Chapter 1: Piloto
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Felix nunca quis morrer.
Em um casarão afastado em Melbourne, Austrália, um homem era acolhido pelas mesmas paredes que o viram crescer, e uma estranha sensação de vazio tomava conta de seu peito ao pensar que nunca mais retornaria.
Se preparava para deixar de vez aquela casa, abandonando todo o seu passado e suas memórias.
Checou seu celular uma última vez em busca de ligações, mas não havia nada. Talvez esperasse algo como uma emergência, algo que surgisse, dizendo que ele não precisava mais ir. Qualquer coisa.
Estava nervoso, e ao escutar a voz apática e dura de seu motorista o chamar, sentiu um arrepio desconfiado em sua nuca.
— Sr. Lee, precisamos ir. — A voz abafada surgiu após três leves batidas na porta.
Olhando pela janela e desejando não ter que fazer aquilo, Lee Felix se encontrava com as malas prontas, em seu quarto agora vazio. Observava cada canto do lugar, se despedindo silenciosamente de tudo o que havia vivido ali.
Ao sair pela porta, apenas o farol distante do carro iluminava o caminho. Já era tarde da noite e todos estavam dormindo, mas ele podia ouvir com clareza todas as palavras e abraços de adeus que receberia.
Odiava despedidas, e internamente agradecia por não ter ninguém ali.
Andando pelos corredores por uma última vez, Felix tentava não pensar muito para não acabar se arrependendo de ter aceitado aquele trabalho. E agora estava pronto para entrar naquele carro e deixar aquele lugar, sem olhar para trás.
— Yongbok! Espera!
A voz de Olivia surgiu rápida e desesperada atrás dele, e antes que pudesse virar para encarar sua irmã, foi preso em um abraço aflito. O choro da menina foi abafado em suas costas, e era justamente por isso que odiava despedidas.
— Como você tem coragem de ir sem se despedir? — Soluçou Olivia.
— … Nos falamos ontem à noite.
— Não é a mesma coisa! Já pensou por quanto tempo vai ficar lá? Não é pouco!
Felix tentava não se emocionar, mas ver os olhos inchados e molhados de sua irmã mais nova estava acabando com ele. Era seu dever proteger suas irmãs, mas também não podia passar mais um dia sequer naquela casa.
— Eu não vou ficar lá para sempre, e não vou morrer. — Tentou tranquilizá-la, mas definitivamente não era bom nisso.
— Mesmo assim, é muito perigoso, Yongbok. Você nunca se envolveu com esse tipo de trabalho… A Rachel-
— A Rachel não fala comigo desde que aceitei esse trabalho. Parece que esqueceu que foi Henry quem me pediu para aceitar.
— Só… Só não…
Com medo e preocupada com seu irmão, Olivia Lee tentava encontrar as palavras certas para dizer um adeus dolorido. Seus olhos queimavam de tanto chorar, suas mãos tremiam e não queriam soltar Felix. A sensação de que algo ruim poderia acontecer parecia ainda mais presente.
E ele sabia exatamente o que ela estava pensando. Não podia demonstrar que também tinha medo, tinha que ser forte por ela, e por todas as pessoas que contavam com ele, não podia ter medo.
— Eu sei. Acredite em mim, eu ficaria se pudesse. Não foi escolha minha aceitar isso, mas também não era como se eu pudesse ignorar o que Henry me pediu.
— Me promete que volta…
— Sempre volto, sabe disso. — Sorriu singelo, se desvencilhando do abraço de sua irmã.
— Te amo!
Felix não respondeu, apenas acenou e continuou andando. Antes de entrar no carro, olhou para trás uma vez, percebendo nas sombras entre dois pilares da casa, a silhueta de sua irmã mais velha, Rachel. Buscou seus olhos uma última vez, mas não teve tempo de encontrá-los.
Sabia que veria ambas novamente, podia ligar para Olivia todas as noites, mas não deixava de ser doloroso separar-se delas daquela maneira. Como se o adeus fosse para sempre. Mas não seria.
Contratado novamente como assassino profissional, Felix não conseguia prender sua mente a um único pensamento, e sua mente vagava de um lado para o outro, durante todo o caminho de casa ao momento em que entrou naquele avião. Mal prestando atenção em algo a sua volta, tentando encontrar uma razão para estar fazendo aquilo.
Fazia um mês desde a morte de seu mentor, seu pai adotivo: Henry. E fazia uma semana desde a ligação que o obrigava a tomar aquele voo exaustivo até Seoul, onde passaria um bom tempo longe de sua família.
Nada parecia real, nem mesmo a voz com tom de rádio do piloto, logo ao fecharem as portas:
— Senhores passageiros, sejam bem vindos ao voo número 354B, partindo do Aeroporto Internacional de Melbourne, com destino ao Aeroporto Internacional de Incheon. Nosso tempo de voo é de aproximadamente 13 horas. Por favor, apertem os cintos de segurança em caso de turbulência, também pedimos para que todos os aparelhos eletrônicos pessoais sejam desligados. Obrigado por escolher a Qantas Airline. Tenham um bom voo.
Não sabia o que esperar daquele lugar, não deveria ter medo, era apenas mais um trabalho. Mas alguma coisa o incomodava desde aquele momento.
[…]
Durante todas aquelas horas preso dentro daquele avião, Felix não conseguiu fechar os olhos e descansar. Encarando de maneira desinteressada a tela da pequena televisão na frente de seu assento. Rolou pelo catálogo de filmes durante um bom tempo, mas não achou nada que matasse seu tédio.
Por outro lado, teve tempo de sobra para colocar todos os seus pensamentos em ordem. Não estava com medo, por que estaria? Era apenas um mau pressentimento que não parecia passar.
A imagem constante de suas irmãs era o que mais o atormentava, mas se quisesse voltar logo para casa, teria que parar de pensar nisso e focar somente em seu trabalho.
As duas últimas cansativas horas foram preenchidas com Felix observando as nuvens pela janela, e lentamente, começando a notar o mar e os prédios que surgiam no limite do horizonte. Estava finalmente chegando.
— Atenção senhores passageiros, em instantes estaremos pousando no Aeroporto de Incheon. Mantenham os encostos das poltronas na vertical e suas mesas fechadas e travadas. — Mais uma vez, a voz agora exausta do piloto surgiu no avião.
Não demorou muito para que o impacto das rodas na pista fosse sentido, e Felix continuava a olhar o lado de fora, notando de canto de olho, os outros passageiros saindo, alguns com apoios e almofadas ao redor do pescoço, com suas bagagens. Exaustos demais para conversar sobre qualquer coisa desinteressante.
Logo no primeiro passo que deu para fora daquele avião, percebeu a diferença gritante que teria que enfrentar entre Melbourne e Seoul. Havia saído de um inverno rigoroso, para um verão abafado. E por isso, logo atraiu muitos olhares ao andar pelo aeroporto com aquela quantidade exagerada de roupas que estava usando.
Tudo era diferente, mais do que imaginava, olhava ao redor sem saber o que fazer ou para onde poderia ir, seu celular não tinha carga e seu cérebro estava cansado demais para pedir alguma informação.
Mas não foi tão difícil se encontrar, já que, logo ao sair da área de desembarque, avistou ao longe um homem confuso olhando confuso para os lados, segurando uma pequena placa que dizia “Feliz”.
— É sério isso? — Reprovou, andando em direção ao homem.
Se livrando de algumas roupas em excesso que usava, Felix logo chegou ao lado do homem que o aguardava. Um rapaz com feições jovens e cabelo exageradamente arrumado com gel, mas vestindo roupas casuais.
Ele pareceu se assustar ao notar o Lee parado em frente a ele.
— Ah! Hello, foreigner! — Disse com dificuldade, com orgulho de suas palavras — I’m here to take you to the car.
— Onde está ele? — Perguntou com indiferença ao homem, que pareceu surpreso em ouvi-lo falar seu idioma.
Envergonhado e confuso, o rapaz apenas se curvou levemente e virou as costas, indo na direção da saída do aeroporto sem dizer outra palavra. Felix o seguiu frustrado por não obter sua resposta.
— O carro ali na frente vai te levar daqui até a mansão.
— Meu nome é Felix.
Ao apontar para a placa com seu nome, talvez o tom frio e desdenhoso de sua voz não combinasse com o rosto caloroso e angelical que carregava.
Mas seria meio estranho um assassino andar distribuindo sorrisos por onde andasse.
Um genérico SUV preto o aguardava logo na saída, as janelas escuras e espessas impediam que visse qualquer coisa do lado de dentro, o motor já ligado. Com o corpo tenso, abriu a porta traseira e entrou no carro com desconfiança.
Talvez estivesse esperando um brutamontes careca e cheio de tatuagens e cicatrizes amedrontadoras, como os da Yakuza, mas, na verdade, se deparou com um homem que aparentava ser da sua idade.
Os cabelos loiros afastados dos olhos, o rosto definido e bem cuidado, com uma blusa social branca abraçada por um colete preto abotoado e perfeitamente alinhado. Um homem bonito com um olhar amigável, mas forte.
Seus olhos se encontraram pelo retrovisor.
— Então você é o famoso Lee Yongbok?
— Meu nome é Felix.
— Certo, certo. — Sorriu. — Felix, então. Meu nome é Christopher, Christopher Bang. Já ouvi muito sobre você.
A surpresa do Lee não parou somente na aparência do homem, e sim no sotaque australiano que o mesmo carregava. Não imaginava encontrar alguém de casa ali, especialmente tão cedo.
— Onde está Kija? — Perguntou seriamente, ainda desconfiado.
— Meu chefe não conseguiu vir agora, vai encontrar com ele assim que chegarmos lá. Já garanti que alguém cuidasse de suas bagagens, e seu dormitório já está pronto.
Apenas deu de ombros e começou a observar as ruas passando pela janela. Incheon sendo banhada pelo sol de meio-dia, os carros passando insignificantes e as pessoas andando pela cidade.
Aquela parte, voltada para turistas e para a população rica, era bonita e bem cuidada, limpa e respeitada. Onde não parecia correr nenhum tipo de mal ou ameaça aos cidadãos coreanos. Mas a chegada de Felix fora a chave para trazer à tona o pior que havia escondido em toda a sociedade.
No volante, Christopher não se surpreendeu que seu passageiro não era de falar muito, quase nenhum era. Um dos assassinos de aluguel mais almejado, realmente não era de seu feitio compartilhar histórias de infância com um estranho.
Mas não custava tentar quebrar esse silêncio.
— Seu nome corre muito por aqui, por todos os lugares, na verdade.
— É, já me disseram isso. — Felix respondeu sem dar importância.
— Fiquei surpreso quando ouvi que estava vindo trabalhar para a família, quando Kija me disse que vinha da Austrália, quase não acreditei.
Felix continuava desinteressado, apenas respondendo superficialmente, e isso apenas aumentava a curiosidade e audácia de Christopher em conhecer o tão famoso assassino que todos temiam tanto.
Kija não o teria contratado se não fosse realmente bom.
— Sabe, estou ansioso para ver seu trabalho.
— Acredita em mim, não está. — Riu pelo nariz, abrindo um sorriso amargo.
— Estou! Bem, se é tão bom quanto dizem… Nunca perdeu um alvo sequer, é impressionante. Fiquei sabendo que também nunca trabalhou para a máfia.
O tom de desafio na voz de Christopher foi o suficiente para finalmente chamar a atenção de Felix, que tirou os olhos da janela para olhar para Chris.
— Eu nunca deixo algum trabalho por fazer, pode ter certeza disso.
— É o que vamos ver, garanto que esse não será tão fácil quanto você pensa. — Christopher sorriu.
O silêncio retornou após a breve conversa dos dois. Algo em Felix despertava uma curiosidade em Chris, e queria descobrir o que era.
E Yongbok sentiu brevemente que talvez não precisaria ficar sozinho durante todo o tempo em que ficaria na Coreia. Mas isso logo passou.
Ele amava um desafio. E Christopher adorou desafiá-lo.
Não demorou muito para que começassem a se afastar da cidade comum e entrassem em vizinhanças mais afastadas, os prédios e lojas deram lugar para os sítios e mansões; para os bosques e casarões de ricassos excêntricos. Estavam chegando.
Felix se perguntava o que o esperava quando chegasse. No fundo, só queria saber quem precisava matar para acabar logo com aquele trabalho, e voltar para casa com suas irmãs. Mas algo o dizia que não seria tão simples.
— É aqui. Não se assuste se tiver muita gente nos esperando, todos querem te conhecer. — Christopher o olhou por cima do ombro.
“Não entendo o que tem de tão interessante em um assassino de aluguel, que todos queiram me conhecer. Cacete.” O Lee pensou.
Uma alta cerca viva deixava visível apenas o topo de um telhado, e à sua frente, um portão preto deslizava nos trilhos e revelava um caminho de cascalho que os levava a uma grande entrada.
Um jardim extenso que rodeava o casarão era tampado pelas inúmeras pessoas que se enfineiravam para tentar espiar pelo vidro fumê da janela, cochichando e fofocando sobre a sua presença ali. A maioria com uniformes, ternos e aventais de cozinha.
Christopher parou na entrada, onde mais pessoas aguardavam por eles e saiu do carro, entregando a chave a outro homem. Antes que Felix pudesse sair, uma mulher abriu a porta para ele e o instruiu a descer.
— Aqui, Felix. — Chris chamou-o.
Estava por algum motivo, tenso. Em todos os seus trabalhos anteriores, nunca teve uma recepção ao nada do tipo. Apenas recebia um nome e uma foto de quem deveria matar, e por isso ficou ainda mais desconfiado.
Mais uma vez, pessoas enfileiradas aguardavam por ele e Christopher, mas essas não cochichavam ou usavam aventais. Os rostos sérios de homens e mulheres permaneciam imóveis, e olhos perfurantes o encaravam. Agora, suas presenças tinham peso.
— Esses são os mais importantes da casa — Chris tomou a palavra. — Tem mais lá dentro, Kija pediu para que estivessem aqui.
Felix não se deixou intimidar por ninguém, e apenas manteve sua postura intocável e concordou.
— 이 용복? — Uma mulher com uma atmosfera leve, usando um longo vestido florido, surgiu pela grande porta de vidro.[Lee Yongbok?]
— Felix, meu nome é Felix. — Respondeu respeitosamente.
Pela primeira vez notou uma leve reação das pessoas que estavam ao seu redor, espantados com sua presença e voz.
— Felix, que bom que chegou. Estávamos te esperando.
— Esta é Yun-Hee, esposa de Kija — Christopher apresentou.
A senhora deu um sorriso singelo enquanto se curvou lentamente, apontando para dentro da casa.
— Venham comigo. O resto, podem voltar para seus postos, ele não é um animal em exposição, oras. — Ordenou a todos que ainda estavam ali.
Felix e Christopher a seguiram para dentro do casarão. O hall de entrada era simples e com pouca decoração, mas dava abertura para um grande pátio, onde algumas crianças e adolescentes pareciam descansar. Uma grande e velha árvore surgia bem no meio.
Dois grandes corredores com as paredes exteriores de vidro circulavam o lugar.
— Quer apresentar seus amigos antes de irmos até Kija, Chan? — Yun perguntou gentilmente.
— N-não é necessário, senhora! Felix vai acabar conhecendo todo mundo alguma hora.
— Ah, pare com isso. Já disse que pode me chamar só de Yun.
O recém-chegado estava desconfortável com os dois conversando como se ele não existisse.
— Depois apresento os meninos~ Ah, ali!
Desconcertado pela mulher, Christopher apontou para o outro lado do pátio, para um homem baixo e incrivelmente musculoso para sua altura, que dava ordens aos mais novos.
— Vamos! O descanso acabou! Não tem moleza pra vocês. Quero todos em cinco minutos de volta na sala, ou então são mais 50 flexões! — Elevou a voz rigidamente.
— Aquele ali é Changbin, responsável geral pelo treinamento das turmas mais jovens.
O homem se voltou para Chris, os cabelos negros refletindo o forte sol que atravessava as folhas da árvore. Olhou para Felix com um olhar duro, amendrontando mesmo com seu tamanho engraçado. Ajeitou a roupa do corpo e virou as costas após acenar para Christopher.
Continuaram andando pelos imensos corredores daquela casa bem iluminada, subindo lances de escadas e passando por salas avulsas até que chegassem a uma porta de madeira antiga, com uma maçaneta enfeitada em dourado.
Yun-Hee parou e olhou nos olhos de felix, sempre com um leve sorriso estampado em seus lábios, o rosto marcado por leves rugas de idade.
— Seja bem-vindo, Felix.
A mulher abriu a porta e se afastou, deixando a passagem livre para ele e Chris. A sala em madeira envelhecida abriu-se em frente a eles, com estantes de livros e quadros decorando as paredes, um tapete antigo e caro por baixo de uma mesa de tábua escura.
Por trás dessa mesa, estava sentado um homem grisalho com um rosto cansado, um pequeno óculos de aro repousando em seu naris. As rugas em seu rosto e abaixo dos olhos contavam sua paciência e sabedoria. Uma pequena xícara de chá em sua mão.
Atrás dele, uma moça mais nova que Felix e Christopher, que parecia não dormir havia alguns dias. O Lee ficou ainda mais apreensivo, mas mantendo sua postura firme.
— Entrem. — Aconselhou. — Fizeram boa viagem, eu espero? É um prazer finalmente te conhecer, Felix.
Em um silêncio formado por apreensão, Felix e Kija se encaravam sem motivo aparente, e o único som presente era o tique de um relógio antigo que decorava uma das paredes.
— Creio que nunca tive a chance de me paresentar corretamente, só tivemos contato por Henry.
— Imagino que sim.
— Bem, sou Hwang Kija, essa é Heeyon, minha filha, e Chrisopher você já conhece. Vi que já conheceu minha esposa e alguns membros da casa.
A menina no canto da sala acenou com a cabeça, com os braços cruzados e olhando para o pai.
— Sentem-se, temos muita coisa para acertar sobre sua estadia aqui, Felix. — Kija indicou as duas cadeiras mais próximas.
Alguma coisa não parecia nem um pouco certa naquela situação, e isso era claro. Seus trabalhos sempre eram rápidos, e nunca duravam mais do que uma semana ou duas — quando o alvo era difícil de rastrear.
Então por que todos estavam agindo como se fosse ficar muito tempo ali?
Chapter 2: Agridoce
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Os sorrisos em contraste com os olhares duros e amedrontadores, a recepção rígidas e rápida e o cuidado com sua estadia. Todas aquelas pessoas estranhas, aquela casa estranha e todo o perigo que o rodeava.
Estava tenso.
Sentado em uma cadeira com assento de couro, ao seu lado, Christopher parecia saber o que estava por vir, com o corpo tensionado e os olhos inquietos.
Os olhos quase vazios da menina atrás de Kija deixava Felix ainda mais apreensivo, fazia-o pensar que algo ruim estava prestes a acontecer, e somente ele não sabia o que era.
— Sei que veio de muito longe para estar aqui, e agradeço. Mas peço que escute o que tenho que falar antes de te dar as instruções.
Sem demoras, o homem tirou debaixo de sua mesa uma pasta preta e a colocou à frente de Yongbok.
— Até onde sei, nunca trabalhou para a máfia desse jeito antes, certo?
— Sim. Henry sempre me disse para não me envolver com esse tipo de trabalho.
— Esperto. Agora, eu vou te explicar como funciona.
Alguma coisa não estava certa, mas não podia falar nada. Ao abrir a pasta, Felix se deparou com uma série de papéis, fotos e documentos; o que se destacava era um mapa de algumas regiões na Coreia, com partes de Seoul e Daejong destacadas.
Um mapa menor logo ao lado — da região em que estava agora — em que dois alfinetes vermelhos marcavam lugares específicos.
— Isso é tudo o que a família tem domínio, e ainda em expansão. O resto é praticamente todo dominado por outras gangues daqui ou de outros países. — Explicou, se voltando ao mapa menor — e aqui é onde se encontram as casas das duas famílias.
— Duas?
— Calma. — Christopher cochichou.
— Como você deve imaginar, nada é exatamente pacífico entre essas gangues e nós. Por sermos os maiores da Coreia, nunca tivemos muitos problemas em nos defender e negociar.
Kija levantou-se e foi até a estante atrás de si, apanhando um porta-retrato com algumas pessoas. Heeyon sussurrou algo ao pai que Felix não conseguiu ouvir.
— Mas… Essas gangues estão em maior número, e sendo acolhidas por máfias de outros países também. Por conta disso, há quase 50 anos, meu pai resolveu juntar a família com a de seu melhor amigo.
— Mas a decisão precisava ser unânime entre as duas partes. E não foi — Heeyon completou. — Então o jeito foi tornar as duas famílias irmãs, até que dê pra finalmente conseguir um resultado unânime para juntar de vez.
Felix continuava sem entender o porquê estava tendo que ouvir tudo aquilo, só queria o nome de alguém para matar e ir embora daquele lugar.
— A cada ano que se passa, as coisas ficam mais hostis e as gangues mais ousadas. Há dois anos, pela primeira vez houve um ataque armado, e foi onde eu decidi fazer o que estou fazendo hoje.
— Pai, fala logo.
Do outro lado da sala, Heeyon parecia ainda mais ansiosa do que Felix. A tensão daquele cômodo era terrível, e as mãos do Lee suavam frio.
Afinal, qual era o motivo de toda aquela enrolação, se tudo o que precisava era do nome de quem precisaria executar?
— O meu objetivo é acabar com todas as ameaças e voltar com meus negócios, e manter minha família segura. Mas com esses ataques, está ficando difícil.
— Quem eu preciso matar? — Felix perguntou seguro.
— Acho que você ainda não entendeu… Henry te pediu para aceitar isso, pois sabia que era de extrema importância. Eu não quero que você mate ninguém.
Colocando o porta-retrato de volta no lugar, Kija olhou profundamente nos olhos de Yongbok, como se conseguisse ver tudo o que ele pensava e temia. Puxou de uma segunda parte da pasta, uma ficha, parecida com uma ficha escolar em um papel amarelado.
— Preciso que você traga meu filho de volta.
A foto de um homem da idade de Felix e Christopher, olhando constrangido para a câmera. O rosto de um anjo, o cabelo escuro e olhos profundos. Abaixo de sua foto, um nome:
Hwang Hyunjin
— Perdão, o quê?
— O coração de Hyunjin é bom, não nasceu para a maldade do que fazemos aqui. Ele está em um lugar distante e se recusa por tudo, a voltar para casa.
Por alguns segundos torturantes, a sala ficou em completo silêncio. Cada músculo do corpo de Felix se contraía e tensionava. Só queria sair dali.
— Preciso que ele esteja aqui, seguro, para o que eu penso em fazer.
Só podia ser brincadeira. Estava incrédulo, com o orgulho machucado por aquela proposta, mas sem saída para recusar. Seu ego estava ferido. O melhor assassino de aluguel dos últimos tempos, contratado para buscar o filho fujão do chefe da máfia coreana?
Christopher, olhando para a confusão no rosto do Lee, ficou apreensivo — com medo do que ele poderia dizer em resposta.
— Olha, com todo o respeito, senhor. Sou um assassino, não uma babá!
— Eu entendo perfeitamente sua frustração, Felix. Eu não estaria te contratando e pedindo isso se não fosse realmente importante.
— É que assim, você mata pessoas, né? — Heeyon interrompeu. — Sabe o que torna alguém difícil de ser rastreado e como se proteger. Meu irmão só não foi atacado por que nem eu sei onde ele está.
— Não tem ninguém que seja mais qualificado do que você, para isso. E Henry sabia disso, por isso me recomendou você.
—… Então tudo o que eu preciso fazer é achar esse Hyunjin e trazer ele de volta? — Felix indagou irritado.
— Se trouxer meu filho de volta em segurança, depois que tudo acabar pode decidir se prefere continuar aqui, com a família, ou se quer voltar para a Austrália.
A segurança na voz de Kija trazia um sentimento estranho a Yongbok. Não queria aceitar de maneira alguma, e se soubesse dessa proposta ridícula antes, nem teria se levantado da cama. Mas não podia negar a Henry seu desejo de morte.
Levantou-se com pesar, o começo de uma dor de cabeça irritante começava a incomodá-lo. Respirou fundo e se preparou para encarar novamente o Hwang.
Christopher continuava tenso como se Felix tivesse a opção de negar, mas continuou respeitosamente imóvel em seu assento.
— Bem, se é assim… Não tenho como recursar. — Suspirou, erguendo a mão para fechar o acordo com o Hwang.
— Ótimo! — Kija exclamou — Não precisa se preocupar com isso agora, acabou de sair de um voo exaustivo. Por enquanto terá seu dormitório separado, até conhecer os outros. Descanse e amanhã mandarei Christopher com você, para onde sei que Hyunjin está.
Quase pulando da cadeira, os olhos de Christopher se iluminaram rapidamente. Ao notar, Kija se permitiu a um, leve sorriso em direção a ele.
— Pensei que o-
— Não posso abrir mão do meu melhor guarda-costas. Você vai no lugar de Seungmin, eu assumo novamente enquanto estiver fora. — Assentiu. — Podem ir. Christopher, por favor, leve Felix para o dormitório.
Sem questionar, e escondendo sua felicidade, Chris se curvou e guiou Felix para fora do escritório, deixando Kija e Heeyon aliviados para trás.
Quando a porta foi fechada, a postura de Felix se desfez em frustração, por conta de seu novo trabalho. Seria difícil descansar depois daquilo.
Fez uma promessa a si mesmo para nunca fazer pedidos de morte estúpidos.
Após todo o estresse que havia passado, Felix passou o resto do dia inteiro em seu dormitório, deitado sem conseguir dormir. A cabeça cheia demais e ainda não acreditando que seria obrigado a fazer aquele trabalho ridículo.
Foram tantos anos esperando para ser quem era naquele momento, e ser reconhecido por algo que fazia bem, e agora seu trabalho mais importante era ficar de babá de um homem adulto.
Sua vontade era de sair no meio da noite e voltar pra casa com suas irmãs, mas novamente, o último pedido de seu treinador foi para que aceitasse o trabalho.
“Todo aquele estardalhaço pelo meu nome, pra me oferecerem esse trabalho? Eu devo ser uma piada, não é possível” Pensou.
Talvez estivesse exagerando, afinal, não seria um trabalho demorado. Mas se sentia desrespeitado, com raiva. Ficou imaginando como ficaria sua reputação como assassino depois que os boatos começassem a se espalhar.
“Não vou passar mais do que uma semana nesse lugar maldito.” Estava confiante disso.
Quando estava quase conseguindo pegar no sono, com os pensamentos lentamente se esvaindo de sua cabeça, três batidas na porta o acordaram num susto.
— Felix? É o Christopher.
— O que foi?
A claridade das luzes de fora invadiram o quarto quando Chris entrou.
— Desculpe se te acordei — Seu tom era amigável. — Mas a hora do jantar já está acabando, e você não comeu nada. Vim perguntar se não quer vir comigo ver alguma coisa. Meus amigos estão no refeitório também.
— Não estou com fome.
O mau-humor do recém-chegado poderia ser facilmente confundido com desrespeito, mas nunca foi do feitio de Felix ser gentil. E aquele definitivamente não era o momento para uma primeira vez.
— Tem certeza? Amanhã não vamos ter tempo de comer nada antes de ir. E o pessoal vai gostar de te conhecer-
— Olha, Christopher. Eu vou ser sincero. Não gosto de você e não somos amigos.—Respondeu ríspido. — Não sei por que todo mundo está agindo como se eu fosse ficar a minha vida inteira aqui. Não sou de ficar de conversinha ou de fazer amizades em meus trabalhos.
Em uma troca intensa de olhares, em que Felix tentava abalar a calma surpreendente de Christopher e intimidá-lo, os dois ficaram ali por alguns segundos. Toda a frustração e estresse da longa viagem o tornava ainda menos sociável do que já era.
— Hm, acho que você realmente não entendeu como funciona o trabalho da máfia.
Qualquer pessoa ficaria irritada com aquela resposta de Felix, mas Christopher apenas sorriu e concordou com a cabeça. A postura fria e rude do Lee o incomodava, mas sabia que era somente uma questão de tempo para que ele se abrisse — ao menos era o que esperava.
E Felix queria ficar sozinho, mas seu estômago reclamava de fome. Em seu caso, era o jeito de Chris que o aborrecia, haviam se conhecido há poucas horas e aquela forçação de barra não funcionava com ele.
— Enfim, se quiser ficar com fome, tudo bem.
Conforme foi se afastando, Christopher sabia que para convencer aquele tipo de pessoa a fazer algo, precisava fazê-la pensar que era ideia dela.
Com a barriga roncando, sem comer nada desde que havia saído da Austrália, Felix respirou fundo e — contra sua contade — elvantou da cama enquanto Christopher saía do quarto.
— Espera! Eu vou com você…
O homem virou-se e sorriu.
Pela raiva que Felix sentia desde o momento em que saiu do escritório de Kija, estava relutando em seguir Christopher até a cozinha. Passou pelos mesmos corredores de mais cedo, agora iluminados pela lua, e o vidro começando a embaçar com a umidade.
Lembrou de horas atrás, quando saída da Austrália no meio da noite, onde ninguém estava acordado. A árvore no meio do pátio jogava algumas folhas aqui e ali, refletindo o prateado da luz nas gotas de orvalho que caíam sobre si.
— Acho que não vamos pegar chuva amanhã na estrada. — Christopher murmurou olhando o céu enquanto andava.
— Espero que não. O clima desse lugar é estranho.
— Haha, uma hora você se acostuma. Vem, é por aqui.
Logo ao entrar na cozinha, o clima fresco e com vento foi substituído pelo vapor quente e cheiro de algo saboroso sendo preparado. Mas tudo parecia vazio. As mesas limpas e organizadas, todas as luzes apagadas e sem sinal de outra pessoa.
— Não era pra ter alguém aqui? — Felix perguntou, olhando ao redor.
— A maioria já está dormindo, a hora de jantar que eu disse, era minha e dos meus amigos.
Chris apenas continuou andando e o guiou por uma segunda porta parecida com um açougue. Ali, o cheiro atingiu Felix com ainda mais força, o aroma dos temperos fortes invadindo o ambiente.
E ao começar a ouvir algumas vozes relaxadas mais adiante, sua mandíbula ficou tensa.
— Ah, uma coisa, Felix. — O Bang parou e olhou para trás, o encarando um pouco mais sério — Não menicone o que veio fazer aqui. Nenhum deles além de mim sabe.
Concordou com um aceno de cabeça.
Praticamente todos os supostos amigos de Christopher se encontravam ali, sentados em alguma bancada vazia ou cadeira que puxaram do lado de fora. O clima era leve e descontraído, preenchudo por risadas e conversas encobertas pelo barulho das panealas.
O único rosto que Felix reconheceu foi o do homem que havia visto mais cedo, o baixinho bombado, um tal de Changbin. O resto era completamente novo para ele.
E de maneira desagradável, o astral se apagou quando Yongbok chegou.
— Que bom que me esperaram! — Christopher chegou animado.
Todos encaravam o fundo da alma de Felix naquele momento, com os rostos sérios e uma postrua repentina, cerrando as conversas. Não podia culpá-los, não estava com uma expressão muito amigável.
Christopher se colocou na frente do Lee.
— Ei, ei! O que é isso? Vocês são o quê? Um bando de animais selvagens? Podem parar com isso, seus quadrúpedes! — Repreendeu.
Chan pigarreou.
— Bem, esse aqui é o Felix. Felix, esses são Changbin, Jeongin, Seungmin e o… Cadê o Minho?
— Foi ali e já volta. — Changbin resmungou.
Ainda parado atrás do mais velho, Yongbok observou um por um desviar o olhar dele, em completo silêncio. Percebeu Chris começando a perder a paciência com os amigos, que aparentemente não sabiam como lidar com estranhos.
— Não vão me obrigar a ser uma professora do primário e dizer para acolherem ele bem, né? — Perguntou em meio a um suspiro. — Desamarrem essas caras, porra!
— O que tá rolando aqui? — Outra pessoa apareceu na porta atrás deles.
Também encarando Felix, um homem de aspectos afiados, e olhar igual ao de um felino surgiu na cozinha. Cabelos castanhos lhe cobrindo as sobrancelhas e um tique de estresse na pálpebra, a voz leve e persuasiva entrou pelos ouvidos de todos.
Talvez fosse a única pessoa que até aquele momento realmente passava um sentimento de autoridade — além de Kija, e às vezes Christopher —. Felix o olhou igualmente nos olhos, não baixando sua cabeça em momento algum.
— Minho! Onde você tava?
— Precisei fazer uma ligação. Quem é esse? — Apontou com o queixo para Felix, enquanto ainda se encaravam.
— Esse é Felix, o recém-chegado.
— Felix de Lee Yongbok?
— O quê? — Os outros perguntaram em coro.
— Você é Lee Yongbok? — Com uma engraçada falha na voz, o que tinha nome de ‘Jeongin’ gritou esganiçado.
— Meu nome é Felix.
Por que é que todos só o reconheciam por esse nome? Devia ser a quarta vez que repetia “Meu nome é Felix” só naquele dia.
— Quem é Lee Yongbok?
— Oi? É simplesmente o hitman mais procurado de hoje em dia? — Jeongin repreendeu Changbin, como se o tivesse ofendido.
“Legal, tenho um fanboy por matar pessoas.” O Lee caçoou em sua mente.
— A.
— Tá, foda-se isso. Vocês cuidaram da comida enquanto eu saí?
— O Seungmin cuidou.
— Que bom, pelo menos não foi você, Changbin. Se não a cozinha já tinha pegado fogo.
Felix agradeceu por Minho praticamente ter ignorado a sua existência e ter continuado sua vida normalmente. Assim, podia seguir seu plano: se sentar em um canto, comer o mais rápido possível e voltar para o quarto. Sem precisar falar com ninguém.
Não ia com a cara de particularmente ninguém ali, e não sentia a mínima vontade de socializar ou fazer novos amigos. Não importava o que ninguém dissesse, ia terminar aquele trabalho o mais rápido possível e dar o fora daquele lugar maldito.
Minho foi até o fogão e desligou o fogo, demorando alguns minutos até servir a comida quente. Tirou o paletó e afrouxou sua gravata, colocando a panela na mesa, onde todos já esperavam para comer.
— Toma. Tteokbokki¹ pra vocês. Ainda não consigo entender o motivo de não comerem com todo mundo. — Minho observou.
— É que a sua comida é melhor, hyung.
— Ei! Os cozinheiros são meus pais! — Seungmin reclamou.
— E eu com isso?
Sentado em um canto afastado dos outros meninos, a presença de Felix foi rapidamente ignorada ou esquecida pela maioria. E logo, o clima relaxado e as risadas retornaram.
Durante todo o tempo que degustava aquela comida bem feita, realmente achou que o seu “plano” daria certo, e que não precisaria conversar com ninguém. Isso até o homem de franja e pinta na bochecha se aproximar e se sentar ao seu lado.
— Felix, não é?
— Isso.
— Chan nos apresentou antes, mas sou Seungmin.
— Guarda-costas do Kija, certo? — Felix se adiantou ao ver o rosto surpreso de Seungmin — Ele mencionou mais cedo.
— Ah, sim. Está gostando daqui?
— Cheguei hoje à tarde, não vi quase nada ainda.
Torcia internamente para aquela conversa acaber logo para poder ir para sue dormitório.
— Eles são sempre assim? — Apontou para os outros.
— Pfft, isso? Eles são bem piores. Só estão tentando ignorar que você está aqui para não ficarem emburrados, e deixar o Chris bravo.
De todos ali, Seungmin estranhamente parecia o mais “normal”, tinha uma postura diferente de alguma maneira. Era naturalmente mais quieto, mas relaxado o bastante para curtir o momento com os amigos.
Honestamente, Felix odiava estranhos, odiava ter que conhecer gente nova — e seu jeito rabugento e arrogante afastava a maioria das pessoas que tentavam se aproximar.
Mas a energia daquelas pessoas, numa noite de segunda-feira, comendo uma comida preparada às pressas, era tão boa que o fazia esquecer o quão odioso era.
As risadas relaxadas de pessoas que viviam em constante perigo e tensão — assim como ele — era de certa forma reconfortante.
— Uma hora você se acostuma — Seungmin continuou — Não sei por quanto tempo vai ficar aqui, mas seria bom ter alguém novo por perto.
Por um momento, a paz do homem pareceu fraquejar.
— Você nem chegou a conhecer todo mundo. Tinha mais gente legal antes, mas é melhor do que você imagina.
Agora ambos olhando para a bagunça que os outros faziam, tentando não fazer barulho demais, entre as conversas sobre o dia a dia e risadas histéricas e despreocupadas. Felix de repente se viu com saudades de casa.
Logo ele, que odiava a mesmice, começou a sentir falta dos dias repetitivos na casa de Henry, com suas irmãs.
Buscando afastar esses pensamentos, Felix finalmente se levantou e discretamente dixou seu prato vazio junto ao dos outros rapazes.
— Te vejo amanhã?
— Acho que vou sair bem cedo. — Respondeu a Seungmin.
— Ah. Boa noite!
— É, boa noite.
Não era sua intenção dizer mais nada ou se despedir dos outros, e assim o fez. Saiu sem falar com mais ninguém, sentindo — sem se importar — alguns olhares estranhos sobre suas costas pela falta de educação.
Lembrava perfeitamente o caminho de volta até o seu dormitório, aqueles corredores eram estranhos vazios e silenciosos.
Observou a mesma árvore sendo iluminada pela lua, e rapidamente teve um flash de tudo o que aconteceu naquele dia.
Sua viagem, o caminho e primeiro encontro com Christopher, a conversa do carro, a recepção estranha e o olhar mortal de Changbin, a proposta insana de Kija e como foi obrigado a aceitá-la.
Estava tão longe de casa, tão distante de sua zono de conforto; fazendo um trabalho que não queria ter aceitado.
As coisas não podiam piorar;
Ao menos era o que Felix pensava.
Chapter Text
Tudo passava rápido demais pela janela daquele carro. Naquela estrada vazia, as casas, postes e até animais no pasto, passavam como um borrão; e tudo era preenchido pelo som vazio das rodas no asfalto.
A voz do GPS às vezes quebrava a linha de seus pensamentos, e o fazia lembrar que ainda faltavam mais três horas pela frente. O rádio ia e vinha, perdendo o sinal e voltando com músicas irritantes que não conhecia.
Depois de uma hora e meia dirigindo, já não estavam tão perto de qualquer cidade grande. Ao redor, só se viam árvores e pastos montanhosos conforme seguiam para oeste, e a estrada seguia visível por muitos quilômetros, completamente deserta.
Durante todo aquele tempo, Christopher lutou contra a vontade de tentar conversar com Felix, mas sabia que a antipatia dele o irritaria naquela hora da manhã.Ficou contente em vê-lo conversar com Seungmin na noite passada, mas isso não significava que o Lee viraria sociável da noite para o dia.
~ A previsão dessa tarde para Gangwon-Do é a mesma das últimas semanas; um sol ameno com muitas nuvens, e possibilidade de tempestades isoladas. Há um alerta de chuvas fortes para a região de Gangneung.
Era o que a estação de clima-tempo dizia no rádio.
~ As autoridades aconselham que a população dessa região evite tomar estradas nas proximidades litorâneas.
Felix, com a cabeça apoiada no vidro desde o começo da viagem — entediado — virou e olhou para Christopher, que checava alguma coisa no GPS. Como não conhecia nada daquele país, e apenas estava sendo levado sem saber para onde, Felix se viu obrigado a começar a falar.
— É para onde estamos indo?
— Mais ou menos. Pelo endereço que Kija me passou, estamos indo para Gangwon-Do, talvez chova, mas os alertas são mais pro litoral.
— Entendi.
Christopher não podia negar que ficou surpreso por Felix ter começado a falar, e agora iria tentar não deixar a conversa morrer ali. Estava disposto a fazê-lo se soltar ao menos um pouco durante aquela viagem.
— Onde Hyunjin está é uma área bem rural e isolada, então talvez a gente pegue uma chuva aqui ou ali, mas acho que nada de mais.
— Tomara que esteja certo, para nos perdermos aqui não é muito difícil — Observou.
— Realmente, aqui é meio ruim de se localizar.
Christopher não tinha nada a perder se tentasse continuar a conversa. Na pior das hipóteses, Felix concluiria seu trabalho e retornaria para a Austrália em pouco mais de uma semana, e nunca mais se veriam novamente.
— Então… Felix, vi que ontem você estava conversando com o Seungmin na cozinha.
— É, ele é suportável. Pelo menos não me olhou como se quisesse me matar.
— Haha, sobre isso, peço perdão pelos meninos — Se desculpou constrangido pelo comportamento de seus amigos — E o Seungmin é um doce mesmo.
— Pelo que parece sim. E parece ser o mais normal de todos vocês.
Aquela frase de Felix foi o suficiente para fazer Christopher cair numa gargalhada sincera, que deixou o Lee confuso.
— Seungmin… Normal? Ah, você realmente não viu nada.
— Hã?
— Seungmin é mesmo um doce, um amor de pessoa sem igual. Mas ele está muito longe de ser normal. Vamos ver o rumo que as coisas vão tomar, acho que vocês se dariam bem.
— Quem sabe.
Diferentemente do dia anterior — naquela mesma situação, apenas ele e Chris no carro —, Felix não se sentia tenso ou irritadiço. Claro, ainda incrédulo por estar fazendo aquele trabalho ridículo, mas um pouco mais propenso a não ser um completo babaca.
Da noite passada, ele se lembrava de algumas coisas que o intrigaram, e com aquela postura descontraída de Christopher, confortável e rindo, viu ali a oportunidade perfeita para perguntar algumas coisas sobre o tal Hyunjin.
E talvez deixar um pouco de lado aquela postura cansativamente fria.
— Mas já que falou disso… Ontem eu estava conversando com Seungmin, e ele perguntou se eu estava gostando daqui e tal. Falamos sobre vocês e seus amigos.
Christopher ergueu as sobrancelhas e olhou rapidamente para Yongbok.
— Ele disse que eles são bem piores do que aquilo que vi.
— O pessoal é bem descontraído. Ali praticamente todo mundo cresceu junto, e se conhece desde criança. Então todos têm muita intimidade entre si. Mas sim, eles são bem piores. O barulho que aqueles ali fazem quando se juntam, é de doer os ouvidos.
— Deu pra perceber — Felix respondeu.
De uma coisa ele recordava com franqueza. A maneira que Seungmin reagiu quando disse “você nem chegou a conhecer todo mundo.” Ficaram alguns minutos em silêncio novamente, Felix tentando encontrar as palavras certas para dizer.
— Christopher.
— Sim?
— Já que esse é o meu trabalho… Me fala um pouco desse Hyunjin. Ontem o Seungmin desviou desse assunto.
Assim como na noite passada, quase como se repetisse, Chris pareceu incomodado. Com o cenho franzido e as mãos apertando o volante com mais força, aquele não era um assunto bom de se citar. Mas ele não recuou.
— Ninguém gosta de falar do Hyunjin. É meio complicado.
Com uma das mãos, afastou os cabelos do rosto, apertando levemente os olhos para ter certeza de que não erraria a próxima curva que o GPS indicava.
— Como eu disse, todo mundo ali cresceu junto. Sou o mais velho, cheguei da Austrália com 8 ou 9 anos. Hyunjin e Minho, nasceram juntos. Changbin e Seungmin já eram da família mas não conviviam com o resto até certo ponto.
“Jeongin chegou depois, história pra outro dia. Mas todo mundo ali cresceu e treinou junto pra chegar onde estamos hoje. Mas sempre teve alguma coisa estranha, o elefante na sala que ninguém comentava.”
Felix escutava atentamente, se mostrando interessado no que Christopher dizia.
— Até hoje ninguém sabe exatamente o porquê de Hyunjin ter fugido sem dizer nada pra ninguém. É um tópico sensível pra todos lá, ele era muito querido pela família. E já tem 3 anos.
— Deve ter sido difícil… E como ele era?
— Hyunjin é uma das pessoas mais puras que eu já conheci. Ele é demais. Como um irmão mais novo pra mim. Não te conheço, Felix, mas eu sei que você vai se encantar por ele.
— Não é bem o meu objetivo, só quero acabar logo com isso.
— Eu sei, e não te julgo. Mas de verdade, eu cresci com ele e sei, ele pode parecer um pouco chato e dramático no começo. Mas ele é demais.
Havia uma sinceridade cintilante nos olhos de Chris ao dizer aquelas palavras, tanto que Felix não podia duvidar de uma palavra sequer do que era dito.
— Falta pouco — Retomou. — Ele vai com toda a certeza ficar muito irritado quando aparecermos lá. Mas realmente espero que você consiga conhecer ele e os outros rapazes melhor.
Ali, pela melancolia repentina de Chris após falar sobre Hyunjin, o carro voltou a ficar silencioso, e a conversa finalmente morreu.
Ao olhar novamente pela janela, Felix percebeu que as coisas começavam a mudar, e as paisagens montanhosas se tornavam plantações e vegetações mais amareladas e ralas, com o céu começando a nublar.
Ainda faltava pouco mais de uma hora, e a sua ansiedade só piorava. Sem saber o que lhe esperava, torcia para que Hyunjin fosse da maneira que Chris havia descrito, assim, achava que seria mais fácil o convencer a voltar.
Por trás do volante e daquele semblante descontraído, Christopher na realidade estava mais nervoso a cada minuto. Sempre que ouvia a voz robótica irritante do GPS, e olhava quanto tempo faltava, seu coração voltava a acelerar.
Fazia 3 anos que não via Hyunjin, 3 anos que não ouvia sua voz; lembrava de seu rosto pelas fotos, pelas memórias que agora pareciam tão distantes. E agora, depois de tanto tempo, estava há apenas algumas dezenas de quilômetros de reencontrá-lo.
A conversa que teve com Felix durante o caminho, o ajudou a se controlar ao menos um pouco.
Suas pernas já doíam após tanto sentado no banco daquele carro, preso naqueles pensamentos angustiantes.
— Já estamos perto. — Anunciou depois de algum tempo, tentando manter-se firme.
Sem tirar os olhos da estrada, Chris viu de canto de olho Felix apontar para as nuvens escuras que se aproximavam no horizonte. E realmente, o rádio não havia mentido.
Agora estavam em uma parte não asfaltada, uma terra arenosa que fazia o carro balançar com as pedras e o cascalho desigual. Olhando pelo retrovisor, uma cortina de terra e poeira subia conforme o carro avançava.
Novamente, ao redor, animais — como vacas, cavalos e ovelhas — pastavam ao longe. Campos de arroz e outras plantações tomavam conta dos arredores, separados por cercas velhas de madeira. A genérica aglomeração de grandes fazendas do interior não era diferente na Coreia.
Se passaram mais alguns minutos naquela paisagem até que finalmente chegassem ao fim daquela estrada, que terminava em uma pequena trilha por onde o carro não conseguia passar. Christopher logo estacionou e tentou se acalmar antes de sair.
— Vamos ter que ir a pé? — Felix questionou um pouco tenso.
— Sim. Mas tá vendo ali na frente? Já é o portão da fazenda que Hyunjin está. É só essa parte que o carro não chega.
Seu coração parecia bater forte em todos os cantos de seu corpo; como se quisesse sair pela garganta, ensurdecendo-lhe os ouvidos e borrando a sua visão. Christopher sentia o olhar de Yongbok sobre si, mas não podia evitar ficar daquele jeito.
Não havia exatamente um motivo, era apenas o nervosismo de ver seu amigo novamente, sem saber se daria certo trazê-lo de volta, e se o veria uma última vez.
Felix não sabia como e nem se deveria falar alguma coisa para tentar acalmar Christopher. Não necessariamente se importava, mas o carro estava frio, então não havia motivo para o homem estar suando.
— Caham — Pigarreou, tomando de volta sua postura. — Vamos.
— Calma aí.
Buscando alguma coisa no porta-luvas, só por precaução, Felix encostou seus dedos no coldre de couro antes de ser impedido por Chris.
— É… É melhor não. Isso só vai deixar o Hyunjin~ Isso só vai piorar as coisas.
Concordando e dando de ombros, Felix seguiu o homem e ambos saíram do carro, seguindo em direção ao portão da fazenda.
De volta à sua realidade ansiosa e descontrolada, logo o primeiro passo para fora daquele carro foi um poço de angústia para Christopher. Estava tão perto, tão, mas tão perto.
Não entendia sua própria ansiedade, afinal, não era como se Hyunjin fosse o receber com um tiro na testa. Eram amigos, praticamente irmãos, mas a distância afetou o Bang de uma maneira que nem mesmo ele imaginava.
Mal conseguia assimilar seus pensamentos, apenas andava em linha reta até o portão da cerca, torcendo para seu cérebro fazer o trabalho sozinho.
— Kija me deu a chave do cadeado. — Murmurou nervoso, ouvindo o tintilar dos metais após tirar um pequeno molho de chaves de seu bolso.
— Certo.
Christopher suava frio. Por alguns momentos, temia que não fosse encontrar Hyunjin.
“Qual será a reação dele? O que ele vai dizer quando me ver? Faz tanto tempo… Ele sentiu minha falta? Sentiu falta dos outros? Porra, Hyunjin! E se… E se depois disso ele me odiar? Ele nunca disse porquê foi embora daquele jeito… O que aconteceu? Meu deus, o que eu vou dizer pra ele?” Seu cérebro não descansava.
Após passar pelo portão, viram uma casa há alguns metros, envolta por árvores floridas, cujos galhos pendiam sobre o telhado; campos de trigo e outras plantações balançavam com o vento forte. Tudo era muito verde e bem cuidado.
Um caminho de pedras os guiava até o batente da porta. Um Sino dos Ventos pendurado em uma pequena varanda cercada, e alguns degraus os separavam da porta de madeira antiga. Não havia campainha.
Christopher se endireitou e subiu os degraus, com o leve som do sino flutuando pelo ambiente. Com as mãos frias e Felix ao seu lado, deu três toques na porta. E assim percebeu que a mesma já estava aberta.
— Ele é sempre assim? Descuidado? — Felix provocou, e foi ignorado.
Ao abrir a primeira porta, havia uma segunda, uma tela que impedia besouros e mosquitos entrarem na casa. O interior já era visível, e assim que entraram, Christopher suspirou estranhamente aliviado.
Aquele lugar tinha o rosto e o cheiro de Hyunjin. Passaram por um pequeno salão de entrada, com um cabideiro com chapéus, um avental e galochas sujas de lama.
Era um ambiente claro e amplo, com outra porta de tela que levava aos fundos, a cozinha era simples e organizada com uma grande janela que dava para as planícies. Alguma coisa começava a ferver no fogo.
Havia um arranjo de gérberas brancas e um leve cheiro de baunilha que emanava de algum lugar. Pinturas, livros na estante, um jardim suspenso com samambaias em um canto da sala.
Um sofá grande em cima de um tapete peludo com estampa de mármore.Tudo decorado com o espírito do Hwang, quase como se o rosto dele estivesse estampado pelas paredes.
Chegava a ser engraçado, Christopher se segurava para não chorar, enquanto Felix olhava tudo meio desinteressado, entediado. Mas no final de tudo, não havia sinal de Hyunjin. Somente um latido irritante que se aproximava cada vez mais.
— Christopher?— Felix chamou enquanto buscava de onde vinha o som.
Nada.
— Ei, Christopher?
— Ah~ perdão, o que foi?
De volta ao mundo real, a dissociação de Chris logo teve um fim.
Descendo como um foguete pelas escadas, surgiu um chihuahua branco e preto com o diabo nos olhos, correndo na direção deles, e pulando na perna de Felix, tentando morder sua mão enquanto latia furiosamente.
Mas isso nem de longe foi o que chamou a atenção de ambos.
— Chan…? — Uma voz adocicada e confusa surgiu pela porta dos fundos.
A silhueta alta e magra, com o sol iluminando suas costas, entrou graciosamente na sala. Cabelos pretos e olhos marejados que refletiam a luz, uma cesta com frutas em uma mão, e duas luvas de jardinagem em outra.
Por alguns momentos, o Bang realmente achou que seu coração fosse parar, ao se virar lentamente para encontrar a imagem do homem.
— Hyu… Hyunjin!
Tomado por emoções que preenchiam todo o seu coração, Christopher perdeu o ar após olhá-lo.
Perto de cair após se desequilibrar, correu em direção ao amigo, quase derrubando a cesta de suas mãos, o envolvendo em um abraço.
Um abraço tão desesperado. Um abraço que esvaziou angústias e saudades acumuladas por três anos inteiros, choros e palavras abafadas que nem faziam muito sentido. Apenas era bom. Christopher nunca havia se sentido tão aliviado em ver o amigo bem, inteiro. Vivo.
Por muito tempo, temeu que nunca mais teria a chance de vê-lo novamente — já que Kija nunca dizia nada. — Temeu que não o encontraria naquela casa, e que não haveria rastros dele ali.
Por outro lado, Hyunjin nunca se sentiu tão confuso, aliviado, com medo. Feliz.
E o cachorro não parava de latir.
— Como que você-
Quebrando o momento repentino da doçura entre eles, do outro lado da sala, Felix se assustou ao ver Christopher dar uma joelhada no estômago de Hyunjin — que agora se contorcia de dor, após sair do abraço.
— Você é um filho da puta!
— Eu sei. Também senti sua falta, hyung.
Yongbok sabia que o mais velho estava se segurando por estar em sua frente, mas Christopher não estava fazendo um bom trabalho em esconder suas emoções
— Como você teve coragem? Depois de tudo, só saiu sem mais nem menos! Você sequer imagina como todo mundo ficou?
— Haa… — Hyunjin suspirou, ainda massageando a barriga — A gente tem muita coisa pra conversar, e eu sei que preciso me explicar.
— Tem mesmo! Ai, minha pressão.
E o cachorro ainda latia.
Felix permanecia imóvel olhando para os dois homens, enquanto o cão continuava a latir e rosnar pulando em sua perna.
— Meu Deus! — Exclamou o Hwang. — O que foi, Kkami?
Ao se virar para ver o que havia de errado com seu cachorro, Hyunjin ficou estático ao se deparar com o olhar frio de Felix, e só ali notou sua presença. E toda a felicidade dele foi rompida.
Os olhos perfurando apenas com um vislumbre de quem era; e só pelas suas roupas, e sua postura estranha e rígida. Hyunjin imediatamente entendeu sobre o que aquilo se tratava.
Olhou para Christopher em busca de um amparo, muito confuso. Mas o Bang olhava para ele com pesar. Seu rosto empalideceu rapidamente.
— Não. — Se apressou em dizer.
— Hyunjin…
Acuado, foi lentamente se afastando de Felix. Toda aquela felicidade e leveza desapareceu de suas feições.
— Seu pai me mandou para-
— Eu não vou voltar. Então foi só por isso que você veio pra cá? Foi meu pai que falou onde eu tava?
— Calma, Hyunjin. — Ia dizer alguma coisa, mas sentia-se tonto. — Não, sério, calma eu vou desmaiar.
[…]
Depois de uma euforia para dar água a Christopher e acalmá-lo, o mesmo se encontrava sentado na cozinha, com um pouco de sal debaixo da língua. Enquanto Hyunjin estava ao seu lado, tirando a chaleira do fogo.
O ambiente de repente havia se tornado tenso e desagradável. Com Felix ainda de pé, imóvel perto da entrada da sala, Christopher passando mal e Hyunjin claramente nervoso.
Ninguém falava mais nada, tudo apenas continuava naquele distante som do sino dos ventos, do lado de fora da casa.
Até Christopher se sentir bem o suficiente para voltar a falar.
— Hyunjin. — Pôde ver o homem estremecer. — Precisamos conversar.
—… Não nos vemos há tanto tempo… Não estrague isso.
— Faz 3 anos. Você não tem noção de como as coisas mudaram.
— Tenho, e é por isso que eu não posso voltar. — Hyunjin firmou. — Eu saí daquela vida justamente pelo motivo que me faz não querer voltar!
— Eu não tenho muito tempo, por favor, só me escuta, Kija precisa de você lá!
— Hyung… Eu não vou voltar… Não posso.
— É perigoso ficar aqui!
— Em três anos que vim pra cá, a única coisa que vi foram animais e árvores. Não tem perigo.
— Você não tá me entendendo! E sabe que não é muito bem assim.
Felix abriu a boca para começar a falar, mas o toque do telefone de Christopher interrompeu a todos.
— Droga, só um minuto. — Interrompeu olhando seu celular.
O homem se levantou com cautela e saiu da cozinha, deixando os dois outros sozinhos com a companhia desagradável do silêncio e tensão.
Hyunjin não sabia se Felix havia entrado para a família, se estava lá somente para acompanhar Chrisopher, ou era contratado.
A única coisa que sabia, era que sua presença o deixava desconfortável, e levava embora toda a sensação de segurança que aquela casa manteve por 3 anos.
— Isso não pode esperar? Eu tô muito longe — Ouviram a voz de Christopher no cômodo ao lado.
Os olhos de Hyunjin estavam vidrados nos de Felix, que não esboçava uma reação sequer. E ambos torciam para Chris voltar logo e acabar com aquela tortura silenciosa.
— Quem é você?
Yongbok não deu brecha e não respondeu, apenas continuou encarando o Hwang, tentando decifrar como iria convencer aquele homem de voltar. E talvez teria que entender melhor sua história.
Do outro lado da sala, Christopher terminava sua ligação, agora mais nervoso do que antes. Não sabia o que fazer, e nem o que diria para os outros dois — especialmente para Felix.
Voltou desolado para a cozinha, se apoiando no balcão ao lado de Hyunjin.
— Era o Minho.
O homem se iluminou.
— Minho! Como ele está? — Se empolgou — E os outros? O Changbin? Seungmin?
— Eu adoraria te contar tudo o que aconteceu depois que você saiu… Mas o Minho me ligou pedindo pra eu voltar, urgentemente.
— O que aconteceu?
— Ele vem tendo uns problemas com um vândalo que tira ele do sério, e que nunca conseguimos pegar. E parece que agora as coisas começaram a sair do controle.
Christopher gesticulava nervoso enquanto falava, buscando encontrar a melhor das soluções para aquele momento. Sabia que convencer Hyunjin a voltar não seria uma tarefa fácil ou rápida, mas não tinha o que fazer.
— Foram 4 horas até aqui… Tenho que sair agora se quiser chegar lá antes que Minho enlouqueça de vez.
— Então ele não mudou nada mesmo. — Hyunjin praticamente ignorou o resto da frase.
— Sim. Mas eu vou voltar assim que eu puder, e não adianta me dizer pra não vir. — Christopher sibilou, com o acúmulo de estresse pulsando em sua testa.
Em seguida, virou-se para o Lee.
— Vamos, Kija já esperava isso.
— Não.
Pela primeira vez desde que Hyunjin chegou, aquela foi a primeira vez que Felix falou. E somente isso foi o suficiente para assustar ainda mais o homem — que definitivamente não esperava pela profundidade da voz de Yongbok.
Ninguém espera.
— Hã?
— Eu não deixo um trabalho por fazer. Kija me contratou para levar ele de volta para casa. E eu não vou sair daqui até concluir o meu trabalho — Desafiou olhando fixamente para Hyunjin.
Christopher olhou para os dois por alguns segundos, pensando no que poderia fazer. Sabia que Hyunjin era cabeça-dura, e Felix também parecia disposto a ficar ali. Não tinha tempo para pensar em outra coisa.
Meu deus, como precisava de um café.
— Fuck… Hyunjin?
— Mesmo se eu disser não, não vai importar.
— Então que seja.
— Vou voltar e resolver isso o mais rápido possível, e venho de novo pra cá — Christopher assegurou, pegando seu casaco e as chaves do carro, e disparando em direção à porta.
Tudo aconteceu muito rápido, toda aquela confusão se passou em pouco mais de uma hora, e ninguém teve tempo de processar nada.
Apenas Hyunjin acompanhou o Bang até a saída, onde uma rajada de vento forte os atingiu ao abrir a porta. O clima estava feio, e o céu — mesmo estando no meio da tarde — havia escurecido como se fosse noite.
Com o coração na mão de ir embora tão rápido depois de tanto tempo sem ver o Hwang, Christopher não pôde deixar de olhar para trás uma última vez e abraçá-lo. A mente de ambos estava uma bagunça, mas aquele rápido abraço aliviou um pouco.
— Não vou reclamar se vier me ver outra vez.. — Hyunjin sorriu — Mesmo que seja pra me tirar daqui.
— Pode me esperar, que eu volto.
A mistura de sentimentos incompreensíveis nos olhos de Christopher se fez presente até que o mesmo voltasse a correr, desta vez em direção ao carro, deixando a fazenda para trás.
Hyunjin permaneceu ali parado, observando seu amigo correr entre o campo, sumindo após do portão. O céu escuro e o vento frio lavavam a presença de Christopher daquele lugar, mas deixando todo o sentimento ruim que ficou.
Não estava esperando aquilo tão do nada, numa comum tarde de terça-feira. Aquela aparição repentina, um reencontro tão rápido, que agora o havia deixado com um vazio no peito, e um estranho em sua casa.
Depois de todo aquele tempo, imaginou que não teria problemas com seu pai ou teria de voltar para aquela vida. Também pensava que conseguiria viver com o peso de não ver seus amigos nunca mais, que depois de 3 anos, as coisas ficariam mais fáceis.
E tão rapidamente, percebeu estar errado em ambas as coisas.
Dentro da casa, Felix o observava; os cabelos voando, e o vento secando as lágrimas em seu rosto, lamentando a ida dramática Christopher de volta para a cidade.
Ele já odiava completamente aquela situação em que ele mesmo havia se colocado.
Os dois temiam as coisas que os próximos dias podiam reservar.
Notes:
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Chapter 4: Estranhos
Chapter Text
~ Tenho certeza de que foi a decisão mais sensata a se tomar.
— Espero que sim. Christopher acabou de sair, só liguei para te informar da situação.
~ Já esperava que Hyunjin não fosse ceder assim tão fácil, só não imaginava que as coisas precisariam acabar dessa maneira.
— Agora que viemos para cá, achei melhor ser cauteloso caso alguém nos seguisse. Então, fiquei.
~ Certo, fez bem. Não deixe de me atualizar sobre o que acontecer nos próximos dias. Se necessário, enviarei outro carro para a fazenda pra buscar vocês. — Kija informou do outro lado da linha.
— Pode deixar.
~ Se precisarem de alguma coisa, me avise. Boa sorte.
A ligação entre Kija e Felix foi breve, logo após Christopher deixar o local. Tudo o que fez foi contar a situação a seu chefe, explicando o que havia acontecido quando chegaram, até o momento da saída de Chris.
E só naquele momento ele se deu conta da condição em que estava, porém, tentou não se desesperar.
O clima na casa, agora apenas com Felix e Hyunjin, estava terrível. Como se já não bastasse o temporal que ameaçava cair do lado de fora, com toda aquela ventania e trovões, as coisas também não estavam exatamente pacíficas no interior da casa.
Buscando aliviar as coisas ao menos um pouco, o Hwang tomou coragem e se dirigiu ao novo “hóspede”.
— Hum… Qual é o seu nome? — Arriscou, esperando ser ignorado.
— Felix.
— Felix… Felix de… Felix de Lee Yonbok?
— Meu nome é Felix. — Respondeu levemente surpreso. — E como sabe de Yongbok?
Hyunjin deu de ombros.
— Vai chover muito. Estava colhendo algumas coisas antes de vocês chegarem. Imagino que deva estar com fome depois da viagem, vou fazer alguma coisa para comermos, senta aí no sofá.
Seguindo o conselho do anfitrião, Felix se sentou em um dos cantos do sofá, assim podendo observar o que ele fazia na cozinha. Mas também, aproveitou para observar com mais atenção o ambiente a sua volta.
Não baixou sua guarda em momento algum perto de Hyunjin; sempre com a postura ereta e o corpo rígido no sofá, como se esperasse por um perigo que nunca existiu. Só queria concluir logo seu trabalho.
Em contrapartida, Hyunjin estava tentando ser cuidadoso como se estivesse com um hóspede querido — e não um estranho. Enquanto cozinhava, a voz de Christopher ficava lhe voltando na mente.
E assim o tempo foi passando lentamente, apenas com o som das panelas no fogo e algumas fungadas que Kkami dava de vez em quando. Se Felix estava desconfortável, o Hwang se sentia duas vezes pior. Mas pelo menos ele estava tentando tornar aquela situação mais agradável.
— Você chegou a conhecer os meninos? Imagino que as coisas mudaram desde que eu saí…
— Sim, más só conversei com Seungmin uma vez.
— Então você chegou agora! — Faiscou em animação — Acho que Chris deve ter dito um pouco de como eles são.
— Sim, e eu vi.
Toda a leve disposição que Felix chegou a sentir mais cedo, sobre não ser um babaca, havia claramente desaparecido — com todas aquelas respostas ríspidas.
Hyunjin foi colocando os pratos na mesa, enquanto observava Felix, intrigado, talvez até um pouco irritado com o jeito rude do homem.
Estava desconfortável.
O cheiro dos temperos se espalhava pela casa inteira, e ao perceber que a comida já estava posta, Felix se levantou do sofá para comer, evitando ao máximo fazer contato visual com o Hwang.
Com as poucas horas dormidas, estava mais rabugento do que de costume, e não estava com vontade de ser legal. Só queria comer, e esperar as horas entediantes passarem até que pudesse dormir.
— Então… Felix.
— Não sou de ficar de conversa fiada. — Se adiantou, frio.
— Mas eu sou, e você está na minha casa. — Sorriu singelo. — Você está aqui para tentar me convencer a voltar, então me agradar seria um bom começo, não?
Revirou os olhos, mas tendo um pouco de seu tédio aliviado pela prepotência de Hyunjin. Agora, ambos sentados na mesa, o que antes era desconforto começava a virar algo mais ácido.
— Então vai, fala o que você queria.
— Hum. Agora eu esqueci o que ia falar. — Abriu um sorriso travesso, vendo que havia irritado Yongbok.
Fingindo ignorá-lo Felix voltou a comer em silêncio sob o olhar curioso e incessante de Hyunjin.
E maldita seja sua insistência, mas uma dúvida latente em sua mente começou a incomodá-lo. Já odiava imaginar o triunfo no rosto de Hyunjin se fosse ele a começar outra conversa.
Engraçado como mal o conhecia, e já o estava detestando.
— Você não respondeu à pergunta que fiz antes.
O Hwang o olhou com comida na boca, murmurando para que voltasse a falar.
— Como sabe daquele nome? Yongbok.
— Ah, e quem não sabe? — Novamente deu de ombros. — Não é grande coisa.
— Não foi isso que eu perguntei.
— Seu nome desde sempre era falado lá em casa. Henry e Kija, sabe? E todo mundo sabe o que você faz e do que é capaz.
Felix nunca entenderia que o seu nome era um dos mais comentados no underground da sociedade. Seu passado sangrento atraía muitos tipos de olhares. E nunca soube realmente como lidar com isso.
Todos faziam parecer que a simples menção de seu nome faziam os outros temerem, mas nada daquilo fazia muito sentido para ele.
— E eu gostava de me intrometer nas reuniões de meu pai. — Confessou.
Com uma estranha neutralidade que se instaurou no ambiente, os primeiros pingos de chuva começaram a cair e atingir os vidros das janelas.
[…]
Agora parecia que o mundo começava a desabar do lado de fora. Uma tempestade violenta e incessante, escurecendo o céu de uma hora para a outra, balançando toda a vegetação dentro e fora da fazenda.
Os galhos da árvore ao lado da casa batiam contra o telhado e janelas do andar de cima. O sino dos ventos rodava e tintilava com a ventania, e os pingos grossos e frios de água vinham e inundavam tudo o que atingiam.
No momento, em lados opostos, Hyunjin e Felix tentavam se entreter com coisas distintas.
O Hwang cuidava de algumas plantas espalhadas pela casa, com algumas ferramentas delicadas em mãos. Enquanto Felix virava as páginas de um livro qualquer.
Se estivesse em qualquer dia chuvoso normal, em que a televisão não funcionava, provavelmente iria deitar no sofá ou no tapete, perto de Kkami e ler alguma coisa tomando um chá. Mas a presença de Felix deixava tudo estranho.
— A TV não funciona quando chove forte. — Hyunjin explicou num murmúrio, apontando para a grande TV na sala.
— Não entendo como você não tem internet, mas tem uma televisão desse tamanho.
— É muito mais fácil rastrear um ip, uma internet, do que um sinal de TV. Eu não saí do país, não é seguro.
Felix parou por alguns segundos para processar a burrice de Hyunjin. Mediu suas palavras para não soar ainda mais rude.
— … É que assim… Existe uma coisa chamada VPN. E navegação segura.
— Hum — Deu de ombros — Nunca fui chegado nessas coisas, quem entendia disso era o Jeongin. E de qualquer forma, não sinto falta.
— Você fala de segurança como se não deixasse sua porta da frente destrancada.
Já estavam no final da tarde, não podiam ir para o lado de fora nem fazer nada muito interessante. Se antes o tédio já assombrava Yongbok, agora beirava o insuportável.
E o pouco tempo descansado começou a atingi-lo com força. Encostou sua cabeça no sofá, relaxando a postura pela primeira vez, exausto.
— E o que você faz quando isso acontece? Fica olhando para o teto o dia inteiro?
— Para alguém que não fica de conversa fiada, você está bem comunicativo. — Provocou.
— Não se engane. Eu não gosto de você. Só estou entediado.
— É mútuo. Mas respondendo sua pergunta… Eu faço as coisas de casa, cuido das plantas ou qualquer outra coisa para não ficar parado.
Tirando as luvas de jardinagem e as deixando de lado, Hyunjin olhou para Felix distraído, tão relaxado e, ao mesmo tempo, tão atento a tudo o que acontecia. A ideia de tornar seu trabalho ainda mais complicado e irritante, era engraçada.
Não o conhecia, e não tinha certeza se era assim a todo o momento, mas o Hwang detestava pessoas como Felix, que destilava amargura sem motivo nenhum. Então parecia conveniente tornar aquela convivência ainda mais difícil para ele.
Com a noite se aproximando, ambos começaram a ficar cada vez mais claramente cansados, e a chuva não parecia que iria passar tão rapidamente.
— Mas… Tem alguma coisa que eu ainda não entendi.
— E o que é?
— Você é sempre estúpido desse jeito?
— Perdão?
— Perto de Chan, você parecia mais relaxado, mas agora, é só um babaca mesmo. — Disse Hyunjin, apoiando suas costas na parede.
— Christopher te conhece, eu não. Você não passa de mais um trabalho pra mim, não tem motivos para eu ser amigável.
Ele até tinha um ponto, mas ainda assim, Hyunjin estava intrigado. Felix havia chego do nada, para levá-lo para casa, com aquela postura e rude, mas algo não parecia certo.
Torcia para não ter julgado cedo demais. Talvez fosse somente invenção da cabeça do Hwang, mas ele jurava ver alguma coisa escondida por trás da fachada dura de Felix.
E seria interessante descobrir o que era.
— Vou concluir esse trabalho e vou voltar para a Austrália, não tem porque tentar fazer amigos aqui.
— Por que não tenta deixar de ser um cuzão, pra variar?
— Não estou com vontade.
Hyunjin riu.
— E como tem tanta certeza que vai realmente conseguir me levar de volta?
— Como ainda não sei, mas vou. — Assegurou. — Eu nunca deixo um trabalho por fazer.
“Para tudo deve ter sua primeira vez.” Hyunjin pensou, intrigado pela firmeza com que Felix falou aquelas palavras. Já tinha sua opinião muito bem formada, e não tinha vontade alguma de mudá-la.
Ele havia saído daquele lugar, daquela vida, por um motivo, e não importava quantas pessoas seu pai enviasse. Não iria retornar.
Se fosse preciso manter aquele homem ali para sempre, o faria. Hyunjin estava completamente certo de que o mesmo iria desistir em alguns dias, ou semanas.
E Felix estava certo de que Hyunjin iria ceder em alguns dias, ou semanas. Também estava convicto de que voltaria para casa em pouco tempo. Só precisava encontrar a maneira certa, talvez até as palavras certas para convencê-lo.
— Já está ficando meio tarde. — O Hwang suspirou, desistindo da conversa. — Se você quiser para descansar, fique à vontade.
Aquilo interessou — e muito — o exausto homem que já quase cochilava desprotegido no sofá. Felix logo se levantou e concordou com a cabeça, silenciosamente agradecido por poder descansar.
— Vamos, eu te mostro onde é.
— Ok.
Passou por Kkami rosnando para ele, e seguiu o anfitrião rumo às escadas. Os olhos pesados de tanto sono, mal conseguia raciocinar alguma coisa ou processar algum pensamento.
Não prestou muita atenção no andar de cima, as portas brancas todas fechadas e apenas uma janela no final do corredor, onde a chuva continuava a bater.
— Se precisar de alguma coisa, o banheiro é aqui e meu quarto é do outro lado do corredor. — Ao pararem em frente à penúltima porta, Hyunjin apontou para outras duas portas.
O leve rangido da madeira ecoou pelo andar de cima, enquanto um quarto limpo e compacto surgiu. Quase toda a decoração daquela casa era verde e branca, por conta das plantas. Um minimalismo interessante.
Uma cama que ficava de frente para mais uma janela, dois gabinetes com plantas em cima — um com um abajur — e alguns livros na cabeceira. Uma dúvida surgiu na mente de Felix, mas estava cansado demais para tentar conversar no momento.
— Agora vou deixar você em paz.
— Por favor. — Felix tentou ficar entre o sarcasmo e a seriedade.
Hyunjin riu, já se sentindo um pouco menos tenso na presença de Felix. Não por simpatia, mas sim por que naquele estado tão acabado e exausto, sabia que ele não machucaria uma mosca sequer.
Voltando a olhar nos olhos do hóspede, uma rápida explosão de luz branca invadiu o lugar pelas janelas, seguido pelo estrondoso barulho do trovão. O clarão revelava apenas as silhuetas distantes das árvores na planície.
— Bem-vindo à sua nova casa. — Ironizou. — Já que você não deixa um trabalho por fazer, vamos ver quanto tempo você dura.
— Digo o mesmo.
— Boa noite!
“Vai se foder.” O tom doce na voz do Hwang conseguiu irritar ainda mais Felix, que faria questão dar uma má resposta, mas não tinha disposição o suficiente para isso.
Olhou ao redor brevemente, com a visão borrada pelo sono. Apenas procurou alguma cadeira ou encosto para colocar suas roupas, Felix se despiu quase completamente e se jogou na cama surpreendentemente confortável daquele quarto.
A exaustão tomou conta de cada centímetro do seu corpo de uma vez só, e com o alívio que sentiu ao finalmente se deitar, foi sorte não ter caído no sono no mesmo segundo. Merecia aquela noite de sono que estava prestes a ter.
Ele tinha certeza de apenas duas coisas naquele momento: Que continuava amando desafios, e que Christopher tinha razão.
Hyunjin era chato pra caralho.
Do outro lado do corredor, o Hwang também se preparava para dormir, Kkami — que subiu logo atrás de Felix — já estava acomodado em sua cama, e recebeu um leve afago de seu dono.
Finalmente teve tempo de respirar depois de horas. Se para Felix manter uma postura fria e imutável era difícil e cansativo, Hyunjin enfrentava o desafio de permanecer calmo e brincalhão.
A verdade era que estava apavorado. A mera presença de Felix, desde o primeiro momento, era uma tortura. E mesmo assim, foi amigável a todo o momento, escondendo sua tensão e medo.
Sentou-se na beira da cama, pensando no que poderia fazer, e refletindo sobre tudo o que havia acontecido naquele dia. Por um lado, ver Christopher — e pensar que agora poderia ter contato com seus amigos novamente — foi maravilhoso.Mas agora se sentia encurralado em um beco sem saída, com aquela atitude repentina de seu pai de tercerizar alguém para levá-lo de volta para casa.
Não sabia o que fazer, estava completamente perdido e assustado. Não queria voltar para aquele lugar, e fazer as coisas que um dia fez.
[…]
Na manhã seguinte, de tão pesado que Felix dormiu, acordou confuso. Dificilmente tinha memórias de subir as escadas com Hyunjin, se trancar no quarto e deitar seminu tão descuidado daquela maneira.
O sol invadia seu quarto pela janela, levemente amenizado pelas cortinas beges com leves detalhes de flores nas bordas, e a visão para as planícies agora era clara, sem nuvens.
Os feixes de luz atingiam seu rosto e o acordavam, impedindo que sucumbisse à vontade de voltar a dormir por mais algum tempo.
Agora revigorado completamente pela boa noite de sono, tomou coragem para se levantar e logo apanhou suas roupas. Não sabia que horas eram, seu celular havia ficado na sala, carregando.
Por alguns momentos, se sentiu tão bem que quase não parecia se importar com as coisas que aconteceram nos últimos dias; quase feliz. Mas a realidade logo voltou a pesar, quando lembrou onde estava, e o que veio fazer naquele lugar.
A ideia de ter que passar ainda mais tempo com o “engraçadinho” Hyunjin lhe era tão irritante, que fazia Felix refletir se havia sido um erro ter ficado naquela casa.
— For fuck’s sake. When will this end? — Felix esfregou as mãos em seu rosto, e foi em direção à porta.
Foi diretamente até o banheiro e somente deu uma rápida olhada em sua aparência, arrumando os cabelos bagunçados antes de ir em direção ao quarto de seu anfitrião.
Assim como na porta da frente no dia anterior, Felix mal precisou bater para ver que a mesma estava aberta. Mas não havia nem sinal do Hwang dentro do quarto.
Despreocupado, virou-se e começou a descer as escadas, mas logo percebeu que Hyunjin também não estava ali, e não havia nada no fogo que lembrasse um café da manhã.
— Hyunjin? — Chamou.
Sem resposta. A porta dos fundos estava escancarada, e nem do cachorro havia sinal algum. O silêncio só era quebrado pelos passos apressados de Felix para checar o resto da casa. Ele não estava ali.
— Droga. Hyunjin? — Gritou.
Agora era só o que lhe faltava, o homem ter agarrado seu cão e ter fugido para não se sabe aonde. Tudo parecia exatamente no lugar que estava na noite passada, sem nada bagunçado ou faltando nas prateleiras.
Seu coração começou a acelerar, e sua mente começou a pensar demais, buscando alguma explicação lógica para o sumiço. Até aquele momento estava sonolento, mas um choque que percorreu todo o seu corpo o acordou.
Saiu correndo e foi para a parte de trás da casa, buscando rapidamente com os olhos qualquer sinal de Hyunjin. Desinteressado com qualquer outra coisa que chegasse ao alcance de seus olhos.
Apenas visualizou de canto de olho alguns canteiros de flores, ferramentas de jardinagem espalhadas pelo chão e algumas casas de pássaros enfeitadas e pintadas com tinta.
Felix passava os olhos por todo o canto, apressando ainda mais os passos enquanto ficava cada vez mais ansioso.
— Hyunjin! — Gritou uma última vez.
E com isso, quase no limite de sua visão, na curva de um pequeno monte há alguns metros, o homem estranho se encontrava ajoelhado de frente para uma grande árvore, tentando se esconder na grama por algum motivo;
Estava de costas para Felix, curvado sobre algo, enquanto seu cachorro se deitava silenciosamente ao seu lado. Soltou um suspiro aliviado, ainda com o coração acelerado.
Não podia ser tão desleixado daquela maneira, e arriscar deixar aquele trabalho incompleto. Não podia.
Aproximou-se lentamente, seus pés afundando levemente na grama fofa e úmida pela chuva da noite passada. Hyunjin parecia não ter percebido sua presença ali, então, Felix esticou sua mão para tocar levemente seu ombro.
— Hyun-
— Shh!
Sem motivo ou aviso, Felix sentiu seu corpo ser puxado com força para o chão, e sentiu um incômodo quando suas mãos e joelhos bateram contra a grama.
Ao olhar irritado para o lado, viu que o Hwang carregava em mãos uma câmera, e olhava pela lente da mesma, apontando-a para algum lugar entre os galhos da árvore. Kkami, o cão, permanecia quieto, agora cheirando a manga de seu terno.
— O que fo-
— Fala baixo! — Repreendeu irritado.
O constante clique da câmera fotográfica, e a falta de explicação de Hyunjin sobre o brilho em seus olhos, estava começando a irritar Felix, que fazia tanto silêncio que conseguia ouvir sua própria respiração.
Cego pela ambição de conseguir uma foto ainda melhor, o Hwang se levantou levemente e deu alguns passos para frente, tentando não fazer barulho, mas seu corpo se espantou com um galho que se quebrou sob seus pés.
O grito de uma ave deixou Felix entendendo menos ainda, até que avistou um pássaro que não pode ser descrito com outra palavra a não ser gigante, saindo dentre as folhas e sumindo na floresta rapidamente.
Com um rápido vislumbre de sua aparência semelhante a de uma águia, com as penas pretas e algumas faixas brancas, e seu bico largo e amarelado, a ave continuou ecoando seus gritos por alguns segundos.
— Merda! — Hyunjin exclamou, levantando com raiva e frustração.
— Por que você-
— Deixa eu ver se consegui alguma foto boa…
As constantes interrupções do homem estavam esgotando rapidamente toda a paciência de Felix, e não fazia nem vinte minutos que o mesmo havia acordado.
Hyunjin, por outro lado, ainda nem havia processado a presença de Yongbok, estava mais preocupado em checar sua câmera, passando foto por foto do rolo.
— Cacete! Tá de brincadeira!
Felix, que antes estava nervoso, agora estava irritado. Observou o Hwang se curvar por dois minutos sobre aquela câmera, com seu cachorro procurando algum lugar para urinar, até que sua euforia tomou conta de si.
— Olha, olha! — Ignorando quem Felix era, e o seu total desinteresse em qualquer coisa que dissesse, Hyunjin quase esfregou a câmera em seu rosto.
Uma foto clara e bela do pássaro que haviam acabado de ver, justamente no momento de seu primeiro grito, majestosa em um dos galhos da árvore, se preparando para voar.
Agora o motivo do cintilar nos olhos escuros de Hyunjin pareciam ter um pouco de sentido, e toda a sua animação boba por uma simples foto seria contagiante, se Felix não fosse Felix.
Era realmente uma boa foto, difícil de se conseguir, mas de verdade, não estava nem um pouco interessado. Yongbok respirou fundo, guardando sua raiva para si, antes de falar algo.
— E o que é esse pássaro? — Perguntou relutando contra sua própria vontade de saber.
— Ah, que bom que perguntou.
Imediatamente se arrependeu.
— Vem, vamos voltar, eu te explico no caminho~ E por que continua no chão?
Com os joelhos molhados pela grama e as mãos sujas de terra — e levemente machucadas — Felix se levantou e seguiu Hyunjin de volta à casa, que já parecia ter esquecido oque havia acontecido há alguns minutos.
— Aquele pássaro é um pipargo-gigante. Ele é muito raro aqui na Coreia, eu só vi ele uma vez desde que cheguei aqui. Sabia que ele pode chegar até dois metros e meio de envergadura?
— Não. Não sabia. — Disse o óbvio.
— Enfim… Eles não costumam vir pra esse lado… Eles comem peixes e outras aves, meu pai uma vez me disse que devem existir só uns 5 mil deles.
— Não imaginava você sendo um nerd dos pássaros. — Felix ironizou com desdém, mas Hyunjin não pareceu notar.
— Acredite em mim, eu sou um nerd de muitas coisas, plantas, aves, essas coisas. Mas não me faça uma pergunta sobre matemática.
Felix quase riu, e Hyunjin deixou claro que o mesmo não havia entendido.
— Não, não. Eu tô falando sério. O tanto que o Chan hyung já me repreendeu…
[…]
Com aquele mesmo clima estranho, em que Hyunjin tentava ignorar a razão de Felix estar ali, e Felix tentava não se irritar com as constantes tentativas de Hyunjin de ser amigável, o tempo passou.
Ambos teriam tomado um café da manhã agradável, se não fosse por Felix ignorando completamente a conversa de Hyunjin, que logo mais virou um monólogo sobre pássaros.
E todo o seu mau-humor pareceu realmente incomodar Hyunjin daquela vez. Não que ele se importasse, mas o ambiente já era silencioso e calmo demais para que seu cérebro pudesse suportar.
E conforme as horas seguiram, a tarde começou a se agitar. Yongbok estava sentado no sofá havia muito tempo, relaxando levemente ao descansar as costas da postura ereta.
Ele tentava — sem muito sucesso — se distrair com alguma coisa que não exigisse que ele se movesse demais. Apanhou um livro e sem muito interesse, começou a virar suas páginas, sem memorizar nenhuma palavra.
A televisão não funcionava por conta da chuva da noite passada, não tinha internet, e estava fora de cogitação começar qualquer conversa que seja com Hyunjin.
Já o Hwang, chateado, começou a ignorar completamente que Felix existia e que estava ali, quase esquecendo por alguns momentos. Não gostava dele, mas depois de tanto tempo, seria bom que sua primeira “visita” fosse um pouco mais agradável.
Fez seus afazeres, cuidou da casa e das plantas o mais lentamente que conseguia, pedindo internamente que o dia acabasse o quanto antes. E quando foi indo para o lado de fora, Felix o chamou.
— Onde você está indo?
— Tenho coisas pra fazer lá fora.
— Vai demorar?
—De que te interessa se vou ou não? — Retrucou enquanto pegava suas luvas e galochas.
Felix soltou um longo suspiro para não se irritar ainda mais, e se levantou com ainda menos disposição do que já teria normalmente.
— Eu vou com você.
— Cuidado pra não sujar seus sapatos de grife na lama.
A afiação nas palavras de Hyunjin, e a maneira brusca que ele virou as costas para Felix, o instigaram. Preferia o Hwang daquela maneira, do que tentando ser amigável.
O lado de fora da casa agora era ainda mais iluminado pelo sol forte da tarde, mas ainda havia nuvens no horizonte, ameaçando chegar em algumas horas, não tinham como saber.
E agora, mais calmo, Felix observou seus arredores conforme seguia o homem. Havia tantas flores de diferentes tipos em canteiros bem cuidados e organizados que não podia contar; uma caixa de ferramentas com algumas jogadas de lado.
A grama exibia um verde exuberante, revigorada com a chuva forte que encharcou a terra. Havia um par de cadeiras que esticavam em um pequeno morro, próximo à árvore de mais cedo.
Não sabia para onde Hyunjin estava indo, seguia em direção à cerca sem dizer uma palavra sequer.
— Tenho que tirar algumas ervas daninhas que estão crescendo ao redor das flores perto da cerca. — Explicou adiantado.
Felix só estava ali para esticar as pernas, não estava interessado.
— Não sei por que veio comigo, mas vou demorar.
Assim Felix esperava.
Nenhum dos dois aguentava mais aquela situação horrível, e queriam que acabasse logo.
[…]
Com as luvas cheias de terra, e as galochas grudentas por ter pisado em uma poça de lama, Hyunjin voltava cansado e suado em direção à casa. Felix ainda o seguia, e o assistiu em completo silêncio, cuidar de todas as coisas lá fora.
Retirar as ervas daninhas da cerca, recolher galhos e pedaços de madeira que voaram com a forte ventania, adubar as plantas… Coisas comuns para alguém que cuidava sozinho de uma fazenda inteira. E mesmo que não houvesse animais ali, ainda era muito trabalhoso.
Felix, que não ofereceu ajuda em nenhum momento, apenas queria espairecer a cabeça, e curtir o momento silencioso não-entediante que era olhar para a paisagem.
Praticamente não existiam diálogos entre eles dois, e por isso, Hyunjin não viu problema em ignorá-lo mais um pouco e descansar o corpo dolorido em uma das cadeiras em cima do morro, fechando os olhos despreocupadamente.
E Felix, pela primeira vez percebeu o quão serena era a face do Hwang, mesmo em uma situação como aquelas, ele quase sempre parecia tranquilo. Com alguns fios do cabelo negro grudados no suor em sua testa, e o peitoral subindo e descendo rapidamente, ainda acalmando sua respiração cansada.
Yongbok não quis sentar, parou ao lado de Hyunjin, e sem saber o motivo, abriu a boca para perguntar:
— Porque você não… Me diz um pouco sobre eles?
Chapter 5: Minha Cabeça Dói
Chapter Text
Agradecia internamente pela estrada estar completamente vazia. Se sentia culpado por imaginar uma corrida contra Deus, e atolar o pé no acelerador, correndo para fugir da chuva.
O rádio continuava a mudar, e já havia percorrido mais da metade do percurso. Batucando ansiosamente o volante com seus dedos, Christopher pensava em tudo o que havia acabado de acontecer.
Nada parecia real, e ele parecia não compreender ou acreditar que aquela tarde havia sido real. A voz, o rosto, cheiro, abraço de Hyunjin. Nada parecia ter passado de um sonho que já tivera muitas vezes.
Não podia contar a ninguém, mas não sabia se seria capaz de esconder toda a sua felicidade. Seus amigos sempre o deixavam vulnerável, mas pelo menos Minho já sabia e poderia comentar com ele.
Nunca teve medo de nada, mas o choque de perder Hyunjin o fez perceber que nada era para sempre, e que, numa noite qualquer, você pode jantar com seu melhor amigo e dizer que não viveria sem ele, para no dia seguinte ele não estar mais lá.
Era uma lembrança dolorosa. E era ainda mais doloroso lembrar de tanto tempo que ficou relembrando a maneira escandalosa que Hyunjin ria, os dramas e chiliques, a maneira com que nunca gostou muito de abraços, mas que sempre abria exceções para eles. Sua voz doce, seu cheiro de baunilha que sempre enjoou Changbin.
Foram três longos anos. Três anos de espera e saudade que agora tinham a chance de finalmente chegar ao fim.
Rezava para Felix conseguir concluir o seu trabalho.
Com uma sorte incompreensível, ele mal pegou chuva na estrada, e logo chegou à casa na mesma pressa em que saiu da fazenda. Deixou seu carro na entrada, com a chave na ignição para que alguém o guardasse por ele. Não era de fazer isso, mas estava com medo do que Minho tinha para dizer.
Todos os seus pensamentos sobre Hyunjin o mantiveram longe de pensar e se preocupar com o que havia acontecido. Minho nunca era de perder a cabeça, muito menos ligar para ele em qualquer ocasião. Especialmente sabendo que Christopher estava em uma missão importante.
Então não fazia ideia e temia o que poderia ter acontecido.
— Onde está Minho, e os outros? — Perguntou afobado à primeira pessoa que viu.
— Até onde eu sei, ele está na sala de reunião com os outros. Seungmin acabou de retornar, chegou uns cinco minutos antes do senhor.
— Obrigado!
Christopher disparou em direção ao corredor, nem prestando atenção se alguém falou alguma coisa com ele ou o cumprimentou. Passou pela sala de segurança vazia e seguiu em direção às escadas.
A casa estava silenciosa como já era de se esperar, a maioria dos agentes deveria estar em missões ou em treinamento. Mas aquilo apenas aumentava a ansiedade de Christopher, que se preparou para o primeiro momento em que ouviria a voz alterada de Minho.
Atravessou aquela casa inteira praticamente em segundos, começando a escutar murmúrios apenas quando já estava de frente à porta da sala que o homem havia lhe dito.
— Minho? Gente? — Christopher irrompeu pela porta, ofegante.
— Ah, graças a Deus! — Changbin jogou os braços para cima — Minho está prestes a ter um colapso nervoso!
Olhando para o canto da sala, Chris viu seu amigo de uma maneira da qual nunca o imaginava. Com os cabelos bagunçados, terno sem gravata e desalinhado, Minho carregava uma cara de quem não havia dormido, e alguma coisa claramente não estava bem.
— O que aconteceu aqui?
Parece que as coisas viraram de cabeça para baixo a partir do momento que pisou os pés para fora daquela casa.
— Aquele merdinha! Filho de uma puta! Sem amor familiar! Desgraçado!
— Minho, é sério. O que aconteceu? Você sabia que eu estava longe, por que me ligou desesperado daquele jeito?
— Aquele mesmo problema de antes, Chan hyung… Só que dessa vez acho que alguma coisa foi longe demais — Jeongin interviu.
— O vândalo?
— O mesmo daquela vez? — Chris perguntou.
— É. O filho da puta.
A sala em um segundo ficou em silêncio. Changbin parou de acompanhar a conversa em sua metade, e agora não fazia a menor ideia do que estava acontecendo.
— Quê?
— Mas esse cara não tinha parado de fazer o que quer que seja?
— Aparentemente voltou! — Trovejou, bagunçando ainda mais os cabelos. — E parece que ninguém aqui é competente o suficiente pra descobrir quem esse cara é.
— E o que ele fez dessa vez?
— Aqui, deixa eu te mostrar. — Jeongin apontou para um notebook em sua frente.
Changbin foi ignorado.
— Alguém aqui pode me explicar o que tá acontecendo? — Changbin perguntou outra vez, irritado.
Todos na mesa se entreolharam e voltaram a atenção para o assunto, novamente o ignorando. Christopher tomou seu lugar ao lado de Jeongin, e Minho ficou de pé atrás do mesmo, todos olhando para o notebook.
— Dessa vez parece que foram as vans de vigia da segunda família… eu não consegui muita coisa das câmeras de segurança.
— Me mostra o que você conseguiu, não aguento mais receber avisos que ele fez alguma coisa.
Começando a teclar rapidamente, Jeongin abriu um sistema que mostrava vários monitores de diferentes câmeras de segurança espalhadas pela segunda mansão e pela rua.
— Lá na sala de segurança daria para ver melhor, mas aqui serve. — Comentou.
Estava concentrado buscando alguma coisa nos arquivos da noite passada, clicando em pastas após pastas repletas de vídeos que mostravam as filmagens. Minho observava ansioso, e Christopher e Changbin continuavam sem entender muito bem toda a situação.
Os únicos que não se impressionavam com as habilidades de Jeongin e Seungmin com a tecnologia eram eles mesmos. Em meio a centenas de arquivos, encontrou rapidamente o que queria, e jogou na tela para que todos pudessem ver.
— Aqui, esse é o vídeo.
— Da hora que o filho da-
— Sim, isso aí. — Jeongin o cortou, cansado dos palavrões.
O vídeo levemente embaçado de uma câmera de segurança apontava para uma rua deserta, no meio da noite. No canto da tela, uma van preta estacionada, e durante alguns segundos nada parecia acontecer.
Após uns 10 segundos, uma sombra refletida pela luz do poste apareceu na tela, e logo em seguida, uma figura encapuzada, carregando uma bolsa grande na lateral de seu corpo, parou em frente à van.
Com um leve glitch na filmagem, todos observaram o homem desconhecido tirar uma lata de tinta da mochila, e começar a chacoalhá-la.
— Aí! É ele!
— Estamos vendo, Minho, relaxa.
— Quando eu colocar as mãos nesse… — O Lee fez um gesto de estrangulamento com as mãos, o rosto enrubescendo de raiva.
— Ninguém vai me dizer o que tá acontecendo mesmo?
— Changbin! Você está vivendo debaixo de uma pedra esses últimos meses?
Não querendo irritar ainda mais Minho, que estava com os olhos vermelhos e irritados de tanto que os esfregou, todos apenas voltaram a assistir o que havia na tela que Jeongin mostrava.
Quando o homem se inclinou para começar a pichar a lataria da van, puderam ver que ele vestia uma jaqueta de couro vermelha, com lantejoulas que brilhavam com a luz e pareciam formar uma coroa.
O vídeo não mostrava muito, somente mais alguns minutos de filmagens que eram interessantes, e o homem desapareceu completamente, sem deixar rastros. Parecia até que ele nunca esteve lá.
Christopher virou um pouco confuso.
— Foi por isso que você enlouqueceu? — Olhou preocupado para Minho, que pareceu piorar depois de ver as filmagens.
— Esse cara está ficando cada vez mais abusado. Antes era uma pichaçãozinha aqui e ali, longe da gente, mas ainda nas nossas propriedades… E agora aparece nas câmeras! Não vai demorar até que nossas casas amanheçam cobertas de tinta!
Com sua raiva borrando até mesmo sua visão, Minho agora andava de um lado para o outro dentro daquela sala de reunião, sem saber o que fazer, pensando incerto sobre que atitude deveria tomar.
Christopher, que normalmente era o mais tomado pela raiva, estava controlado e foi de amparo ao amigo.
— Ei, respira. Por que isso te incomoda tanto? Podemos limpar a tinta ou consertar qualquer coisa!
Minho hesitou em se abrir.
— Não é isso o que me incomoda. Ah, quer saber. Esquece. Só quero pegar esse cara e acabar de uma vez com essa palhaçada.
— Então o que fazemos agora?
Ninguém sabia como lidar com Minho e sua insanidade repentina, e se encontravam de maneira constrangedora naquela sala. Não conseguiam entender o motivo que aquilo realmente o incomodava, e ele não diria.
Vendo que ninguém parecia usar a cabeça, Seungmin, que estava calado aquele tempo todo, se levantou de sua cadeira e tomou gentilmente o notebook das mãos de Jeongin sem dizer uma palavra.
— Seungmin? O que foi? — Minho perguntou esperançoso.
— Eu nunca disse nada pensando que vocês já estavam fazendo isso. Mas nunca pensaram em realmente olhar para o que ele pinta?
— É sempre a mesma coisa sem sentido. Isso aí que ele fez na van.
Assim como o Yang, Seungmin habilidosamente aproximou e melhorou a qualidade da imagem, focando na pichação que o homem havia deixado.
— Forma… Forma uma palavra, tá vendo as letras?
— E que merda é essa?
— Olha, besta. — Apontou Seungmin, sem medo de Minho. — As letras formam alguma coisa…
— E onde isso me ajudaria com esse problema?
— Pelo amor de deus… Jeongin, se tiver um tempo, mais tarde eu vou estar na sala de segurança, se quiser me ajudar aparece lá.
O Yang acenou com a cabeça, e Christopher parou para ouvir o que Seungmin tinha para dizer. Changbin já tinha desistido de entender, poderia perguntar a Jeongin depois. E Minho ainda estava cético demais para ouvir qualquer coisa.
— Vou jogar essa imagem em um software e recriar ela, em dois dias no máximo eu consigo qualquer tipo de informação que te leve até esse cara~ Ah, que se dane, o Minho nem ouviu.
— Pode deixar que eu cuido disso. — Chan tomou a frente, dando leves tapinhas no ombro de Minho, olhando para Seungmin.
Os olhos cansados de Minho eram uma preocupação a todos. Ele que nunca foi de se abalar por nada, parecendo até insensível e sem emoções algumas vezes, estava sendo tão afetado por um problema tão pequeno.
Christopher sabia que havia alguma coisa errada, mas não adiantava nada perguntar naquele momento.
— Mais tarde passo na sua sala para ver como está indo com tudo isso. E se tiver alguma outra coisa para resolver, pode deixar que eu designo outra pessoa. Vamos resolver isso de uma vez.
— Certo, te vejo mais tarde, hyung. — Seungmin assentiu.
— É, e vê se não surta, Minho. — Changbin lançou um olhar calmo ao amigo.
[…]
Sua cabeça estava explodindo com tanto estresse e problemas que haviam surgido em tão pouco tempo. Todos aqueles telefonemas e reuniões, todas aquelas perguntas que as pessoas da família insistiam em fazer. Não estava aguentando mais.
Lee Minho estava na cozinha de sua casa, aguardando um telefonema de Christopher sobre o que haviam conversado mais cedo, ou qualquer tipo de notícia que aliviasse ao menos um pouco tudo o que estava passando.
Se sentiu culpado por tê-lo feito sair correndo daquela missão, mas sentia que iria perder a cabeça sem ele por perto. Aquela situação perdurava havia meses, e tinha medo do que poderia fazer se estivesse sentindo aquela raiva o tempo todo.
Com um copo de água em uma mão e um remédio na outra, Minho voltou para o seu quarto, desejando aliviar o estresse de alguma maneira.
Ligou a televisão e se deparou com o noticiário, e a voz monótona do âncora o deixava tonto.
~ Continuam as tempestades em Gangneung, a previsão é de que nos próximos dias, o índice de chuva aumente. Com as temperaturas abafadas desse início de semana começando a despencar.
— Chato… — Minho bufou, desligando a televisão e se jogando de costas em sua cama.
Olhava constantemente para o seu celular, na espera de uma mensagem ou ligação de Christopher com alguma nova informação.
Sua dor de cabeça e descontrole o fez adiar todas as reuniões que tinha nos próximos dois dias, e mesmo se pensasse muito bem, não entenderia perfeitamente o por quê daquela situação tão pequena o afetar tanto.
Desde o desaparecimento de Hyunjin, havia se tornado uma pessoa explosiva, que buscava resolver tudo de uma vez por todas, seja brutalmente ou não.
Sempre resolvia tudo o que colocavam em suas mãos, mas aquele problema específico estava fazendo-o perder a cabeça. E se naquele momento, o toque de seu celular não houvesse o despertado de seus pensamentos, certamente teria um colapso.
— Finalmente! Nossa, por que demorou tanto? O que descobriu?
Minho deu um salto de sua cama, ansioso por uma resposta, começou a andar em círculos em seu quarto. Seu coração acelerou de repente.
~ Calma, eu só liguei pra saber como você tá. Estou indo ver o Seungmin e o Jeongin agora.
A frustração do Lee foi clara, e apenas pelo profundo suspiro, Christopher conseguiu perceber.
— Como eu estou? Como você acha que eu estou? O dia todo atendendo ligações e inventando desculpas para as perguntas sobre o por que eu havia cancelado todas as reuniões!
~ Se acalma. Os dois estão trabalhando nisso desde que você saiu. Com certeza devem ter achado alguma coisa.
— Espero que sim. Se os boatos começarem a se espalhar quem sabe o que pode acontecer com a reputação dessa família?
~ Minho, seja lá quem for que esteja fazendo isso, quer exatamente isso. Que você se estresse e perca a cabeça, desista, que acabe com tudo.
Na cabeça de Christopher, o óbvio precisava ser dito, mas sabia que Minho não era burro e entendia tudo o que estava acontecendo perfeitamente bem. E era claro que quanto mais pensava nisso, mais ficava estressado.
Precisava ajudar o amigo naquele momento difícil, e tinha uma ideia de como tirá-lo daquele ambiente enlouquecedor que havia se tornado aquela casa.
~ Vou ver como estão Jeongin e Seungmin, e te dou retorno quando você chegar.
— Quando chegar? Chegar aonde? — Minho indagou confuso.
~ Sim, quanto mais tempo você passar nesse lugar, mais vai se estressar. Estou mandando alguém ir te buscar e você passa a noite aqui com a gente, que nem nos velhos tempos.
Minho nem encontrou uma resposta em sua mente para aquilo, apenas concordou. Nunca deixava de se impressionar com quão bem Chan o conhecia, e sempre seria grato por isso.
Nem precisaria levar bolsa ou qualquer coisa do tipo, aquela era sua segunda casa, e já tinha tudo o que precisava lá. Mas somente a ideia de tirar um tempo e sair daquele lugar, já amenizava sua dor de cabeça, e começava a acalmá-lo.
E Minho nem lembrou do verdadeiro significado por trás do “como nos velhos tempos” de Christopher.
Do outro lado da linha, após o Lee concordar, desligou a chamada e seguiu seu caminho, descendo algumas escadas até chegar ao corredor da sala de segurança, ou de inteligência, como gostava de chamar.
E logo que chegou até a porta, tomou um susto ao trombar com Jeongin, que teve que tomar cuidado para não derrubar o laptop que carregava em suas mãos, parecendo ter pressa a ir para algum lugar.
— Ah, hyung! — Exclamou o mais novo, apertando o notebook contra seu peito pelo susto.
— Desculpa, Jeongin. O que aconteceu?
— Nada demais, tenho que ir pegar outro notebook, esse aqui deu tela azul. Mas pode ir entrando, o Seungmin pode ir te atualizando enquanto isso. Já volto!
Apressado, Jeongin deu um sorriso cansado a Christopher antes de correr pelos corredores e desaparecer.
Chan observou o amigo durante alguns segundos até decidir entrar na sala. Viu Seungmin sentado em frente a um dos diversos computadores da sala. Os monitores mostravam dados, câmeras de seguranças e outras informações que pareciam ser confusas demais para ele.
Enquanto isso, o computador que o Kim mexia mudava de tela constantemente, e havia um pequeno bloco de notas ao lado do mouse. E o som do teclado era rápido e preciso.
Aparentemente, a presença de Christopher ainda não havia sido notada. E ali ele viu uma oportunidade, ao surgir um sorriso travesso em seus lábios, enquanto se aproximava do amigo silenciosamente.
— Seungmin? — Chamou segurando nos ombros do amigo, e apoiando seu queixo no ombro do mesmo.
— Aah!
Aquela era a segunda vez em menos de dois minutos, que havia assustado alguém. Seungmin deu um salto e quase jogou seus fones de ouvido para longe, soltando um grito assustado que causou uma risada em Chris.
— Perdão, é que você estava tão concentrado que mesmo se eu te chamasse, não teria me escutado — Tentou se explicar enquanto ria da cara emburrada de Seungmin.
O homem logo se acalmou e apenas balançou negativamente a cabeça, lançando um breve sorriso antes de desviar o olhar e voltar a seu computador.
— Mas e aí? Já descobriu alguma coisa? Vim aqui saber pra ver se o Minho se acalma um pouquinho.
— É… Nunca tinha visto o Minho daquele jeito… Por isso me ofereci para ajudar.
Seungmin parecia se compadecer da dor do Lee, e começava a compartilhar de todo o estresse que o amigo passava. E faria de tudo para ajudá-lo, mesmo que isso significasse ter que sacrificar suas merecidas horas de descanso.
— Mas enfim, eu consegui sim achar algumas coisas. Ainda não terminei 100%, mas já posso dar uma tranquilizada no Minho com isso que tenho aqui.
— E o que é?
— Aqui, é bem interessante, vem ver — Chamou.
Apontando para a tela do computador, Seungmin mostrou novamente a cena da câmera de segurança, que captava o criminoso encapuzado, deixou o vídeo rolar por alguns segundos e pausou na mesma cena de antes.
— O que vimos antes… Eu aproximei a imagem e joguei num software pra tentar enxergar melhor aí eu vi que formavam algumas letras e eu coloquei num outro software pra traduzir-
— Seungmin. — Interrompeu, bombardeado com tantas informações — Calma, fala a minha língua, e respira… Ó, res-pi-ra! Eu não tô entendendo nada.
— Ah… Eu falei rápido outra vez?
— Tá tudo bem, isso não é ruim, só que agora eu realmente preciso entender o que você tá dizendo.
Seungmin acenou e tirou alguns segundos em silêncio para reorganizar seus pensamentos de uma maneira que Chris pudesse acompanhar, estava tão nervoso quanto ele.
— Aqui, resumindo, eu consegui transcrever as letras e recriar a coroa da jaqueta. Ainda não tive tempo de pesquisar o que significam… Mas é isso aqui. Se voltar daqui a alguns dias eu já vou ter descoberto mais, imagino…
Aproximou-se da tela e viu o progresso que Seungmin havia feito até então. Tirou uma foto com o seu celular e não demorou muito mais tempo ali, tão concentrado em seu próprio mundo que nem percebeu o Kim olhando para ele, esperando alguma resposta.
Recebeu no mesmo momento, uma mensagem de Minho alertando que já havia chegado.
— Ah, preciso ir, o Minho chegou. — Avisou, já saindo da sala. — Ótimo trabalho, Seungmin!
Não teve tempo de comentar ou fazer as perguntas que tinha para Seungmin, mas também não queria deixar Minho esperando, e irritá-lo ainda mais. Poderia conversar com o Kim no dia seguinte, ou quando tivessem outra oportunidade.
— Obrigado… Boa noite, Chan.
[…]
Se encontrava jogado no tapete felpudo do quarto de seu melhor amigo, com uma pequena garrafa de Soju já pela metade, mas nem perto de apagar todos os seus problemas de sua cabeça.
A televisão passava algo que nem se interessava, e sentia seu corpo quente, formigando pela posição em que havia deitado no chão.
Enquanto Christopher tentava explicar tudo o que havia escutado de Seungmin um pouco mais cedo, era Minho quem precisava tentar assimilar tudo, já que o mais velho sempre bebia o dobro do que qualquer um.
Ele prestou atenção no que o amigo disso, mas apenas por um momento, ele não queria pensar naquele problema; não queria lembrar, não queria falar daquele problema. E afinal, era esse o motivo pelo qual Christopher o chamara.
Olhou para a garrafa em suas mãos, e depois para o amigo jogado na cama, ainda tagarelando. Olhou para o quarto ao seu redor, e a leve luz laranja que não os deixava no escuro.
Conseguiu, por alguns poucos instantes, deixar sua mente completamente limpa.
— Chan… Não seria bom se tudo voltasse a ser como antes? — Ponderou deprimido.
— Antes, quando?
— Antes. Só… Antes. Antes de tomarmos a liderança das famílias… Antes de tanta responsabilidade, tantos problemas… Antes de Hyunjin sumir… — O nome saía com dificuldade de sua boca. — Antes… Quando éramos crianças.
— Mas era você quem dizia que se não fosse por Hyunjin, não mudaria nada.
— Não mudaria… Mas, voltaria… É tanta coisa ao mesmo tempo, que não sei como você consegue… Eu não estou conseguindo…
Foi deixado a sós com seus pensamentos durante torturantes minutos, preso nessa mesma ideia de que seria maravilhoso poder voltar no tempo, para quando ainda eram somente crianças que davam trabalho para os seguranças e seus pais.
— Você acha que ainda tem alguma chance pra pessoas como nós?
Olhou para o amigo na cama.
— Chan? — Sua resposta foi dada como roncos, que denunciavam o sono de Christopher.
Virou outro gole de sua bebida, começando a sentir o que a embriaguez fazia com sua consciência. “Filho da puta… Me chamou, se embebedou e dormiu que nem uma princesa…” Foi o que Minho pensou.
Tomou um lugar em um sofá que Chris insistia em manter em seu quarto e deixou a garrafa de lado, olhando fixamente para a tela de seu celular, para a mensagem que Chan havia enviado, com a foto que tirou do computador de Seungmin.
Aquelas palavras com toda a certeza rodariam por dias em sua cabeça, ou até que finalmente conseguissem apanhar o desgraçado que vinha lhe tirando o sono. Encarou a imagem até que finalmente caísse no sono.
J.One
Chapter 6: Um Passo Adiante
Chapter Text
— Tá tudo certo pra hoje? — Perguntou carinhosamente enquanto checava seu telefone.
— Claro! Adiantei minhas coisas ontem pra poder ficar com você.
Andando de mãos dadas pelos corredores da mansão, eles adoravam agir como se nada estivesse acontecendo, marcando um encontro normalmente. Haviam se passado seis dias desde que Christopher voltou de sua missão, toda aquela euforia já havia passado
Ninguém entendeu muito bem o paradeiro de Felix, e qualquer pessoa que parecesse saber de alguma coisa, se recusava a responder.
Com o passar dos dias, as especulações foram surgindo e os murmurinhos nos corredores foram ficando mais presentes. E não havia nenhuma resposta concreta sobre o que de fato estava acontecendo.
— Hoje só preciso checar algumas coisas com Seungmin, e tenho uma reunião com a equipe nova de tarde, e você, amor?
— Estou praticamente livre, minhas turmas descansam hoje. Vou dar uma checada no Minho e só.
Sendo o único casal da “panelinha” da organização, Jeongin e Changbin preferiam ser discretos em público, mas deixando que todos soubessem que estavam juntos.
Se conheceram quando crianças e cresceram juntos, conheceram o amor juntos. E todos da família respeitavam e sabiam do relacionamento — que sempre foi apoiado por seus amigos.
Agora, mesmo atuando em áreas tão distintas na organização, quase sempre era possível vê-los juntos nos corredores, sempre que tinham algum tempo livre. Se encontrando e realizando missões juntos, como se realmente fossem inseparáveis.
Já faziam anos, e a relação nunca havia “esfriado” ou caído na mesmice.
— Vou subir as escadas e ir pro quarto do Chris ver o Minho, você vai pro Seung? — Questionou enquanto tirava algo de seu bolso.
— Ainda não Hyung, te mando uma mensagem quando acabar.
— Jeongin, você não precisa me chamar de Hyung.
— Eu sei, mas é costume — Riu.
Changbin revirou os olhos e entregou a chave reserva de seu quarto a Jeongin, e trocaram um selinho singelo antes de se separarem, indo um para cada lado.
— Até mais tarde!
Mesmo depois de tanto tempo, quando estavam juntos, o coração de Changbin palpitava, e ele andava por aí saltitando de felicidade. Era completamente apaixonado pelo mais novo, e sentia que essa sensação nunca passaria.
Subiu as escadas como se estivesse nas nuvens, cumprimentando as pessoas que passavam por ele, a maioria com pressa e preocupadas com suas próprias obrigações.
Chegou rapidamente à porta do quarto de Christopher, e logo que entrou, toda aquela felicidade por estar ao lado de Jeongin, havia desaparecido em um piscar de olhos.
O quarto estava bagunçado, Minho estava sentado no sofá olhando para o lado de fora com um tique ansioso em sua perna que não parecia parar. Profundas olheiras em seu rosto e uma expressão de alguém que não tinha uma boa noite de sono há dias.
Christopher andava em círculos com o celular no ouvido, dizendo algumas coisas em inglês que não entendia muito bem. E assim como Minho, carregava um semblante exausto.
— Did he say that? Oh, okay. Tell him I’ll be there. — Exasperou desligando o celular.
— Chan? Tá tudo bem?
— 네…~ Yes- Fuck! Sim! Tá tudo bem!
[Sim]
Foi ao encontro do amigo e o conduziu até que sentasse ao lado de Minho no sofá, tirou as garrafas de bebida de perto de ambos e foi procurar alguns copos para trazer água a eles.
— Pronto, agora as coisas vão melhorar. Minho, você está melhor?
— Tenho cara de alguém que está melhor? — Retrucou. — Não tenho vontade de sair desse quarto tem uma semana, estou atolado de trabalho e não sei nem por onde começar.
Changbin estava um pouco perdido, ao ver seus dois amigos mais velhos naquele estado, ele sabia que precisava fazer algo para ajudar, mas não sabia o quê.
Christopher teclava sem parar em seu celular, com o cenho franzido e uma expressão irritada. E Minho continuava a procurar pela bebida que havia escondido.
Ambos estavam em uma situação deplorável, e ele não sabia o que fazer. Sentiu uma falta imensa de Hyunjin, que sempre sabia o que fazer e falar nessas situações complicadas, especialmente por que sempre, os apoios emocionais eram Christopher e Minho.
Pensou em ligar para Seugmin, que era mais calmo e deveria saber como acalmá-los. Ou talvez até para Jeongin, que mesmo não sendo bom nessas coisas, poderia ajudar.
Mas, antes que pudesse ligar para qualquer um dos dois, conseguiu pensar em algo que pudesse ajudar, algo que talvez Hyunjin faria. Respirou fundo, olhou para seus dois amigos e pôs a tal ideia em prática.
— Chan, o que você tem pra fazer hoje?
— Alguém por algum motivo teve a autorização de Kija pra limpar minha agenda hoje de manhã, e tenho uma reunião com ele mais tarde. — Explicou
— Mas isso não é bom?
— É! Mas eu não consigo parar de pensar que vou deixar de fazer um monte de coisas!
— Vamos fazer o seguinte, Chan, vai ver o Seungmin e ver o que ele descobriu sobre aquele assunto, assim você não precisa ficar o dia inteiro sem fazer nada. — Instruiu com cautela o amigo.
Christopher era bem conhecido por nunca conseguir ficar parado, sempre precisando fazer alguma coisa produtiva e importante, raramente descansando. Então, para ele, um dia de folga podia ter o efeito contrário.
Mas tinha a estranha sensação de que o Kim saberia o que falar.
— E Minho, eu te ajudo a começar a lidar com o trabalho acumulado. Eu não quero ver vocês dois aqui assim.
Por mais que a altura de Changbin fosse um empecilho, ele sabia se impor quando necessário. Christopher e Minho escutavam quietos.
— Estão esperando o quê? Acham que estou brincando? — Esbravejou enquanto se levantava, começando a arrastar Minho para fora do quarto.
— Seu filho da puta, eu sou mais velho que você! — Minho reclamou.
Christopher continuou sentado por alguns segundos, tentando processar o que havia acontecido ali. E resolveu seguir o conselho de seu amigo — para não precisar ser arrastado como o Lee.
Estava naquela sala havia algumas horas, e mesmo que ainda fosse cedo, já estava quase acabando suas obrigações. Se perguntou o que seus amigos estariam fazendo.
Como odiava deixar as portas fechadas, Seungmin sempre estava com um fone em seus ouvidos para reduzir o ruído, e era assim que ele trabalhava dia e noite.
Era o mais novo e considerado o melhor guarda-costas de Kija, então não tinha muitas oportunidades de ficar o dia inteiro na sala de segurança.
Estava aproveitando o tempo em que o chefe retomava seu lugar, enquanto Christopher cuidava de outros assuntos.
E por falar nele, Seungmin foi novamente surpreendido pelo mais velho, que adorava assustá-lo. Com os fones, não o escutava entrar na sala ou ser chamado.
— Ráá!!
— Misericórdia, Christopher! Você quer que eu morra do coração? Se quiser é só falar! — Seungmin exclamou com a mão no peito.
— Eu já avisei que sempre que não me ouvir, vou te assustar.
Com um sorriso cansado em seu rosto, Chris puxou uma cadeira e a colocou ao contrário à frente de Seungmin, apoiando os cotovelos no encosto.
— Por que você tá aqui tão cedo? Precisa de alguma coisa?
— Desde quando eu venho aqui só quando quero alguma coisa? E se eu só quisesse te ver?
Seungmin riu alto e virou sua cadeira para o amigo, e começou a encará-lo até que Christopher cedesse. Sabia que “e se eu só quisesse te ver” não era o caso, por mais que a ideia soasse tentadora.
— Não, mas é sério, eu preciso sim.
— Como se eu não te conhecesse, Chris… — Suspirou — Do que você precisa?
— Ah, na verdade, eu só queria perguntar sobre aquele assunto do Minho.
Christopher ergueu uma sobrancelha ao ver os olhos do Kim brilharem quando tocou no assunto. O observou virar novamente a cadeira e buscar alguma coisa em seu computador.
Esperou em silêncio, tentando entender alguma coisa do que se passava nas inúmeras telas que Seungmin comandava ao mesmo tempo, admirando sua inteligência.
— Então… Era pra eu ter dito isso antes, mas eu quis esperar os nervos se acalmarem um pouco.
— O que você descobriu? — Perguntou curioso, chegando mais perto com a cadeira, para ver melhor.
— Bastante coisa. Esse cara não é tão cuidadoso quando achávamos.
Jogando diferentes imagens em diferentes telas, Seungmin se animava cada vez mais em ver seu trabalho. Queria que Jeongin estivesse ali também para mostrar sua parte, mas não o via desde a noite anterior.
— A palavra que eu achei primeiro, aparece em alguns sub-fóruns dessa região da Coreia… Aqui.
Mostrou na tela, um site mal-construído e visualmente poluído com vários anúncios em vários lugares diferentes. Abaixo de imagens, apareciam diversos comentários estranhos que chamaram a atenção de Christopher, e que Seungmin fez questão de destacar.
“ J.One이 누구인지 궁금합니다…”
[Me pergunto quem é J.One…]
“ J.One의 그림을 보셨나요? 놀라서! ”
[Já viram as pinturas de J.One? Incríveis!]
“ 이 제이원은 도시를 더럽힌 죄로 죽어 마땅합니다! ”
[Esse ‘Jay One’ merece morrer por poluir a cidade]
Essas eram algumas das várias menções do nome, e algumas tinham até fotos de pichações parecidas com a que observavam, a maioria contendo a mesma coroa registrada pela câmera da organização.
Iam de anônimos destilando ódio e ataques contra a “sujeira” que o homem fazia, até denominados fãs do homem e do que ele fazia, que exaltavam sua arte e expressão.
— … Mas onde isso nos ajudaria?
Christopher estava confuso, não entendia onde um punhado de mensagens de contas anônimas poderiam levá-los ao homem que estavam buscando. Olhou para Seunmgin em busca de uma explicação.
— É aí que fica interessante… Eu fui um pouco mais a fundo e descobri isso aqui…
“ 15년 넘게 염곡동 거리를 뒤덮고 있는 이 오물들 ”
[Essa sujeira cobre as ruas de Yeomgok-dong há mais de quinze anos]
— O que significa que este homem já faz isso há quinze anos… Então ou ele já é velho, ou começou muito novo.
— Se fosse velho não conseguiria fugir de nossos agentes tão bem. — Christopher complementou.
— Faz sentido… Então, há 15 anos, a região de Yeomgok-dong quase não existia, uma parte hoje se tornou uma área média, e o que já existia virou uma comunidade. Considerei as possibilidades dele ser de ambas as áreas, mas não faz muito sentido.
“95% das pessoas que moram nessa área média, vieram depois da definição das regiões, as que ficaram são idosas. Mas quem já estava e continuou na comunidade, é quase a população inteira. Ninguém saiu de Guryong.”
Mais uma vez, Seungmin se calou e voltou a teclar e clicar em pastas nomeadas estranhamente, colocando senhas em arquivos como um raio, sempre checando seu caderno de anotações.
Christopher mal conseguia acompanhar, tonto com tanta informação surgindo ao mesmo tempo. Não sabia como o Kim aguentava tudo aquilo e agir com tanta naturalidade.
— Aqui! Demorei alguns dias, mas consegui descobrir a marca das tintas que ele usa… E não tem marca!
— Hã?
— Não tem marca, Chan! — Seungmin repetiu com animação, como se fosse algo óbvio. — Nessa região, apenas lojas pequenas vendem tintas sem marca, sem rotulação. Existem apenas duas beeeem separadas, quase nos extremos da comunidade.
“Mas aí, eu fiz uma teia de todos os relatos de pichações nos fóruns, entrei em databases da polícia de Seoul, e não só descobri qual a loja exata, mas consegui imagens com a ajuda do Jeongin, hackeei uma câmera de segurança e consegui, não faz muito tempo”
As imagens agora mostradas na tela eram embaçadas, típicas de câmeras ruins, mas era óbvia a silhueta do homem que apareceu nas filmagens pixeladas. E não era fácil esquecer aquela jaqueta excêntrica, com uma coroa em lantejoulas nas costas.
O vídeo mostrava uma rua deserta, que parecia estar com a imagem congelada até que um homem com um capuz escondendo o rosto aparecesse, e entrasse em uma loja que tinha a palavra “tintas” levemente ocultada pelo desgaste e sombras.
Christopher já estava surpreso com toda a informação nova que Seungmin e Jeongin haviam conseguido em tão pouco tempo, e ainda sem deixar suas outras obrigações de lado; e o Kim ainda nem havia acabado.
— Eu fiz uma análise de outras filmagens e consegui diminuir a nossa área de busca para um raio de aproximadamente cinco a dez quilômetros. É nessa área que esse cara deve morar.
E novamente, bombardeado com informações e boas notícias, Christopher alternava seu olhar do computador para Seungmin, tentando processar tudo o que havia escutado.
— Seungmin, eu… Eu não sei nem o que falar… Você é incrível…
Não sabia o que fazer. Não sabia se queria gritar, comemorar, sair correndo, abraçar Seungmin, correr para Minho, simplesmente não sabia como fazer seu cérebro funcionar.
— De verdade, isso tudo… É muito mais do que o suficiente pra conseguirmos finalmente pegar esse cara — Afirmou surpreso.
— Uma hora ou outra vocês iam acabar descobrindo todas essas coisas… — Desviou o olhar, escondendo o rosto constrangido pelos elogios. — Já vai ir contar pro Minho?
— Ainda não, ele está com Changbin.
Anotando e passando as informações do computador para seu celular, Christopher se espreguiçou e continuou na cadeira ao lado de Seungmin, claramente feliz por todas as descobertas que o mais novo havia feito.
Agora, ele e Minho estavam mais próximos de acabar com aquele problema de uma vez por todas. O Bang ainda se preocupava com a falta de mensagens ou ligações de Felix, ligaria para ele quando saísse da reunião com Kija.
Ao se levantar e ir até a porta, Chris parou por um instante para se despedir do amigo, e assim que estava para sair, ouviu a voz de Seungmin novamente.
— Inclusive, vê se aproveita sua folga. — Recomendou com a voz repentinamente distante.
— O quê? Foi você?
— Lógico que fui eu. Aparentemente mais ninguém aqui dentro tem olhos e um cérebro que funcione.
— Mas…
Seungmin virou para o amigo, claramente confuso com o motivo de ter feito algo assim sem tê-lo consultado antes. E Christopher ficou ainda mais perdido ao ver o olhar do Kim endurecer.
— Você não se vê no espelho desde quando?
— O quê?
— Está péssimo, Christopher. Precisava tirar um tempo, pelo menos enquanto não resolvem esse assunto sobre Hyunjin.
Sem ter muito o que dizer, concordou normalmente e voltou a ir em direção à porta, quando enfim seu corpo paralisou novamente, e o choque de realidade fez a ficha cair, sobre o que havia escutado.
“ Pelo menos enquanto não resolvem esse assunto sobre Hyunjin. ”
Christopher não havia dito para Seungmin sobre a missão de Felix.
Ele não deveria saber sobre Hyunjin.
— C-como você…? — Virou-se lentamente, com os olhos arregalados.
— Eu não sou burro, Chan. Toda essa correria, você quase saltitando por aí e se matando de trabalhar, em reuniões aqui e ali com Kija. Você congelando toda vez que alguém citava o nome dele.
A voz do Kim estava fria, e seu semblante apresentava irritação. Não era possível que ele havia descoberto o que estava acontecendo tão facilmente — certo, estava mais feliz do que o costume, mas tomou todas as precauções para que ninguém descobrisse.
— Para um líder de máfia, você deveria mentir melhor. E Minho provavelmente sabe também, ou então já teria descoberto.
Sentiu os dedos formigarem com a ansiedade, e o coração acelerou com o olhar profundo e sério que Seungmin o lançou. Não sabia o que fazer naquele momento, provavelmente o Kim saberia se estivesse mentindo, mas também tinha ordens restritas para não falar sobre aquele assunto com ninguém.
— Entendo que por se tratar de Hyunjin, nem todos poderiam saber. Mas você poderia pelo menos ter me contado, e não me deixado descobrir desse jeito! — Repreendeu.
Com o coração nos ouvidos, estava tendo dificuldade para raciocinar enquanto Seungmin falava, ele nunca ficava bravo daquela maneira, e ainda o repreendia com tom baixo, para que ninguém além dele pudesse ouvir a conversa.
— A sua sorte é que Jeongin está preocupado demais com seus próprios trabalhos, e Changbin nunca faz a menor ideia de qualquer coisa que está acontecendo.
— Seungmin, eu…
— Foi pra isso que Kija contratou Felix? — Perguntou irritado — É por isso que você e Minho estão andando por aí feito dois zumbis? De um lado pro outro mais do que nunca?
Christopher estava acoado, querendo acreditar que aquilo não passava de um sonho cansado. A brutalidade no tom de Seungmin era o que mais o desestabilizou naquele momento.
— Vai descansar e vê se para de se matar à toa. E pode deixar bem claro com Kija que eu vou reclamar por não ter sido informado.
— Eu queria contar!~
— Agora, Christopher? Eu não quero saber. O fato de eu ter precisado descobrir, já me diz tudo o que preciso.
Mal-humorado de uma maneira que Christopher nunca havia visto, o Kim virou as costas e voltou a mexer em seu computador, sem dizer mais nenhuma palavra. Chris entendeu e o deixou, saindo da sala.
O coração estava aflito pela bronca, e pelo fato da missão agora arriscar se tornar pública — mesmo que tivesse a certeza de que Seungmin não contaria nem a Jeongin, ainda era um risco que não poderiam correr.
Mas após aquela desilusão, sua vontade era apenas de terminar a reunião com Kija e descansar o resto do dia, ligaria para Felix pela manhã.
Saiu andando pelos corredores, ainda levemente atordoado, mas já começando a se acalmar. Ainda tinha algumas horas antes de sua reunião, e pretendia usá-las para descansar ao menos um pouco.
Esperava que o Kim não ficasse bravo por muito tempo, mas se sentia culpado em aborrecê-lo daquela maneira, logo após o mesmo ter feito um trabalho tão eficiente para ajudá-los, sacrificando seu merecido descanso.
Tinha a plena consciência de que um acontecimento do passado ainda assombrava Seungmin, e era isso o que os afastava tanto. E Christopher havia conseguido piorar a situação, não contando para ele algo tão importante quanto o retorno de Hyunjin.
Seungmin fazia falta.
———————
Andava por aquelas ruas úmidas, sob o céu nublado e frio, sem se preocupar com o rumo que estava tomando. O capuz protegia seu rosto do vento, e a mochila pesada parecia puxar suas pernas cansadas para o chão.
Naquela hora da manhã, não havia ninguém perambulando no frio. O som de carros distantes nas avenidas movimentadas era o único som que quebrava o silêncio agourento daquele lugar vazio.
As casas escuras refletiam todo o ódio que percorria invisível por aquelas ruas precárias, de moradores antigos e abandonados, esquecidos e deixados para apodrecer. Esse ódio tomava forma em um jovem com os olhos decididos, um jovem cujo nome permanecia desconhecido por todos ao seu redor.
J.One , admirado por alguns, odiado por muitos. Tinha sua convicção inabalável, e expressava todo o seu desprezo pela sociedade hipócrita e falsamente perfeita na qual o país se apoiava. Adorava irritar com sua arte qualquer um que se vangloriava pelos privilégios que o dinheiro sujo lhes trazia.
Após vários minutos andando, a expressão fechada e as mãos nos bolsos, parou no fundo de um beco que levava para outras duas ruas escuras e desertas, apoiou-se em uma parede e esperou.
“ Andei tudo isso nesse frio, e aqueles desgraçados não estão aqui ainda. ” Pensou irritado, apenas querendo chegar em sua casa e dormir o resto do dia e recomeçar naquela madrugada.
Agradeceu por não ter de esperar muito. Ao ouvir passos vindos de uma das vielas, baixou seu capuz e subiu o resto do ziper de seu casaco, impedindo que vissem seu rosto inteiro. Não demorou para que duas figuras surgissem na entrada do beco.
— Ei Jay! Aqui! — O homem chamou em tom baixo, se aproximando.
O primeiro, um homem baixo, carrancudo e com o nariz torto e os olhos tão pequenos e puxados que pareciam sempre estar fechados, os cabelos oleosos caindo sobre a testa, e uma expressão de poucos amigos.
O outro, servia como guarda-costas, alto e gordo, forçando uma expressão irritada como se estivesse franzindo o cenho o tempo inteiro. Com os braços cruzados, chegou lado a lado com o outro homem.
— Finalmente, achei que fossem me deixar congelando aqui por mais tempo.
— Não seja tão rabugento, nem demoramos tanto assim. — Bocejou indiferente. — E aí? Fez o que combinamos?
— E quando é que eu não faço?
Tomando cuidado para não revelar o rosto, “Jay” puxou sua mochila para a frente de seu corpo e tirou um pacote lacrado, o entregando imediatamente ao homem baixo, que abriu um sorriso amarelo ao pegar. Não queria estar envolvido demais nos negócios sujos que aconteciam naquele lugar.
Não eram amigos, mal conheciam o nome um do outro, não passavam de “parceiros de negócios” como J.One gostava de dizer caso alguém perguntasse demais. Queria evitar ser visto com aqueles dois idiotas.
— Está me devendo umas tintas, só pra avisar. Tive que me esconder de um monte de seguranças. — Reclamou. — Não recebi o suficiente pra isso.
Já ia dar as costas quando sentiu a mão pesada do homem maior segurar seu ombro. Virou-se já irritado, preparado para brigar.
— Se quiser que eu faça mais alguma coisa, pague antecipado. Já é a terceira vez que trabalho para você só essa semana.
— Não. — Cortou o homem baixo. — Eu quero te alertar.
— Me alertar? Está ficando maluco?
— É sério, Jay. É melhor você parar de mexer com aquela gente de Seocho, até Hongjoong está preocupado.
— Ah, você está falando dos mafiosos de Gangnam? — Caçoou. — Eu sei que eles estão me procurando. Fiquei sabendo que um dos cabeças está todo irritadinho comigo.
Uma chama afiada pareceu surgir nos olhos de J.One, que estava se divertindo em ver todas aquelas pessoas procurando por ele, sempre ofendidas quando algo ameaçava sua honra, e era mais divertindo ainda quando se tratava de mafiosos que se achavam tão poderosos.
— É a minha maior fonte de alegria vê-los igual baratas andando em círculos tentando me pegar.
— Sim, sim… É bom, e tudo mais. Mas você sabe muito bem o que vai acontecer se eles acabarem te pegando.
— Em mais de quinze anos, ninguém nunca pôs as mãos em mim, não vai ser diferente agora. Esses malditos acham que estão no topo da sociedade só por que são da máfia. Eu sei o que estou fazendo, não é como se eles pudessem achar qualquer informação minha largada por aí.
— O seu nome corre por essas ruas dia e noite. Os idosos falam sobre você, os lojistas querem você para fazer o serviço sujo, as crianças querem ser como você… Admita que não é difícil saber quem você é por aqui.
— Quem eu sou? — Rebateu com tom ameaçador. — Você sabe quem eu sou? Alguém nesse lugar sabe quem eu sou? Ninguém aqui sabe nada sobre mim, e não vão ser eles que vão descobrir alguma coisa.
Cansado da cara feia daqueles dois, saiu irritado daquele beco fedido a passos apressados, deixando-os para trás.
Desde pequeno, sua maior diversão — e o que o fez ficar conhecido e respeitado naquelas ruas — foi irritar os cidadãos certinhos e que prezavam pela vida segura que tinham. Adorava ver as manchetes de jornais, com moradores indignados com o que fazia.
Viveu a vida toda lutando para sobreviver, e não havia coisa mais injusta, e que o irritava mais, do que ver políticos, gente rica, ou que só não passa fome, desprezando e tornando a vida de quem passava necessidades um inferno ainda pior.
Por anos, o que esquentava o seu sangue e o movia, era todo o ódio pela sociedade hipócrita que tentavam impor, toda a injustiça e corrupção que jogava gente má e desonesta no topo.
Viu amigos de infância sendo vítima da fome, da violência, da discriminação que todos tinham com pessoas como ele. Seu olhar com o tempo foi ficando cego a qualquer beleza da vida, a qualquer afeto ou calor que poderiam oferecer a ele.
E estava decidido que não ia se amedrontar. Queria ter sua voz ouvida, suas necessidades conhecidas por todos, através de sua arte. Estava certo de que ninguém nunca iria pará-lo.
Iria honrar o lugar de onde havia vindo, nascido e crescido em ruas paradas no tempo, com pessoas que trabalhavam dia e noite para sobreviver, e apenas ganhando as migalhas da fartura que as outras pessoas deixavam para trás.
Ele, Han Jisung, honraria o nome de sua família.
Chapter 7: Me Observe Agora
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Uma semana.
Uma semana havia se passado desde que Felix havia chego, e estava preso naquela casa com Hyunjin, e a tensão entre os dois não parecia estar nem um pouco perto de ser amenizada.
Felix insistia em manter sua postura de sempre, e não parecia cansar. Se portava igual ao clima em todo final de tarde naquela fazenda: chuvoso, frio e nublado.
Enquanto Hyunjin parecia cada vez mais quieto a cada dia que se passava. Se recusando a contar qualquer coisa que Felix lhe perguntasse, especialmente sobre seus amigos e o motivo pelo qual fugiu de casa.
Naquele momento estava tentando consertar sua televisão, que estava com o sinal instável desde o dia anterior. Haviam acabado de tomar café, e Felix estava impecável sentado em seu sofá, parecendo pensar se o ajudaria ou não.
— Como se sente vivendo como um homem das cavernas?
— Como se sente sendo um completo cuzão? — Respondeu à provocação de Felix com o mesmo tom.
A insistência de Yongbok tirava o Hwang do sério, e o deixava imaginando o quão rude e estúpido teria que ser para fazê-lo desistir de o levar de volta para casa.
Christopher havia sido instruído a não voltar à fazenda até que Felix estivesse certo de que Hyunjin voltaria, era uma parte de um plano que não sabia se daria certo. E o anfitrião não sabia de nada disso.
— Sabe… — Felix começou num tom perverso — Agora entendo você ter fugido… Até por que… Quem iria te aguentar? Devem ter ficado tão felizes.
As palavras duras funcionaram como um gatilho. Com os olhos subitamente repletos de uma raiva incomum, Hyunjin se virou e encarou Felix, que foi surpreendido por seu semblante hostil.
— Você não sabe de nada do que aconteceu. — Arranhou, a voz trêmula. Parecendo querer dizer mais alguma coisa, mas apenas dando as costas e saindo do ambiente.
Com o coração apertado, Hyunjin saiu da visão do Lee para se acalmar, olhando os campos através de uma janela no salão.
Havia se passado uma semana inteira e o ânimo de Yongbok parecia não se esgotar. Estava começando a pensar que devolver na mesma moeda, e ser rude igual a ele, não era o melhor jeito de espantá-lo, já que Felix parecia ficar ainda mais propenso a ser babaca.
Ainda não conseguia entender o porquê de seu pai, após todos aqueles anos sem nem manter contato, ter enviado aquele homem para levá-lo de volta. Sem nenhuma explicação.
As memórias ainda eram vívidas em sua mente, e o faziam não querer retornar.
Ele não era aquela pessoa que estava mostrando para Felix. Nunca falaria as coisas que estava falando para ele, e nunca seria tão rude quanto estava sendo. E percebendo isso, precisava espairecer de alguma maneira.
Juntando sua coragem e engolindo seu orgulho, Hyunjin voltou para a sala e se sentou ao lado do Lee, que o olhou com desconfiança.
— Eu quero ir a um lugar.
— Fora da fazenda? — Felix perguntou, sem esperar o pedido do anfitrião. — Não.
— Sim.
— É muito perigoso.
— E daí?
— E daí que eu não vou te levar para lugar algum. — Respondeu firme.
Hyunjin bufou e se levantou, ficando à frente de Yongbok.
— Cara, você tem a sua vida inteira pra ser chato insuportável, por que não tira um dia de folga?
O Hwang respirou fundo, tentando não responder da mesma maneira que o loiro.
— Eu estou sem colocar os pés pra fora dessa fazenda tem 3 anos.
— Então por que quer ir agora?
— Você é mais alerta do que um gato, sei lá, coruja, e tem uma arma. A não ser que esteja com medo de não cumprir o trabalho, sabe… Cometer um erro.
— Eu não cometo erros. — Felix cortou frio, e Hyunjin quase riu.
— Então me leva. Quem não comete erros não deveria ficar com tanto medinho.
Se sentindo desafiado, e não admitindo que alguém duvidasse dele daquela maneira, o Lee foi obrigado a aturar o rosto vitorioso do outro, após conseguir o que queria.
— … Vamos, eu te levo pra onde quer que você queira ir. — Suspirou irritado.
Aquele trabalho estava começando a se tornar ainda mais insuportável do que achou que seria. Mais uma vez, desejou nunca o ter aceitado.
[…]
Mesmo na estrada de terra, o carro parecia voar com Yongbok no volante. O homem permanecia sério e de péssimo humor, mesmo que o tédio daquela fazenda estivesse o matando, não queria sair de casa naquele dia específico.
Muito menos forçado por Hyunjin, no banco do passageiro apenas olhando tranquilamente as estradas em que passavam, dando instruções aqui e ali sobre qual caminho deveria seguir.
Parecia tão calmo e feliz como nunca, como se nada estivesse acontecendo ao seu redor.
Ambos passaram o tempo todo calados, passando por outras fazendas, florestas e lagos sob o céu cinza que ameaçava chover dali a algumas horas. Nem olhavam um para o outro, ainda desejando o sumiço um do outro.
Após pouco mais de meia hora dirigindo, o carro foi estacionado na entrada de um pequeno vilarejo, com casas antigas feitas com materiais diversos, algumas com madeira, pedras ou tijolos.
De longe, podiam ver alguns moradores nos campos ao horizonte, ou entrando e saindo de lojas conforme o asfalto precário os guiava mais para dentro daquele pequeno povoado.
Hyunjin parecia saber exatamente os lugares que queria ir, com uma cesta em suas mãos, e Felix o acompanhando de perto.
Saiu observando seus arredores tão atentamente quanto se precisava, buscando com esperança qualquer mínimo movimento suspeito o suficiente que os obrigasse a voltar à fazenda.
— O que viemos fazer aqui? Não tem nada nesse lugar. — Felix reclamou.
— Se você souber onde olhar… Consegue achar de tudo em qualquer lugar.
— Quando me pediu para sair da fazenda, achei que pelo menos fosse para ir a algum lugar relevante. Não esse lugar no fim do mundo.
— Assim fica realmente complicado. — O homem suspirou cansado. — Se você parar por um segundo sequer, de reclamar de tudo, talvez consiga aproveitar alguma coisa.
O Hwang parecia flutuar por aquelas ruas tão precárias, aproveitando os poucos raios de sol que escapavam das nuvens, e o atingiam em seu rosto. Entrava e saía de lojas aqui e ali, ignorando completamente o mau-humor de Felix.
Cumprimentava gentilmente todos os que passavam, com um sorriso em seu rosto, como se num segundo para o outro, esquecesse completamente da existência de Felix e todo o resto ao seu redor.
O bom humor e gentileza do Hwang estranhamente estava fazendo efeito na pessoa fria e rude ao seu lado.
— Só preciso de mais algumas coisas, faz tempo que não venho aqui.
— Achei que tivesse dito que nunca saiu da fazenda… — Felix provocou, contendo um sorriso.
— Disse, é? Não me lembro.
Soltando uma risada ousada, Hyunjin se virou para olhar a expressão incrédula no rosto de Yongbok, adorando cada segundo daquele constante jogo com fogo que era provocar o loiro.
E Felix, olhando e invejando a leveza que o homem levava a vida, se viu pela primeira vez — mesmo que apenas por alguns momentos — não odiando a presença do Hwang.
Talvez aquele ambiente calmo e sereno, diferente de tudo o que já havia vivido, o deixasse tranquilo. Toda a tensão que seu corpo carregava parecia se dissipar pouco a pouco.
— Só preciso ir em mais uma ou duas lojas, pode ficar aqui se quiser, daqui dá pra ver. — Explicou.
Apenas assentiu quieto e observou Hyunjin se afastar com a cesta quase cheia em um dos braços, e sumir lentamente de seu campo de visão ao entrar em uma loja com o nome muito desgastado para se ler.
Enquanto esperava, com as mãos nos bolsos, Felix olhou o seu entorno, observando com mais atenção as árvores floridas e os campos, mais verdes como nunca pelas chuvas constantes; os canteiros de flores debaixo de quase toda janela. Observou como algumas vinhas se entranhavam nos vãos dos tijolos e das pedras, a ação do tempo apodrecendo a madeira úmida; como o cheiro de terra molhada lhe invadia as narinas, e como tudo parecia particularmente bonito naquele dia.
Tudo parecia lindo. Lindo como nunca havia reparado, com o silêncio rompido por leves sons vindos da natureza, o piar de um pássaro, o farfalhar das árvores distantes e o leve murmurinho dos moradores ao seu redor.
Felix só retomou a atenção quando uma presença desconhecida parou ao seu lado e começou a observar o ambiente junto a ele.
Uma senhora desgastada, com um chapéu de palha cobrindo seus cabelos grisalhos, um vestido florido com cores neutras e uma cesta parecida com a de Hyunjin em uma de suas mãos enrugadas. Uma expressão terna tomou conta de seu rosto ao olhar nos olhos do Lee.
— Você está junto daquele rapaz bonito que às vezes vem aqui, não está? — A mulher perguntou gentilmente.
Não oferecia ameaça alguma, com sua cesta em um braço e a coluna levemente curvada. Mesmo assim, Felix colocou automaticamente as mãos em seus bolsos, sentindo o metal gelado de seu revólver.
— Você traz algo muito diferente dele… Sabia? — Terminou com outra pergunta, ao ter a primeira ignorada. — É possível ver nos olhos dele que nada é como ele aparenta ser.
Felix, talvez por conta do tédio, talvez por conta de sua curiosidade, se interessou pelo que a mulher falava, e voltou seus olhos para ela.
— Como?
— Você tem propósitos fortes, sua expressão é cheia de certeza e sem um traço sequer de arrependimentos…
A confiança e precisão nas palavras da senhora era tanta, que mesmo se quisesse duvidar ou desdenhar, o Lee não poderia.
De fato, Felix tinha seus objetivos claros e resistentes em sua cabeça, sem carregar amargor ou arrependimentos do passado. Então, buscando uma maneira de poder conhecer Hyunjin um pouco mais — já que o mesmo nunca dizia nada sobre si —, escutou com atenção…
— Já ele… Pobre rapaz… Carrega tantos arrependimentos e mágoa que seus olhos não veem. Já faz algum tempo que não o vejo por aqui, agora toda a sua energia parece ter piorado.
— E como você sabe disso tudo? Conhece ele? — Perguntou recuado.
— Não é preciso. Mesmo com toda sua gentileza, é incapaz de encobrir toda a culpa e vazio.
Aquela situação certamente era estranha: uma senhora estranha que nunca havia visto em sua vida, se aproximou e lhe contou coisas que nem ele mesmo sabia sobre Hyunjin. Mas era melhor saber alguma coisa, do que nada.
E por falar nele, foi possível ver o homem saindo de uma das casas, com a cesta ainda mais cheia do que antes. A mulher começou a se afastar lentamente.
— Ele carrega uma culpa imensa por ter deixado algo para trás. — Pontuou, e Felix sabia do que se tratava — Você tem um efeito peculiar nele, use isso para conseguir o que quer.
Com um sorriso terno, a idosa virou as costas e voltou a caminhar como fazia antes de chegar a Felix. Pessoas a cumprimentavam ao vê-la passando pelas ruas, sorriam e a respeitavam como uma autoridade.
O Lee a observou ainda muito confuso. Concentrado, se assustou com um leve toque em seu ombro, e notou que Hyunjin agora o encarava com uma sobrancelha erguida, se apoiando em uma parede perto de onde estavam.
— Ouvi sua voz, estava conversando com quem?
— Eu… Não sei. — Respondeu atordoado, apontado com o queixo a direção na qual a mulher havia ido.
— Ah! Sério? Você conheceu a anciã da vila? Que droga!
Hyunjin pareceu decepcionado, se afastando um pouco para tentar ver a mulher, mas sem muito sucesso, o que aumentou sua frustração.
— Nunca tive a chance de conversar com ela, mas todos dizem que ela é muito sábia. — Explicou.
— Quantas vezes você já veio aqui?
Deu de ombros, fazendo Felix revirar os olhos e respirar fundo. Mesmo com pouquíssimo tempo de convivência, aquela era facilmente a coisa que mais irritava Felix. Aquela insuportável mania que Hyunjin tinha de esquivar de qualquer pergunta que não lhe interessasse, com um simples e seco dar de ombros.
— O que está fazendo aí atrás? — Hyunjin perguntou enquanto andava, vendo que Felix continuava parado. — Vamos pra casa.
[…]
Sentado próximo a uma janela, observava o céu escurecendo e um vento gélido tomando conta dos campos e balançando tudo o que atingia. A melancolia daquele céu cinza fazia seus pelos arrepiarem.
O clarão seguido de um distante ressonar de um trovão o fez despertar de seus pensamentos. Sentia que a chuva iria começar a cair em pouco tempo, e viria mais uma vez, com tudo.
Desatento, o homem apreciava a textura de tinta em suas mãos e como a madeira do pincel pressionava suavemente seus dedos enquanto o segurava, ou como suas cerdas arrastavam e coloriam sobre a tela onde pintava.
Tentava buscar as cores certas, iam do rosa ao marrom, do claro ao escuro, da menos à mais pigmentada. A paisagem que se formava sem esboço algum, apenas seguindo a imagem que suas emoções formavam. Sentia cada pincelada, cada mistura de cores que visualizava.
Umas das únicas coisas que seu pai comentava sobre sua mãe, era sobre as maravilhosas pinturas que a mesma pintara, espalhadas por diversos cômodos da mansão. Hyunjin havia puxado isso da mãe, e desde pequeno criava pinturas e desenhos incríveis.
Conforme os anos foram passando, essa paixão foi aumentando. Agora, sempre que Hyunjin precisasse espairecer, era certo de que logo se trancaria em seu estúdio por algumas horas, criando alguma coisa genial.
Naquele momento, fazia duas horas desde que havia deixado Felix plantado na sala, enquanto o mesmo — num momento raro — cochilava no sofá. O dia custava a passar, e Hyunjin estava relutando em voltar, pensando que o Lee poderia estar procurando por ele.
Ao observar uma última vez para o quadro em progresso, o homem saiu pela porta e deu uma espiada no quarto de hóspedes, mas não havia ninguém lá.
— Será que ele ainda tá dormindo? — Cochichou para si mesmo, zombando.
Logo ao descer os últimos degraus, teve o olhar ainda sonolento de Felix sobre si, e um sentimento estranho surgiu em seu peito.
— Bom dia, bela adormecida!
— Vai se fuder. — Resmungou enquanto se sentava, mas querendo voltar a se deitar.
Ali, com o rosto inchado, os olhos vermelhos e o cabelo amassado, Felix parecia vulnerável. De uma maneira que Hyunjin nunca havia visto, Yongbok pela primeira vez não parecia uma máquina que só sabia matar. Parecia…
Humano.
Num impulso, o Hwang se apoiou na parte de trás do sofá, se aproximando mais do que o normal de Felix. Esperava que o mesmo fosse recuar e subir a guarda como um muro, mas Yongbok continuou no mesmo lugar, encarando Hyunjin, com o mesmo olhar sonolento e vulnerável.
— … Quer fazer uma coisa legal? — Recuou constrangido.
— Hã. O quê?
— Sei lá, só pra sair da rotina.
A proposta de Hyunjin lhe era estranha até o homem ir até a cozinha, e puxar uma garrafa de bebida de algum lugar debaixo do balcão. Felix se surpreendeu, para ele, Hyunjin não tinha cara de alguém que bebia.
— Desde quando você bebe? — Felix perguntou intrigado.
— Tem muitas coisas que você ainda precisa descobrir sobre mim, essa é uma delas.
— Hm… Não acho que eu deveria-
— Se você dizer que não vai beber por que tá em “serviço”… Eu juro que te tranco naquele quarto o dia todo — Ameaçou.
— E por que eu beberia com você?
— Pra me agradar. — Respondeu com um sorriso brincalhão em seu rosto.
Sem que pudesse contestar ou fugir de Hyunjin, Felix já estava sentado no chão, de frente à porta de vidro que levava para a parte de trás da casa. O Hwang estava quase saltitando trazendo alguns aperitivos e duas taças para passarem o tempo enquanto bebessem.
— Você está animado demais.
— Você não faz ideia do que é ficar sozinho por três anos. Mesmo você sendo insuportável, é melhor do que não ter ninguém.
— Hum, queria te perguntar uma coisa sobre isso-
— Bebe. — O anfitrião apontou para a taça. — Se quiser fazer perguntas, bebe.
— Então o mesmo serve pra você! Te garanto que sou mais forte na bebida do que você.
Maldito orgulho. Maldito seja o orgulho de Felix que o fez dizer aquelas palavras. Aquela deveria ser a maior mentira que já havia contado. Era facilmente a pessoa mais fraca para bebida que conhecia, e ainda torcia para que Hyunjin de alguma maneira fosse mais fraco que ele.
Ambos adoravam um bom desafio, e o desdém que vinham nutrindo um pelo outro havia uma semana, era a gasolina para as constantes faíscas que trocavam por olhares e palavras.
— Que seja — Hyunjin deu de ombros. — Pode começar.
Se sentindo desafiado, e com as palavras da senhora que encontrou mais cedo, Felix agarrou a garrafa e despejou uma boa quantidade em seu copo, e não demorou em sentir a queimação da bebida em sua garganta.
Estava determinado a descobrir mais sobre aquele homem irritante, e se fosse preciso entrar no jogo de Hyunjin, estava disposto a fazer qualquer coisa para concluir seu trabalho.
Ao terminar sua primeira dose, Yongbok chacoalhou a cabeça e encarou Hyunjin para fazer sua primeira pergunta.
— Quando eu cheguei, o quarto de hóspedes estava sem um grão de poeira sequer, todo arrumado como se você esperasse por alguém. Por quê?
— Pra falar a verdade eu não sei. Talvez fosse uma esperança de que alguém um dia viesse. Sei que fui eu que fugi, mas sempre desejei que minha irmã ou meus amigos viessem alguma hora.
— Mesmo sabendo que ninguém sabia onde você estava?
— Bem… Tecnicamente, se não soubessem, você não estaria aqui.
— Você adoraria isso. — Felix brincou.
— Com toda certeza~ Minha vez!
Hyunjin não se importava em falar sobre si ou sobre o que defendia e acreditava, mas no fundo de sua mente, pensava se era uma boa ideia se abrir justamente com Felix.
Tarde demais para seu senso comum lhe convencer de alguma coisa, e morrendo de curiosidade para começar a descascar a muralha ao redor de Yongbok, o Hwang rapidamente desceu uma dose ainda maior que a do loiro.
— Cacete!
— Hã, qual sua pergunta?
— Os meninos falaram de mim? Quando você chegou?
— Nossa, Hyunjin, minha pergunta foi muito melhor do que a sua. — Provocou.
Os primeiros pingos de chuva começaram a atingir o vidro da janela conforme os dois conversavam e bebiam. Talvez pela primeira vez não odiando e desejando a morte um do outro.
Talvez fosse a bebida, talvez fosse a conversa. Talvez ambos.
A noite finalmente parecia começar a passar, e os minutos não pareciam mais se arrastar como antes. O eco de suas vozes pelas paredes da casa, o tintilar das taças e a sensação de queimação pela bebida eram a única coisa que seus sentidos custavam a sentir.
Os copos enchendo e a garrafa esvaziando, os soluços que Felix soltava de vez em quando para tentar disfarçar o quão embriagado já estava — mesmo bebendo tão pouco —, enquanto Hyunjin sentia que poderia continuar por horas e horas.
Trocando experiências, curiosidades sobre si, com o álcool agindo rapidamente em seus organismos. Felix tentava expor o mínimo possível sobre tudo o que contava, enquanto Hyunjin não se importava em se abrir e contar detalhes, se aprofundando em tudo o que dizia.
Sentiam os efeitos do álcool cada vez mais fortes a cada dose que tomavam, e a cada pergunta que faziam ou história que contavam, ficava mais difícil não embaralhar as palavras.
— Então você saía escondido e pulava os dias de treino, só pra sair com o Christopher… E ir pra boates?
— É, basicamente isso. Na época era um amigo do meu pai, insuportável de chato, nossa eu não via a hora daquele idoso desgraçado se aposentar e parar de encher o meu saco.
Yongbok ficou em completo silêncio ouvindo as palavras de Hyunjin, percebendo que não havia um pingo de mentira ou doçura naquelas palavras, e a expressão no rosto do anfitrião não era de brincadeira.
O Hwang desceu um gole de bebida ainda com o semblante fechado, e olhou para Felix com a visão levemente entorpecida pela quantidade de doses que já havia tomado até aquele momento.
— Quanto amor no coração. Depois fala de mim — Yongbok zombou.
— Cala boca. Minha vez de fazer pergunta.
— Todas as suas perguntas até agora foram terríveis, mas vá em frente.
— Você sempre foi uma pedra babaca desse jeito ou o quê?
— Como assim?
— Você é uma pedra babaca. Não parece ter sentimentos e é um babaca. — Explicou.
O súbito clarão de um relâmpago revelou o cenho franzido de Felix, que claramente se sentiu ofendido ao ser comparado com uma “pedra babaca”.
Pensou durante alguns segundos sobre como poderia responder àquela pergunta, tentando organizar os pensamentos embaralhados pela bebida, não conseguindo discernir nem mesmo seus próprios sentimentos.
— Acho que sim. Não tenho motivo pra te contar da minha vida.
— Aaaaah tem sim! — Hyunjin se debateu, percebendo que Yongbok estava se fechando novamente. — Só dessa vez! Você nunca fala um “a” comigo!
Já obviamente bêbado, Hyunjin agia como uma criança mimada, que não havia conseguido o que queria. Desajeitadamente, avançou para cima de Felix, agarrando seu braço e puxando-o para perto, olhando em seus olhos.
Por poucos milímetros não chocaram as testas, e Felix não gostou daquela súbita proximidade entre eles. Ele odiava que nem mesmo ele podia negar que Hyunjin era atraente — especialmente de perto.
Tinha medo do que seus impulsos podiam fazer enquanto estava embriagado.
— Só por hoje… Dá pra não ser uma pedra babaca? — Perguntou com a voz suave, fazendo bico.
— Você é igual um bebê chorão. — Felix suspirou, se afastando do homem. — Você nem vai se lembrar disso mesmo.
Yongbok tirou o sobretudo que usava até aquele momento, sem nem se importar com sua camisa amassada e mangas desabotoadas. Desfez um botão que o estava sufocando e passou uma mão entre os cabelos.
Não fazia ideia de como poderia, pela primeira vez em sua vida, contar a alguém qualquer coisa sobre si ou seu passado. A chuva continuava a cair com toda força do lado de fora, e a única iluminação eram os relâmpagos esporádicos e uma vela aromática no balcão ao lado deles.
— Tá… Eu sou péssimo com essas coisas.
— Eu sei. Tá tudo bem.
— Acho que você já sabe, mas quem me criou foi Henry. Ele não era um péssimo “pai”, mas o jeito que ele me criou, talvez fosse a melhor coisa para mim na cabeça dele. Sempre foi um homem muito frio.
Hyunjin abraçou uma almofada qualquer e continuou escutando tudo com a maior atenção que seu cérebro ainda lhe permitia ter. Estava por algum motivo entusiasmado em ouvir sobre a história de Felix pela primeira vez.
— … E eu cresci ouvindo que sentimentos só iriam servir como armas contra você, e que no mundo que eu nasci, você não pode ter fraquezas. Eu era duas vezes mais novo do que qualquer um em treinamento, e duas vezes melhor do que todo mundo.
“Santa arrogância” Hyunjin pensou, mas notou que a expressão de Felix continuava neutra. Ele estava apenas sendo sincero, mas com seu tom arrogante de sempre.
— Então acho que isso de sempre ouvir que sentimentos são ruins, e a pressão de todos e de Henry sobre mim, fez com que eu ficasse assim. Não sinto falta, e não acho ruim. Ninguém sabe nada sobre mim e não pode me atingir de maneira alguma, não tenho ponto fracos.
— Agora eu sei. — Hyunjin sorriu.
— Se você lembrar de alguma palavra que eu disse agora, eu vou ficar impressionado. E olha que eu definitivamente estou muito mais bêbado do que você.
— Já que você tem tanta certeza disso, por que não me conta mais?
— Tipo o quê?
— Hmm… Você tem alguma lembrança dos seus pais?
Felix precisou pensar um pouco para se lembrar de algumas partes específicas de sua infância, onde ouvia Henry ou alguém próximo comentar sobre seus pais. Não lembrava de ter tido contato direto com nenhum dos dois, e aquela era uma das únicas coisas que o incomodava em seu passado.
— Deles não. Mas lembro que diziam que meu pai era um homem sério, mas muito bom. E que minha mãe era “a melhor pessoa que já conheceram”, um raio de sol em forma de pessoa, sempre com um sorriso no rosto. E que sou parecido com ela… Aparência. — Felix contou.
— Acho que você tinha de tudo para ser igual a ela… Não só na aparência.
O comentário de Hyunjin deixou Yongbok com uma sensação estranha, do tipo que facilmente o deixaria sem dormir — se não estivesse consumido pelo álcool.
Percebeu ali que havia se deixado levar pela conversa, e acabou contando muito mais do que esperava, e o olhar curioso e atento de Hyunjin o deixou desconcertado. Sentiu uma vontade imensa de escapar da visão daqueles olhos.
— Chega! Minha ve- Ah~ acabou a garrafa. — Comentou surpreso e decepcionado.
Felix estava genuinamente gostando daquele momento, e se pegou desejando estendê-lo mais um pouco, revelando uma parte de si que talvez nem ele conhecesse.
E o mesmo servia para Hyunjin, que estava achando estranho não estar desejando que Felix evaporasse da face da terra. Estranho de um jeito que gostava, depois de tanto tempo sem ninguém, era bom não odiar a única pessoa com quem convivia.
— Sinal para irmos dormir? Você está embaralhando as palavras tem um tempo.
— Hyunjin… Cala sua boca.
— O quê? É verdade! — Riu.
Com trovoadas ecoando e rajadas de vento colidindo contra as janelas da casa, Hyunjin e Felix saíram se arrastando pela sala, esbarrando no sofá, quase enroscando os pés no tapete e chutando o balcão.
Subiram pelas escadas aos trancos, abraçados para não tropeçarem nos degraus, tentando entender alguma palavra do que estavam dizendo.
Pararam na frente do quarto de hóspedes onde Yongbok estava, e o mesmo se segurou em uma das paredes para tentar não cair. Felix esticou o corpo, se desvencilhando de Hyunjin, ligando o interruptor para poder enxergar alguma coisa.
Mas nada aconteceu.
— Acabou a luz?
Felix ligou e desligou o interruptor mais algumas vezes apenas para confirmar, e riu, virando-se para Hyunjin.
— Nem luz tem nesse lugar quando chove! Homem das cavernas.
Pela primeira vez desde que havia chego naquela casa, Felix sorriu. Hyunjin viu o sorriso de Felix pela primeira vez sob a tênue luz de um relâmpago, e sentiu os pelos de sua nuca eriçarem.
Talvez não se lembrasse de nada daquilo na manhã seguinte, mas a única coisa que o Hwang pôde pensar, era que o sorriso daquele homem rabugento e irritante, era possivelmente uma das coisas mais bonitas que já havia visto.
— Aí, tá vendo… O primeiro passo para não ser uma ‘pedra babaca’… — Hyunjin sorriu de volta, preso à imagem de Felix.
Chapter 8: Sobrecarregado
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Logo pela manhã, incomodado pelos fortes raios de sol que ultrapassaram as cortinas, já sentiu que seu dia seria péssimo. Uma dor de cabeça latente o fazia querer não se levantar, e um incômodo em seus olhos que o impediam de abri-los.
Felix odiava profundamente se sentir indisposto, e odiava ainda mais o que a bebida fazia com o seu corpo. Sua visão estava turva e imediatamente se sentiu tonto ao sentar-se na cama, relutando contra sua vontade de voltar a dormir.
Tateou os lençóis em busca de seu celular, mas não o encontrou — talvez estivesse esquecido no andar debaixo, outra vez.
Não era difícil saber que ainda era cedo, o céu ainda era banhado pelas cores do nascer do sol, e a umidade do orvalho fazia as janelas embaçarem. Parecia ter acabado de amanhecer.
Ainda querendo voltar a dormir, Felix se arrastou até o banheiro e ali ficou por um tempo, encarando seu reflexo cansado e miserável. E percebeu o quanto sentia falta de sua casa.
Sentia falta de ser acordado com as brincadeiras de Olívia, que normalmente acabavam com água gelada em seu rosto; das broncas de Rachel por motivo nenhum, ou da agitação constante naquela casa, onde Henry nunca deixava as coisas ficarem entediantes.
Sentiu falta do ambiente, de poder rir escondido dos erros idiotas de seus colegas, ou perder a disciplina por um dia e sair para observar o céu ou ir a alguma boate se distrair. Não via a hora de poder voltar, sair daquele lugar e voltar para sua rotina.
Logo ele, que se gabava tanto por “não ter sentimentos”, era tomado por um forte sentimento de saudade. Saudade de tudo o que vivia em sua casa, sua terra natal, tão longe de onde estava agora.
Jogou uma água no rosto para afastar esses pensamentos, e saiu do quarto ainda vestindo pijamas. Realmente não estava se importando com nada naquela manhã, apenas queria um copo d’água.
“Será que Hyunjin ainda está dormindo? Ele costuma acordar cedo…” Pensou, andando a passos silenciosos e passando da escada, indo em direção ao quarto do anfitrião.
Esfregou os olhos sonolentos, e notou que a porta estava entreaberta. Não ouvia som algum vindo de qualquer lugar da casa, imaginou que o Hwang ainda pudesse estar deitado e afastou um pouco a porta, para que pudesse olhar dentro.
E ali estava, ainda num sono profundo que não era interrompido nem mesmo pelo sol que inundava o quarto. Abraçava um travesseiro, com o corpo desigualmente envolto num edredom bege claro, e o rosto amassado afundado em meio a tudo isso.
Felix sentiu vontade de rir dos cabelos bagunçados e o rosto inchado do homem, mas era uma cena pacífica demais para que pudesse caçoar. Parecia tão relaxado e sereno sob o sol, dormindo tão suavemente que nem sua respiração era alta.
Era como ver a imagem de um anjo, o Lee se envergonhou em pensar naquela descrição, mas não havia outra maneira de se expressar. Achava engraçado como aquele homem dramático, arrogante e insuportável conseguia ser tão bonito quando estava calmo — e de preferência de boca fechada.
“Vou deixar ele dormir mais um pouco, pra poder ter mais umas horas de paz.” Foi o que Felix pensou, voltando ao seu quarto para que também pudesse dormir mais.
Afastou todo e qualquer pensamento sobre Hyunjin e sua beleza de sua cabeça, para que pudesse finalmente cair no sono novamente, sentindo aquele mal-estar da ressaca começar lentamente a desaparecer conforme seus olhos pesavam.
[…]
O Hwang nem imaginava que Felix esteve em sua porta enquanto dormia, e ao descer até a cozinha para fazer algo de café da manhã, uma pontada de dor de cabeça também o incomodava. Era muito mais resistente à bebida, então não estava morto como o Lee.
Tinha apenas algumas vagas lembranças do que havia acontecido no final da noite passada, lembrava-se de subirem abraçados pela escada, tropeçando no meio do corredor e rindo do vento, e algumas frases que, sem o contexto das memórias, não faziam sentido algum.
Mas uma coisa não saía de sua cabeça, por mais que tentasse esquecer.
Era impossível não detestar Felix, com toda sua frieza e amargura e suas respostas ignorantes. Mas era ainda mais impossível esquecer o breve vislumbre de seu sorriso, a breve lembrança de algo além de desdém em seu rosto angelical, e a mesma sensação de borboletas no estômago, e o arrepio que Hyunjin jamais admitiria ter sentido.
A imagem ia e vinha de sua mente, deixando-o bobo por um motivo que desconhecia e odiava. Às vezes era bom pensar em Felix com um sentimento que não fosse de ódio, mas era só, nunca passaria disso.
E quando Felix desceu e entrou na cozinha, vendo o Hwang sorrindo besta com uma frigideira em suas mãos, não pôde deixar de achar estranho — Hyunjin era estranho — e nunca perderia a chance de zombar dele.
— Como você consegue ficar com um sorriso desses no rosto uma hora dessas, e depois de ter enchido a cara ontem? Enlouqueceu de vez, foi?
Surpreendido, Hyunjin virou rapidamente e escondeu seu rosto ruborizado.
— Não sou que nem você, princesinha. Eu aguento um pouco de álcool. — Retrucou, mas ainda incomodado pelo mal-estar.
Naquela manhã, o clima parecia estar mais leve entre eles, a tensão aliviada dos últimos dias fez bem até para o humor de Felix. Talvez fosse o efeito da noite passada em seu subconsciente, mas começavam a agir como se não se odiassem o tempo todo.
— Pelo menos onde eu moro tem energia elétrica. — Deu de ombros, tentando não sorrir.
Hyunjin riu alto, olhando incrédulo para Felix.
— Como é que você lembra disso?
— Da mesma maneira que lembro de você quase caindo de boca nos degraus ontem à noite.
— Ai, Felix, honestamente…
— O quê? A ideia de me chamar pra beber foi sua — Deu de ombros, vendo que Hyunjin segurava seu riso.
— Da próxima vez eu juro que te empurro dessas mesmas escadas…
— Se conseguir enxergar quando não tiver energia, aí tudo bem. Homem das cavernas.
— Pedra babaca. — Retrucou o encarando.
Nem mesmo Felix conseguiu segurar a gargalhada quando Hyunjin começou a lacrimejar, tentando ao máximo segurar suas risadas.
O Hwang, descontraído, abriu os olhos em meio aos risos e teve a sensação de ser levado de volta à noite anterior, ao ver o riso solto do loiro. Era como se toda a arrogância, a personalidade impossível, e toda sua amargura sumisse no momento em que seus lábios se contraíram em um sorriso.
Sentiu novamente o arrepio e o frio na barriga da última noite, se envergonhando e sorriu fraco de volta. Se pegou assustado com seus próprios pensamentos, que sugeriam que ele fizesse de tudo para ver aquele sorriso mais uma vez.
E Hyunjin teria que tomar cuidado para não se perder naquele riso. Mas de qualquer forma, era bom vê-lo rir, ao menos um pouco mais feliz.
Felix, por sua vez, estava achando estranho Hyunjin o encarar tanto, mas não deu tanta importância quanto normalmente daria. Talvez fosse a dor de cabeça.
Os dois continuaram a comer normalmente, em um silêncio constrangedor que não parecia cessar, nem mesmo com o clima mais leve daquela manhã.
As horas foram passando rapidamente naquele dia, o clima estava agradável e fresco, mesmo sendo difícil caminhar do lado de fora por conta da lama, era um belo dia. A calmaria contagiou Felix e Hyunjin, que passaram uma tarde inteira sem brigar.
Como sempre, sentado no sofá, o Lee se entreteve por várias horas com um livro qualquer que encontrou na estante de Hyunjin, este que passou seu dia cuidando de algumas plantas, testando receitas que cheiravam bem, e cantarolando pela cozinha.
Uma vez ou outra, a sala era preenchida por algumas conversas rápidas que normalmente Hyunjin iniciava, e Felix cortava — nada além do que já estava acostumado.
Agora, o Lee estava em seu quarto, esperando uma resposta para a mensagem que enviou para Christopher. Estava sendo pressionado nos últimos dias para dar uma resposta concreta sobre Hyunjin.
Kija estava cada dia mais nervoso, e conhecendo seu filho como conhecia, sabia desde o início que não seria uma tarefa fácil. Mas seu nervosismo conseguia piorar ainda mais as coisas, e deixava Felix ansioso por não saber se realmente seria capaz de convencer Hyunjin.
[Christopher]
Felix: Hyunjin ainda está relutando. Tenho mais algumas cartas na manga.
Christopher: Kija não pergunta nada faz uns dois dias, mas claramente ta nervoso
F: Se eu não conseguir nada eu aviso a ele diretamente, não vou desistir.
C: Faça isso, qualquer coisa me avisa também
C: Inclusive, como ele tá?
F: Insuportável.
Do outro lado da tela, Christopher soltou um riso aliviado, sabendo que Hyunjin continuava o mesmo. Esperava poder vê-lo novamente em alguns dias, e nunca mais o deixaria sair de sua vista.
C: Ainda não estão se dando bem?
F: E tem como? Hyunjin é completamente intolerável. Mas as coisas estão melhores do que nos primeiros dias, eu acho.
C: Só não se matem em? Se acontecer alguma coisa me manda msg
F: Ok.
Felix desligou seu celular e encostou a cabeça no vidro da janela de seu quarto, observando o lado de fora, cansado. Baixou um pouco seus olhos e se surpreendeu ao ver o Hwang caminhando calmamente em direção a um morro, aproveitando o vento do fim de tarde.
Não podia negar que a paz e a maneira com que Hyunjin observava o mundo era admirável; a maneira com que ele se conectava com tudo que tocasse seu coração, e que não se deixava abalar nem mesmo por alguém que lhe sugava a energia — como Felix.
Pensou em acabar com a paz do homem e saiu do quarto, descendo as escadas e imaginando o que Hyunjin poderia estar fazendo naquele lugar àquela hora da tarde.
Passou por Kkami na sala, que parou de latir e rosnar para ele no terceiro dia — mas que continuava a ser mais traiçoeiro e imprevisível que um gato — e saiu pela porta, sentindo o vento e o cheiro de grama molhada invadindo seu nariz.
Foi caminhando até o homem, que até então não havia notado sua presença. Felix estava calmo, o que ele mesmo achou estranho, e como Hyunjin dizia, ele estava propenso a não ser uma “pedra babaca” que nem nos dias normais. Talvez aqueles dias no campo o estivessem mudando ao menos um pouco.
— A que devo a sua ilustre presença? — Hyunjin ironizou ao notar quem estava ali.
— Infelizmente tenho que ficar de olho em você.
— Aham, aposto que é só uma desculpa para vir me ver.
O sorriso cínico em seu rosto e o deboche em seus olhos faiscavam cada vez mais com o sarcasmo de Felix. O Hwang se sentou em uma cadeira que deixava sempre no topo daquele pequeno morro, tentando aproveitar os primeiros sinais do pôr do sol.
— Quanto menos tempo eu ficar perto de você, mais feliz eu sou.
— Tá aqui por que então? — Provocou, sorrindo e erguendo o queixo para Felix.
Deu de ombros, sem saber muito bem o que responder, o que arrancou uma boa risada de Hyunjin. Felix estava mais relaxado, e ver o Hwang ao mesmo tempo, lhe irritava, e o deixava calmo.
O moreno preferia morrer a admitir, mas gostava de não se sentir mais sozinho. E quando — de birra — o Lee ameaçou voltar para dentro, teve que chamá-lo de volta.
— Ei! — Corou por ter soado tão desesperado — Não quer ver o pôr do sol? É bem bonito daqui…
— Nunca gostei de assistir coisas assim.
— Por favor? — Fez bico, balançando os ombros.
— Se essa é uma técnica de sedução, não funciona comigo. — Felix sorriu, o que iluminou os olhos do outro.
— Humpf! Se fosse pelo rosto, tudo bem. Mas sua personalidade…
— E quem disse que eu não posso ser um doce quando eu quero?
— Felix, no dia que você for algo além de insuportável, eu juro que vendo a fazenda e caso com você! — Riu alto.
— É um desafio?
O Lee se aproximou e apoiou suas mãos nos encostos da cadeira onde Hyunjin estava sentado, com um leve sorriso de canto que surpreendeu o anfitrião. Conseguia sentir o doce cheiro de baunilha vindo do homem, e os olhos castanhos do Hwang se iluminaram com a luz do sol que esquentava seus rostos.
— Vai flertar comigo? Essa é a sua estratégia de me fazer desistir de te levar de volta? — Riu.
— Se eu realmente for flertar com você, vai fugir?
— Eu não fujo. Essa é a sua especialidade.
Não era exatamente a intenção de Felix, mas suas palavras desfizeram completamente o sorriso no rosto de Hyunjin. Aquela frase foi como um gatilho em sua mente, quebrando totalmente a graça que era instigar o Lee daquela maneira.
Sua expressão se fechou, e uma onda de culpa se apossou de sua mente de um segundo para o outro, e Felix percebeu.
— Felix… Vamos entrar. — Suspirou deprimido, com a voz culpada.
O Hwang tentou afastar Felix o empurrando levemente, sentindo um nó em sua garganta se formando. Desviou o olhar e foi se levantar.
— O que foi? Se sentiu ofendido? — Felix provocou, não o deixando sair da cadeira.
— Chega, Felix. Não tem graça. Você consegue estragar tudo.
O olhar sério de Hyunjin não fez o Lee recuar, ele reagiu rápido à mudança de humor do anfitrião, e estava disposto a acabar com tudo aquilo de uma vez por todas. Tinha uma oportunidade, e não a deixaria escapar apenas por não querer machucar os sentimentos do outro.
Não se importava nem um pouco, já era tempo de colocar o Hwang contra a parede e convencê-lo de uma vez. E vendo-o engolir em seco e olhar desesperadamente para qualquer outra coisa que não fossem seus olhos, deixava Felix na vantagem.
— Sai da minha frente. — Mandou sério.
— Tá ofendido por que ouviu a verdade? Já vai fugir de novo, Hyunjin? Não se esqueça que eu estou aqui por sua causa.
— Você não sabe de nada! Nada! — Gritou, batendo as mãos no peito de Felix e segurando fortemente as lágrimas que começavam a inundar seus olhos.
A garganta de Hyunjin apertava e lhe dava vontade de gritar, seus olhos queimavam e seu nariz doía por segurar o choro. Evitava ao máximo lembrar de sua família, de seus amigos e da vida que ele abandonou, para fugir do peso da culpa que sua consciência usava para esmagá-lo diariamente.
Ele tinha vontade de sumir, de chorar, berrar e correr. Tudo para evitar pensar demais, pois ele sabia que acabaria cedendo e voltando para casa.
— Não preciso saber. — Retrucou frio. — Eu não precisei perguntar nem ouvir nada de ninguém, pra saber o quão miserável todos estão naquela casa.
Sua mente estava nublada por pensamentos que o faziam piorar, lembrando-o de cada uma das pessoas que deixou para trás, de tudo o que o levou a tomar aquela decisão. Tudo o que bloqueou durante todos aqueles anos parecia estar voltando ali, na frente de Felix, em rápidos e torturantes segundos.
Em seu rosto, só havia o pânico, a vontade de cobrir seus ouvidos e não escutar o que sabia que o Lee diria. O que sabia que era verdade, e que ele era o único a se enganar — pensando que tudo estava bem.
— Eu não precisei ninguém me contar pra ver o quão exausta seu pai e sua irmã estão~
— Não fale de Heeyon.
— É você quem não deveria citar o nome dela! — Foi a vez de Felix elevar a voz, agarrando Hyunjin pelo colarinho de sua camisa.
Não havia ódio, irritação ou qualquer tipo de sentimento nos olhos do loiro, e isso parecia assustar Hyunjin ainda mais. Mas a verdade em suas palavras o atingia em forma de flashes do sorriso de Christopher dias atrás, e a dor em seu rosto ao ir embora.
Cada palavra de Felix, cada lembrança que sua culpa o obrigava a ter, atingia seu peito como agulhas, e seu corpo inteiro parecia formigar, querendo que aquilo acabasse.
— Você não deveria tocar no nome de nenhum de seus amigos! Heeyon está acabada tentando arrumar a bagunça que você deixou quando foi embora. Seu pai voltou a se envolver nesses assuntos para levar você de volta. Não foi de bom grado que ele me contratou!
Felix talvez estivesse demonizando a situação, ele jogava baixo e sabia disso, mas também sabia que era o jeito mais fácil de convencer Hyunjin a encarar a situação como um homem adulto. Precisava usar tudo o que tivesse em mãos, como armas.
E entendeu finalmente o que aquela anciã queria dizer com “Você tem um efeito peculiar nele, use isso para conseguir o que quer.”. Olhou no fundo dos olhos do Hwang e não mostrou piedade alguma em suas palavras.
Sabia que a probabilidade de ser ainda mais odiado por ele era enorme, mas não é como ligasse para isso.
— Todos os seus amigos evitam e odeiam tocar no seu nome, por lembrarem de como você foi embora. — Exasperou soltando Hyunjin, mas se inclinando na cadeira para que ele não pudesse tirar os olhos dos seus.
— Para.
— Você não é nada mais do que um egoísta, que só pensou em como você ia se sentir quando fosse embora. E se engana constantemente dizendo que tudo melhorou depois que você sumiu!
— Felix, por favor… — A essa altura, o choro e o rancor que estavam presos em seu coração, eram liberados livremente. As lágrimas pingavam em sua roupa, o rosto escondido entre suas mãos trêmulas e molhadas.
Sua respiração falhava, sua mente zumbia em pensamentos tão horríveis e rápidos que ele mal conseguia processar, o coração acelerado e a vontade de vomitar. Chorava tanto que lhe sufocava, lhe tomava o ar e o deixava tonto. Só queria que aquilo acabasse.
Precisava ver sua irmã outra vez, dar um abraço em seu pai; precisava desesperadamente ver seus amigos, ser repreendido por Minho por caçoar da altura de Changbin. Ouvir os conselhos de Chris, conversar sobre arte com Seungmin e jogar com Jeongin.
Não aguentava mais toda aquela culpa, todo aquele ressentimento de ter deixado todos para trás. E mesmo depois de tudo que viveu e sofreu, nada era maior do que a saudade, o arrependimento que batia ao imaginar como todos se sentiram.
— Você foi e é um imbecil se acha que fez bem a todos ter sumido de um dia para o outro, sem deixar uma carta, sem se despedir e sem garantir que tudo estava bem. Encara a sua própria culpa! — Segurou os ombros de Hyunjin firmemente, obrigando-o a erguer a cabeça. — Você trouxe isso para si mesmo!
— Chega! — Gritou ainda mais alto que Felix, com nada mais que desespero e dor em seus olhos e voz. — Chega! Por favor, cala a boca! Eu já entendi! Eu vou! Pronto, está satisfeito? Eu volto com você!
Felix foi para trás com um forte empurrão de Hyunjin, que se levantou rapidamente, enxugando suas lágrimas enquanto voltou a passos apressados e fortes para a casa. Não olhou para trás nenhuma vez, e nem hesitou em fechar a porta com tudo ao passar.
Passou a mão entre os cabelos enquanto o olhava caminhando agressivamente, e a parte humana e sentimental reprimida de si, se sentiu péssima pelo Hwang. E dessa vez foi a sua consciência que pesou. Talvez tivesse pego pesado demais, mas talvez não teria conseguido se não tivesse feito isso.
Sem que percebessem, em meio à briga, o sol já havia se escondido atrás das montanhas e árvores. E agora tudo o que restava era um fio de iluminação naquele morro, um vento gelado e um clima ainda mais pesado do que o do primeiro dia em que pisou os pés naquela fazenda.
Chapter 9: Não Me Faça Chorar
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Passou a noite em claro pensando em tudo o que havia acontecido, com a cabeça latejando e o corpo doendo de tanto chorar. Ele sentia cada centímetro de sua pele o incomodar, como se aquele corpo nem fosse realmente dele.
Nada era confortável, a cama, o sofá, o chão. Só o que sabia era o peso das palavras em sua cabeça. O coração apertava só de lembrar de tudo o que ouviu, de tudo o que foi obrigado a reviver, e sua mente se contorcia em palavras que o destruíam ainda mais.
Os próprios soluços o sufocavam e lhe tiravam o ar que seus pulmões custavam em puxar, seus olhos inchados e vermelhos continuavam a queimar pela quantidade de lágrimas que continuavam a se formar.
Às vezes, sua mente se calava e o acalmava por alguns minutos, apenas para trazer mais uma onda de culpa e arrependimento que o derrubava novamente.
Ali, delirando entre o sono e a consciência, não estava simplesmente jogado na cama a ponto de cair de volta ao chão. Seu corpo flutuava em campos verdes e iluminados por um forte sol que pairava acima de sua cabeça, e o cheiro de grama e flores voava com o vento fresco.
Sentia seus pés descalços na terra, um fino tecido descendo por seus ombros, e podia ouvir com clareza seu nome sendo chamado. Ao longe, todos os seus amigos aguardavam por ele, rindo e se divertindo sentados em uma toalha de piquenique no chão. Até mesmo Felix estava lá, desestabilizando seu coração com aquele belo sorriso.
Não podia impedir seu corpo de correr até eles, vendo Heeyon de costas para ele, mexendo no cabelo e parecendo rir. Tudo estava como deveria ser, ainda mais perfeito do que havia imaginado. E se aquilo fosse um sonho, não queria acordar.
Um sorriso incansável em seu rosto, uma felicidade que transbordava por todo seu corpo ao sentir a grama pinicar suas pernas ao correr. Era real, ele tinha certeza. Os sorrisos, os abraços de seus amigos e até as vozes eram idênticas, como uma memória vívida que nunca havia acontecido.
Mas Hyunjin não tardou em ser trazido de volta à realidade, acordado no susto e arrancado de seu sonho por três toques inconvenientes em sua porta. Foi inundado mais uma vez por uma forte vontade de chorar, mas conseguiu controlá-la e poupar seus olhos já exaustos.
Se sentou na cama com dificuldade, passando a mão em seu rosto e tentando processar as últimas horas, quando os três toques se repetiram.
— O que você quer? — Perguntou apático.
— Sou eu. Vim ver se você está bem.
A voz grossa de Felix fazia sua cabeça doer pela falta de sono, e Hyunjin mais do que nunca queria ficar sozinho.
— Estou ótimo, pode ir agora.
O Hwang ouviu um baque seco na porta, como se Felix tivesse batido a cabeça na madeira. Não deixou de se questionar o motivo do Lee estar ali, e se estivesse mais disposto, até brincaria com isso, mas todo seu corpo gritava por descanso.
Mas ele não tinha mais um ombro amigo para chorar, um Christopher para consolá-lo ou um Minho para ajudá-lo com conselhos brutos. E era tudo culpa dele, e por isso precisava ser forte e engolir seu choro, encarando todas as consequências — que tardaram a vir.
— Hyunjin… Posso entrar? Por… Por favor? — Felix pediu, com hesitação na última parte.
— A porta tá aberta. — Não sabia o porquê de não ter apenas mandado-o ir embora.
Felix abriu lentamente a porta, vendo o quarto bagunçado e escuro com as janelas fechadas, e a única iluminação que agora invadia o cômodo era a do corredor. Hyunjin — que mal teve forças para virar e encarar o loiro — estava sentado na cama de costas para ele.
Se aproximou a passos quietos e cautelosos, ainda se questionando se não era melhor apenas o deixar e voltar para seu quarto. Mas algo dentro de si o impedia de deixar o Hwang sozinho naquele momento.
Parou em silêncio na frente de Hyunjin e se abaixou para olhá-lo nos olhos. Viu o estado em que se encontrava, com os olhos inchados e irritados, o nariz escorrendo e sua pele perfeita maltratada por olheiras e marcas pela privação de sono. Uma pontada de dor correu pelo coração de Yonbok, que se compadeceu e tomou hesitante a mão do Hwang.
Todo o corpo de Hyunjin rejeitou o toque de Felix, mas ele não foi capaz de se afastar, sendo obrigado a se acostumar com a sensação quente de sua pele na dele.
— Eu sei que você provavelmente me odeia agora. Mas também sabe que eu fiz o que precisei fazer… — Seu tom de voz foi se amolecendo, junto com suas palavras. — Mas eu queria me desculpar…
— Você? — Retrucou num tom irônico e ferido.
— Sim, eu. Confesso que talvez possa ter pego pesado demais… Não sou de me importar com os sentimentos de ninguém, mas também nunca me envolvi assim com algum trabalho.
Hyunjin observou enquanto Felix falava, e pôde notar um brilho humano em seus olhos, uma ponta de culpa sincera em sua voz. E sentindo a maciez da mão do Lee na sua, percebeu que não conseguia odiá-lo.
Mesmo sendo torturado continuamente pelas palavras duras do outro, dominado pela pressão que colocava sobre si mesmo. Lembrava dos gritos de Felix, lembrava de cada minuto que passou depois daquilo, sufocando em seu próprio desespero, não sentia ódio.
Não conseguia odiá-lo, nem ao menos um pouco. Talvez a verdade fosse que nunca tenha verdadeiramente odiado Felix, nem mesmo nos primeiros dias. E vê-lo ali, aberto e pedindo desculpas, fazia Hyunjin se questionar se seria tão ruim voltar mesmo para casa.
— Não que eu me importe, continuo achando você insuportável — Brincou com um sorriso — Mas eu não deixo um trabalho por fazer… E talvez eu sentiria isso se eu fosse embora sem me redimir.
Hyunjin apertou a mão do Lee levemente, reunindo coragem para olhar em seus olhos e perguntar:
— Por que você veio?
— Eu já disse-
— Não, Felix.
Por trás dos olhos brilhantes e subitamente humanos do loiro, o Hwang conseguia ver algo a mais, e se fosse realmente para se conciliar com Felix, queria saber o motivo real. Imaginava que o Lee tivesse lutado contra diversos pensamentos e se torturado tanto quanto ele, antes de decidir ir até seu quarto.
E era óbvio o quanto Felix estava hesitando em responder.
— … Hyunjin… Você sabe que horas são?
— Não? Por que eu ia-
— São quase cinco horas da tarde — Felix cortou, vendo os olhos de Hyunjin se arregalaram — Você ficou o dia inteiro no quarto.
De fato, com as janelas fechadas e o rosto afundado em seu travesseiro úmido, era difícil assimilar quanto tempo havia se passado.
— A luz do seu quarto ficou acessa a noite toda. Eu te chamei umas duas vezes e você não respondia. Tive medo que alguma coisa tivesse acontecido.
— Hm. — Hyunjin ficou quieto por alguns instantes, suspirando e voltando a falar — Eu não te odeio, Felix. Tudo o que você disse ontem… Eu não posso negar que foram apenas verdades. É só que…
— Não precisa dizer. Só vim ver se estava vivo.
Se abrir depois de tanto tempo privado de interagir com qualquer pessoa, estava sendo mais complicado do que imaginava. Ainda mais com Felix, que mesmo segurando sua mão — e agora sentado ao seu lado —, e com aquele sentimento transmitido através de seu olhar, não amenizava sua expressão rígida e tom de voz frio. Provavelmente por costume.
Sabia que Felix estava tão desconfortável quanto ele.
— Não, é que… Desde que você e o Chan chegaram de surpresa, eu tentei mais ainda fugir de tudo, todas as lembranças deles e das coisas que me fizeram vir pra cá. Ele deve ter te contado alguma coisa sobre mim.
— Sim, ele disse que no começo você poderia parecer chato e dramático, mas que você era demais. E que eu ia acabar me encantando por você. — Terminou a frase com um nojo forçado na voz.
Hyunjin não pôde deixar de sorrir, recebendo em troca um revirar de olhos e um leve sorriso de Felix.
Sentados ali, na cama, naquele quarto mal iluminado pela luz do corredor, de mãos dadas e tons de voz tristes, Hyunjin e Felix nunca se sentiram tão próximos, quase íntimos. E era uma situação estranha para sentirem isso, mas não se importavam.
— Esse “no começo” tá demorando demais — Brincou, quase caindo da cama com o empurrão do Hwang, que tentava esconder um riso.
— Cala boca, Felix. Mas enfim… O Chan me conhece, e nós dois sabíamos que eu não conseguiria relutar por muito tempo… E que uma hora ou outra, eu não ia aguentar e iria voltar… Eu só não esperava por você…
— Olha, não sei o que te fez vir pra cá, e o que te fez parar de relutar. Mas se fizeram tudo isso, depois de todo esse tempo, apenas pra te levar de volta… Algum motivo deve ter.
— Chris parecia nervoso quando chegou aqui e saiu sem mim… E já está na hora de parar de fugir de tudo. Mas…
Hyunjin pareceu pensar por alguns segundos, virando-se bruscamente para Felix.
— Se eu voltar com você, isso significa que você vai voltar para a Austrália e eu nunca mais vou te ver na vida? — Perguntou sugestivo.
— Sim.
— Podemos ir agora? — Brincou.
— Vai se fuder.
Hyunjin era ótimo em esconder sua dor; ótimo em fazer qualquer um acreditar que já estava bem após apenas alguns minutos. Mas seu coração ainda apertava fortemente, e sua cabeça latejava tentando não chorar novamente.
Felix se levantou com uma expressão mais amena e soltou a mão de Hyunjin, parou novamente em frente a ele e o encarou.
— Nós vamos amanhã de manhã, tudo bem pra você, ou precisa de mais algum tempo? — A voz subitamente carinhosa de Felix surpreendeu o anfitrião.
— Não, amanhã está ótimo — Sorriu. — Eu dirijo!
O Hwang ia se despedir de Felix para começar a arrumar suas malas, quando teve a mente completamente limpa de qualquer pensamento ao ver o Lee se aproximar e colocar uma mão em seu rosto, mas seu corpo não se moveu, os músculos tensos.
Sentindo uma leve carícia em sua bochecha, ele não tirou os olhos assustados do loiro, que parecia calmo como nunca. Já ele estava com o coração pulando do peito, sem saber lidar com a proximidade.
— Não chore mais… Você é menos entediante quando está feliz.
Felix se afastou em silêncio e saiu do quarto, deixando um Hyunjin atônito para trás. Não sabia porque havia feito aquilo, mas imaginou que o Hwang não veria seu ato como algo estranho.
Apenas queria demonstrar que estava tentando se importar. Sentia seu coração mais quente em saber que tudo estava bem entre eles.
Afinal, não foi só Hyunjin que passou a noite em claro. Felix, inquieto e pensando nos próximos dias — e um pouco na briga — ficou andando em círculos em seu quarto, roendo as cutículas e a mente a milhão.
Em algum ponto da madrugada, ligou para Olivia para tentar esquecer um pouco todos seus problemas. E ouviu dela, palavras que de alguma maneira quebraram uma barreira sobre seus olhos que ele nem sabia que existia.
“Eu acho que você tem medo de ser feliz. O tempo vai passar de qualquer jeito, por que você torna tudo tão complicado? Esquece um pouco de Henry.”
[...]
Depois de boas horas merecidas de sono, Hyunjin estava novamente em seu quarto, que dessa vez parecia vazio, assim como da primeira vez que pisou naquela fazenda. Mas não trazia o mesmo sentimento de recomeço, a mesma sensação de liberdade que havia sentido 3 anos atrás.
O dia estava cinza, vazio como aquela casa, melancólico como um final de domingo. Suas malas encostadas num canto qualquer, contrastando com a luz morta que atravessava a janela naquela manhã.
Nem mesmo suas plantas pareciam vivas, e tudo tinha o mesmo tom monocromático e triste. Toda aquela apatia refletia os olhos sem brilho daquele homem, que finalmente havia entendido a situação em que se encontrava.
Em poucos minutos, teria que descer as escadas com todas aquelas malas, embalar as últimas coisas e dizer um adeus definitivo àqueles anos passados ali. Teria de encarar novamente todo o seu passado ao voltar para a mansão. Seria obrigado a dar explicações, ouvir sermões e viver com a constante desconfiança de seus próprios amigos.
Estava desolado com esse pensamento, o olhar de reprovação de Minho, a mágoa suprimida de Seungmin e o sentimento de abandono de Jeongin. Não estava pronto para nada daquilo. E sabia que fugir mais uma vez não adiantaria, sabendo que Felix não tardaria em achá-lo novamente.
“Está tudo bem… Vai ficar tudo bem… Tudo vai voltar ao normal e eu vou esquecer de tudo. Vou começar de novo.” Era o que tentava se convencer.
Não era de seu feitio pensar negativo e ficar se lamentando. Então, Hyunjin respirou fundo e pensou que poderia fazer um café da manhã em sua cozinha pela última vez, regar suas plantas e observar o horizonte.
Pelo menos uma última vez.
— Hyunjin~ Ah, você tá aí. — O Hwang deu de cara com Felix ao sair de seu quarto.
— Bom dia. Suas coisas estão prontas?
— Desde ontem.
— Então vamos lá pra baixo. — Sugeriu, indo até as escadas — Vou fazer alguma coisa pra gente comer antes de irmos.
Era nítido até para Yongbok que Hyunjin estava diferente, não tinha aquele mesmo brilho esperançoso dos outros dias, e a voz não carregava a mesma animação de antes. As coisas estavam mais entediantes do que o tolerável.
Na cozinha, onde o moreno costumava cantarolar e se mover de maneira exagerada e quase que numa dança, ele permaneceu quieto e de cabeça baixa, nem se importando com o silêncio.
Tudo estava ainda mais desagradável do que nos dias em que os dois juravam se odiar, discutindo sem motivo numa hostilidade quase infantil. A falta de qualquer emoção conseguia ser ainda pior.
— Você quer que eu pegue alguma coisa do andar de baixo para você levar? — Felix ofereceu, não querendo ser prestativo, mas sim arrumar algo para fazer.
— Na verdade sim. Tem uma plantinha com as pontas das folhas vermelhas, perto da televisão.
— Só isso?
— Acho que sim, as outras vão morrer de qualquer forma — Aceitou triste. — Mas essa é especial.
Hyunjin apontou na direção certa quando Felix se levantou da mesa, agarrando alguns potes na estante até encontrar o correto. Um pequeno pote de barro decorado com barbante trançado, carregando uma planta baixa enterrada numa terra escura.
Suas folhas destoavam entre si, carregando desde o caule um verde vivo e bem cuidado, se misturando com um vermelho que tomava cada vez mais a cor de sangue conforme chegava nas pontas. A folhagem coberta com pequenas pelagens, fazendo a planta parecer um veludo.
Era magnífica, desde seus brotos até as folhas antigas que começavam a amarelar, e o cuidado especial que Hyunjin tinha com aquela planta era nítido.
— Sempre amei qualquer planta. O Chan me deu essa pouco antes de eu ir embora.
— Eu ganho algum tipo de ponto extra se eu fingir que me importo? — Interrompeu.
O Hwang arregalou os olhos, mas lago começou a rir descontraído. Felix não entendeu, apenas estava sendo um cuzão, para ver se Hyunjin voltava ao normal, não era para ele estar rindo.
— Ai, Felix — Gargalhou com a mão na barriga — Pelo menos você continua o mesmo.
— Como assim?
— Depois de ontem, fiquei com medo de você do nada começar a ser legal. Eu ficaria triste se tivesse que me despedir logo quando você começasse a ser uma pessoa normal.
— Eu sou um doce. — Afirmou convencido.
— O doce preferido do diabo né? Só se for? — Hyunjin retrucou.
— Se eu não estivesse de mau-humor, eu seria completamente adorável pelo resto do dia, só pra calar a sua boca.
— Vou fingir que acredito, pedra babaca.
[...]
Quando a hora finalmente chegou, foi um sacrifício fazer Hyunjin parar de arrumar desculpas para não sair da casa. Às vezes dizia haver esquecido alguma coisa, às vezes inventava ter deixado de trancar alguma janela. Tudo para fugir do inevitável, atrasar o que ele sabia que aconteceria de qualquer maneira.
Felix teve que arrastá-lo para fora do quarto talvez duas vezes, e o flagrou novamente no andar de cima, trancando a porta do único cômodo que não havia visitado naquela casa. Apenas sabia que era ali onde o Hwang se escondia quando sumia por algumas horas.
E ao não ter mais para onde fugir, ou desculpas para dar, Hyunjin foi seguido de perto até o lado de fora, para que não voltasse mais uma vez. Com suas malas na mão, o vento frio e angustiante o atingiu com força.
Tudo parecia se agitar mais do que o normal naquela manhã, e nem mesmo o sol se sentia disposto a aparecer. A melancolia parecia se formar como uma grande nuvem de chuva, nublando seus pensamentos, tornando seu corpo frio, os dedos apertando seu próprio corpo.
O coração batia com força, e seus pulmões puxavam o ar violentamente enquanto Hyunjin tentava não chorar. Ainda sem a coragem para olhar para trás.
A porta da frente já estava trancada, não havia mais volta, aquele era o fim.
— Está pronto? — Felix perguntou.
— Não tenho muita escolha.
Sua voz saía trêmula, sua boca estava seca e seus olhos ardiam, ele não se sentia nem um pouco pronto, seja lá para o que fosse. Tudo o que queria era voltar para dentro de casa, e assistir alguma coisa no sofá, tomando um chá ou lendo um livro.
Os latidos de Kkami irritado dentro da caixinha de transporte faziam seus ouvidos doerem. E ele manteve seus olhos fechados por um bom tempo, tentando controlar e amenizar o aperto angustiante em seu peito.
Hyunjin engoliu em seco e olhou para trás, vendo a casa que se esforçou tanto para cuidar, parecer opaca e vazia, como se o expulsasse de lá.
Todo o peso da realidade o atingiu como uma onda, a mesma onda a atingir seus olhos com lágrimas incontroláveis, que não tardaram a se tornarem soluços.
Tudo pulsava de maneira dolorosa, sua visão era distorcida pela força que fazia sempre que piscava; os joelhos perderam a força e o Hwang cambaleou para trás, levando uma mão até sua boca para tentar silenciar os soluços que o dominavam.
Tudo o que havia vivido naquela casa, naquele lugar, toda a esperança e felicidade — por mais que falos e momentâneos — que a ideia de uma nova vida havia trazido a ele. Tudo, tudo. Tudo.
Tudo. Tudo havia chegado ao fim. Não da maneira que imaginava, não da maneira que havia sonhado após tantas noites inquietas.
Seus amigos não estavam lá, seu pai e sua irmã não estavam lá, num belo dia de sol para anunciar que toda aquela dor havia acabado e que ele poderia voltar para casa. Sua realidade era muito mais dura, cinza. Morta.
Tudo o que via era um céu tão triste quanto ele, toda a natureza sem cor, um latido agudo ao fundo de seus ouvidos e um australiano loiro insuportável que estava o obrigando a voltar para Gangnam.
Voltar a uma vida onde tudo se resumia às coisas horríveis que Hyunjin não queria ter que reviver.
— Hyunjin… — Felix murmurou ao ver o estado deplorável do outro.
Com as palavras de Olivia perfurando sua mente, Yongbok se rendeu a um pensamento intrusivo e avançou na direção do moreno, o puxando fortemente contra seu corpo e o tomando em um abraço apertado. A sensação de um abraço era algo que Felix havia raramente sentido.
Sentiu a cabeça de Hyunjin tombar em seu ombro, deixando que as lágrimas escapassem com ainda mais intensidade, apertando seus braços ao redor de Felix. Deixou fluir tudo o que estava reprimido dentro de si.
Todo o medo do que aconteceria quando voltasse, todo o receio de voltar. Estava cego em meio a todo o pânico involuntário de sua mente, não pensava em mais nada, apenas queria fugir, ignorar seu passado, queria chorar, respirar, gritar.
Precisou do aperto firme de Felix por longos minutos, entre momentos de calmaria e novas ondas de choro e desespero que o derrubaram novamente. Uma dormência percorria todo o seu corpo, e o tornava incapaz de se acalmar, com uma falta de ar que apenas piorava toda a situação.
Com um leve carinho nas costas de Hyunjin, Felix aguardou enquanto percebia a respiração do Hwang lentamente se estabilizando, e as lágrimas pararem de surgirem com tanta violência.
Havia algo muito mais profundo do que “querer uma vida tranquila” naquela reação de Hyunjin, e sabia disso. O choro, o corpo trêmulo e o rosto pálido, algum alarme havia soado dentro da mente do Hwang, mas Felix não sabia o que era, e nem como o acalmar.
E quando finalmente o choro parecia ter cessado, o loiro subiu seu carinho até o cabelo sedoso de Hyunjin, que ainda tinha a cabeça em seu ombro.
— Está tudo bem… Não precisa disso… — Tentou consolá-lo, mas era péssimo nisso. — Eu te trago aqui quando quiser.
O corpo do Hwang enrijeceu de repente, e ele se afastou do abraço de Felix, secando suas lágrimas e dando alguns passos para trás.
— Você vai embora, Felix. — Retrucou amargurado, ainda olhando para a casa.
— … Talvez eu fique por mais algumas semanas. E te trago…
Hyunjin o olhou confuso, Felix coçou a nuca com uma expressão incerta.
— Agora, sem Henry, as coisas lá em casa podem ser bem entediantes.
Hyunjin teve um breve lampejo de esperança. Talvez pudesse voltar de vez em quando e recuperar algumas de suas plantas, aproveitar o calor ameno do pôr do sol ou ver os belos dias de neve que o inverno proporcionava.
— Por que tudo é sobre tédio pra você?
— Não importa. Aqui a adrenalina é maior, então por pelo menos duas semanas eu fico. Sua paz vai ter que esperar mais um pouco.
— É você quem vai ter que me aturar por mais duas semanas — Sorriu fraco, um pouco mais aliviado.
Chapter 10: A Estrada de Volta
Chapter Text
Fazia um longo tempo desde que havia sentido a textura de um volante, a vibração das rodas no asfalto, a resistência dos pedais sob seus pés e a calmaria em um carro numa estrada vazia.
Tudo emergido em um silêncio, ocasionalmente quebrado por um resmungar de Kkami, que nunca havia gostado de carros. Havia um constrangimento desconfortável no ar, e nem mesmo as implicâncias casuais entre Felix e Hyunjin estavam acontecendo.
Yongbok estava quieto desde o momento em que entraram no carro, apoiando o queixo em sua mão, olhando para o lado de fora com o mesmo desinteresse de sempre. E Hyunjin estava concentrado demais em apreciar a estrada para se importar com aquilo.
As discussões e resistências haviam se tornado parte da breve rotina dos dois. Raramente encontravam alguma coisa em que concordavam ou interesses que tinham em comum. Então, às vezes esse silêncio vinha a calhar.
— Já avisou o Chris que estamos indo? — Perguntou calmamente, parecendo aproveitar intensamente aquele momento na estrada.
— Ainda não. Deixei para avisar quando estivéssemos chegando. Imaginei que você iria querer uma entrada triunfal. — Caçoou.
— Awnn que fofo, você estava pensando em mim?
Felix tirou os olhos da janela apenas para virar para Hyunjin com um olhar incrédulo e feição de nojo.
— Eu prefiro pensar em coisas horríveis.
— Então você admite que eu não sou horrível? — Implicou com um sorriso ladino nos lábios.
— Eu não~ Não, você…~ Você é mais do que horrível, Hyunjin.
O Hwang jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, achando engraçado o jeito que Felix se embaralhou com as palavras. Eram raros os momentos de “humanidade” naquele homem.
— Você me dá vontade de só ir embora para Austrália de uma vez. — Suspirou irritado.
— Eu avisei que quem ia ter que me aturar era você.
— Eu te odeio.
— Tudo bem, você vai ter mais duas semanas para ver que eu sou incrível e adorável.
Com os braços cruzados e o cenho franzido, Felix revirou os olhos. Hyunjin tinha um talento especial em tirá-lo do sério, mas, ao mesmo tempo, fazê-lo rir, e talvez fosse isso que não tornasse o Hwang completamente insuportável.
Yongbok achava intrigante aquelas novas emoções, que acabaram emergindo com a quebra de rotina que a viagem trouxe. A estranheza da convivência com o moreno, e as palavras de Olivia, estavam surtindo um efeito desconhecido em Felix.
Mas no momento, ele apenas se concentrava em seu mau-humor usual.
Continuaram daquela maneira por algum tempo, com Hyunjin cantarolando as músicas que o rádio tocava em meio a chiados; Felix novamente entediado quando sua irritação passou; Kkami no banco de trás resmungando e tentando morder a grade da gaiola.
— Vem cá, o seu cachorro é problemático igual o dono ou… — Felix começou.
— Você se acostuma, o Kkami é meio dramático mesmo.
— Ah, sim. Então realmente puxou o insuportável do dono.
Numa careta claramente dramática, Hyunjin se voltou para Yongbok.
— Eu, dramático? — Soltou um gritinho dramático. — Eu não sou dramático!
— Ah, claro, e eu sou o presidente da Jamaica.
Hyunjin achou um novo passatempo nas primeiras duas horas daquela viagem que parecia interminável: fazer Felix se arrepender de tê-lo deixado dirigir.
Aquela estrada vazia era como um parque de diversões para ele, especialmente com alguém tão rabugento quanto Felix ao seu lado.
Ia de um lado para o outro, entrava na contramão, fazia Felix bater a cabeça na janela se estivesse distraído demais, freava com tudo ou acelerava mais do que deveria. Suas risadas calorosas preenchiam o carro toda vez, e Felix parecia que a qualquer momento poderia voar em seu pescoço.
Após fazer isso várias vezes, Hyunjin esperou até que Yongbok estivesse cochilando novamente. Observou a estrada completamente vazia e, com um enorme sorriso endiabrado, virou o volante com tudo e pisou no freio.
A cabeça de Felix foi para o lado e bateu com tudo no vidro, o acordando num susto, mas não foi rápido o suficiente para evitar que com a freada, seu corpo não fosse para frente, fazendo-o bater novamente a cabeça no painel do carro.
— Hyunjin…
O Hwang explodiu em um frenesi de risadas, que rapidamente fez com que lágrimas escorressem de seus olhos, e ele abraçasse seus joelhos com a barriga doendo com a força de suas risadas. Parou o carro em uma parte do acostamento para poder rir sem se preocupar com a estrada.
— Vo- Você tinha que ter… Que ter visto sua própria cara! — ofegou sem ar em meio às risadas.
— Cara, eu vou te matar.
Realmente irritado, e com a cabeça doendo, Felix tirou seu cinto de segurança com uma falsa calma e pulou para cima de Hyunjin, fazendo o mesmo dar um pulo e se assustar. As mãos de Yongbok atacaram com rapidez os flancos do moreno.
Fechou os olhos esperando a dor de um tapa ou até de um soco do Lee irritado, mas Hyunjin apenas sentiu as mãos de Felix aos lados de sua costela. Abriu um pouco os olhos, desconfiado, vendo-o se aproximar furioso.
— O que você tá fazendo~ Ei! Felix!
Aquele rosto emburrado e olhos que faziam o Hwang temer por sua vida, chegando cada vez mais perto apenas para distrair Hyunjin de um destino pior que a morte: cócegas.
— Felix! Não!
E novamente o carro — agora parado — parecia vibrar com as risadas histéricas e desesperadas de Hyunjin, que se debatia e se contorcia tentando fugir do aperto demoníaco das mãos de Felix, lhe fazendo cócegas. Tentava empurrá-lo com as mãos e com os pés, mas nada adianta.
E nem mesmo Felix foi capaz de conter um leve sorriso enquanto praticamente torturava o moreno. Seu peito se encheu de leveza e toda sua raiva pareceu se esvair; ver Hyunjin chorar de tanto rir com aquela risada tão verdadeira e sem filtros, obrigavam seus lábios a se contraírem em um sorriso quase involuntário.
Mesmo com os pedidos por misericórdia e as lágrimas se acumulando no rosto de Hyunjin, Felix só parou com as cócegas quando seus dedos doeram e o Hwang ficou sem ar, e agora era a vez dele de rir do rosto de derrota do outro.
— Cara… Se você quisesse me matar era melhor ter usado a violência! — Respirou com a mão em seu peito.
Yongbok deixou o peso de seu corpo cair sobre o de Hyunjin, tentando controlar seu riso com a cabeça encostada no banco, completamente vulnerável. O Hwang nem teve tempo de se sentir nervoso com a proximidade de Felix, ainda estava estático e tentando respirar direito.
— Eu achava que você iria me bater!
— E eu queria! — Admitiu secando os cantos de seus olhos — Mas se eu encostar em você, Kija me mata e seus amigos me enterram.
— Cara? Então já posso ir preparando seu enterro? Porque eu te juro que vi Jesus descer dos céus e dizer “venha, meu filho”.
Felix riu com o drama de Hyunjin e voltou para o seu assento assim que percebeu como estava escorado no moreno, empurrou o Hwang para longe e cruzou os braços.
— Eu acho bem feito. Fica fazendo gracinha, depois morre e não sabe por quê.
— O que? — Perguntou sobre o rosto imediatamente emburrado de Felix, após controlar suas risadas. — Demonstrou reações humanas e se arrependeu?
Era somente uma brincadeira, mas o Hwang estremeceu sob o olhar afiado de Yongbok.
— Sim. Cala a boca. Eu te odeio.
— Deve odiar sim, Felix. Confia. — Riu.
Hyunjin balançou a cabeça e tirou o carro do acostamento, voltando a dirigir tranquilamente. Às vezes soltava uma risadinha incontrolável ao lembrar das cócegas, e da sensação gostosa e angustiante que elas causavam. E toda vez, percebia que Felix revirava os olhos — o que o dava ainda mais vontade de rir.
Felix era fácil de se tirar do sério, e quanto mais o Hwang conseguia descascar aquela grande muralha ao redor de alguém doce que sabia que existia, mais ele se interessava — e internamente desejava ter mais tempo com ele do que apenas duas semanas.
— Você faz o tédio parecer maravilhoso — Yongbok resmungou entre uma das risadas de Hyunjin.
— Por que é que tudo pra você é sobre tédio?
— Não sei. Não tenho motivo pra pensar e te contar.
— Você fala como se não fosse ir embora e nunca mais me ver na vida. — Teimou. — Vai, me conta alguma coisa.
— Se quer tanto assim me conhecer, me paga um jantar.
Hyunjin revirou os olhos e jogou um sorriso cínico para Felix, virando o volante com tudo para tentar fazê-lo se assustar ou se chocar contra o vidro outra vez, mas dessa vez Yongbok estava esperto.
— Se eu falar, você me deixa em paz? — Felix suspirou.
— Não posso prometer nada…
“Ele é absolutamente insuportável.” Foi o que Felix pensou, mas não era exatamente capaz de odiá-lo. Pensou por alguns segundos, formulando suas frases e tentando entender a lógica por trás de seu próprio pensamento — nunca precisou se abrir com ninguém.
— Não sei se vai fazer sentido.
— E você se importa? — Caçoou.
— Não. — Respondeu seco.
— Então fala, lindo.
O cinismo de Hyunjin e a maneira com que as palavras saíam de sua boca estavam fazendo a cabeça de Felix doer, tentava se manter calmo, pensando que não faltava muito para tudo acabar. Tentava até ver com outros olhos, apenas para ter a certeza de que talvez ele não fosse tão insuportável assim.
— Alguém como eu… — Parou para reformular. — Eu suprimi o que eu sinto até que toda emoção sumisse de mim, alguém assim precisa de algo pra não se sentir ainda mais vazio.
Hyunjin observou em silêncio, às vezes desviando o olhar da estrada para analisar sua expressão. Havia algo incomodado no jeito involuntário que as sobrancelhas de Felix franziam, e seus olhos apertavam, algo que nem Yongbok entendia.
— Pra mim, é a adrenalina. A sensação excitante de que a qualquer momento eu posso morrer, me machucar, que alguma coisa pode acontecer pra matar esse tédio.
— Isso não seria tipo ansiedade?
— Ansiedade te deixa fraco, adrenalina não. — Respondeu franco.
—… Eu ainda vou descobrir quem você é de verdade, Felix.
“Às vezes eu acho que nem eu mesmo me conheço” Foi o que Yongbok pensou, naquele momento e nas duas horas seguintes de viagem.
Desde que era pequeno, viveu rodeado de pessoas frias e que seguiam os passos de Henry. Nunca precisou olhar para si e saber “quem ele era”, não era permitido e nunca precisou falar sobre seus sentimentos. Aquele coração sempre foi fechado e frio, e alguém como Felix, que não conhece nada além da perfeição, não teria motivo para questionar.
Mas Hyunjin o fazia pensar demais, fazia perguntas demais, perguntas que nem ele conseguia responder. Estava começando a se questionar coisas que nunca havia cogitado antes, e não sabia se essa ideia lhe agradava.
Talvez fosse a convivência com alguém tão expressivo como Hyunjin, a experiência de sentir coisas que nunca havia sentido antes. Como o calor agradável de uma gargalhada sincera, o aperto no coração ao ter alguém chorando em seu ombro, um abraço apertado, ou até mesmo tropeçar bêbado enquanto andava abraçado com alguém.
Estava num impasse entre ficar no confortável, que era ir embora assim que deixasse o Hwang na porta da mansão — e não explorar ainda mais esses sentimentos novos;
Ou sair completamente de sua zona de conforto e ficar por mais um tempo com todas aquelas pessoas diferentes e livres, com suas próprias personalidades e sentimentos aflorados. Tinha medo de perceber que toda a sua vida havia sido infeliz por ter que reprimir quem ele verdadeiramente era.
Ainda faltava aproximadamente uma hora e meia para chegarem em Seoul, e Felix já não tinha mais energia para conversar com Hyunjin — que parecia mais nervoso a cada segundo —, então encostou sua cabeça no banco para cochilar após mandar uma mensagem para Christopher.
“Estamos chegando.”
[…]
Sob um céu ainda cinza, o carro estava estacionado a algumas quadras da entrada da mansão, e o ambiente ali dentro havia se tornado sufocante, como se o silêncio formasse uma pressão em seus ouvidos.
O ar parecia maçante demais, pesado demais, e talvez fosse por isso que Hyunjin estivesse a ponto de hiperventilar, olhando fixamente para um ponto sem importância pelo para-brisa, com as mãos tremendo e o corpo congelado. Os olhos presos em um transe vazio e ansioso.
Observando de longe, sem saber muito bem o que fazer, Felix parecia estar olhando para uma segunda versão de Christopher, no dia em que chegaram à fazenda. A diferença é que o Bang disfarçava muito melhor.
A única coisa que cortava o vácuo do ambiente era o chiado da respiração falha de Hyunjin e o distante vibrar do celular de Felix, que não parava de tremer com imparáveis mensagens em tom de desespero vindas de Chris.
[Christopher]
Christopher: que.
C: Como assim
C: Felix?
C: FELIX COMO ASSIM
C: Parça como assim estamos chegando explica
C: Eu vou matar você e o Hyunjin
C: como assim
C: FELIX?????????
C: Filhos da puta
Sentia que — pelo menos com ele — Christopher nunca agiria ou diria coisas desse tipo, a não ser que estivesse realmente desesperado, mesmo por mensagens. Sabia que ele se importava com formalidades, e isso deixava tudo mais engraçado, pensar que Chris provavelmente estava na mesma situação do homem ao seu lado.
— Hyunjin… — Chamou com cautela.
— Hm.
— Você vai morrer desse jeito.
— Tô ótimo.
A voz trêmula e as pernas inquietas entregavam que alguma coisa estava errada na mente do Hwang. Tentava se acalmar, mas tudo o que conseguia era se sentir zonzo ao ficar sem ar.
— Você não-
— E se eles não estiverem me esperando e não for uma surpresa boa? — Atropelou as palavras, ainda com o corpo completamente estático.
— Mas o que você-
— E se no final eles me odiarem por eu ter sumido?
— … Você tá igualzinho o Christopher quando chegamos na fazenda. — Pontuou, não sabendo lidar com o desespero de Hyunjin. — E deu tudo certo, não deu?
— Felix.
— Sim?
— Deu tudo certo? É, ele chegou lá e eu levei um soco na barriga, não o contrário.
— Bem… O pior que pode acontecer é você levar mais quatro.
Foi uma maneira peculiar e desajeitada de tentar consolar Hyunjin, mas estranhamente deu certo. Observou o moreno lentamente afrouxar o aperto ao redor do volante.
— Eles não te odeiam, Hyunjin. Sentem sua falta assim como você sente falta deles.
Se fosse honesto com Felix, o sentimento que o consumia não era o medo, e sim a culpa, tomando conta de si novamente. Não sabia como seria capaz de olhar seus amigos nos olhos depois de ter sumido por 3 anos e voltado de repente, como se nada tivesse acontecido.
Mas sentia sim um leve medo de que não voltaria a se adaptar, de que talvez as coisas estivessem diferentes demais. Tinha medo de que aquele sentimento retornasse, o sentimento de que nunca pertenceria verdadeiramente a algum lugar.
O sentimento de que não merecia pertencer a lugar algum.
— Se der tudo errado… Eu posso ir pra Austrália com você?
— Nem fudendo. — Respondeu imediatamente.
Não sabia se Hyunjin estava falando sério ou não. Mas a julgar pelo drama e pela feição de cachorro abandonado que o Hwang fazia, Felix — mesmo que contra sua vontade — não pôde impedir seu coração de amolecer um pouco.
— O que eu quero dizer… É que vai dar tudo certo. Mesmo que você pense desse jeito, os seus amigos te amam, independentemente do que possa ter acontecido depois que você foi embora.
— Como pode ter tanta certeza?
— Eu vi. Nos olhos de cada um. A esperança nos olhos do Christopher e a saudade na voz de Seungmin.
Hyunjin apertou seus braços ao redor do próprio corpo, não sabendo ao certo como deveria se sentir. Tinha medo de voltar. Medo de se perder, medo de se tornar igual seu pai. Ou até pior, se tornar alguém igual a Felix, sem amor por nada.
Seus lábios tremeram. No fundo, ele sabia que seus amigos não o odiariam por sumir, mas usava isso para mascarar seu pavor, seu receio de voltar. Nada podia lhe garantir que as coisas haviam mudado, ou que mudariam algum dia.
Sua mente borbulhava e fazia seu corpo suar frio, com o desejo de fugir outra vez e esquecer sua vida, seus amigos. Assim, nunca mais teria que se preocupar com nada daquilo outra vez.
A quem estava tentando enganar?
— Vamos. — Sussurrou trêmulo, lutando contra uma lágrima que chacoalhava sob seu olhar.
Aquela casa parecia mais amedrontadora do que se lembrava. O som do portão abrindo, o cascalho afastando e se partindo sob os pneus do carro, a atmosfera da entrada daquela casa não parecia a mesma.
Hyunjin estava parado em frente à porta de entrada, quieto, trêmulo, querendo se beliscar para ter certeza de que estava realmente ali. Seu coração batia em sua garganta, suas pernas podiam fraquejar a qualquer instante, e seu peito apertava em agonia.
Com o rosto pálido e a boca seca, o Hwang prendeu a respiração para tentar dar o primeiro passo, mas seu corpo não se moveu. Seus braços estavam moles e dormentes, ele não sabia o que fazer para conter seu desespero.
— Felix… — Chamou fraco.
— Hm?
— … Segura minha mão?
Felix teve que se conter para não olhar para Hyunjin com confusão, mas logo se compadeceu da expressão verdadeiramente assustada que ele lhe dava, remetia a uma criança perdida, com medo das sombras que pareciam se mover no escuro.
Aqueles olhos tão bonitos preenchidos com sentimentos tão terríveis, não era assim que as coisas deveriam ser — Felix pensava.
— Não estou te pedindo pra casar comigo, cara… Eu só…
Sem precisar de outra palavra, o Hwang sentiu uma eletricidade calma percorrer pelo seu corpo com a sensação quente dos dedos de Felix tocando a palma de sua mão. Segurou a vontade de chorar quando se sentiu capaz de dar o primeiro passo.
— No seu tempo, eu não vou soltar.
Aquelas definitivamente foram as melhores palavras que Hyunjin havia escutado daquele homem.
Lentamente, suas mãos pararam de tremer, e a força foi voltando às suas pernas conforme andava com Felix ao seu lado.
Aqueles corredores pareciam mais longos, as paredes mais claras e os vidros mais limpos. Era estranho estar de volta depois de tanto tempo. A velha árvore parecia mais viva, com suas folhas farfalhando levemente com o vento, brilhando sob o raro sol que escapava das nuvens.
Depois de tanto tempo longe de casa, estar de volta trazia a mesma sensação de quando era criança, correr por aqueles corredores, escalar a árvore no meio do pátio, subir no telhado de madrugada e fugir para brincar com outras crianças. Importunar os pais de Seungmin na cozinha e comer as sobremesas que Yun Hee fazia.
Era assustador e reconfortante ver que nada havia mudado superficialmente, a casa inteira parecer vazia no horário do almoço, com todos reunidos no refeitório, com o cheiro da comida invadindo os corredores.
— Eles devem estar comendo — Hyunjin pontuou com a voz levemente tensa.
— Quer ir até lá agora, ou encontrar seu pai primeiro?
— Eu preciso ver meus amigos.
A necessidade na fala do Hwang era imediata, e Felix o guiou com mais gentileza que o normal, até a porta do refeitório, que agora era a única coisa que os separava do som do tintilar dos talheres nos pratos e as constantes conversas que vinham de dentro.
Nada daquilo parecia real, e uma nova onda de medo tomou conta de Hyunjin, fazendo-o sentir um arrepio estranho correr por sua espinha. Se aquilo fosse um sonho ruim, aquele era o momento de acordar.
Apertou levemente a mão de Felix e se virou para ele, subindo o aperto para seu pulso e o trazendo um pouco mais perto. Já sabia que Yongbok não gostava quando se aproximavam, mas dessa vez, seu olhar amoleceu e ele apenas se deixou ser levado.
— Não vai embora antes de ter certeza de que tudo está bem, por favor… — Pediu, quase implorou.
— Hyunjin, eu não vou embora até você dizer que tudo bem eu ir.
As palavras saíram de sua boca com mais intensidade e sinceridade do que Felix imaginava. Olhando nos olhos de Hyunjin, desesperado do jeito que aquele homem estava, era impossível não ser hipnotizado, perdendo o controle de sua fala e de suas ações.
De mãos dadas, os dois entraram como um ponto final numa sentença bagunçada. Um corte seco pareceu cessar todo o barulho de dentro daquele refeitório quando pisaram ali dentro, atraindo atenção como ímãs.
Tudo se calou.
Agora o tintilar dos pratos e talheres não existia mais, o burburinho animado extinto. Os rostos descontraídos se retornaram em expressões de puro horror, como se ali em frente a eles, caminhasse um fantasma.
Suspiros assustados e até um engasgo acompanharam seus passos pelo refeitório. Hyunjin teve que se esforçar para manter seu queixo erguido e não olhar para ninguém, encarando seus olhos arregalados e expressões de descrença.
Sua mão suava frio na de Felix, e a cada passo que ecoava entre as paredes silenciosas, ele prendia a respiração por mais tempo. E finalmente, de frente para a porta que o separava das conversas que agora pertenciam a seus amigos, uma onda de coragem tomou conta de Hyunjin.
E antes que esse ímpeto pudesse escapar de si, o Hwang entrou com tudo e passou pela porta, olhando ao redor um pouco atordoado e com o coração batendo em seus ouvidos. Uma parte covarde de si desejava que não houvesse ninguém ali.
Mas, se não fosse pelo agarrão de Felix, Hyunjin teria esbarrado com tudo em um Seungmin atônito, que por pouco não derrubou seu prato vazio no chão, com o susto.
Os olhos imediatamente marejados, a boca aberta sem produzir som algum, sendo seguidos por Christopher, Jeongin e Changbin, levantando com tudo de suas cadeiras, olhando sem reação para o homem que apareceu em frente a eles.
— Hyu… Hyunjin…? — Seungmin gaguejou num sussurro.
———————
— De todas as idiotices que eu já ouvi você falar, essa foi definitivamente a maior delas. — O homem sentado à sua frente soltou uma risada.
— Não que seja uma novidade. — O outro adicionou.
— Revolucionário, mas estúpido.
— Estão dentro ou não, caralho?
Passando a mão entre seus cabelos, o loiro olhou para o teto e suspirou, sem saber muito o que fazer naquela situação.
— Você sabe que eu apoio tudo o que você faz, desde sempre, Jay. Mas isso é loucura.
— Tô nesse corre faz tempo, por que agora é loucura? — Retrucou.
— Porque uma coisa é você provocá-los de longe, outra é você meter o louco desse jeito. Especialmente agora que o patrulhamento deles tá pesando naquelas áreas.
— Seonghwa, se eles nunca me pegaram, não vão pegar agora, te garanto, zé.
Jisung se inclinou na mesa, com dificuldade em enxergar naquele bar escuro, com aquela música irritante incomodando-lhe os ouvidos. Cada palavra saía de sua boca com confiança, um gosto amargo de vingança corria por sua saliva, tentando convencer aqueles dois homens a ajudá-lo em seu plano.
— Não importa quantos deles estejam atrás de mim, eles nunca vão conseguir me acompanhar.
— Haa… Hongjoong? O que acha?
— Temos alguma escolha? Esse moleque nunca deixa rastro. Não vamo dá’ pra trás agora, cola em casa quando estiver pronto, vou te dar o que precisa.
— Mas se for pego, não dá pra fazer nada, tá ligado, né?
— Vocês se preocupam demais.
Um sorriso surgiu nos cantos dos lábios de Jisung, tudo estava correndo como planejado, e não havia nada que podia impedi-lo. Virou mais um gole de sua bebida, satisfeito com as negociações, agora só lhe restava colocar em prática.

Lucy_ch4n on Chapter 3 Mon 09 Sep 2024 05:06AM UTC
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Kimmoonblue on Chapter 9 Mon 10 Feb 2025 04:05AM UTC
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