.

Catra já sabia sem mesmo precisar olhar. 

Sentia e reconhecia o cheiro de Adora a metros de distância, mesmo que em superfícies. Aprendeu a rastreá-lo depois de meses de convivência no ambiente de trabalho, tanto para protegê-la quanto para buscar conforto nos momentos em que sustentar a amizade platônica ficava mais difícil. 

Nos dias em que a curadora não podia ir à galeria, a vampira ia mesmo assim e circulava em cada canto, inalando o ar nos lugares em que a humana ficava. Era quase possível materializá-la ali se fechasse os olhos e respirasse fundo. 

O ar que os vampiros inalam não possuem a mesma função do oxigênio, mas era tão vital quanto. Ele permite que a ligação emocional e humana da memória se mantenha viva. E Adora era sua memória mais bonita, apesar de todos os obstáculos. 

Era a sua sina por estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe.

E tudo o que queria agora era poder viver essa sina, pois ela indicaria que, ao menos, Adora estaria a salvo.

— É o carro da Adora, — Bow exclamou enquanto apoiava as duas mãos no vidro do motorista e olhava para dentro do veículo, — a chave ainda está ali e é o chaveiro dela.

A fala chamou a atenção de todos que simultaneamente olharam para a ignição. 

Scorpia e Catra se entreolharam, comunicando-se em silêncio. A mais velha com uma apreensão evidente, o que só aumentava o mal-estar da mais nova.

Mais uma vez a onda de mais algum poder vampírico que não o dela e de sua amiga.

Na mesma hora, adentrou poucos metros pelo mato alto da beira da estrada, mas parou. Olhava para os lados na tentativa de usar de sua visão noturna em meio ao breu a sua frente para localizar a origem dessa presença.

— Catra, é melhor vocês irem embora — Scorpia gritou da beira, sem deixar o casal de humanos.

— Você sentiu também? — Ignorou completamente o aviso. — Eu só não consigo decifrar de onde vem… Preciso me concentrar.

— Eu consigo, mas você precisa vir para cá agora e levar esses dois para o clã.

Glimmer e Bow unissonamente indagaram:

— Clã?

Voltou para perto do grupo apenas para não ter que ficar argumentando de longe, e também porque precisava deixar claro para Scorpia que não iria a lugar nenhum enquanto não encontrasse sua humana.

— Eu não vou voltar, preciso achar quem é que está por aqui, — falava num tom mais baixo porém ainda impaciente, — ele pode ser um comparsa, pode nos dar o paradeiro de quem pegou a Adora, ou até ser quem pegou!

— Você não está em condições para isso, sua cabeça está atordoada e nem sequer está conseguindo usar seus poderes direto!

Estavam uma de frente para outra, solenemente ignorando a presença do casal de humanos enquanto discutiam.

— E o que você esperava? Se for quem eu estou pensando que a pegou, não tem como não ficar atordoada!

— Se quer ter alguma chance de resgatar a Adora viva, precisa de um plano, Catra! E se vo-

— Alguém pode explicar o que é que está acontecendo aqui? — Glimmer entrou no meio das duas vampiras, interrompeu a fala de Scorpia com uma pergunta quase gritada e bateu o pé.

As duas arregalaram os olhos como se estivessem surpresas que os dois humanos ainda estavam ali. E eles queriam uma explicação. 

Nada mais justo, já que Catra os arrastou no meio da madrugada para encontrar uma suposta amiga de Adora que, por algum motivo que eles não sabem, veio parar em Salém e está falando de presença, poder, clã, etc.

Em um acordo silencioso após uma troca de olhares, as vampiras decidiram que, nesse caso, não poderiam guardar segredo para esses humanos. Era crucial que soubessem o que estava acontecendo para que conseguissem salvar a curadora desaparecida.

Antes que Catra pudesse revelar qualquer coisa, contudo, Scorpia indagou uma trégua silenciosa da discussão para reforçar mais calma:

— É melhor conversarem em um lugar mais seguro.

Os humanos também viraram a atenção para a vampira mais velha que continuou focada em convencer Catra:

— É normal que esteja instável com seus poderes numa situação dessas, por isso precisa voltar. Deixa comigo, eu vou atrás de quem quer que esteja por perto e volto com respostas. Confia em mim.

— Scorpia, eu não posso ficar esperando-

Sem deixar que terminasse sua fala angustiada, sua melhor amiga a segurou nos ombros firmemente e procurou seus olhos com os dela.

— Olha para mim, eles precisam de você agora, — ela desviou rapidamente para apontar com o rosto para o casal de humanos, — precisa levá-los para um lugar seguro e contar a verdade para conseguirmos pensar na melhor maneira possível de salvá-la juntos. 

Catra olhou para os humanos, que a encaravam num misto de simpatia e agonia. 

Era uma decisão difícil voltar para o clã. 

Era como se estivesse dando um passo para trás, virando as costas, perdendo tempo.

Sabia que essa era a ideia mais sensata tendo em vista as circunstâncias. Contudo, era difícil lutar contra essa percepção de que no momento teria que atuar de forma mais passiva.

Respirou fundo e deixou o lapso de razão sobrepor a emoção.

— Certo, — também afirmava acenando com a cabeça múltiplas vezes, como se quisesse convencer a si mesma em meio a toda a apreensão, — vamos voltar. E você se cuida, Scorpia, por favor.

O caminho de volta foi silencioso. 

Pela respiração dos humanos, podia deduzir que estavam apreensivos não só pelo desaparecimento. Por vezes os dois trocavam olhares daqueles que se falavam sem precisar de palavras, e o diálogo não parecia ser muito reconfortante.

Voltaram para a mesma entrada dos fundos do prédio sem carisma nenhum por fora. Dessa vez, estacionaram propriamente. Antes de empurrar a porta de ferro, Catra deu uma batida sincronizada, um código para que reconhecessem que estava chegando ali com humanos. 

Essa tinha sido a instrução que recebera por mensagem de Perfuma.

Aliás, a criatura de cabelos loiros encaracolados já os encontraram no meio do corredor, no caminho em que ainda não era possível ver a entrada do hall principal. E lá deu um longo suspiro antes de esticar a mão oferecendo um cumprimento primeiro à Glimmer e de pois ao Bow:

— Olá, vocês são os amigos da mocinha humana desaparecida, certo?

Eles se entreolharam, estranhando o coloquialismo do termo “humana” na frase da desconhecida. 

Catra também participou dessa troca, dessa vez tentando fingir o mesmo estranhamento.

Mas Glimmer era observadora, disso soube na noite que Adora a apresentou.

— Já entendi tudo, — a mulher de cabelos lilás admitiu em um tom baixo, — vocês são vampiros, não é? Digo, vampiros de verdade.

— Quê? — A pergunta de Bow foi instantânea, um pensamento em voz alta.

— Só pode ser isso, Bow, isso é a cara da Adora, de achar vampiros de verdade e se envolver até o último fio de cabelo nisso! — Ela gesticulava numa indignação quase cômica se não fosse pelo momento.

Foi quando Catra usou a deixa para contar melhor essa história. 

Confirmou a teoria de Glimmer, obviamente, e a inteirou sobre como foi esse encontro. Como, no primeiro contato, Adora não sabia das condições de Catra, que só soube quando voltou pela segunda vez à Romênia. Contou também sobre a possível sequestradora da humana e seu imensurável poder tanto sobrenatural quanto hierárquico. 

Não foi necessário convencer o casal de que estava falando a verdade, provavelmente Adora já os alimentou com retóricas sobre vampirismo o suficiente para que cogitassem a possibilidade da existência. Ou talvez estivessem indo pelo caminho racional de que, numa situação dessas, Catra não teria cabeça para pregar peças nem neles e nem em ninguém.

Logo a conversa mudou para o que poderia ser feito agora que todos estavam completamente inseridos no contexto. A primeira tomada de decisão foi referente à segurança de Glimmer e Bow, principalmente depois de terem chegado perto do carro da amiga e terem demonstrado interesse em achá-la. 

É provável que os envolvidos no sequestro já os estejam rastreando para que não se tornem um problema para eles.

E, sim, tem mais de um vampiro envolvido. Teoria de Perfuma. 

Segundo ela, seria impossível Shadow Weaver sozinha orquestrar uma viagem não avisada ao clã local e ainda manejar um sequestro. Minimamente já haviam outros membros aliados que estavam mais tempo por aqui sondando as probabilidades.

Uma pensata pertinente e que bate com as histórias que Adora vinha contando a ela sobre a sensação de ser perseguida, além de também conciliar com o fato de ela própria ter sentido presenças que nem sempre eram as mesmas.

Quando chegaram nesta parte da conversa, já estavam dentro das instalações do clã, em um quarto que mais parecia um flat, com cozinha e sala de estar num mesmo ambiente. Este era o local onde Bow e Glimmer ficariam durante a noite e possivelmente nos próximos dias. 

Perfuma, Catra e o casal estavam sentados ao redor de uma mesa pequena, os humanos com uma xícara de chá cada um.

— Eu ainda estou tentando encaixar as peças dessa história toda… — Bow falava baixo, num tom reflexivo, enquanto encarava o líquido na xícara que segurava. — Digo, não a parte de vocês serem vampiras, por mais bizarro que pareça eu não duvido, mas é esse sequestro… Não era para a Adora estar fora de perigo?

— Na teoria, sim, — a vampira mais baixa responde também mais pensativa que o normal, —  não faz sentido o clã querer capturá-la agora, não vale a pena a repercussão que isso daria. E por causa disso, talvez eu tenha baixado a guarda demais. Deveria ter sido mais atenta quando senti essas presenças ao redor dela, deveria ter ido atrás dela quando-

Quando ela saiu pela minha porta querendo se ver longe de mim porque a magoei tanto.

Um nó formado em sua garganta a impediu de terminar a frase. A lembrança da discussão ainda causava uma instabilidade enorme, e precisava parar de falar para que as lágrimas não voltassem a assombrá-la. Já estava vulnerável o suficiente com toda essa situação.

— Para mim parece um ato pessoal, — instintivamente, Perfuma coloca a mão no ombro de Catra para consolá-la discretamente durante sua fala, — parece que é para te atingir diretamente.

Mais uma munição para o sentimento de culpa. 

Não conseguiu evitar pensar que se não tivesse se reaproximado de sua amada, se tivesse resistido, nada disso teria acontecido. 

Shadow Weaver não teria notado a verdadeira importância que Adora tem para ela.

Como se tivesse lido seus pensamentos, Glimmer estendeu a mão para pegar na sua e a apertou firmemente ao dizer:

— Não se culpe. Nós vamos achá-la e vai dar tudo certo.

— Verdade, — Bow complementou com um sorriso pequeno no rosto, — também estamos aqui para fazer o que for possível e o impossível pela nossa amiga.

Sorriu de volta, sentindo uma pontada um pouco maior de esperança desta vez.

De fato, Adora tinha amigos extraordinários e isso a confortava genuinamente. Unir as forças por agora era a melhor opção que tinham, mesmo sem ter muitas informações.

Por ora, precisavam descansar para que os cérebros funcionassem melhor. 

Era meio da madrugada e os humanos estavam visivelmente exaustos. As vampiras deixaram que se acomodassem pelo restante da noite e também foram para seus respectivos cômodos, sendo o de Catra um improvisado, já que estava ali apenas como visita. de Perfuma.

Inclusive, o comprometimento da criatura esguia de cabelos loiros com esta missão era individual. Foi a primeira coisa que lhe fora esclarecida. Era ela quem estava entrando nessa, não como a conselheira do clã, mas como a amiga dela e de Scorpia.

O que significava: nenhum envolvimento ou ajuda oficial seria possível. 

Eram elas e somente elas. 

Ainda assim, Perfuma era uma adesão e tanto. Com ela, teriam toda a expertise e maturidade de uma vampira centenária na tentativa de resgate.

No fim daquela longa noite, a jovem criatura estava mais confiante do que desesperada.

Teria com quem contar para trazer sua humana de volta, sentia que poderia conseguir porque não estava tão sozinha quanto imaginava nessa missão. Também tentou canalizar o leve otimismo para a situação de Scorpia, que fora atrás de uma ameaça desconhecida em busca de mais informações. 

De uma coisa sabia: ela era forte e determinada.

 Não seria facilmente derrotada nem mesmo pelos mais poderosos sobrenaturais.

De manhã, quando saiu do quarto no qual nem por um segundo conseguiu descansar, foi de encontro ao novo grupo formado para o resgate. 

Esperava entrar numa sala vazia, apenas com os amigos de Adora e Perfuma, os que se comprometeram em ajudar. Para sua surpresa, tinham mais cinco membros do clã por lá, sorrindo e acenando com a cabeça assim que entrou.

Respondeu os cumprimentos com os mesmos gestos ainda no automático. 

O que esses vampiros faziam ali? Quem eram?

Antes que sobrecarregasse demais seus neurônios, a vampira mor veio em sua direção e a abraçou delicadamente. Ela nunca tinha feito isso antes. 

Ou estavam começando a pegar esses hábitos de Scorpia ou realmente Catra tinha feito alguma coisa incrível, digna de admiração.

Nunca teve essa resposta, especificamente. 

Mas, ficou satisfeita com o que a outra lhe revelou:

— Bom dia! Esses outros vampiros se voluntariaram para ajudar. 

Olhou para eles novamente, agora sorrindo de maneira genuína para demonstrar a gratidão. 

Quanto mais gente, melhor!

— Eu decidi tornar esse sequestro público aqui dentro do clã para buscar mais ajuda, — Perfuma ainda tinha um dos braços envolvido nos ombros de Catra, — aparentemente alguns apoiadores que querem te ver aqui dentro também estão dispostos a ajudar.

Então era assim que funcionava um clã de verdade, com membros que se importam um com os outros? 

Sentiu-se ainda mais entusiasmada com a possibilidade de um dia fazer parte disto.

Poucos minutos depois de Catra se apresentar para os demais membros, Scorpia chegou visivelmente exausta, mas com um sorriso confiante no rosto. Ela informou que havia capturado um vampiro que poderia saber de algo relevante.

O capturado revelou tudo o que sabia sobre o sequestro. 

Primeiramente, era sim algo orquestrado por Shadow Weaver. A terrível criatura matou Prime, com quem comandava o recaído clã na Transilvânia, destronou o resto do Conselho e obrigou os remanescentes membros a segui-la na missão contra Catra. Ele era um desses que fora ameaçado para seguir a cega vingança da criatura centenária, inclusive.

Também revelou que alguns outros estavam há meses seguindo os passos tanto seus quanto os da curadora, apenas esperando o melhor momento para arrancá-la de seu alcance. 

Já no quesito localização, não foram bem sucedidos. Ele não sabia onde estavam exatamente, tinha algumas poucas referências do caminho porque a própria Shadow Weaver queria ser uma das únicas a saber para evitar que a achassem.

Depois de algumas tentativas exaustivas, concluíram que poderiam trabalhar com o que tinham para não perder mais tempo.

Glimmer e Bow fariam contato com um policial indicado por Perfuma, um que tinha um acordo com o clã de Salém e sabia muito bem das condições de seus participantes. Seu grupo era treinado para lidar com tais questões sobrenaturais, se necessário. Um trabalho em conjunto com ele, sendo acionado oficialmente pelos humanos, os levariam a potenciais locais do esconderijo.

Enquanto isso, os novos apoiadores de Catra e suas amigas fariam suas intervenções contando com os poderes vampíricos. Iriam usar dos instintos para seguir rastros, chegar em mais ajudantes de Shadow Weaver, buscar por sinais vitais da mulher desaparecida, e tudo mais que for possível.

Para Catra, acima de tudo, era crucial trazer Adora de volta sã e salva. 

No início da tarde, aquela mesma sala de planejamento, antes movimentada, estava vazia. 

Cada um para sua função. Todos com o mesmo objetivo. 

Era hora de colocar os planos em ação.

Chapter 24: Cárcere

Chapter Text

As pálpebras de Adora se movimentaram com um peso incomum, de um modo não instintivo, com um esforço muito maior. Depois de abertas, focar a visão também foi difícil, continuou alguns segundos vendo tudo embaçado enquanto sentia as trilhas secas de lágrimas nas laterais de seu rosto quando passava uma corrente de ar mínima por ali.

Paralelamente à lenta recuperação da visão,  o resto da consciência corporal foi acontecendo. Sentiu o pesar da respiração subindo e descendo seu tórax, depois os pulsares de dor muscular nos membros superiores e inferiores. Por fim, um crescente zumbido agudo no ouvido e uma pressão na cabeça como se estivesse sendo comprimida. 

Desviou o olhar para uma das mãos e viu que estava tremendo, um sinal de que o corpo ainda estava em pane, provavelmente por perda de sangue.

Imaginou que essa seria a sensação de acordar depois de ter sido atropelada.

Ou depois de ter capotado com o carro em uma velocidade consideravelmente alta depois de uma aparição assustadora no banco de trás.

Daí veio a memória. 

Isto era o que havia acontecido de fato. E seu próximo questionamento foi completamente voltado a entender para onde foi levada depois disto.

Olhou em volta com o pouco movimento que as córneas ainda conseguiam manejar e captou alguns elementos. Janelas cobertas por pedaços de madeira para cobrir a luz ou a entrada de estranhos, paredes manchadas com pinturas descascadas perto dos rodapés, nenhum outro móvel a não ser a maca em que estava deitada e um ferro que segurava a bolsa de soro aplicada na veia central de seu braço direito. O mesmo que tinha marcas arroxeadas muito próximas umas das outras.

O ambiente era frio e cheirava a madeira úmida, mofo e álcool etílico. As roupas que usava não eram hospitalares, era o mesmo vestido do jantar de Ação de Graças, inclusive, com adicionais de manchas de sangue, graxa e uns rasgos. 

Isso não podia significar algo bom. Nada naquele lugar trazia conforto. Pelo contrário, sentia seus sentidos gritarem ameaçados a cada novo detalhe que reparava.

Tentou falar e o que emitiu foi um suspiro fraco, sinal de que a garganta estava seca, de que estava desidratada.

A quanto tempo estava ali? Esforçou-se para puxar o fio de raciocínio e, assim, achar pelo menos alguma pista sobre onde ou porquê estava naquele lugar. E como se o ato fosse um gatilho, voltou sem sequer querer para a sala de Catra. Reviveu cada segundo de angústia desde a recuperação das memórias até o último olhar para trás antes de bater a porta e partir. 

Em sequência,  uma coleção dos momentos em que mais se sentiu sozinha, da infância até a vida adulta. As celebrações solitárias de final do ano, aniversários, formaturas. Era como se fosse um filme em looping, um compilado de todos os momentos em que se sentiu pequena e desprezada. Era uma dor emocional que a forçava fechar os olhos. Quanto mais tentava sair, mais afundada  estava naquele cenário. Parecia um feitiço, uma maldição. Alguém estava fazendo com que revivesse suas decepções de propósito, seja para alimentar sua ira ou para cavar um buraco ainda mais fundo no seu coração.

Depois de alguns segundos, veio a realização de que não era a primeira vez que isso acontecia. Não era a primeira vez que acordava e olhava em volta. Não era a primeira vez que sentia o peso de seu corpo após o acidente. Não era a primeira vez que era arrastada para a solidão de toda uma vida e para o lapso de uma briga que fora sua última memória antes de todo o caos. Adora vinha vivendo essa mesma fração de acontecimentos há dias, e quando a repetição da memória a desesperava até a exaustão, ela apagava para depois acordar e viver tudo novamente.

Entre um lapso de consciência ou outro, que durava poucos segundos, via flashes de movimento de uma pessoa no quarto injetando alguma coisa no seu braço, ou retirando. Via sangue, sentia-se fraca e desmaiava de volta para a inconsciência.

Até que um dia atípico chegou. Um dia em que acordou, sentiu todas aquelas dores e ainda assim resistiu. Antes que pudesse cair no ciclo de tentar forçar a mente para qualquer coisa, aceitou o vazio na esperança de não se sobrecarregar a ponto de causar desmaio. Nesse dia, fixou o olhar no teto no qual a tinta também descascava e tinha alguns pontos esverdeados de uma infiltração antiga.

Não sabia se era dia ou noite e também não queria ocupar muito sua mente, já que descobriu que mantê-la vazia a salvava da dor emocional. 

Ateve-se em contar os pontinhos de mofo no teto, depois os dos cantos da parede, depois os pregos nas madeiras. Horas passaram-se, pelo menos tinha essa impressão, até que ouviu a porta abrir e passos crescentes tomarem o ambiente.

Moveu levemente o rosto para baixo para olhar melhor para quem se aproximava.

Quem era? Não a conhecia.

— Ora, ora, — a figura de cabelos escuros e máscara cobrindo o rosto sentou-se na ponta da cama, — hoje conseguiu escapar da armadilha mental que preparei com tanto requinte para você.

A voz abafada pela máscara era grave e calma de um jeito assustador. A mulher, ou seja lá o que fosse aquela criatura, acariciou o rosto de Adora de cima para baixo, num toque que propositalmente mostrava um controle passivo agressivo.

Era suave e ameaçador, assim como a voz dela.

E era gelado também.

Provavelmente estava diante de uma vampira.

— Mas, não tem problema, — ela puxou uma caixa que Adora não havia notado por estar debaixo da cama e começou a tirar uns materiais enquanto falava casualmente, — é sinal de que estará acordada para assistir a própria boa ação.

Ela pausou os movimentos e deixou a caixa de lado. Depois de uma risada baixa, a criatura retirou a máscara e revelou um rosto marcado por uma cicatriz que percorria por toda a extensão da parte esquerda do rosto. Era como um corte profundo curado há anos, uma lembrança física do que jamais sairia daquela pele pálida.

Mesmo com uma característica que a tornava naturalmente temerosa, a expressão calma se mantinha de maneira quase insuportável, falsa.

— Como é uma ocasião especial, hoje a coleta vai ser um pouco diferente.

Adora sentiu o pulso ser envolvido pela mão da outra enquanto os caninos dela cresciam e afiavam. Os olhos, antes cor de oliva, ficaram completamente pretos. 

Sem dar tempo para reações, ela afundou os dois dentes no pulso de Adora brutalmente, perfurando o caminho de uma das veias. 

O sangue iria jorrar de tão profundo que o ferimento foi se a criatura (confirmada agora como vampira) não tivesse estancado com a própria boca ao beber.

A agonia foi quase intragável e a humana, na mesma hora, recuperou a capacidade vocal e soltou um grito cortado de dor.

Alguns segundos depois a vampira forçou-se a parar de beber e pegou uma tigela de metal e colocou abaixo do pulso cortado para captar o sangue que pingava em menor quantidade enquanto seu braço estava debruçado na cama, com a metade para fora do colchão e ainda firmemente segurado pela vampira.

À medida que o sangue deixava o seu corpo, Adora sentia calafrios e tremia incessantemente. Nunca sentiu-se tão fora do controle de seu próprio corpo antes. A aflição era tanta que não conseguia cessar a trilha de lágrima que escorria pelo rosto e nem o descompasso da respiração.

Ainda assim, mantinha o contato visual, mesmo com os olhos semicerrados de dor.

— Quem é você? — Conseguiu murmurar fracamente, na esperança pelo menos ser capaz de fazer a leitura labial.

Uma risada cortou o ar e arrepiou a nuca da humana.

— Como assim ‘quem sou eu’? — Ela a encarava com desdém e um sorriso debochado. — Eu sou o motivo pelo qual fez sua bela viagem de fantasia para a Romênia. Aquela da qual nunca deveria ter voltado.

— Weaver…

Adora ligou os pontos. 

Chegou a pensar na possibilidade de um dia ser perseguida novamente por essa vampira. Contudo, toda vez que ela e Catra cogitavam tal possibilidade, a descartavam logo em seguida porque seria uma missão de esforço suicida para o enfraquecido clã romeno. 

E ainda assim, lá estava ela, capturada por quem pensava não ser mais uma ameaça.

— Então foi você… — A humana ainda tentava recuperar a estado normal da própria voz que ainda saía baixa, sumida. — Você que acabou com a vida da Catra?

— Não, minha cara, — a criatura agora abaixava o olhar e apertava o antebraço da outra para aumentar o fluxo de sangue que saía das veias. O sorriso debochado continuava naquele rosto marcado, — isso quem fez foi a própria. E com sua ajuda, não é mesmo?

Não iria entrar nessa discussão, não tinha nem condições para isso. Se era para gastar as forças vitais que gradativamente iam embora junto com seu sangue, tinha que ser para arrancar alguma informação útil:

— Por que veio até aqui? Não é um bom negócio para o clã, não faz sentido correr esse risco.

— Não que eu lhe deva qualquer satisfação, é até tolice de vocês acharem que eu não viria. — Ela voltou a olhar nos olhos da humana, com a expressão completamente séria desta vez. 

— Por q-

Adora foi interrompida pela voz irada de Shadow Weaver, que a segurou pelo rosto bruscamente e apertou seu maxilar ao complementar:

Nada está acima da minha sede de vingança. E eu vou fazer com que Catra pague por tudo que fez comigo e com o clã. Expulsá-la foi uma pena muito fraca para o meu gosto, eu quero que ela sofra. E depois que sofrer o suficiente, vou matá-la e fazer você sufocar nas cinzas dela para completar o serviço.

Seu coração pulava e toda a tremedeira foi substituída por uma paralisação. 

Adora estava em choque tanto pelo que acontecia quanto pelo que Shadow Weaver prometia. O ar mal estava chegando aos pulmões por consequência de tudo que ouvira quando a criatura soltou seu rosto quase deslocando o pescoço.

Ela andou pela sala num ímpeto de buscar controle. A humana podia sentir que havia uma linha tênue que a mantinha viva ali ainda. E antes que pudesse perguntar o motivo, a temerosa vampira respondeu voluntariamente, agora de volta ao tom pseudo calmo de sempre:

— Você só está viva ainda porque é a isca perfeita para atraí-la até aqui. E porque a sua morte já foi muito bem planejada, como já te antecipei.

Sabia que não podia fazer muito na situação em que estava. Sabia que, muito provavelmente, Shadow Weaver iria conseguir concretizar os planos, senão por completo, pelo menos a parte em que a mata. Afinal, já estava ali. 

Catra poderia não aparecer, principalmente depois da última interação tão… Animosa.

A vampira se aproximou novamente e voltou a acariciar seu rosto num toque que nunca fora permitido pela humana. Isso inflamava uma irritação profunda nela. Uma que se sobrepunha até mesmo ao medo e a dor que sentia.

Não tinha mais nada a perder, já estava no pior cenário possível. 

Era necessário tentar canalizar esse emaranhado de sentimentos ruins que só cresciam para sua autodefesa.

— Tira a mão de mim! — Adora grunhiu e, num impulso, estapeou a mão que estava em seu rosto e chutou o corpo da outra para fora da cama. 

Em milésimos de segundos, a vampira estava em cima dela de novo, desta vez agarrando o seu pescoço com uma das mãos fazendo-a agonizar sem ar.

— Quer saber de uma coisa? — Ela falava entre os dentes, contendo uma raiva descomunal. — Eu posso muito bem adiantar a parte em que você morre porque eu detesto ser desrespeitada.

Shadow Weaver estava furiosa e demonstrava no olhar de ira que a qualquer momento que ela usasse 1% a mais de força, poderia quebrar a cervical de Adora como quem quebra um palito de dente.

— E vai ser bem devagar, não vou te poupar de nenhuma maneira… — Ela sussurrou no ouvido da humana.

Debatia as pernas e usava as mãos para tentar tirar Shadow Weaver de seu pescoço com as últimas forças físicas restantes. Era tudo em vão, principalmente quando a cada tentativa os movimentos mostravam-se mais e mais enfraquecidos.

É isso. 

Era o fim.

Era agora que iria morrer. 

O filme de sua vida miserável e com poucas alegrias começou a passar em sua mente. 

Manchas escuras tomaram sua visão e o coração disparava como nunca antes. 

Talvez estivesse infartando.

Era melhor que infartasse ou morresse por falta de ar?

Pensou em como essa pergunta era inútil agora.

“Inútil e aleatória”, Catra iria fazer questão de pontuar isso se estivesse ali, com certeza.

“No final das contas você acaba do mesmo jeito: morta”

Óbvio que nos seus momentos finais iria ter espaço para simular a voz dela lhe falando isso.

Espaço também para relembrar as vezes em que fez, de fato, perguntas inúteis e aleatórias à ela, porém,  em momentos mais agradáveis, enquanto tocavam os projetos profissionais juntas na galeria.

De todas as ‘Catras’ criadas em sua mente, essa era a que mais gostava de recordar.

A que menos gostava era a que manipulou, a que mentiu.

Honestamente, queria ter tido mais tempo para entender melhor o que foi e o que teria sido de toda essa história. 

Queria ter explorado mais os possíveis cenários, possíveis soluções.

Queria poder vê-la uma última vez.

Ver seus amigos uma última vez.

Será que Glimmer e Bow sentiriam sua falta?

E seus colegas de trabalho?

E Catra?

Será que foi verdade o que ela disse sobre estar pronta para salvá-la independente de qualquer coisa?

Mais uma monte de perguntas inúteis e aleatórias.

Pelos seus cálculos, não havia mais tempo para a resposta de nenhuma delas.

Seu corpo já estava nos espasmos finais, aparentemente. Sentia uma dormência generalizada, sentia uma vontade de fechar os olhos e acabar logo com isso.

Adora…

Aquela voz familiar invadiu a sua mente mais uma vez. Literalmente dentro da sua mente, porque por fora ainda sentia o golpe lento e fatal de Shadow Weaver. Ela ainda a esganava, por mais distante que tudo parecesse.

Adora! Seus sinais vitais estão-

A voz novamente. Um pouco mais alta desta vez, e um pouco exasperada também.

— Não se entrega! Continua acordada, eu estou chegando!

Nessa hora Adora quis rir. 

Rir da coincidência, rir da pegadinha que sua mente estava pregando nela. 

Alucinar a voz de Catra dizendo que iria salvá-la logo depois de ter pensando nisso? 

Numa escala de 0 a 10, seu cérebro merecia 11 no quesito sadomasoquismo.

E mesmo assim, quis acreditar no que ouvia. Esforçou-se para não se entregar à morte. Manteve os olhos abertos mesmo quando não conseguia enxergar mais nada. 

Estava tentando, mas estava por um fio.

Quase não conseguia mais raciocinar quando, repentinamente, o oxigênio invadiu seus pulmões de uma forma tão brusca que a fez tossir descontrolada.

A pressão da mão de Weaver no seu pescoço sumiu e gradativamente foi recuperando o que era possível recuperar no estado de quase morte que chegara.

Os olhos, ainda que embaçados, viam borrões movendo-se pela sala. Eram mais duas pessoas ali? Vampiros?

Moviam-se rapidamente e pareciam atacar Shadow Weaver.

Ouvia num estéreo mal equalizado e por baixo de um forte zumbido umas vozes no fundo:

— Pega a Adora e leva para um hospital agora! Eu vou atrás da Shadow Weaver.

— Não vai, é muito arriscado! Ela fugiu de propósito, para te atrair para alguma armadilha! Não posso te deixar sozinha-

— Cada segundo é importante para que ela sobreviva!

— …

— Vai logo!

Droga! Tá!

— E leva todas aquelas bolsas de sangue da outra sala! Ela vai precisar.

A volta do ar circulando em seu organismo foi um alívio e um peso, pois agora era impossível resistir à vontade de simplesmente fechar os olhos e dormir, talvez para sempre.

Sentiu alguém pegá-la no colo e correr. Correr numa velocidade sobrehumana.

Estava sendo levada para algum outro lugar. 

Desta vez, não sentia ameaça em nada, nem no toque, nem nas circunstâncias.

Sentiu-se orgulhosa por acreditar naquela voz. 

Ou estava morta e vivendo um resgate pós vida, ou aquilo não foi só uma ilusão.

De qualquer maneira, não conseguiu ficar acordada para saber aonde iria parar desta vez.

Chapter 25: Distância

Chapter Text

Dormir era mais um capricho que uma real necessidade desde que deixou a humanidade para trás. Se quisesse, até conseguiria tirar umas boas duas ou três horas de sono e isso revigorava seus poderes em certos parâmetros. Os benefícios do sono para um corpo tecnicamente morto eram mais para a mente do que para o metabolismo em si, já que era um momento de desligar-se do mundo um pouco. 

A não ser que estivesse a um estado perigosamente crítico, a nível de quase hibernar. 

Exatamente do jeito que saíra da luta contra Shadow Weaver. Por um fio.

Estava de volta no apartamento já há alguns dias e mesmo assim ainda se via obrigada a sucumbir aos eventuais cochilos como a fonte de energia mais rápida para conseguir curar os infindáveis ferimentos do embate. Em uma situação comum, este tempo seria mais do que o suficiente para estar 100%, pronta para mais uma tentativa quiçá. Porém, lidar com sua própria criadora e uma das vampiras mais poderosas do antigo clã não era uma situação comum.

Nos dois primeiros dias conseguiu se recuperar das fraturas e retomar os movimentos dos membros inferiores e superiores na totalidade. Cortes mais profundos também estavam cicatrizando bem enquanto os mais leves ficavam para uma próxima etapa. No momento, ainda era possível enxergar marcas arroxeadas e um certo inchaço na região do olho esquerdo, assim como alguns cortes na boca.

Sendo otimista, Catra estipulou que mais três dias de completo e absoluto repouso seriam o suficiente para zerar as falhas. O único problema era o isolamento. Estar completamente sozinha e quieta depois de tudo o que aconteceu. Não tinha a localização de sua inimiga, que apesar de ter saído tão prejudicada quanto ela, ainda estava a solta e poderia eventualmente representar uma ameaça para os humanos e vampiros que se envolveram na missão de resgate para ajudá-la. Nem mesmo sentia a presença arrepiante dela, mesmo que pouco. 

Havia também o estado de saúde de Adora, contado em detalhes na última ligação que tivera com Scorpia. Soube que Glimmer e Bow alternariam estadia na casa da curadora para nunca deixá-la sozinha, uma forma de certificar que ela teria ajuda o mais rápido possível caso precisasse. Catra também gostaria de estar por perto, até ser mais uma nessa escala de cuidado. Se dependesse só de sua vontade, já estaria lá mesmo nas condições em que se encontrava. Mas não podia ter como parâmetro a interação durante o resgate e achar que resolveram a complexidade sentimental daquela discussão. 

O salvamento foi um caso extremo, excepcional, e não anula o fato de que Adora ainda estava chateada. Não podia esquecer como a humana pediu que se afastasse em meio à raiva e frustração que começara a alimentar por ela no momento em que saiu pela porta do apartamento. 

Não podia esquecer também que o sequestro foi indiretamente sua culpa. 

Não podia esquecer, mesmo quando esquecer era o que mais queria.

A dimensão da inquietude dentro de si era a mesma, senão maior, do que a indisposição na qual se encontrava, e somadas incrementaram ainda mais a sensação de impotência dominante naquele momento.

Jogada num dos cantos do sofá sob a pouca claridade do fim do dia que a cortina da sala deixava passar, Catra respirou longa e profundamente. Não necessitava de oxigênio, era mais como um exercício para controlar a ansiedade, cessar o turbilhão de mensagens que sua mente transmitia. 

Quando estava quase voltando ao cochilo do metabolismo vampírico sobrecarregado, sentiu o pulsar comum de quando Scorpia estava por perto. Ajeitou a posição do corpo para sentar-se normalmente e focou-se nos instintos.

Ouvira também o carro dela parar em frente ao prédio sem desligar os motores, e mais uma presença. Humana, familiar,  com sinais vitais mais fracos que o comum. Passaram-se alguns minutos até que alguém tocou a campainha. E lá estava só a essência humana. A de Scorpia havia sumido gradativamente, indo embora conforme o som do motor do carro se afastava.

Podia imaginar quem era ao mesmo tempo que não queria criar expectativas.

Levantou-se ainda indisposta do sofá e não hesitou em abrir a porta sem checar. Não é como se alguma humana com aquela energia fosse ameaçar sua integridade, principalmente se fosse:

— Adora — foi uma tentativa de cumprimento neutro para esconder o que a perplexidade da situação a causava.

A mulher reservou alguns segundos para analisá-la sob um olhar confuso que expressava ora angústia, ora simpatia. Ao notar que o silêncio estava prolongado demais, concentrou-se em cumprimentá-la de volta com um sorriso pequeno e um aceno com a cabeça.

— Tudo bem se eu entrar para conversarmos? De forma mais civilizada desta vez.

Catra deu passagem, tentando disfarçar o formigamento nas pernas e braços que o nervosismo começava a causar naquele momento. 

Adora entrou devagar, seus olhos vagando pelo espaço e, finalmente, parando na vampira, que gesticulou para que se sentassem.

Viraram os corpos levemente, uma na direção da outra, enquanto Adora visivelmente inquieta sentava na ponta do sofá entrelaçando as próprias mãos sobre as pernas.

— Eu precisava vir te ver, saber como você está depois de todo o caos — começou.

— Estou aqui, consciente, então tá tudo certo, eu acho — a vampira deu de ombros e sorriu levemente amenizando o clima. — Honestamente, estou aliviada por te ver fora do hospital.

Os olhares que ambas jogaram para o chão encontraram-se nos segundos de silêncio.

— E o que houve? Depois que me resgatou.

— Fui atrás da Shadow Weaver, não foi tão simples quanto imaginei no meu momento de fúria e ela acabou fugindo, mesmo em um estado tão penoso quanto o meu.

Adora inconscientemente levou a mão ao rosto de Catra, tocando suavemente um dos hematomas ainda visíveis. Ao perceber o que fez, recuou imediatamente, constrangida, como se tivesse se deixado levar por um impulso numa má hora.

Catra pôde ver a humana engolindo a seco antes de limpar a garganta e mudar o foco da ação:

— Esses machucados no seu rosto não eram para ter curado já?

— Estão bem melhores do que antes, acredite — riu baixo enquanto ajeitava-se no sofá na tentativa de aliviar a tensão mais uma vez. — O processo de cura está um pouco desacelerado nesses porque o metabolismo está priorizando outros hematomas mais sérios, digamos assim. 

— Ou seja, o risco que você correu com tudo isso foi enorme… — Adora balbuciou, prendendo o olhar em um ponto fixo aleatório, como se estivesse lidando com muitos pensamentos ao mesmo tempo.

— Talvez. Não precisa ficar preocupada, logo vai sumir — deu de ombros e sorriu de leve no intuito de reafirmar que tudo estava bem.

Na mesma hora, a mulher virou mais o corpo para a vampira e a olhou de maneira mais imperativa, franzindo a testa em frustração:

— Você tem que parar com isso, sabia?

Antes que pudesse perguntar, ela complementou, desta vez mais preocupada do que frustrada:

— Colocar a vida de qualquer pessoa antes da tua.

A vampira balança a cabeça em negação, incrédula, e faz questão de encará-la ao responder: 

— Não foi por qualquer pessoa, Adora.

Evitando qualquer contato visual, a humana coçou os olhos com as duas mãos e respirou fundo. Ainda exalava uma mistura de frustração e medo, parecia querer dizer algo que ainda não tinha coragem. 

Enquanto a mulher mergulhava no próprio mar de sentimentos, Catra ficava em silêncio. Daria o tempo que fosse preciso até que se sentisse confortável, e obviamente não alimentaria a ideia relapsa de tentar ler o que se passava naquela cabeça, por maior que fosse sua vontade.

A falta de um som que não fosse o ambiente começava a incomodar a vampira, que passou a balançar uma das pernas e pareceu dar a deixa necessária para que a outra voltasse a falar:

— Naquele dia, você falou comigo na minha cabeça? — Perguntou bem baixo, como se fosse um segredo.

— Quê?

— Era você, na minha mente, falando para eu não desistir?

Então era essa a aflição que a humana estava tentando esconder na conversa fútil que tiveram até agora. 

Era sobre Catra usando os poderes mais uma vez para influenciá-la.

Iriam de novo para o caminho que as levou para a briga e isso a despertava um desespero enorme.

— Era… — Catra passou a mão no próprio rosto, visivelmente desconfortável —  Desculpa por ter sido tão invasiva mais uma vez, desculpa, de verdade. Ali eu precisava dar um jeito de te fazer resistir. A sua vida estava se esvaindo, Adora, eu senti... Foi desesperador, só queria ajudar.

Fechou os olhos e virou o rosto, pois não queria reviver a mesma agonia de ver tantos sentimentos ruins na expressão da humana, principalmente causados por mais um erro seu, por mais que a intenção tivesse sido boa.

A mão de Adora encostou em seu ombro num acalento tímido.

— Você salvou a minha vida ali — esperou que voltasse a olhá-la para continuar a fala de maneira determinada. — Salvou quando me colocou naquele avião de volta para casa também. E eu sou grata, quero que isso fique claro. 

A humana voltou a recolher-se no seu espaço, abraçando o próprio corpo como se isso fosse necessário para que não desmoronasse. Com a voz um pouco mais emaranhada, continuou:

— É que não é só isso que sinto. Tem toda uma confusão enorme, uma decepção junto, como se eu estivesse sob a ameaça de perder o poder de escolha toda vez que estamos em uma situação complexa... Uma sensação que eu abomino, principalmente em momentos tão definitivos da minha vida. Sei que isso é um problema meu, diz mais sobre mim, e é por isso que não posso ignorar.

A dor na voz reprimida de Adora parecia passar por osmose para a vampira, que a cada palavra sentia-se culpada e ferida.

Respondeu um “sim” para reforçar toda a sua atenção à fala e tudo que conseguiu foi sussurrá-lo.

— Então decidi vir para tentar minimamente estabelecer algumas coisas. 

Desta vez, Catra não confiou nas cordas vocais e apenas acenou com a cabeça quando a humana virou-se ainda mais na sua direção entre a pausa da fala.

— Tudo virou de cabeça para baixo em uma noite, Catra — a voz falhou e as lágrimas da curadora finalmente caíram, fazendo-a tirar alguns segundos para se recompor. — E eu não tenho uma resposta sobre o que somos e como ficaremos. Sinto que não vou ter por um bom tempo, porque a única relação na qual preciso estar inteira agora é na minha comigo mesma.   

A humana não poderia ter sido mais clara. Não era a hora, não havia chances de reconstruírem o pouco que chegaram a viver romanticamente. 

Catra não faz parte de suas escolhas, não quando Adora toma todas as decisões do próprio coração, sem encantamentos e sem hipnoses nos primeiros encontros. 

Não que suas esperanças estivessem tão altas assim. 

Não deveriam nem ter existido.

O silêncio agora era o escape da própria criatura, que sentia a impulso de expressar algo, mas não sabia se deveria por medo das consequências ao solidificar em palavras.

E o que você tem a perder? Já se foi tudo.

A voz na sua cabeça foi o incentivo deprimido e necessário:

— Nunca tive a intenção de te machucar, nem mesmo quando minha missão era te entregar para a sua própria morte. Eu já estava fadada a falhar nessa missão, Adora. E te ver sofrendo, seja qual for a forma, é a pior tortura que existe para mim, quem dirá quando é por minha causa. Então me desculpe por ter te causado dor, por ter te manipulado, e pelas memórias. Ah, e agora pelo sequestro como consequência de uma vingança doentia da Shadow Weaver. Enfim… Acho que eu nunca vou pedir desculpas o suficiente. 

— Você já pediu, sim. Seria ignorância minha não te perdoar, burrice até. O que eu decidi é mais por causa de mim, do meu medo, da minha insegurança com tudo que tenho que readaptar de agora em diante. — A loira limpou uma das lágrimas de sangue que escorriam do rosto da outra com a ponta do polegar de forma delicada e logo quebrou o contato físico, sem deixar de manter a serenidade na voz — E eu espero que um dia essa culpa que você carrega acabe. Você merece uma felicidade sem receios, uma que eu não posso te oferecer. 

Toda aquela demonstração de carinho ao mesmo tempo em que recebia, em fala, uma dolorosa mensagem causava um paradoxo dentro de si. Para cessar uma recaída segundos depois de concordar em dar o espaço da curadora, gentilmente tirou a mão dela de seu rosto e a apertou contra a sua antes de soltar de vez. 

Uma demonstração de afeto evidente de quem deveria deixar ir e não consegue.

— Posso só pedir uma coisa? — A vampira soou tão vulnerável que nem reconheceu o próprio tom. — Posso continuar na galeria? Realmente me encontrei trabalhando com curadoria, não queria perder mais isso. E pensando bem, é uma forma de eu me manter por perto enquanto Shadow Weaver está por aí à solta, ser útil para não te deixar sob risco mais uma vez. 

— Se for tudo bem por você, podemos continuar trabalhando juntas, claro! — A resposta veio rápida e assertiva, apesar de Adora evitar seu olhar a qualquer custo enquanto falava. — Podemos dar um jeito de continuar uma na vida da outra até onde os limites de cada uma permitirem. 

Catra concordou. As opções de escolha, afinal, eram bem limitadas. 

Assim selaram um acordo, um novo caminho dessa relação que a vampira ainda teria que aprender a galgar. Tentava ser otimista, já que garantiu a permanência do emprego que era responsável por grande parte da satisfação que encontrou para a própria imortalidade. 

Também garantiria a proteção de Adora nos dias seguintes após a completa recuperação do seu corpo sobrenatural e através da nova influência que agora tinha no clã de Salém. 

Podia até considerar alguns ali seus amigos, especialmente Perfuma. Agora já tinha certeza de que ela e Scorpia estavam tendo um relacionamento romântico secretamente. Não que Scorpia estivesse realmente tentando esconder dela.

Nas semanas seguintes à conversa com a humana, focou em dar uma trégua para o próprio coração, dissipar um pouco o cansaço emocional que era estar fadada a amar e proteger quem não pode te amar e proteger igualmente. Ora isolava-se na introspecção confortável, ora aventurava-se na companhia dos amigos do clã do qual quase fazia parte. 

Ainda tinha uma ansiedade muito grande em relação à Shadow Weaver. Não tinha muitos recursos para ir atrás dela e sabia que seria uma missão completamente suicida se fosse sozinha. Era algo que a deixava de mãos atadas e tudo que podia fazer agora era permanecer fora de perigo e garantir a segurança de Adora.

Quanto a esta, cuja relação era majoritariamente profissional agora, eram poucas as vezes em que falavam das respectivas vidas pessoais, até quando ia presencialmente encontrá-la em Boston. 

Inclusive, essa era a nova rotina: enquanto a curadora não sabia direito como manejar a doença, continuaria evitando grandes estresses, como viagens de uma cidade à outra. Então, quem ia de encontro levando as novidades da galeria até ela era a vampira. Uma ótima oportunidade para conhecer o museu sede, isso quando não precisava marcar esse encontro em casa, nos momentos de indisposição que deixavam a outra de cama e sob assistência constante dos melhores amigos por até dois dias. 

E mesmo nesses dias que sentia um impulso quase incontrolável de querer cuidar, de perguntar o que poderia fazer para amenizar a dor, de puxá-la para um abraço e confortar. Mas, resistia. Catra mantinha a visita curta e breve.

Houve uma única vez em que ficou um pouco mais, no dia em que resolveu revelar sua teoria à humana e seus amigos presentes, Glimmer e Bow, de que a doença pode ter sido causada propositalmente por Shadow Weaver.

— Estou quase certa de que ela te infectou de propósito para te enfraquecer durante o sequestro. Uma infecção sanguínea humana não afeta vampiros, então ela poderia continuar se alimentando do seu sangue normalmente, — falava num tom pensativo, de braços cruzados e eventualmente trocando curtos olhares com os três humanos na sala de estar do apartamento. — Ela fez isso algumas vezes no clã da Romênia, inclusive, era uma forma de manter as presas vivas, mas impossibilitadas de escaparem. 

Notou a expressão de choque de Bow que inconscientemente lançou um olhar piedoso para Adora. Não foi a intenção do rapaz, Catra tinha certeza, mas o ato causou na loira uma frustração instantânea. 

— Não me olha desse jeito, com pena, — a humana despejava as palavras franzindo a testa e virando bruscamente o rosto para não encontrar o olhar do amigo, — isso só me deixa com mais raiva. E eu ainda vou dar um jeito de fazê-la pagar.

— Como? Ela é muito poderosa, Adora, e ainda é uma ameaça. — Glimmer sentiu a necessidade de reafirmar de maneira serena, parecia querer evitar a ira que o mini sermão causaria na mulher. — Espero que não tente fazer nada inconsequente.

— Exatamente, — Catra complementou o raciocínio no mesmo tom, para o alívio discreto da mulher mais baixa, — não esquece que por pouco ela não acabou com a sua vida.

— Não acabou? Tem certeza? — Riu ironicamente e apontou para o próprio corpo jogado no sofá numa posição sentada e depois para os demais presentes, tentando apontar o contexto da nova condição em que precisava viver.

— Você entendeu o que eu quis dizer. — Respondeu defensiva, mais por não saber como reagir do que por intenção.

— Eu entendi, sim. Aliás, sempre tenho que entender tudo. Mas, duvido que alguém aqui realmente entenda o que é se sentir presa num corpo que não faz nem metade do que costumava fazer e ter que se acostumar com isso da noite para o dia sem nem sequer uma perspectiva de melhora.

A resposta malcriada pareceu tirar os argumentos de todos na sala, não só o de Catra.

Frustrada agora com o silêncio, Adora apenas movimentou as mãos como quem diz “deixa para lá” e caminhou para o quarto, virando rapidamente o rosto para esconder as lágrimas que se formavam nos olhos azuis cianos. Catra não as notaria se não fosse pelos sentidos olfativos aguçados.

Naquele momento queria pedir desculpas para ela. Queria reforçar que reconhecia que foi ela quem trouxe esses problemas para sua vida e dizer que estaria lá em todos os momentos para compensar, independentemente de romance.  

Mais uma vez, reconheceu que não era o ideal, porque não era Adora que precisava dessa afirmação, era ela mesma. 

Apenas cruzou os braços e apoiou o quadril no parapeito da janela, deixando um suspiro escapar.

— Ela não está muito bem nesses últimos dias, não é nada pessoal — Bow chegou mais perto e levou a mão até seu ombro para consolá-la.

Será que não era? Porque pareceu.

A pergunta veio imediatamente após a fala do homem. Porém, não vociferou. Guardou para si. Foi embora sem se despedir de Adora naquele dia e um pouco magoada com a atitude dela, honestamente. 

A única coisa que todos ali queriam era a segurança dela. Era uma situação difícil e peculiar, mas não só para ela. Cadê toda a empatia que ela tanto tinha, principalmente quando se referia à vampira? 

Talvez o que Adora sentia era mesmo consequência da hipnose, e agora esses resquícios estavam acabando. 

Talvez devesse encarar a verdade: Adora nunca nem cogitaria amá-la se não fosse toda a hipnose da primeira semana em que se conheceram.

Chapter 26: Passado

Notes:

Venho por meio desta cara de pau agradecer a quem não desistiu dessa querida fic (e fanfiqueira, no caso, eu) e dizer que ela vai ter um fim! Tenho bastante coisa adiantada, já escrevendo o último capítulo, então AGORA VAI.

No mais, fiquem com POV e reflexões da nossa (e da Catra tbm) humana favorita.

Chapter Text

Adora tinha acabado de sair do banho pós fisioterapia cardiorrespiratória quando o lembrete do celular indicou que em 20 minutos teria uma consulta médica para avaliação e atualização do tratamento de sua doença.

Vivia assim agora. Vivia sobrevivendo.

Suspirou frustrada e sentou na cama para começar a se vestir, já que ficar muito tempo em pé logo depois dos exercícios ainda a deixava fadigada. 

Não demorou muito para que Glimmer entrasse no quarto oferecendo ajuda. Ela seria sua acompanhante de hoje na ida ao médico. Aliás, era necessário estar sempre acompanhada desde o acidente. Quando não era a mulher dos cabelos lilás, era o amigo, ou os dois ao mesmo tempo. 

Eventualmente, tinha a presença de Catra, mas apenas em ocasiões profissionais. Era mais uma concretização da distância crescente entre elas, principalmente depois de ter sido tão estúpida na última visita da vampira a sua casa. 

Foi rude e sugestiva quando esbravejou que sua vida acabou, sim, depois de tudo que aconteceu. Quem ouviria isso sem tomar para si a culpa? Principalmente tendo um olhar acusador como o que Adora sabia que estava sustentando na direção dela o tempo todo?

Nunca quis que Catra se sentisse culpada pelo que se sucedeu ao sequestro de Shadow Weaver, e mesmo assim sua linguagem corporal quase sempre a traía quando a vampira estava por perto. Era como se uma raiva intrínseca aflorasse sem permissão, uma reação causada pelo que ainda não havia digerido da recuperação das memórias.

Isso era tudo o que estava oferecendo ultimamente: a afirmação de que Catra deveria se martirizar por cada pequeno arranhão seu desde que a doença fora detectada, anulando o maior feito dela que foi salvá-la da morte. Uma ingratidão miserável.

Um reflexo do paradoxo vivido dentro dela mesma, já que apesar de considerar os bons feitos, não superava a consequência dos maus feitos. A sensação de traição, de manipulação, a exposição a tantos perigos… Não conseguia deixar para trás, no passado. Sabia o quão valioso era tê-la, mas, sentimentalmente, estava em constante estado de medo, porque com ela vinham sempre os maiores desafios que já precisou encarar na vida. Isso já considerando as piores fases, as recheadas de abandonos e tragédias. 

É muita complexidade para uma relação tão curta. 

Não vale a pena. 

É melhor virar essa página de vez.  

Essas eram as conclusões que vinham com as reflexões de antes de dormir, de momentos em que parava para se permitir pensar e sentir o que precisava sentir. Era o melhor, o lógico, o mais racional. Só que fluir pelo senso comum só trazia a sensação de que estava caminhando para o lado oposto ao que pedia o coração.

Essa espiral de pensamentos ia e voltava desde que levantara da cama naquele dia e a acompanhou até o hospital. 

Não engatou em nenhuma conversa longa com Glimmer no caminho, e muito menos com a médica, para quem apenas respondeu em modo automático o que lhe era perguntado. 

Hoje era um daqueles dias em que sentia falta daquela Catra que preenchia seu coração, que a fazia companhia na galeria em Salém, que arrancava sorrisos bobos de seu rosto e fazia voar borboletas em seu estômago. Daquela Catra antes das memórias que pediu de volta. Às vezes Adora conseguia enxergá-la na Catra atual, e isso era mais reconfortante do que deveria permitir.

Assim que chegou em casa, ocupou o resto do dia com algumas tarefas do trabalho. As do museu, não da galeria. Desta última deixou como uma missão para o dia seguinte, preferia evitar o contato com quem não saiu de seus pensamentos a manhã inteira. Tudo o que não precisava neste momento de recaída era falar com ela. 

Deu esse tempo necessário para que o cérebro desligasse um pouco da situação e, após desligar o computador indicando o fim do expediente, pegou o celular e respirou fundo.

Precisava mandar uma mensagem combinando o horário para encontrá-la para a próxima reunião. Disso não podia fugir por questões profissionais.

Ficou olhando pensativa para a tela, talvez criando coragem, quando ouviu um estalar de língua em forma de protesto vindo de uma terceira pessoa. Glimmer estava encostada no portal da entrada do quarto que Adora fazia de escritório, encarando-a com uma certa seriedade antes de sugerir:

— Por que você resiste tanto, Adora? Liga logo para ela.

Era óbvio que sua amiga iria ler perfeitamente o seu humor uma hora ou outra. Sem precisar contextualizar muito para quem já a conhecia o suficiente, apenas respondeu em um murmúrio desanimado:

— Eu fui super grossa da última vez, ela tem tocado as demandas da galeria e só me manda o estritamente necessário. Ela está chateada, com certeza. 

— Então é mais um motivo para que ligue e peça desculpas, — Glimmer entrou no quarto e apoiou-se na mesa de trabalho para ficar próxima à amiga, — em algum momento você vai precisar fazer isso. E essa ideia de se afastar dela nunca foi boa, só para constar.

— Sobre isso eu não estou pronta para tomar qualquer decisão, — desviou o olhar do celular para a outra mulher, — agora sobre o pedido de desculpas por eu ter sido uma estúpida, isso sim. Eu preciso dela por perto, pelo bem da galeria.

— Sim, da galeria… — Glimmer a olhou de lado e saiu da posição anterior para sair caminhando para fora do quarto. — Eu vou esquentar a janta para nós duas, tá? Enquanto isso, vê se faz logo o que tem que fazer.

Sem dar muito tempo para que a ansiedade começasse a processar o que ouviu da amiga e inventasse obstáculos, pegou o telefone novamente e foi direto na opção de ligação.

Não demorou muito para ouvir o “Adora? Tudo bem?” um tanto quanto surpreso do outro lado da linha. 

Mesmo depois de ter sido rude, a primeira coisa que ela pergunta é se está bem. Era uma preocupação genuína. A humana estava se corroendo por dentro por tê-la tratado tão mal.

Tá sim, tá tudo bem…

Ficou paralisada, mas forçou-se para fora do próprio transe ao perceber que mais um pouco de silêncio na linha significaria o fim da ligação.

Na verdade, não, — afobou-se para explicar, — quer dizer, eu tô bem de saúde na medida do possível. Mas estou péssima por ter te respondido daquela maneira horrível quando esteve aqui da última vez. E estou ligando para pedir desculpas. Eu não tinha direito nenhum de ter falado daquela forma, não importa o tamanho do meu fardo. Você não tem culpa de nada, Catra, e eu não quero fazer com que você pense isso.

O que eu e Glimmer falamos foi para o seu bem, por mais que seja chato e soe superprotetor — ela falava de um jeito manso, parecia um pouco receosa e cansada. — A gente só quer que você fique fora de perigo, só isso…

Tinham mais algumas palavras presas em seu peito, mas essas Adora tinha medo de externalizar.

Mais uma vez o silêncio pairou e Catra o entendeu como um espaço para falar:

Olha, eu entendo que foi pela frustração do momento, saber da possível origem da infecção não deve ter sido fácil. Até hoje eu tenho meus dias de indignação com tudo que me aconteceu quando fui transformada, então, sei bem como é… Tá tudo bem, de verdade.

Adora respirou fundo, aliviada. O peso que saiu das costas com a fala da outra a relaxou tanto que deixou escapar uma confissão murmurada:

Eu sinto falta de ter você por perto. 

Eu também.

Essa conversa no telefone não durou muito depois da confissão. 

 

Contudo, as coisas mudaram entre elas. Catra voltou a aparecer com mais frequência em seu apartamento, mesmo que ainda tendo o trabalho como principal motivo. Às vezes ficava um pouco mais e conversavam sobre a rotina. 

Não era a mesma dinâmica de antes da primeira discussão, claro, mas já era o suficiente para dar um pouco mais de ânimo à sua vida. Ou basicamente todo o ânimo dela, já que não tinha muita coisa acontecendo. 

Conversavam sobre a Shadow Weaver, sobre algumas teorias do que pode ter acontecido com ela depois da luta, por onde estaria se escondendo. Ou então falavam do clã e de como Catra estava cada vez mais popular por lá desde o ato heróico que performou pela humana, apesar de ainda não ter uma resposta oficial sobre seu status.

Em uma das visitas ao apartamento para as horas de trabalho, Catra e Adora se viram presas na tarefa aparentemente interminável de fechar o cronograma de exposições do trimestre seguinte da galeria. Ambas estavam visivelmente cansadas. Havia muitos materiais e propostas para revisar e, posteriormente, organizar em um calendário que fazia sentido para o público, para os expositores e, obviamente, para a propriedade.

Estavam sentadas na sala, com diversas cópias de obras espalhadas entre o sofá no qual a mais alta estava sentada e na mesinha de centro. A vampira estava sentada no chão, com a lateral do tronco encostada no sofá e as pernas levemente flexionadas enquanto passava o olho rapidamente nas pinturas, o tédio cada vez mais aparente. 

Uma pintura em especial, contudo, a fez parar e semicerrar os olhos em concentração extra. Como eventualmente olhava de canto para a companheira de trabalho para checar se estava tudo bem, Adora conseguiu captar esse momento e a observou já na espera de uma manifestação.

— Eu conheço isso aqui — Catra murmurou, quase para si mesma, aproximando-se da tela. — Esse lugar… É a vila onde eu morava quando era humana!

Adora congelou por um momento, com a planilha que antes preenchia exaustivamente ainda em suas mãos. Fazia tempo que elas não falavam sobre o lugar de onde Catra veio, ou de sua vida humana como um todo. 

Esse era um dos temas que a curadora mais amava falar nos tempos em que tudo estava bem entre elas. E da mesma forma de antes, chegar no assunto a deixava intrigada, curiosa, querendo entender melhor a parte da história da qual não conhecia. 

— Sério? Que incrível! — Respondeu forçando um tom casual, escondendo uma curiosidade que talvez pudesse não ser bem-vinda.

Resolveu se aproximar um pouco mais, insinuando que queria ver melhor a pintura. Assim que a mais baixa esticou o braço e permitiu uma melhor visualização, seus olhos analisaram a obra com mais atenção. 

Por breves segundos tentou imaginar Catra andando pelas ruas daquele lugar. 

Sem mais vontade e energia para pensar se soaria invasivo ou não, deixou que a curiosidade tomasse as rédeas da situação:

— Fico tentando imaginar como era sua vida… Tipo, o que a Catra humana estaria fazendo nesse momento?

Quando a encarou para se certificar de que era uma pergunta segura, seu coração bateu um pouco rápido demais. A outra já estava olhando em sua direção, provavelmente desde que se perdera na própria imaginação.

A conexão visual foi logo perdida, a vampira foi quem desviou. 

— A essa hora? Provavelmente eu estaria escondida pelas ruas com a minha vizinha, já que pelo horário seria inadequado duas mulheres estarem perambulando por aí, principalmente sem um homem para escoltar. — Catra sorriu, mas o sorriso era pequeno e distante, carregado de algo que Adora só poderia interpretar como saudade.

Sentiu uma pontada de desconforto. Talvez pela angústia de saber que existiu e ainda existem mulheres presas a regras tão restritas, ou talvez pela ideia de Catra ter tido tamanha proximidade com uma outra pessoa que potencialmente era um interesse romântico.

— Como sempre, quebrando as regras... — Sorriu e comentou em tom de brincadeira, tentando aliviar a tensão que implorava para todos os deuses que não fosse notada pela outra. — E para onde gostavam de ir?

— Um quartinho nos fundos dessa loja aqui — Catra apontou na pintura, sua voz ficando um pouco mais animada, como se pudesse se ver ali novamente. — Era da família dela.

Mais uma vez, um sentimento não muito maduro se agitou. Adora arqueou as sobrancelhas instantaneamente e, no ímpeto de manter o disfarce, soltou uma risada baixa. 

— Você e sua vizinha às escondidas… Num quartinho? Entendi tudo… — Seu tom brincalhão mascarava o que realmente sentia: um misto de curiosidade e ciúme irracional.

Catra a encarou também arqueando as sobrancelhas, julgando por alguns segundos o que Adora assumiu da situação. Logo sorriu e balançou a cabeça em uma discreta negação, voltando a olhar para a tela.

— Nada demais acontecia, — respondeu casualmente, — a gente ficava tentando traduzir alguns jornais estrangeiros, pegávamos da própria loja, e depois ficávamos treinando nosso inglês.

Essa era a façanha da Catra humana? Uma simples atividade como treinar idiomas com sua vizinha? Ou será que ela estava tentando amenizar a história porque já tinha percebido sua reação?

Estreitou os olhos desconfiada. No rosto era visível que segurava um riso. 

Se era por nervosismo ou por achar, de fato, a situação hilária, não podia responder.

— Não sei se acredito… Parece muito que você está mentindo. 

— Não é mentira, juro! — Catra riu, os ombros relaxando enquanto gesticulava, tentando provar sua inocência. — Nós tínhamos um sonho de migrar para a capital juntas, formar na faculdade… Mas minha família precisou sair de lá e no caminho da mudança acabou acontecendo a captura e tudo isso que você já sabe.

“Tudo isso” era o vampirismo. 

O riso de Adora desapareceu aos poucos, substituído por um peso no peito. Será que acabou trazendo lembranças dolorosas à tona? 

Deveria parar.

Se ao menos conseguisse cessar essa vontade de querer saber mais sobre ela:

— E você não procurou por ela depois? 

A pergunta saiu mais receosa do que pretendia, quase um sussurro.

Catra hesitou. Adora percebeu que seus olhos estavam fixos no quadro, mas havia algo neles que parecia ir além, para memórias que talvez ela preferisse esquecer. 

Mais uma vez refletiu novamente sobre a necessidade de parar de falar sobre o assunto por mais que ele tenha trazido de volta um pouco do dinamismo que era a relação de amizade das duas.

Antes que pudesse reagir, a outra respondeu:

— Eu não tinha muito controle da sede no início, e a alimentação sempre foi precária no clã. Ela era a única pessoa com quem eu realmente me importava e que ainda estava viva, não podia colocá-la em perigo de jeito nenhum.

Havia algo na voz de Catra que fez o peito de Adora apertar ainda mais.

"Única pessoa com quem realmente me importava" ficou ecoando em sua mente. 

Como seria ser tão importante para alguém assim? 

E como seria perder isso de propósito, por amor e proteção?

Soava tão familiar…

— E por que não procurou por ela quando estava fugindo do clã? — Adora perguntou, tentando manter a voz neutra, mas sentindo seu coração acelerar mais uma vez.

— Não faria sentido algum. Nunca mais nos vimos, já tinha até me conformado com o fim de tudo, provavelmente ela também. Sem contar que pela idade dela, provavelmente teria um infarto ao me ver exatamente do mesmo jeito de trinta anos atrás. 

Catra respondeu de forma leve e deu uma risada. 

Adora deixou que uma risada breve escapasse de seus lábios para acompanhá-la. 

Às vezes esquecia que a bela criatura tinha lá seus quase 70 anos e o vampirismo era o que a impedia de ser uma senhora de idade. Era visível também que ela estava evitando o peso que essa memória poderia trazer, agindo como se essa parte de sua história fosse menos trágica do que de fato era. 

— É… faz sentido — respondeu ainda sorrindo. 

Havia algo mais que queria perguntar, mas não sabia se deveria. 

Ainda assim, as palavras escaparam antes que ela pudesse segurá-las: 

— Ela foi o seu primeiro amor, então?

Catra parou, olhando-a com um sorriso de canto, formando uma expressão um tanto quanto indecifrável. 

— Eu acho que sim, não tenho certeza. Naquela época eu mal sabia sobre minha própria sexualidade, morria de medo de sequer explorar isso — deu de ombros.

— E… depois? — Adora perguntou hesitante, tentando soar casual.

Era inevitável. Agora que entrou nesse túnel de informação, não conseguia mais parar de perguntar. 

Estava cansada demais também para lutar contra os próprios conflitos. Foi um dia cheio.

Só conseguia pensar que se não podia ter muito de Catra no dia a dia, pelo menos iria aproveitar este momento para pelo menos saber mais sobre ela.

— O que é isso? Uma entrevista? — Catra estreitou os olhos, como se avaliasse o motivo e teor da pergunta.

— Sim, entrevista com a vampira — Adora soltou uma risada para encorpar a piada ruim.

O riso da mais baixa ecoou pelo espaço e a contagiou. 

Era tão bom ouvir esse som que o seu sorriso vinha automaticamente para o rosto.

Ainda assim, seus pensamentos estavam tumultuados. Por milésimos de segundos arrependeu-se de ter feito a pergunta. 

Sinceramente, o que esperava ouvir? E por que isso importava tanto?

— Depois do vampirismo é uma história completamente diferente — Catra respondeu brevemente.

Deixou claro pelo sorriso que selou os lábios dela de que nada mais seria falado além disso. 

Respeitou a decisão da criatura aliviada, pois de fato tinha medo de que nível de ciúme sem sentido sua imaginação a traria de presente. 

Apesar do susto, do sono e da necessidade de voltar à tarefa, não queria encerrar essa dinâmica tão fluida e nostálgica que desenvolveram, mesmo com cada palavra mexendo mais e mais com ela. 

Ajeitou-se no assento e deixou a planilha de lado para relaxar um pouco, pensando em qual assunto puxar. Olhou para o teto ao mesmo tempo em que encostou a nuca no apoio do sofá.

— Engraçado… — balbuciou um pouco sonolenta, ainda sem olhar a vampira. — Agora que eu lembro das coisas, vejo que existe um contraste enorme entre a sua personagem lá na Romênia e a Catra de verdade.

Adora olhou de relance para conferir a reação da vampira, que fez uma expressão pensativa ao analisar a informação. 

Ela escolheu manter a leveza da troca, respondendo brincalhona: 

— É, provavelmente acha a herdeira muito melhor.

— Hm, não exatamente — soltou um riso baixo, balançando a cabeça em desacordo.

Os olhos coloridos fitaram os seus. 

— Ah, é? Como não? — A criatura perguntou perplexa, sem saber se estava ouvindo corretamente.

Para evitar maiores distúrbios sentimentais, resolveu desviar o olhar e voltar à posição anterior com a cabeça encostada no sofá e o rosto virado levemente para o teto.

Então, respondeu:

— A Catra de verdade é tão mais interessante, tem tanta coisa para compartilhar. É tão mais expressiva, vulnerável, e, o mais importante de tudo, tão mais real. 

Fechou os olhos entregando-se a uma pequena exaustão que a perturbava já há algumas horas. Sem prestar muito atenção, continuou divagando sobre sua teoria, sem tempo de conseguir se conter:

— A herdeira tinha um ar misterioso que era legal, atraente e tudo mais… Ainda assim, você ganha de lavada dela. Você merece muito mais crédito do que dá a si mesma. 

Era para parar por aí, mas continuou o monólogo:

— Na verdade, você merece o mundo, Catra, e qualquer pessoa que pensa diferente está errada ou perdeu completamente o juízo.

Ao perceber a intensidade do que acabara de dizer, sentiu o rosto queimar. Não teve coragem de reabrir os olhos e muito menos de mover-se.

Apenas aceitou o silêncio que pairou por longos segundos como uma resposta a essa precipitação idiota que deixou reinar pela próprio cansaço.

Não tinha mais esperanças de ouvir a voz da sua companheira de trabalho, até que:

— O mundo é muita coisa, — foi quase um sussurro, — só algumas coisas que existem nele já me faria feliz.

Adora deu uma risada breve e arrastada pelo cansaço, sem ousar encará-la. 

A frase de Catra despertou nela um desejo tão primário e genuíno que doía. 

A primeira coisa foi o desejo de fazer parte dessas “algumas coisas”. Em seguida, uma repressão de sua voz interna gritou para que isso jamais fosse cogitado novamente.

Como poderia ser essa ‘coisa simples’ se o relacionamento com Catra já carregava tanto peso? A insegurança sobre seu próprio coração, os traumas das memórias recuperadas, o medo dos perigos que cercavam a vampira.

E de novo a guerra do que sentia contra o que deveria deixar de sentir. 

Quando o assunto era Catra, isso sempre acontecia. 

Essa sensação de nadar contra a corrente do oceano de suas emoções, quando só queria chegar segura em terras onde tudo faz sentido e não machuca. 

Se não saber o que fazer era o que tanto a tirava paz, era melhor tirar um tempo para resolver esse conflito consigo mesma o quanto antes. Colocar de verdade na balança. 

Devia isso a si, devia isso à Catra.